quarta-feira, 30 de setembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Use, se necessário.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, crônica “Viagem ao crepúsculo”?

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Deixa que digam, que pensem, que falem...”.

Coluna Jornalista do Sertão – Seu Pedro, crônica “Jesus mandou-me um e-mail”.

Coluna Da vida e outras mumunhas – Marcos Alves, conto “Corrida de obstáculos (Final)”.

Coluna Porta Aberta – Mara Narciso, crônica “O doce amargo do açúcar”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Use, se necessário

Caríssimos amigos (e permitam-me a intimidade do tratamento), boa tarde. Na edição de hoje, dei “folga” aos poetas. Mas há textos instigantes, para todos os gostos. Certamente, vocês não irão se decepcionar com minha seleção, pelo contrário.
Creio que irão refletir e, quem sabe, até escrever algo para ser publicado. Nosso endereço (vocês já sabem), está, como sempre esteve, no rodapé do índice. Não se acanhem. Mostrem o que escreveram para o mundo (e não há nenhum exagero nisso, já que o alcance da internet é imenso).
O leitor Ângelo Mosquera consulta-me, hoje, sobre um tema bastante polêmico. Pergunta-me o que “acho” do uso de palavrões em textos literários. Caríssimo amigo, não “acho” nada. Analiso a questão como editor e respondo que, se a sua utilização for oportuna, isto é, estiver no contexto, e, sobretudo, der verossimilhança à história narrada, pode e até deve ser usado. Sou contra é ao uso abusivo de xingamentos, apenas para chamar a atenção ou chocar as moçoilas inocentes (se é que elas ainda existem) com expressões escatológicas.
Exemplo? Estou narrando uma história que se passa em um estádio de futebol. O juizão anula um gol legítimo do time do meu personagem principal. Qual o comentário verossímil que este faz? Dirá “sua senhoria, o árbitro, equivocou-se no lance?”. Claro que não! Com certeza dirá “esse f..... da p... prejudicou meu time”, ou algo que o valha, mas ainda mais contundente (preencha os pontinhos à vontade, caro leitor).
Há exemplos e mais exemplos em que o tal do palavrão não só é cabível, como é a única expressão que se impõe, para que a história se pareça com a realidade. Nas peças do Plínio Marcos, por exemplo, há uma infinidade de xingamentos entre os personagens. Nenhum deles, todavia, absolutamente nenhum, é supérfluo, dispensável ou está fora de contexto.
Da minha parte, evito, o quanto posso, o uso de expressões chulas. E não se trata de moralismo, pois arte (assim como o Direito) não tem nada a ver com moral. Muito menos a literatura. Ocorre que nós, escritores, até por definição, somos cultores da estética, ou seja, das belas letras. E não vejo qualquer beleza numa sucessão de expressões infantilmente escatológicas, que denominamos, genericamente, de “palavrões”.
Contudo, nunca forço o texto. Nos contos que escrevo (e no romance, em fase de conclusão), sempre que a situação impõe, mesmo que a contragosto, sapeco um ou outro palavrão. O leitor sequer nota, tamanha é a oportunidade, naquele momento e lugar, do seu uso. Podendo evitar circunstâncias de conflito, em que os palavrões se imponham, evito. Mas, reitero, faço isso apenas em nome do bom-gosto. Não se trata, pois, de nenhum moralismo hipócrita e idiota.
Até porque, a rigor, o palavrão não existe. Não é o que se diz que é ofensivo, mas “como” isso é dito, ou seja, a expressão de raiva e o tom de voz. Escrevi uma crônica a respeito (que publicarei, oportunamente, aqui no Literário), analisando, um por um, os palavrões tidos e havidos como os mais “cabeludos”. Concluí que são todas palavras inocentes, desde que não usadas com agressividade.
Portanto, escritor amigo, sempre que algum personagem seu precisar xingar alguém (um juiz, um político sacana, um desafeto etc.) deixe-o fazer. Você, porventura, conhece alguém que nunca xingou ninguém? Eu não!
Desconfio que até os que são tidos como santos já desabafaram alguma vez dizendo algum palavrão (persignando-se, provavelmente, a seguir, como manifestação de arrependimento).
Em suma: se tiver necessidade de usar palavrões, use-os. Mas sem exageros. Tudo o que é demais (até virtudes em demasia), aborrece, cansa e se torna ridículo e condenável. Mas, cá para nós:: êta assuntinho difícil de tratar!!!

Boa leitura.

O Editor.



“Viagem ao crepúsculo”?

* Por Marco Albertim

Título inadequado para uma república ainda nascente, sobretudo para quem confessa não compreender a peculiar democracia cubana. “Durante mais de 50 minutos, falou sobre os delegados do bairro, que são eleitos, depois fazem parte de uma região, por fim o distrito, que depois elegem outros representantes, numa cascata de pessoas e processos que haviam me explicado anteriormente, mas que jamais entendi.”

Está no livro de Samarone Lima, sobre sua viagem a Cuba. Ressalta em suas impressões – são impressões – o depoimento informal de quem o abrigou na ilha. Primeiro um casal de homossexuais avesso à revolução, hospedando turistas para obter dólares. Depois “Celeste”, popular, perfil simpático, sobrevivendo da venda de alimentos no “mercado negro”, desviados de escolas e hospitais.

O autor pilhou-se por suas próprias limitações ao se fiar nas deduções de quem nunca compreendera o propósito de preservação da revolução, no país objeto da hostilidade, do cerco de potências estrangeiras sob o comando dos Estados Unidos. Depois, não fossem sua experiência e a preocupação em poupar dinheiro para cobrir um mês de estada – não de “estadia”-, deixar-se-ia pilhar na pecúnia por “Paco e Jaime”.

Teve a chance de compreender o que ouviu de depoimentos contrários ao governo cubano, porquanto “(...) há uma diferença tão grande entre o que ganham por mês e o que os turistas gastam em um simples jantar, que ter alguém do exterior por perto representa a possibilidade de conseguir alguma vantagem.” Sim...! Há diferenças de classes no socialismo! Revolucionários ingênuos ignoram isso. Há pobreza na ilha, bolsões de insatisfação, tédio em setores esclarecidos e sobretudo no segmento atrasado da população, com traços de lúmpen. Em 50 anos de revolução... Em 50 anos de cerco econômico.

Samarone deu as costas aos sindicatos, à Juventude Comunista, às assembleias de escolha de representantes, ouviu um lado, rendeu-se ao tédio: “Segui por várias ruas, até chegar ao Parque Central, um espaço bem cuidado, com a estátua de José Martí ao centro, apontando para um lugar indefinido, como se mostrasse o futuro aos cubanos.” Samarone Lima está no limite entre o observador desatento e a direita que sabe usar a mira, posto que “a impressão é de que os Estados Unidos não fazem outra coisa, a não ser maquinar a derrocada do regime comunista liderado por Fidel.” Ainda tem dúvidas, caro escriba? Não precisa ser “um bom quadro do PSTU” para saber disso.

Ouviu “Javier”, funcionário de um ministério, “mais defensor da revolução que sua esposa.” O homem citou conquistas na Saúde, Educação, média de vida, redução de crianças mortas em cada mil nascidas. “Descobri uma malandragem nessa hora. – diz o unilateral jornalista – Ele falava sem pausa, sem olhar para a esposa, para ela não entrar, e interromper seu raciocínio.” Porque “Javier detestava ser interrompido, coisa que Diana fazia com insistência.” Que há de mal na particularidade do casal? Descobriu mais, Samarone; viu em “Ernesto (...) uma eterna propaganda revolucionária (...) Era um obcecado pela revolução (...)” Graças a “Ernesto” a revolução cubana sobrevive... Com tamanha limitação, não distinguiu a convocação de unidade em cartaz público, de autoria de Fidel Castro: Que somos e que seremos, senão uma só história, uma só ideia, uma só vontade, por todos os tempos?

“Se tanta gente está descontente – pergunta-se – (...) por que não há revoltas, passeatas, manifestações?” A dúvida poderia tirar a angústia do jornalista. Nenhum governo contrário ao povo se mantém por mais de 50 anos; é anticientífico admitir. Encontrou explicação nos Comitês de Defensa de la Revolución. “Não entendi por que tantos comitês, se a revolução já é uma senhora de quase 50 anos.” Samarone se fez a pergunta a 90 milhas de Miami.

Reclama ainda do Granma, com discursos inteiros de Castro, fotos, das edições dedicadas a Hugo Chávez. Queria o quê!? Elogios a Bush? Ou, amesquinhando as edições, manchetes destilando sangue, dos crimes cometidos no Cerro, bairro violento de Havana? Em Recife, no Rio de Janeiro, há jornais que sobrevivem de shows em letras garrafais. Pero en la isla socialista!?

Samarone Lima tem boa prosa, solta. Há trechos que lembram o gênero conto, como na nota de número 9, primeira parte do livro, descrevendo a discussão passional entre “Paco e Jaime”. Sem apelos nem preconceitos. No entanto, onde achou necessário, em vez de chamar as pessoas pelo nome real, optou por batizá-las conforme a impressão que lhe passaram. Assim, conhecemos “Apressadinho”, “Bonachão”, “Camundongo”, “Médio-ligeiro”. Ao todo, 16 caracterizações artificiais. A pior de todas é “Punheteiro”, “Um gordinho de gravata” falando na TV sobre “O império e a ilha independente”. Tivesse lhes dado o nome verdadeiro, a prosa teria ganho plasticidade. Em que pese ser um livro de fácil leitura.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.




"Deixa que digam, que pensem, que falem... "

* Por Sayonara Lino

Sempre que escuto um falatório a respeito de alguém, ou se ouço que proferiram impropérios a respeito dessa figura que vos escreve, hum... tenho vontade de sair cantarolando e dançando junto com o Jair Rodrigues, no meio da rua e dizer em alto e bom som para tais criaturas cuidarem de suas pequenezas, de suas mazelas, de suas frustrações reprimidas, de suas existências desperdiçadas. " Deixa que digam, que pensem, que falem..."

