Sobejos de felicidade
* Por Urda Alice Klueger
Neste mundo cinzento onde
estou a navegar na direção do ocaso, de repente, apesar de tão
raramente, acontecem, como lampejos inesperados, alguns instantes de
alegria que faíscam no plúmbeo desta minha vida como setas de luz e
de beleza, e que, apesar da rapidez de faíscas, me enchem de calor e
me deixam trêmula de felicidade.
Hoje, no inesperado deste
cinza que me envolve, de repente aquele momento aconteceu, tão
rápido quanto um relâmpago e tão inesperado quanto um terremoto, e
o abalo de alegria que senti foi equivalente a muitos graus na escala
Richter, e até agora, horas depois, ainda sinto meu coração
trêmulo como se fosse de gelatina recém desenformada, tamanha a
bênção que recebi.
Conto: era meia hora antes do
meio-dia, e o trânsito já começava a se congestionar quando,
fulgurante dentro da minha névoa opaca, o barquinho colorido da
felicidade por um momento resplandeceu à beira da rua apinhada, na
calçada irregular e meio desprezada desta minha cidade que se acha
perfeita, e a seta da alegria se fincou em mim num abalo, e o meu
cinzento se encheu de luz e de felicidade – mas como se vogasse
para alto mar a imagem do barquinho desvaneceu-se em instantes, e só
ficou dentro de mim aquela fugidia visão de um Passarinho de azul,
branco e prata, um pouco inclinado como se a vida lhe pesasse, o
rosto cheio de seriedade e concentração, como se carregasse uma
tristeza, quiçá uma preocupação, que sei eu?
Da mesa dos deuses só me
cabem sobejos de felicidade, como sobejos recebem os cães pacientes
– a vida não me permite nem o vislumbre do que acontece nos
banquetes sagrados, sequer no papel de escrava que porta um abano
refrescante, como a gente vê nas antigas pinturas egípcias. Há que
aceitar e vestir minha fantasia de cão, e embarcar no ocaso
cinzento, para sempre, para sempre... e tremer de alegria quando, lá
uma vez ou outra, receber sobejos de felicidade, como hoje...
E preciso de tão pouco para
ser feliz.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e cinco livros (o 25º lançado em maio de
2018), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições),
“No tempo das tangerinas” (12 edições) e “No tempo da Magia”.
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