Difícil jamais comentar a respeito de alguém, para bem ou mal. Faz parte do show, mas tudo tem limite. Uma fofoquinha sem consequências desastrosas, vá lá, a gente passa a borracha. O que não dá mesmo é para engolir o sapo e suportas mentiras, trairagens, aqueles invejosos que precisam diminuir os outros para se sentirem um pouquinho superiores, nem que seja por um milésimo de segundo.

É o complexo de inferioridade fantasiado de bom moço. A capa compensatória do ego, é a vaidade ferida. Está na cara que esse tipo de pessoa deveria, no mínimo, procurar a ajuda de um exímio psicanalista.

Comece a observar o que dizem os que estão ao seu redor. Afinal, pode crer, sempre que falamos a respeito de terceiros, nos denunciamos e abrimos muito mais do que supomos a respeito de nós. Língua ferina indica ranço, boas palavras, quando sinceras, costumam indicar o bom caráter de quem as articula.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Diretora de Jornalismo e redatora da Revista Mista, que é distribuída em Governador Valadares, Ipatinga e Juiz de Fora, MG e colunista do portal www.ubaweb.com/revista.




Jesus mandou-me um e-mail

* Por Seu Pedro

Bem na hora em que eu lia um e-mail, que me chegava assinado por Jesus, a Internet foi embora. Apagou como se apaga o olhar de quem se defunta embaixo de uma carreta, sem dar tempo de pensar. Faltasse luz, não me importaria. Acenderia uma vela, ou quatro delas, uma em cada canto do caixão, e iria fazer orações, para que não viesse a acontecer o mesmo com outro alguém. Assim como a vida, por ruim que seja, é boa demais, sem e-mail, numa época de modernismo e imediatismo, não daria para responder, com urgência, à missiva que Jesus me enviara.

Mas Jesus não necessita de Internet. E Dele recebi uma mensagem: “Meu filho irmão Seu Pedro, percebeu como é bom ter humildade? Até meu xará Jesus da terra lhe mandou um e-mail?” Respondi em meditação ao Mestre: “E por que não haveria de ser humilde?”

Ao tempo, ainda meditava no e-mail de “Seu Jesus”. Era alguém com o privilégio de um nome tão bonito, querendo me imitar, pois postou, antes de seu nome, o “Seu”. Veio-me, então, a certeza de que temos a obrigação de, em nossa vida, ter algo a ser imitado. Se não consigo ser prefeito, pois só Jesus o é, devo ter, pelo menos, algo que Jesus possa imitar. E quem sabe ele, não me conhecendo a não ser por artigos e crônicas pela Internet, tenha gostado de uma virtude que procuro ter: humildade!

A humildade não é o mesmo que dizer “faça de mim o que quiser”. Não é isto. Aborreci-me com o provedor e xinguei de palavrões o pessoal do suporte (ainda bem que não me ouviram). Não eram os culpados. Faltou energia elétrica e, com velas, a Internet não funciona.

Procurei ter a humildade de pedir desculpas ao meu Senhor Jesus pela “raiva”. E ao Seu Jesus, agradeci pelo montão de alegrias pois, se existe algo que me gratifica, é receber um comentário sobre algo que escrevo. Quando ainda menino, fugi da escola, mas dela levei a vontade de escrever. Espero ter aprendido.

O que é ser humilde? É saber ouvir, agradecer, ler e saber que nem todos, e nem todos os dias, escrevem o que queremos. É entender, desculpar, pedir perdão, perdoar até político que trai nosso voto. O que não quer dizer que concorde com que esta ou aquela pessoa faz. Quem garante que os espíritos dos pais de Suzane von Richthofen já não a perdoaram? Eu não a perdoei e nem aos irmãos Cravinhos. Para mim foi bárbaro o que fizeram. Mas, não dizemos que os pais têm mil perdões para os filhos? Como podemos, então, afirmar que nos pais de Suzane não haveria este perdão?

Só uma história e acabo a crônica: Quem mora em Guanambi conhece Natalino, que neste Natal fará 26 anos de idade indicada. A idade real é a inocência dele que dita. Não freqüenta a Apae, porque não aceita. E foge dessa instituição..Não há quem o obrigue a fazer; Sua avó já morreu, sua mãe e o tio com quem morava. Este último foi eletrocutado pela fiação de um velho tanquinho de lavar roupa. Como não teve pai, homem que o assumisse, Natalino mora só, em uma pequena e velha casa, em que assistiu tanto drama. Nem por isto Natalino vive sujo. Freqüenta o Caps.

Se não fosse o enorme físico, eu lhe daria de 12 a 14 anos, do tempo em que com esta idade ainda éramos crianças. Desde que conheci Natalino na Apae, sempre que eu o encontro, lhe dou um real. Dou porque sei que vai comer alguma coisa. Não bebe. Um dia encontro-o na praça e eu não tinha nenhum dinheiro no bolso. Antes que meu amigo me perguntasse pelo seu real, mostrei-lhe os bolsos às avessas e fui dizendo que naquele dia eu é que estava com fome. Natalino saiu em direção às mesas de um barzinho e, logo após, entrou em uma pastelaria e de lá saiu com dois pastéis. E me deu um para “matar” a minha fome. O que Jesus faria? Caminharia ao lado de Natalino. E lá estávamos os três; Natalino, eu e Ele, na caminhando na praça, saboreando os pasteis.

* Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.





Corrida de obstáculos (final)

* Por Marcos Alves

Enfiou a chave com cuidado... Girou para a esquerda de mansinho, assim, e a cada estalo mínimo que saía de dentro do tambor, fazia uma careta. “Seis da manhã, Romualdo. Dessa vez tu exagerou irmão”, pensava. Quanto finalmente conseguiu entrar, deu de cara com o relógio que marca: seis e dez! “Quase acertei”.

Um domingo que já se anunciava de sol, desses de gente na rua, crianças em bicicletas e senhores de moleton fazendo caminhada. Mas para o Romualdo, com aquela cara de ontem e bafo de bebida, não ia dar.

Tudo bem. "Foi só para extravasar um pouco. Não peguei ninguém – mas até que rolou uma troca de olhares, ora com a mulata generosa que insistia em me reparar, ora com o cara que estava com ela, que ficava vigiando o bar inteiro! Esse sim eu diria que não pegou nada mesmo”, Romualdo feito retardado ficava formulando meio que os melhores momentos da madrugada na cabeça.

O ruim vai ser explicar para a mulher que não tinha passado disso mesmo. Claro que a história que ele ia contar não era bem essa, mas pelo menos já tinha um roteiro inicial e... a merda é que elas nunca acreditam. Bom, é melhor tirar essa mesinha da frente, que o passo ainda não está firme...

Beleza, missão cumprida. Agora é só...Deus! O abajur...Como irá fazer para se desviar desse objeto infeliz que fica no caminho para o banheiro? É um corredor muito estreito, e ele terá que ser percorrido com extremo equilíbrio e responsabilidade, porque logo depois tem o aparador e aquele monte de porta-retratos.

Calma, calma. Devagar, assim, devagarinho...está quase lá. Pronto, enfim o banheiro. Ué...todo arrumado, parece que ninguém usa isso há séculos! Nem toalha tem aqui, gente. Cadê o papel higiênico? E essa cueca?

Cueca? De quem é essa cueca suja e desbotada? Romualdo fica doido. Indignado. Sente uma pontada no peito. Amedrontado, solta um berro: Marta! Marta! De quem é isso aqui? Marta! Marta! Ninguém responde. O que está acontecendo?!

Romualdo, meio zonzo, saiu do banheiro. Agora, não sentiu vontade de seguir as regras desse código subliminar que rege as relações humanas, amorosas e não-amorosas, mas que incluem o interesse comum por algo que não tem como ser regido por um, apenas por dois.
Sem cerimônia e nenhum cuidado esbarrou no aparador, derrubou o porta-retratos, quebrou o abajur, quase chorou de dor ao bater a canela na mesinha da sala e com muita dificuldade abriu a porta do quarto de casal. Não havia ninguém em casa.

“Essa ingrata está mesmo me traindo”. Um pensamento piegas o pegou de surpresa e, com a certeza que só os cornos têm, procurou pelo celular que passara a noite toda desligado e ligou, ligou e ligou. Infelizmente, só uma gravação respondia: “Este celular está fora da área de cobertura ou desligado”.

“Tu, tu, tu, tu”. Pela quinta vez ouvia aquele som de telefone ocupado que sempre toca depois da mensagem de “Esse telefone está fora da área de cobertura ou desligado". Iria atrás dessa mulher ou deveria, quem sabe se resignar?

Será que ela o traía há muito tempo e ele sequer suspeitou?. Claro! Aquele jeito de mulher dedicada e ao mesmo tempo um furacão na cama, era tudo para deixá-lo maluco de amor e cego de confiança.

Se não fosse essa a última vez haveria uma outra, quando seria a próxima? E ele acreditando que aquela torta fantástica dos finais de semana e feriados era feita para Romualdo. Tolo, idiota, cafajeste de quinta categoria. Idiota. Puta que o pariu!

Calçou de novo os sapatos, e nervoso mal conseguiu dar nós nos cadarços. Assim, meio sem voz, Romualdo voltou para a rua. Pegou um táxi e se mandou para a casa da sogra.

Acordou a velha com uma insistente campainha às sete da manhã e disparou:- Cadê sua filha?
-Eu é que sei? A mulher é sua – respondeu a senhora.
- Não é mais minha mulher, é só filha sua. Mas como ela não está aqui?
- Não está, ora... O que houve Romualdo?
- Nada, não houve nada.

E saiu de novo, antes que a dona Rosinha terminasse de lhe oferecer um café, essas coisas. Faminto, agora andava já sem dinheiro para o táxi e decidiu ir até o ponto de ônibus. “Ela não podia ter feito isso”, pensava mas sem tempo de terminar porque tomou um puxão de lado. Alguém segura a sua mão com força por trás.

Vira-se para ver uma cigana de vestido florido e sorriso desdentado, embora com dois ou três dentões de ouro, outro que parece prata mas de repente é obturação antiga...ela pede para ler sua mão. Transtornado ele deixa, pela primeira vez na vida – já que não acreditava nesse tipo de coisa.

A dupla vai até a escadaria de um prédio e, no cantinho perto da planta que decora a entrada a cigana começa, sob o olhar preguiçoso do porteiro, que assiste à cena da mesinha atrás do vidro:
- Você está sofrendo...
- Sim, sim, estou.
- É dor de amor.
- Como sabe?
- Marianita tudo sabe.

Ele não quer ouvir mais nada. Tira os cinco reais que lhe restam no bolso e entrega para a mulher.

Resolve voltar à pé para casa. Não se conforma. Súbito, tem uma idéia. Talvez ainda exista uma chance. “Não vou perder minha mulher assim, fácil. Ainda resta o cartão de crédito”, agora liberado pela operadora depois dele ter suado sangue para pagar a fatura do mês passado.
Entra na joalheria e escolhe um par de brincos de ouro – o mais bonito da vitrine. Quase dois mil reais. “Tomara que funcione, nem sei como vai ser se ela me trocar por aquele infeliz da cueca”, pensou.

Chega em casa, todo suado. Abre a porta e Marta está na sala, com a cara amarrada. Ele não diz nada antes de estender o presente com as mãos, como um menino.- Olha, é para você.
Ela pega o presente, abre, e um sorriso se abre, seguido de um abraço carinhoso. Marta vai logo experimentar, e volta do quarto radiante com o brinco na orelha.
- É lindo, amor.

Ele, meio confuso, mas feliz da vida, diz sem jeito:
- Você merece muito mais.

Ela senta no sofá e diz para ele que na noite passada nem esperou ele chegar. Teve que sair, por volta das 21 horas, para acompanhar uma amiga até a Santa Casa. Esquecera de levar o celular, até porque nem ia adiantar. Estava completamente sem bateria.
- A mãe dela teve um AVC e a minha amiga, a Suzana, lembra?

Ele faz um gesto afirmativo com a cabeça. Marta continua:
- Pois, é, ela estava muito deprimida, e me pediu para acompanhá-la... Fiz companhia para ela a noite toda. Estou um caco e agora posso finalmente dormir um pouco. Espero que não fique chateado, mas pouco antes de sair dei uma faxina na casa e usei uma cueca sua para limpar o banheiro. Está toda manchada de água sanitária, além de ter acumulado sujeira do chão, das paredes... É melhor jogar fora.

* Jornalista, www.marcos-alves.blogspot.com



O doce amargo do açúcar

* Por Mara Narciso

A menininha tem cinco anos, é fofinha, com pele clara, cabelos cor de mel, finos e encaracolados. É aquela criança que convencionamos chamar de gracinha, de tão delicada que é. A mãe deixa a menina na escola e vai para o trabalho, mas no final do dia pega a filha e podem ficar juntas um pouquinho.

Notou que a menina estava urinando muito e a toda hora. Olhava intrigada quando mais uma vez, e outra e mais outra, em um pequeno intervalo a criança pede para fazer xixi. Concomitantemente veio a sede intensa. Na hora de dormir pediu mais um copo de água. E de manhã a cama estava molhada. Então foi um susto, já que desde os dois anos a menina não mais urinava na cama.

A mãe não hesitou e a levou imediatamente ao laboratório para fazer um exame de sangue. Houve a confirmação do diabetes. A glicose estava muito elevada, mas não foi preciso internar. A endocrinologista mandou iniciar com as injeções de insulina imediatamente, antes que a alta do açúcar no sangue ameaçasse a vida da menina, que também tinha emagrecido.

Então começaram as instruções para bem cuidar daquela taxa de açúcar que sobe e desce ao sabor dos ventos. Foi indicada uma visita à nutricionista que prescreveu uma dieta. Sugeriu várias restrições, e também fixou os horários e as quantidades dos alimentos. É preciso obedecer com rigor para tentar evitar grandes flutuações da glicose.

Quando a criança acorda, a mãe faz o exame de ponta de dedo – a glicemia capilar –, para verificar a taxa de açúcar, e então calcula qual dose de insulina deverá ser administrada. Após a insulina, a menina alimenta-se dentro daquilo que foi pré-determinado, e só então pode brincar. A escola é na parte da tarde.

A mãe sabe que não pode atrasar nenhuma refeição, e nem fazer exercício com o estômago vazio. Antes disso é preciso comer. É necessário um equilíbrio entre a comida e a insulina. É como se a glicose estivesse numa gangorra, ora subindo, ora descendo conforme a ação da insulina, do alimento e do exercício.

A alimentação, a emoção, as doenças, especialmente a febre, são determinantes para fazer a glicose subir. Ao contrário, a diarréia e vômito, assim com exercício, e atraso nas refeições são fatores de abaixar a glicemia. Isso como regra geral, pois até os mais experientes cuidadores da glicemia surpreendem-se quando fazem tudo exatamente igual em dois momentos e o resultado vem muito diferente.

O maior medo é da hipoglicemia. Ela é o terror das mães de crianças pequenas com diabetes. É que a glicose normal é muito próxima da glicose baixa. Um pequeno deslize pode ser suficiente para que ocorra um desequilíbrio com uma baixa exagerada onde a criança poderá manifestar uma ameaça de desmaio e até mesmo um desmaio real, com convulsões. Para evitar isso, as mães fazem exames de glicemia de madrugada para assim quantificar a ação da insulina na hora em que o estômago está vazio, e os riscos são maiores. Os resultados baixos são tratados com alimento.

Na escola, a professora sabe fazer o exame de ponta de dedo, e ele é feito antes do lanche, ocasião em que a insulina é calculada e dada conforme a necessidade. Após alimentar, a criança vai brincar com as outras. No começo desse controle, a mãe olhava a filha mortificada, sentindo nos próprios dedos a dor das constantes picadas. Sabe que elas são imprescindíveis para evitar grandes mudanças, e as temíveis complicações, sejam as agudas que são os desmaios, sejam as crônicas que são as lesões da retina, dos rins, dos nervos e da circulação que ocorrem quando o tratamento é inadequado.

As consultas médicas devem ser frequentes, em vista da necessidade de mudanças nas dosagens da insulina e ainda nas trocas das marcas, pois o tratamento não pára de evoluir e novas insulina, mais fisiológicas são produzidas a cada dia. A mãe sabe que há as insulinas lentas que cobrem a situação no jejum e as insulinas ultra-rápidas que cobrem a glicemia na alimentação. Daí a necessidade de calcular as doses a cada refeição.

São tantas as variações da glicemia que a mãe diz com ar estafado: “a glicemia da minha filha oscila muito. Parece ser impossível conseguir uma redução nos picos e vales, de tanto que varia”. Mas ela já entendeu que isso não é uma particularidade apenas da sua criança, pois já pesquisou e se consultou com mais de um especialista, deduzindo que essa gangorra longe está de ser uma especificidade da sua menina.

Enquanto a mãe fala dos seus anseios, a filha olha pela janela, e se volta com um lindo sorriso dizendo que vai passear no shopping após a consulta. Está alheia e feliz, e não parece se preocupar com a nova realidade. A mãe sofre mais do que a criança. A menina já se habituou às picadas nos dedos, que já estão feitos peneiras de tão furadinhos, assim como com as injeções aplicadas com as práticas canetas e as difíceis restrições alimentares. A mãe, a cada perfuração em busca do sangue, sente doer dentro da alma. E ainda se tortura pensando em que está errando por não conseguir controlar o diabetes tão bem quanto lhe foi solicitado.

Passando pela porta, em busca da saída, a menininha despede-se sorrindo, com a sua graciosidade infantil: “tchau”! E acena com a mão direita cor-de-rosa, cheia de buraquinhos, naquela distância, invisíveis, como é invisível a ação protetora e angelical da sua jovem mãe.

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

terça-feira, 29 de setembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Avanço com direção

Coluna Imitação da vida – Laís de Castro, conto “Abadá”.

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, crônica, “Epifania”.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Coragem”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Conhecimento de si”.

Coluna Porta Aberta – Cacá Mendes, crônica “Especial para um abraço – nos uns e todos”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Avanço com direção

Olá, amigos leitores, boa tarde. Estamos chegando a mais um final de mês e temos vários motivos para festejar. Mas vamos por parte. Ao cabo de cada período, sempre é saudável fazermos um balanço em nossas atividades e em nossas vidas, para sabermos a quantas andamos. Completaremos, amanhã, 1.249 postagens, incluindo editoriais, índices e imagens, o que é quantidade para ninguém botar defeito. São textos para todos os gostos e graus culturais, de escritores que não precisam provar mais nada para ninguém.
Vivo reclamando da falta de interação no Literário. Nesse aspecto, sou chato mesmo. Para avaliar se minhas queixas têm tanta procedência assim, tive a paciência de contar, dia desses, quantos comentários foram postados neste período que estamos na “nova casa”. Confesso que me surpreendi com o resultado. Até ontem, eles já eram 907!!! “Mas como?”, perguntará o atento leitor, se, diariamente, a média é de cinco ou menos? Pois é, mesmo assim...
Outros podem argumentar: “Ora, são sempre os mesmos que comentam e a maioria dos comentários é de próprios colunistas do Literário”. Onde, porém, está o demérito disso? Ora, pelo menos para isso nossa revista eletrônica está servindo! Ou seja, para um diálogo constante e cordial entre os participantes o que, em qualquer circunstância, é saudável.
Antes de “fazer festa”, procurei analisar nossa situação anterior. Constatei que a média de comentários no espaço que antes ocupávamos (um site de renome, com 50 mil jornalistas cadastrados!), era de quatro por dia! Qual a conclusão, até aritmética? A óbvia! Avançamos um por dia. Não importa que seja um avanço discreto, quase imperceptível. Quem quer chegar a algum lugar (e nós queremos) não se apressa. Dá um passo por vez. Mas sempre em sentido progressivo.
Nosso avanço, posto que pequeno, foi, sobretudo, com direção. Não estamos andando em círculo, às cegas, mas seguindo em frente, devagarinho, mas sempre. A passo de tartaruga, é verdade. Mas é melhor do que o de bêbado, que se caracteriza por “um para a frente e dois para trás”. Pois é, avançamos!
Há outro aspecto a considerar. No nosso “domicílio” anterior, raros eram os leitores que buscavam comunicação direta com o editor, mediante e-mails. Aqui, todavia, a média é três vezes maior do que a dos comentários postados. Ou seja, de pelo menos quinze e-mails (há dias que esse número é muito maior) de segunda a segunda, sem interrupção. São leitores que receiam se expor, mas que, tenho certeza, logo perderão este medo (até um tanto compreensível) e vão participar ativamente.
As mensagens que considero de interesse geral, respondo, aqui, neste espaço (e vocês são testemunhas). As que se limitam a elogios ao editor, guardo-as para mim, pois apesar de vaidoso como todo mundo, não sou “ególatra” e não vivo a “adorar meu umbigo”. Meu objetivo, nestes três anos e meio de existência deste espaço, não é o da autopromoção, mas o de promover e consolidar o Literário. E olhem que sequer citei o expressivo crescimento dos nossos “seguidores”. E nem abordei o aumento no número de acessos, que pode ser conferido por todos no “contador de acessos”.
Reitero, pois, que estamos avançando em todos os sentidos. A passo de tartaruga? Sem dúvida. Mas, repito, é um avanço seguro e firme e, sobretudo, com direção. Creio que você, leitor amigo, conhece a fábula (se não me engano, de La Fontaine) da corrida do coelho e da tartaruga. Contrariando toda a lógica, vocês se lembram de quem venceu? Foi quem manteve a constância e persistiu. Ou seja, foi a irritantemente lenta tartaruga. E assim somos (e seremos) nós.

Boa leitura.

O Editor.



Abadá

* Por Laís de Castro

Carnaval é carnaval e em amor de rei momo a gente se conhece no sábado para desconhecer na quarta-feira-de-cinzas, quando tudo volta ao normal, a vida deixa de ser uma festa pra voltar a ser difícil e eu aqui duranga, tendo que trabalhar nessa lanchonete de sol a sol pra poder juntar dinheiro pro abadá do ano que vem. Ora, de repente, chega esse gringo que mora no Rio e é diretor de multinacional com essa idéia louca de casar, que casar coisa nenhuma, casar não é casaca, amigo.

Eu estava lá no bloco, suando e pulando, com mil pessoas por metro quadrado, tudo apertadinho mas gostoso, cantando com a Ivete Sangalo e, de repente, chega esse gringo doido e me agarra e fui gostando e pulando grudada nele e eu ali saindo do chão, só no axé. Escapei, sorri para ele e sumi no meio da multidão. Mas isso foi só o começo.

Agora vem esse maluco me pedindo em casamento, quer me levar pra morar no Rio de Janeiro com ele e depois para os Estados Unidos que ele é gringo americano mesmo. Quando eu era pequena a gente via um americano no Pelourinho, a máquina fotográfica na mão, a camisa florida que eles gostam de flor na camisa e corria atrás pra ver se ganhava alguma moeda que a vida desde aquele tempo não era fácil.

Eu fiz só o curso primário e virei doméstica, mas, sem falsa modéstia, fui ficando uma mulatona gostosa, dourada, de carnes firmes e na segunda casa que eu trabalhei já ganhava uma grana do patrão, por fora, para fazer umas coisinhas com ele. Isso vinha dobrando o meu salário e eu também danei a achar gostoso, que não sou de ferro.

Assim fui fazendo meu pé de meia até que conheci o grande amor da minha vida. Era um negro cor de nanquim, alto, de costas largas, parecia um armário, tinha os dentes brancos como leite, o sorriso suave, o cabelo raspadinho igual do Barack Obama, e falava baixinho como um padre confessor, diferente de todos os outros negros da Bahia que gritam e gostam de contar vantagens e beber cachaça pelas esquinas.

Então esse homem veio chegando de mansinho no ônibus em que eu ia para a minha casa e se encostou em mim, eu tenho essa sina, acho que é por causa da minha bunda durinha, todo homem vem encostando em mim e ficando bem disposto, digo, assim, bem disposto. Aquilo me fez estremecer e você pode não acreditar, apesar de tudo eu nunca tinha tido um homem de verdade dentro de mim. Conversa vai, conversa vem, e quem queria conversar? A gente queria mesmo era encurtar a conversa pra que ficar insistindo num assunto que todos sabem que vai acabar na cama, pronto, acabou.

Ele era delicado, macio, parecia um deus de ébano. Eu estremecia de prazer e ele me abraçava tanto depois do amor que eu imaginava que nada na vida poderia me machucar, pois estava ali protegida por aquele orfeu. Ele me supria de amor, prazer, carinho, companhia, alegria e felicidade.

Todo mundo sabe que um amor assim não pode durar e eu vou economizar tempo, porque na Bahia, camarão que dorme o mar leva. Quem atravessou o nosso caminho foi uma branca linda, morena, de olhos verdes, rica e cheia de paixão. Eu sei que ele me amava, mas não há quem resista a apartamento de cobertura, carro, mulher branca e gostosa.

Ele ficou comigo e com ela durante um ano.

Era tanta briga, tanto grito na porta da minha casa, ela mandava recado malcriado pelo motorista, ameaça de morte com buquê, dizendo que umas flores iguais aquelas iam enfeitar meu caixão, chegou a mandar um cara com um bom monte de dinheiro para eu sair da vida dele. Nesse dia eu não me contive e dei o troco. Baixou um santo brigador em mim, eu parei na porta do prédio dela, as pernas abertas, a mão na cintura, uma mulatona de 1m80 gritando tanto e tão alto que chamaram a polícia.

Cana, você sabe o que é isso? Fui presa porque não queria que ela roubasse meu homem!

Era um dia 7 de setembro, dia da Independência do Brasil e da independência dele, nunca mais vou esquecer esse dia porque foi quando ele me deixou. Com tanto amor e tanto carinho, porém, foi me buscar na delegacia, me levou para casa e explicou que não ia mais dar, com aquela voz suave de Paulinho da Viola, e eu ali escutando e as lágrimas escorrendo e eu vendo tudo preto, desmaiei não de amor, mas de fome, porque tinha esquecido de comer de tanta raiva.

Não, eu não tive raiva do gringo que me encoxou atrás do Trio Elétrico. Ele gostou das minhas coxas, redondas como um pilão de amassar amendoim no terreiro. Sou cor de bronze, fico ali entre a mulata e a negra, tudo bem, os gringos adoram, os patrões também, sou bonita. Afinal.

Meu amor me deixou há 3 anos e eu já arrumei outro banzé, esse é o problema. Ele é meio que gritão, mas me adora de verdade. Só que eu acho o beijo dele meio babado e que ele bebe muita cerveja apesar de ser motorista de táxi e dirigir o dia inteiro meio que pro alegre. Na Bahia o povo toma cerveja como água, também é um calor desgraçado e a gente vai vivendo de amor e tristezas, de alegria e solidão, das belezas e das dessemelhanças.

Preciso voltar um pouco e dizer que arrumei emprego numa lanchonete, onde ganho mais e trabalho menos e haja gorjeta, meu irmão, mas lá eu não deixo ninguém me encostar. Tira a mão que não é pro seu bico. Calado! E tira a mão senão eu chamo a justa, o guarda também vai querer tirar uma lasquinha pra me livrar do freguês e a coisa esquenta. Vira putaria, baixaria, melhor só olhar bem feio pro corno e mandar tirar a mão.

Meu taxista só aparece na lanchonete para almoçar e depois na hora de fechar. Aí ele e me leva pra casa e fica lá comigo, depois do amor, aquele cigarro honesto, aquela fumaça azul cor do céu da Bahia...

E então com esse meu novo homem eu vou pro trio, de abadá comprado a prestação e tudo, minha vida quase no lugar, faltando um ano pra eu acabar de pagar a casa na periferia e ele vir morar comigo e a gente até pensando em ter neguinho e now, suddenly, me aparece esse gringo porra louca, aqueles olhos azuis, aquele cabelo amarelo, a pele vermelha como crista de galo, queimada do sol de Salvador, me agarrando assim e me deixando com insônia num sábado de carnaval? Vai se coçar sai da minha cabeça americano louco. Quem te deu esse direito?

Domingo de Carnaval, depois de tomar umas cervejas com o meu taxista, ele foi pro trabalho e eu pro trio elétrico, porque, como diz Caetano Veloso atrás do trio só não vai quem já morreu. Preciso dizer que eu passo o dia todinho lá de pé servindo os clientes? Além dos caras, tem até umas moças que vão lá me cantar e estender a mão prá tirar uma casquinha da minha bunda. Eu aceito sim senhor, porque a mão é delicada e as gorjetas são enormes. Pena que elas não têm onde segurar, senão eu me amarrava numa.

Bem, então eu estava lá no bloco e quem vem me encoxando de novo? O danado do americano aí eu fiz um escândalo, falei que ia chamar a polícia, os seguranças apartaram, levaram ele pro outro lado e eu pulei a noite todinha levantando poeira, gritando e cantando e seguindo a música, o ritmo, o atabaque, e até Carlinhos Brown veio com a Timbalada ajudar a noite a ficar mais linda.

Eram 4 horas da manhã quando eu saí para encontrar meu taxista no ponto marcado e então lá veio o americano, desculpe, desculpe, eu não faço mais aquela coisa feia, eu só quero conversar um minuto, eu só quero ver você amanhã de dia, na praia, posso ser seu amigo, por favor, só quero conversar um minuto, falou, naquele português arrevesado de criança de cinco anos. Mas falou!

Caramba, o homem e é mais insistente do que onda do mar, vai e volta, vai e volta...

Cara amanhã a meia noite eu vou entrar no trio e a gente conversa, que praia que nada eu sirvo na lanchonete o dia inteiro, não vou dizer aonde. O gringo mora no Rio de Janeiro, trabalha no Rio, gosta do Rio e gosta dessa minha Bahia, que tem sexo à flor da terra.

Então ele chegou à meia-noite e segurou a minha mão, vamos emboria daqui que eu quero você pra mim, só pensa em você, passei o dia todo sofriendo em vez de aproveitar esse sol, ele sussurrava na minha orelha eu sentia aquele bafo quente e gostoso e o cara era delicado como o meu deus negro, alguém pode acreditar nisso, não pode. O taxista só vinha me buscar as 4 da matina e, meia hora depois, eu estava na cama do hotel com o loiro.

Não vou repetir para vocês tudo o que eu sentia com aquele que a branca me roubou. O gringo era gentil, protetor, simpático, ria à toa, foi me envolvendo e eu então pensei talvez valha a pena ficar uns tempos com esse gringo de olhos de maresia, sei lá, não sei... Meu cabelo amarelo, já estou chamando o cara de meu, que merda é essa, tenho que levantar e correr que o taxista vai me buscar. O gringo não quer nem saber, diz que vai casar comigo. Corri. Voei. Ainda flutuei um pouco no trio da Ivete, suando o abadá pra não dar na vista. Estava louca de paixão pelo amarelo. Ufa, o taxista ia chegar...

Na Bahia, peixe que se distrai vira filé... foi o que aconteceu com o taxista.

Medo. Vou logo contando que a palavra medo e o verbo apavorar me mandaram de volta pra lanchonete. Eu solitária em Salvador, ele sozinho pro Rio. Quem pensa que o amarelo desistiu, esqueça. Eu lá servindo, um mês depois do carnaval, a vida voltou ao normal, todo dia a mesma ladainha e haja ladainha praquele tanto de igreja... eu lá servindo e ele sentado na mesa, o dia todinho, queimado, salgado e belo, com uma paciência franciscana, esperando eu dizer que casava com ele.

Fui para o Rio passar férias e ele me tratou como uma princesa, me desejou como a uma rainha, me rasgou de paixão, me roubou a lucidez na cama e na vida... não queria que eu voltasse, mas eu conheço bem a palavra medo, não nasci pra ganhar na loteria.

Voltei, chorando mais que criança desmamada, conjugando o verbo assustar.

Terminei tudo porque não acredito em conto de fadas. Eu, uma mulata pobre da Bahia, ele não vai me apresentar para a família lá dos Chicagos, vai ter vergonha de mim, pobre e negra... E depois, como dois e dois são quatro, me troca por uma brancona para ter aqueles filhos loirinhos que a gente vê nos calendários.

Parei de atender os telefonemas dele, tão insistentes quanto minha recusa.

Abri e aceitei os presentes que vinham pelo correio com a dor da saudade doendo mais que sapato alto apertado, sem meia. Minha cabeça triste, meu tesão no pé, eu mais que camarão de acarajé, meus olhos vermelhos não viam nenhum macho mais por ali. Emagreci oito quilos, eu, que já era magra.

O deus negro se ofereceu para me consolar, o taxista, deu uma de irmão, que na Bahia, as coisas terminam e a gente fica amigo e irmão, mesmo.

Eu não aceitei porcaria nenhuma. Era como uma máquina, trabalhando no automático... Só pensava em guardar dinheiro para o abadá, queria o carnaval para sonhar, já que a insônia me impedia de sonhar dormindo... Mas o carnaval demorava a chegar como ônibus quando a gente está no ponto, aquele nervoso, aquela ansiedade.

Eu estava lá no bloco prestando bem atenção à Ivete Sangalo, pulando de orfandade, levantando poeira de raiva, sei lá o que, saudade, a dor profunda diminuída mas não curada. Ainda parecia uma flor murcha, a vida desfeita em ondas de suor e vento, a voz em tons graves, os olhos só vendo o chão. De repente, senti um jeito familiar de me abraçar, de me tomar a cintura, protetor, de quem me queria de verdade. Comecei a vazar lágrimas como um rio na cheia. Um ano inteiro tinha passado e a vida só que jogando nas minhas mãos a sofrência e a alegria do verbo recomeçar. Desta vez eu vou ficar viva. Na Bahia, quem tem medo morre cedo.

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.




Epifania

* Por Risomar Fasanaro

Ao jornalista António Gouveia

Rua Augusta, noite de sexta-feira. Ali estava eu na lanchonete Ibotirama com António Gouveia, Cacá Mendes, Diogo Gomes e Joseane. Os quatro especialistas em cinema, e eu ali, uma ignorante da 7ª arte, que só sabe gostar ou não gostar desse ou daquele diretor, desse ou daquele ator, dessa ou daquela atriz, entre aqueles especialistas.

Havia meses andava triste, angustiada, tentando a todo custo entender uma situação que vivera e que me deixara marcas, feridas que não cicatrizavam. E por mais que rememorasse e analisasse, não conseguia compreender.

No meio da conversa, falou-se em Chaplin. O grande Chaplin de quem é impossível não gostar. Suspirei aliviada, pois havia lido sua biografia e assistido a todos os seus filmes, não apenas uma, mas várias vezes cada um deles. Pois não sei ler um livro sem relê-lo, ver um filme uma única vez. Sempre que posso vejo e revejo.

Sentado em frente a mim Antônio Gouveia, cineclubista histórico, jornalista e advogado, mentor intelectual de toda a base legal dos cineclubes no Brasil. Junto com pessoas do DA XI de Agosto foi ele que redigiu o Estatuto Básico dos cineclubes nos anos 70, quando fundou um cineclube no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.

No início dos anos 80, ele e Diogo Gomes fundaram o Cineclube Bixiga, em São Paulo, que funcionou até 1988, inspirando todos que vieram a seguir: o Cineclube Oscarito, o Elétrico Cineclube e vários outros, inclusive o Espaço Unibanco de Cinema, que é “cria” do famoso Bixiga.

Mas voltemos ao bar. Digo a eles o quanto gosto do Chaplin, e Gouveia começa a falar sobre Luzes da Cidade, um dos mais famosos filmes daquele diretor.

Ele revive as principais cenas do filme com tamanha sensibilidade que ouço sem piscar os olhos, pois se há algo que me encanta é a sensibilidade, a inteligência, o conhecimento. Sempre me rendo a esses atributos.

Ele descreve pequenos gestos e olhares dos atores, detalhes mínimos que me escaparam nas várias vezes que assisti ao filme. Percebo que já não está mais ali no bar. Que sua imaginação o transportou para dentro da história. Por instantes me esqueço do problema que me afligia ainda há pouco.

Já não sou mera ouvinte, embarco na “viagem” de Gouveia e vou até a floricultura de Luzes da Cidade. Sou capaz de “ver” a cor dos olhos da moça, a sua delicadeza vendendo flores.

Ele rememora a cena em que ela entrega a flor ao vagabundo (Carlitos) e ao tocá-lo, reconhece nele o seu verdadeiro benfeitor, descobre naquele instante que o ricaço que financiou a cirurgia e ela pensou existir, não era outro senão o Vagabundo.

Gouveia mergulha não só no filme, mas na alma da personagem quando ela se dá conta de não ter sido portadora apenas de uma cegueira física, mas de uma outra que a impediu de reconhecer aquele a quem realmente devia sua visão.

Naquele instante a verdade se revela não apenas à personagem do filme, nas palavras que eu ouvia de Gouveia, mas também a mim.

Senti vontade de beijar as mãos de Gouveia que, sem saber, ao rememorar aquele filme me tirou uma venda dos olhos e me fez compreender a cegueira que vivi durante vários anos.
Gouveia jamais soube que naquela noite com sua ajuda, minha alma angustiada se libertou.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.




Coragem

* Por Evelyne Furtado

De onde estava eu vi a mulher curvada. “Posição mais estranha!” – pensei. Mas continuei observando a intimidade vizinha.

Ela abraçava a si mesma. Cabeça encostada aos joelhos, cabelos cobrindo o rosto, braços apertando as pernas. Ficou em seu ninho por tanto tempo que meu voyeurismo cansou. Fui cuidar de outras coisas e a tarde passou.

Escureceu na janela de lá, porém a luz da noite era suficiente para ver que a mulher continuava encolhida, ainda que em outra posição. Aquela visão me afligiu como nos afligem as dores mudas de quem se permite parar para sentir, em um mundo que nos obriga correr dos sentimentos profundos. Sem mais poder fazer, apenas respeitei.

Creio ter visto dias depois a mulher rindo na companhia de amigos em um café do bairro. Para mim se tratava da mesma pessoa em estado de alegria, em gestos soltos e expressão confiante.
A mim foi concedida compreensão de que a vida "ora aperta, ora afrouxa", como disse Guimarães Rosa e conclui que viver requer da gente a mesma coragem tanto para sofrer quanto para ser feliz.

* Poetisa e cronista de Natal/RN



Conhecimento de si

* Por Talis Andrade


Sete anos pagos
sete anos contados
sete anos transviados
sete anos chafurdando
na lama do passado
coisa vivida
e sabida

Sete anos perdidos
que a felicidade
depende
se veja
do sol
o clarão

No fosso
no lodo
se rasteja
a cara
no chão

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).





Especial, para um abraço - nos uns e todos

* Por Cacá Mendes

Um dia a Risomar Fasanaro, minha amiga do coração, muito escritora das melhores, premiada e festejada, me falou do Pedro Bon... (o nome é difícil, mas é isso, todos entendem ou vão entender) e do seu Literário que ainda funcionava na casa de outros e hoje ele fundou, criou casa e asas próprias, e vai voando, voando, voando... Ela me mandou escrito pra ele e aí começaram a sair os meus textos, que hora ou outra recebem comentários. Cujos quissos sempre nos ajudam rever, manter ou desmanter os textos que vamos pensando (que é o digo antes de vir praqui na tela do computador ou pra onde for).

E digo escrito o dito daí de cima pra demarcar também minha admiração por essa iniciativa do Pedro Bondaczuk, que sem ganhar tostão que seja, investe seu tempo a ajuntar gente em torno da literatura e literatura em torno de gente, numa rede indiscutível de discussões boas dos afins e tudo o mais.

(Para as conferências, se necessário no claro for: http://pbondaczuk.blogspot.com/)

Esse fecho de gente em arredor de escritas todas e gerais do acerca, e outros sobres de se ler à toa (digo, do sem compromisso de utilidade definida no cotidiano) nos eticéteras vai moldando um movimento lento, gradual, todavia certeiro na bucha, no alvo do canal da vida. Cabeças vão se fundir no aí dessa Revista digital, sem se derreterem. Um diário! Nem nos damos contas, mas isso é pra lá de um luxo! Enquanto alguém trama de unhas e dentes um pão, um naco de coisa que seja, num café da manhã, ou num almoço às pressas, outros alguéns – ah, esse Pedro e outros nós de todos em um aí – pensam na poesia que essa gente vai comendo na pressa do avesso da vida, e num ou noutro raro momento recebem no seu morninho da tela o diário de Pedro, e de muitos, muitos...

Pois é, parece anormal, o que taxo de luxo (no xis delas), mas o nisso nem devia ser o meu pensamento em coisa de glamourar comida, o natural do que no aço assim fosse, dos olhos em lei das coisas de arribar a alma, ou derrubar a calma e perturbar os nossos em si. Oh, a poesia, a literatura das boas deviam vender em feira, supermercado, em loja de sapato, açougue... O que em meu ser de pensar, esse agir de produto da vida, deveria constar, já no lacrado ser do nascido, no seu pezinho um poema, conto ou crônica de seu, lógico, algo dos pais do preferido. Como time de futebol que amarram no broto do nascer dos filhos, ao sabor do time do amante (mormente o do pai) assim, definitivamente, mesmo no equívoco da preferência (goela abaixo) esse torcedor um dia gosta, ou não vai gostar.

Mas já que o peixe não é peixe, tenho no umbigo da minha orelha assegurado, e a questão, então, dele ser ou não perecível, nem deve ser penetrada por aqui... Assim, o fundamental, naquilo deu me importar muitíssimo por mim e os outro de meu igual em vida e antena, é ler e o ver com discernimento a divulgação do que se amplia para nós (mesmo sendo um eventual, aqui me fecho no fecho da casa do Literário) outros da trupe.

E sinto que as gentes e as ideias, de várias as partes do país, em concordes ou não, estão num barco raro e especialíssimo, que pra dezangar de vez, só faltam os uns e os todos, num mesmo quem de livro, num dorso duro de capas lindas, se unindo. E até já sinto os vejos das boas pessoas todas em torno do Literário, num abraço real pra uma foto. Seja no aonde que for eu... fui.

* Jornalista – blog: www.cronicaseg.blogspot.com

segunda-feira, 28 de setembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Por que não sonhar?

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “De flores e amor sem cancelas”

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “Perdão e humildade”.

Coluna Sensibilidade e sutilezas – Aliene Coutinho, poema “Férias de mim”

Coluna A vida como ela é – Celamar Maione, conto “O aniversário da falecida”.

Coluna Porta Aberta – Zilma Ferreira Pinto, poema, “Rondó”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Por que não sonhar?

Caríssimo companheiro, que nos acompanha nessa nossa jornada literária de todos os dias, boa tarde. Começamos com garra nova semana e setembro se esgota sem que sequer pudéssemos percebê-lo. Num piscar de olhos, estaremos no Natal e concluindo outro ano de lutas, vitórias, sucessos e fracassos. Assim é a vida.
Em mais duas semanas, conheceremos mais um ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Ao que me consta (tomara que esteja enganado), nenhum brasileiro foi apresentado por qualquer organização cultural como candidato à premiação.
Embora seja impossível fazer alguma previsão. com razoável margem de chance de acerto (a cabeça dos julgadores da Academia de Ciências de Estocolmo é sempre uma impenetrável “caixinha de surpresas”), se tivesse que apostar em algum nome, apostaria no norte-americano Philip Roth, que já ganhou dois Pulitzers, o que não é pouca coisa.
Vai ganhar? Não sei. Só sei que o premiado, além do prestígio e ampla divulgação que terá, vai embolsar uma grana considerável. Por baixo, por baixo, sua conta bancária será engordada em pelo menos um milhão e duzentos mil dólares. Nada mau, não é mesmo, querido leitor?
Como sou um incorrigível sonhador (e sonhar ainda não paga imposto), fico me imaginando indo no final de algum ano (nem me perguntem qual) a Estocolmo (a entrega do Nobel ocorre, sempre, entre 4 e 8 de dezembro, na capital sueca), para embolsar essa bolada.
Responda, sem pestanejar: o que você faria com essa dinheirama toda? Ah, quer saber o que “eu faria”? Nessa você não me pega. Tenho tudo planejadinho, tim-tim por tim-tim, nos mínimos detalhes. Digamos, para arredondar, que a quantidade de doletas fosse de um milhão e quinhentas mil (até pode ser, quem sabe).
Dividiria essa grana por cinco. Quinhentas milhas ficariam para cada um dos meus quatro filhos, para arrumarem de vez suas vidas. As outras quinhentas mil iriam para o bolso deste Editor maluco, que não pára de sonhar (ninguém é de ferro!).
Com essa grana toda, não precisaria nunca mais me preocupar com o feijão e o arroz de amanhã. Iria ao mapa do Nordeste, escolheria uma cidadezinha praiana, dessas de dez mil habitantes ou menos, mas com belas praias desertas, e me dedicaria, da manhã até a noite, sete dias por semana, doze meses por ano, até o dia de me despedir do mundo, a curtir e a fazer Literatura.
Iria me lixar, claro, se meus livros não estivessem sendo adquiridos aos borbotões ou se estivessem encalhando nas prateleiras das livrarias. Não daria a mínima para a opinião dos críticos sobre o meu estilo de escrever. Só pensaria, claro, em você, caro leitor, a razão de ser de malucos como eu, apaixonados pelas letras. Como se vê, já está tudo muito bem planejado, nos menores pormenores (que estranha essa minha construção!).
Faltam, porém, alguns (pequenos?) detalhes: falta, por exemplo, alguma organização cultural de prestígio apresentar minha candidatura. Falta os vetustos jurados suecos apaixonarem-se pelos meus livros. E falta, afinal, meu nome ser anunciado – com pompa, circunstância e muita solenidade – para surpresa e pasmo do mundo, como o grande premiado do Nobel. Mas só falta isso! No mais...

Boa leitura.

O Editor.



De flores e amor sem cancelas

* Por Eduardo Murta

Alzira acolheu o batismo numa manhã em que o mais despojado sinal de primavera se anunciara na pequena Itaporé. A água sagrada namorando-lhe o contorno da testa, e da praça aportaram para confirmar, no entrefôlego: a camélia desabrochara. Um ó coletivo, e num segundo restariam pais, padrinhos e o religioso na sala miúda se entreolhando. Porque aquilo era vestígio de bênção. Uma flor que, contavam os dias, levara exatos 35 anos, sete meses e três semanas a que vingasse.

A gente retornou num alegre vistoso, embalando cantoria morro acima, até dar de novo com o batizado já se encerrando. A vela, enlaçada em fita amarela, variando de mão em mão, foi Bastiana, a parteira, quem quebrou o gelo. Falava num clarividente de arrepiar o encanto paterno. A menina, descrevera, havia nascido para amar incondicionalmente.

Devoraram-na com os olhos, fiados na máxima de que por nenhuma vez errara. Marieta, que fugiria com o circo; Euzébio, pistoleiro inclemente; Zé Coco, que tocava viola dormindo; Salvador, três vezes prefeito. Daí, pai e mãe foram preparando os corações para um desfecho que, sabiam, encerraria emoções capazes de subtrair-lhes ou de enfeitar-lhes o destino.

Ao incerto, decidiram se fechar. A menina, mesmo aos dias de festança, se apresentaria sem adornos, em meia reclusão: nada de penduricalhos ao cabelo, nem uma gota de perfume e, vestidos, só os que passassem longe dos tons florais. Mais: que não sorrisse a ninguém que não fosse mulher. Beirando os 5 anos, Alzira depreendera que não cumprir as normas era passaporte para o quartinho escuro e solitário do fundo de casa.

E luas à frente, na escola, suas órbitas se afogariam num choro de segredo à livre tradução da professora sobre o poema: a ausência do amor fazia definhar a alma. O verbo lhe era novidade, mas compreendeu o todo por inteiro. Assim, resguardou sentimento a 49 chaves, e amou Pedro, da primeira fila da sala. Amou João, do catecismo. Amou Leôncio, filho da vizinha. Amou Gaspar, neto do verdureiro.

E amando num ardor menino, sem cancelas, despedaçava-lhe aquela intangibilidade de não se poder revelar. Quando desceu à margem da ponte velha e pôs os pés no Rio Jequitinhonha naquela quarta-feira despretensiosa, a sensação de eternidade às águas lhe emprestava alívio doce. O de que, para além dela, havia vida.

Por dentro, suas crenças se esfarinhavam. Foi Jurema, madrinha, quem notou os primeiros sinais de palidez. Justo na festa de 8 anos, não dela, mas da camélia, com os botões rendendo atenção, fogos, discurso e namorico aos bancos da praça. Ela fixou bem a leitura na face da menina, e as olheiras soando cadavéricas lhe desarmaram. Conferiu as perninhas, silhueta de sabiá. Foi logo falar com comadre e compadre.

Deram de ombros. Preocupasse não, porque era fase, nada mais. Eis que Alzira empalitou de vez. Nem médico nem benzedeira dando jeito. A caminho dos 10 anos, pediu que família se reunisse ao entorno de sua cama. Que pai e mãe lhe lessem o poema “Memória”, de um certo Drummond. Ela não era mais que um filete, mal emoldurando a cabeça no travesseiro. Com ajuda da professora, feito entoassem despedida, leram: “Amar o perdido/deixa confundido/este coração./Nada pode o olvido/contra o sem sentido apelo do Não./As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/à palma da mão./Mas as coisas findas,/muito mais que lindas,/essas ficarão.”

Naquelas vozes Alzira enxergou amor correspondido. Pediu colher de sopa. Pediu chance renovada. Pediu que pai e mãe, enfim, a libertassem. Nascera, afinal, a que vivesse de amar. Permitiram. É ela à pracinha, regando as camélias. Feliz. Sete filhos. Onze netos. Em desmedido, desprendido amor.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.




Perdão e humildade

* Por Daniel Santos

Em vez de se evadirem, voltam toda noite ao mesmo café de sempre, embora saibam que a captura está por pouco. Logo, logo, os homens de jaqueta preta, agora por toda parte, chegarão com as algemas.

Há tempos, alguns começaram a desaparecer, mas sem despertar nos demais revolta nem desespero. Aceitavam as acusações, porque, talvez, nunca entenderam a virulência, a insanidade dos argumentos.

Já não há mais como escapar ao cerco. Restam-lhes os encontros naquele café, onde têm, ao menos, uns aos outros e as conversas de costume, mas hoje discutem em voz baixa, sem a arrogância de antes.

De fato, nesses últimos encontros, perdoam-se velhas discordâncias literárias, diferenças estéticas, opções ideológicas ... Agora, é só perdão e humildade – tudo, exatamente, que os enchia de vergonha ainda ontem.

A cada encontro, as noites parecem mais vazias. Alguém traz um novo livro, mas tal já não levanta acalorados debates. No mais, calam-se arrependidos na lembrança de quando ainda podiam reagir. E aguardam.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Férias de mim

* Por Aliene Coutinho

Tirei férias de mim...
longas,
sem previsão de retorno.
Vou dar um tempo de
ser eu,
de ser essa coisinha
melosa,
cheia de sentimento,
que chora com o vento,
e se apaixona fácil.
Empurrei tudo isso
em uma mala,
junto com saudades,
tristezas, decepções.
Tranquei bem trancadinho,
com chave e cadeado.
Coloquei na alça,
uma fita vermelha,
para eu vê-la de longe,
e pensar duas vezes
se vale à pena
abrí-la de novo!

* Jornalista e professora de Telejornalismo




O aniversário da falecida

* Por Celamar Maione

Parte I

Aparecida acordou com imensa angústia no peito. Chamou o marido para trabalhar e preparou o café. Enquanto colocava a mesa, a angústia voltou. Sentiu uma vontade inexplicável de chorar. Sentou-se à mesa, cortou o pão, passou manteiga e assim que Juarez deu o primeiro gole no café com leite, Aparecida desabafou:
- Acordei tão estranha hoje. Com uma dor no peito.
- Como assim? Ta passando mal?
- Tô com um aperto no peito. Um mau pressentimento.
- Pressentimento?
- Aposta que não duro até o meu aniversário?
- Mas seu aniversário é daqui a um mês .
- Morro antes.
- Besteira. Vou deixar o dinheiro para você pagar o bolo antecipado.

Aparecida apertou a boca em sinal de desânimo. O marido saiu gritando que os quarenta reais estavam em cima da mesa da sala. Ela nem agradeceu. Durante o banho se debulhou em lágrimas. Decidiu que passaria na casa da doceira e depois visitaria a irmã. Tocou a campanhia e quem atendeu foi o sobrinho:
- Oi, tia.
- Sua mãe está em casa?

Anita apareceu na sala e abraçou Aparecida, satisfeita com a visita surpresa .
- Minha irmã, que bom te ver! Me diga, quais são as novidades?
- Vim aqui porque preciso que você me prometa uma coisa.
- Pode falar.
- Não estou com bom pressentimento. Acho que não duro até meu aniversário.
- Como assim? Brincadeira, né?
- Não. Sério. Morro antes.
- Você está doente?
- Não. Minha saúde está ótima.
- Então que maluquice é essa? Vai fazer trinta anos, tá muito nova para morrer .
- Não vou morrer de morte natural. Será um acidente.
- Já sei. Foi numa cartomante e ela falou essa bobagem?
- Pesadelo. Tive um pesadelo horrível. É um aviso.
- Me conta. Como foi o pesadelo?
- Não conto. Me arrepio quando penso. Só quero que você me prometa uma coisa.

Perdida com a conversa da irmã, pede licença e vai para a cozinha tomar um copo de água . Volta com café quentinho e biscoitinhos . Encontra Aparecida com olhar distante e mão na boca. Preocupa-se:
- Toma um cafezinho. Come os biscoitinhos também Acabei de fazer.
- Não quero. Estou sem apetite.

Nervosa, Aparecida segura nas mãos de Anita com força. Chorando, um ganido de dar dó, repete:
- Me promete uma coisa! Diz que sim. Pelo amor de Deus!
- Diga logo. O que é. Você está me assustando.
- Se eu morrer antes do meu aniversário, você faz uma festa pra mim mesmo que eu esteja morta?
- Festa? Na minha ou na sua casa? – debochou, levando na brincadeira.
- Não. No cemitério. No meu túmulo.
- Que maluquice! Vou levar você ao médico. Endoidou.

Aparecida continuou o lamento:
- Diz que jura. Isso não é loucura. É pressentimento. Os salgados e o bolo já estão pagos. Presente do Juarez.
- Você não vai morrer!
- Diz que jura!? Eu imploro.

Aparecida se ajoelhou diante da irmã, beijando-lhe os pés com a humildade de um cachorro sarnento. Para se ver livre da situação constrangedora, Anita concordou. Aparecida era teimosa. Sabia. Desde criança. Quando cismava com alguma coisa, ninguém conseguia fazê-la mudar de ideia.
- Ta bom Aparecida. Tá bom.
- Se você não cumprir com a promessa puxo seu pé de noite!
- Cruzes! Já aceitei. Farei uma bela festa no cemitério. Pode deixar.

Amedrontada com as próprias palavras, bateu na mesa de madeira três vezes. Aparecida se despediu da irmã e saiu apressada:
- Quase na hora do almoço. Deixa eu ir. O tintureiro ficou de entregar as calças do Juarez antes das duas da tarde.

A conversa com a irmã lhe fizera bem. Agora sabia que viva ou morta teria festa de aniversário. Gostava de festas. Desde garota. Juarez chegou do trabalho preocupado com a conversa que tivera com a esposa pela manhã. Cheio de medo da resposta, perguntou :
- E a angústia? Passou?
- Passou. Conversei com a Anita e ela prometeu que se eu morrer faz a minha festa de aniversário no cemitério.
- Coisa mórbida. Acho que vou levar você ao psiquiatra.
- Pra quê gastar dinheiro com médico? Não passo do meu aniversário.
- Você não tem jeito, não. Chega!

Juarez se trancou no banheiro. “Precisava de um longo banho. A noite ia ser longa . Aparecida estava pirando” – pensou.
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Parte II

Quinze dias antes do aniversário, Aparecida acordou feliz. Voltaria a trabalhar e o chefe já lhe dera a novidade por telefone : “ Seria promovida.”. Despediu-se do marido e saiu apressada, cantarolando. Queria chegar cedo à repartição para conhecer a nova sala. Com a bolsa debaixo do braço, viu o ônibus parar no ponto, do outro lado da rua. Correu para pegar a condução. Não percebeu o carro que vinha em sentido contrário. O Corsa pegou Aparecida em cheio jogando-a para o alto. Caiu estatelada na calçada. Logo a multidão rodeou o corpo da atropelada . Juarez chegou transtornado, vinte minutos depois do acidente. Consolado pelos pedestres, repetia:
- Ela saiu de casa tão feliz! Ia fazer trinta anos! Tão nova! Por quê????

Anita apareceu histérica amparada pelo filho. Atirou-se no chão urrando junto ao corpo da irmã . Aparecida abriu os olhos, pegou Anita pelo pescoço e num último suspiro, murmurou no ouvido dela :
- Minha festa de aniversário. Não esquece.

Alguém gritou para o bombeiro :
- Ela tá viva! A morta tá viva!

Logo se formou uma pequena confusão no meio da rua :
- Impossível. O médico falou que ela tá morta!
- Tá viva!

O burburinho aumentou. Chamaram o médico de volta. Ele reexaminou o corpo de Aparecida. Impaciente, sentenciou:
- Tá morta. Mortinha. Parem de brincar com coisa séria. Tenho mais o que fazer.

A multidão gritava :
- Ela falou!

Anita confirmava :
- Me puxou pelo pescoço. Tô sentindo a mão dela até agora.

Duas horas depois o rabecão levou o corpo de Aparecida. O velório seguiu em clima de consternação com direito a berros, discursos e tumulto. Anita e Juarez não saíram de perto da morta. Na hora que o caixão baixou a sepultura, Anita olhou para o alto e gritou batendo no peito:
- A festa do seu aniversário será inesquecível! Promessa é dívida!

Na missa de sétimo dia, Juarez tentou convencer a cunhada a cancelar a comemoração. Ela bateu o pé:
- Não, não e não. Minha irmã ameaçou. Se eu não cumprir com a promessa, ela puxa meu pé de noite.
- Ela tá morta! Os mortos não voltam!
- Você diz isso porque o pé não é seu.

O sobrinho de Aparecida se meteu na discussão:
- Aí tio, deixa minha mãe fazer a festa. É surreal, mas deve ser maneiro uma festa no cemitério. Dark. Super dark.

Depois de muita discussão, Juarez cedeu, mas com uma condição:
- Você é quem vai convidar as pessoas. Não quero me meter e nem ser chamado de louco. Nem apareço na festa.
- Combinado. Vai perder um festão.

Disposta a não decepcionar a morta, Anita ligou para vizinhos, amigos e alguns parentes, convidando-os para a estranha comemoração:
- Aparecida fazia questão da sua presença. Terá bolo e salgadinho. Nada de reza e nem música fúnebre. A aniversariante gostava de pagode.

Alguns convidados duvidaram da sanidade de Anita:
- Coitadinha , não suportou a morte da irmã. Destrambelhou de vez!

Se para os impressionados o convite parecia mórbido, os festeiros gostaram da ideia . No dia da festa compareceram mais de trinta pessoas entre parentes, vizinhos e amigos. Os convidados bebiam e comiam em volta do túmulo de Aparecida. De fundo. o aparelho de som portátil tocava pagodes da moda. Há quem ensaiasse alguns passos de dança. A animação era grande. Teve até fila para tirar foto segurando o porta-retrato que enfeitava o túmulo da aniversariante. O sobrinho era o mais entusiasmado:
- Vou colocar as fotos no orkut. Meus amigos vão morrer de inveja . Irado!

Onze horas cantaram parabéns e partiram o bolo. Antes da meia-noite a festa acabou. A irmã da aniversariante aconselhou:
- Não é de bom agouro ficar no cemitério depois da meia-noite. Os mortos precisam descansar.

Antes de ir embora, Anita ficou sozinha para se despedir da morta. Emocionada e com lágrimas nos olhos, deixou um pedaço de bolo ao lado da foto de Aparecida. Com uma rosa na mão, Anita encaminhava-se sozinha, para a porta de saída, iluminada pela luz da lua. De repente, sentiu um vento frio fazendo-lhe cócegas nos ouvidos. Sorriu. Sabia que era a irmã, agradecida pela homenagem. Com a alma mais leve, prometeu voltar no próximo ano.

Fim de festa. Hora de gatos e cachorros invadirem a sepultura da falecida. Famintos, acabaram com os restos de salgadinho e se fartaram com o pedaço de bolo.

*Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.





Rondó

* Por Zilma Ferreira Pinto

Vem, meu belo navegante!
Vem ancorar no meu porto.
Faz renascer exultante
Um coração que está morto.

Faz-me outra vez radiante
Este olhar hoje absorto
À espera de um barco errante
De onde me vem o conforto.

Dos oceanos que viste
Traz-me a cantiga que existe
No arrojo de cada onda.

Traz as canções que ouviste
E faz o meu riso triste
O sorriso de Gioconda.

* Poetisa e professora

domingo, 27 de setembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – O riso é santo remédio

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Vitória sobre o medo”.

Coluna Porta Aberta – Cacá Pereira, poema “Ribeirinho”.

Coluna Porta Aberta – Caco Pontes, poema “Róliudi”

Coluna Clássicos – Graciliano Ramos, capítulo 26 do romance Caetés, “Traição”.

Coluna Estante – Livros mais vendidos

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


O riso é santo remédio

Olá, caríssimos leitores, boa tarde. O riso é um santo (diria santíssimo, enfatizando com um superlativo bem forte) remédio para nossos males e aflições, quer psicológicos, quer emocionais e quer físicos. Alguns hospitais, por exemplo, já o adotam como terapia, por sua comprovada eficácia. Afinal, contribui para a liberação de endorfina, este poderoso analgésico natural, sem similares.
Ora, se o riso é tão eficaz em todos os momentos da vida, não haveria razão para não ser, também, na literatura. Concordo que é mais difícil fazer humor do que apelar para a tragédia em nossos textos. Mas os resultados são mais do que compensadores. Uma história bem-humorada, (melhor ainda se for hilariante) tem muito maiores chances de fazer sucesso do que uma sombria, trágica e lacrimosa.
Sob o risco de ser considerado herético, confesso que aprendi muito mais sobre a vida e o comportamento das pessoas em rodinhas de amigos contando anedotas do que na maioria dos sermões que ouvi em igrejas e na maior parte das palestras motivacionais de auto-ajuda.
O leitor Aristeu Barreto alertou-nos para este aspecto da importância do riso. Enfatizou que acompanha assiduamente o Literário, nestes seis meses de nova casa, e que aprecia todos os textos que lê diariamente. Tece elogios a essa nossa conversa diária e confessa que gosta, até, daquelas que mais parecem aulas de Português, mas que prefere as “papos de botequim”, desse nosso “barzinho” virtual.
Embora afirme que aprecia todos os textos que publicamos, cada qual, no seu entender, adequado para determinadas situações, revela escancarada preferência por três colunistas: Daniel Santos, Marcelo Sguassábia e Rodrigo Ramazzini. Diz que, sempre que está aborrecido com alguma coisa (e motivos para aborrecimentos, certamente, não faltam a ninguém), procura os contos e crônicas dos escritores citados e que, não raro, dá gostosas gargalhadas com as situações narradas.
Isso comprova minha tese de que, sem deixar de lado nenhum aspecto, mesmo os mais árduos da vida, devemos apostar todas as nossas fichas no engraçado, no risível, no ridículo até (tomando esta palavra no seu sentido lato e original, que é o “digno de riso”). Os gregos tiveram essa percepção. Ao criarem o teatro, instituíram tanto a tragédia, quanto a comédia. Samuel Clemens (cujo pseudônimo era Mark Twain) apelava para o humor. George Bernard Shaw também. Há determinados contos de Machado de Assis que são impossíveis de serem lidos sem boas gargalhadas decorrentes das trapalhadas de determinados personagens.
Os colunistas citados primam, de fato, pelo humor. Daniel Santos, com seu incrível poder de síntese, apresenta-nos, invariavelmente, semana após semana (já publicou 171 textos no Literário), circunstâncias surreais, comuns no dia a dia, mas que ele transporta com tanta perícia e verdade para a Literatura. E o que dizer de Marcelo Sguassábia? Tudo o que se disser de positivo dos seus temas e abordagens ainda será pouco. Escrever um ou outro texto engraçado nem é desafio tão grande. Muitos e muitos e muitos o fazem. Mas fazê-lo por 136 semanas consecutivas é coisa, apenas, para escritores talentosíssimos, como ele é.
Quanto ao Rodrigo Ramazzini, peço que anotem esse nome. Vocês ainda haverão de ouvir falar muito (e bem, evidentemente) deste jovem jornalista e escritor. Seu ponto forte é a criação de diálogos sumamente verossímeis, mesmo quando as histórias narradas pareçam fantasiosas e surreais (mas que não o são). Com o tempo e seu natural amadurecimento, tem tudo para se projetar no cenário literário nacional.
Mas o que fica cada vez mais claro a este Editor (e neste ponto não sou nem um pouquinho modesto) é o acerto na seleção dos colunistas do Literário. Reitero que sou forçado a admitir que contei muito com este fator subjetivo benigno geralmente chamado de “sorte”. Esta, porém, costuma bafejar, apenas, quem esteja predisposto a recebê-la. E, no caso, eu estive.

Boa leitura

O Edsitor.



Vitória sobre o medo

* Por Pedro J. Bondaczuk


O medo, que na definição de Emílio Mira y Lopez é um dos "quatro gigantes da alma" (ao lado da ira, do amor e do dever), quando físico e na dosagem correta, é um dos mais eficazes mecanismos de proteção do homem. É instintivo e protetor. Impede, por exemplo, que uma pessoa salte sem pára-quedas de grandes alturas, ou que coloque a mão no fogo e sofra queimaduras profundas, ou que enfrente com as mãos desarmadas uma fera selvagem. ou que faça outras loucuras, que coloquem em risco a sua integridade orgânica e a própria vida. Em sua intensidade máxima, é conhecido como terror. Aí, torna-se nocivo. Tende a ficar incontrolável e deixa de proteger o indivíduo, para se transformar em agudo risco. Dependendo das circunstâncias, pode até matar quem se vê dominado por ele.

Mas há uma outra espécie de medo que é sempre negativa, por inibir o que temos de melhor: a criatividade. É o de assumir responsabilidades, de se expor, de produzir obras novas, de explorar campos desconhecidos em busca de novidades e, em última análise, de viver em sentido pleno.

Neste caso, o fator inibidor é o temor do ridículo, do fracasso, da chacota, da opinião alheia. Geralmente esse sentimento é ditado pela vaidade exacerbada, que pode ter também um efeito oposto ao receio da exposição. Ou seja, pode cegar o indivíduo a tal ponto que ele não perceba que faz um papel de tolo, que é objeto de riso dos que o cercam e que a superioridade que busca ostentar existe apenas na sua cabeça.

Qualquer desses comportamentos é nocivo e às vezes fatal para quem pretenda ser um escritor. Por que? Porque a matéria-prima do artista é a emoção. E para projetá-la em seus personagens, ou perpetuá-la em versos, em sons, em traços e em cores, é preciso, logicamente, que a tenha sentido. E quanto em maior quantidade e com mais variedade a tenha, melhor.

Quando se escreve o que não se vivenciou, por mais bem elaborado que seja o texto, por mais estudado que seja o assunto, por mais hábil que seja a argumentação, por mais precisas que sejam as palavras utilizadas, o leitor perceberá de imediato sua artificialidade. Tal escrita irá soar falsa, pretensiosa, hipócrita, vazia de conteúdo.

William Faulkner escreveu em um ensaio que "só quando o escritor perder o medo ele poderá escrever suas grandes obras". É preciso que perca todos os escrúpulos e desnude a alma em público. Que se exponha tal e qual é, sem disfarces ou retoques. Para isso, são necessários aguçado senso de autocrítica, absoluta sinceridade, total disposição em se revelar e, para tanto, o pressuposto básico é que se aceite, com suas virtudes, defeitos e limitações, quaisquer que sejam, para que os outros o aceitem.

Lygia Fagundes Telles, ao tomar posse da cadeira de número 28 da Academia Paulista de Letras, em 29 de abril de 1982, abordou essa questão, no discurso que fez naquela oportunidade. Disse, em determinado trecho: "O polvo ao se sentir perseguido, caçado, solta uma tinta negra para que a água em redor fique turva: é quando ele aproveita para fugir. A negra tinta do medo. Sim, às vezes o medo. E o escritor tem que se ver e ver o próximo para poder exercer seu ofício, tem que se buscar e buscar o outro, ver o outro na sua transparência para melhor cumprir o ofício de testemunha e participante desta sociedade e deste tempo. O medo é ignóbil. Pode defender, sim, mas destrói o que de melhor existe em nós".

Aliás, o raciocínio vale não apenas no caso do escritor. Inúmeras pessoas deixam de produzir grandes obras, de conquistar renome e fortuna ou de salvar vidas por temor de assumir responsabilidades. Outras atravessam a existência infelizes no amor por receio de partirem para a conquista da companheira que seu coração elegeu. E por que? Por apostar simplesmente na infelicidade, achando que esta é a melhor das opções? Não! Por medo da rejeição. Não se pode deixar de classificar essa atitude de covardia.

Há muitos e muitos outros casos em que essa inibição limita e até extingue talentos. Como na parábola bíblica, os que se escondem, se omitem, fogem de si, são os que enterram a moeda única que seu amo lhes deu e, na hora de prestar contas, percebem que esta desapareceu. Bela lição Cristo nos ensinou de forma tão poética!

Por isso luto contra o meu medo e creio estar conseguindo relativo êxito. A prova são estas crônicas, personalíssimas, diferentes de tudo o que escrevi no passado, onde me exponho por inteiro, contando, é claro, com a paciência, tolerância e o beneplácito seu, caro leitor.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com