sábado, 28 de fevereiro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, onze meses e um dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Maluquice de um bando de malucos?.

Coluna Direto do Arquivo – Risomar Fasanaro, conto, “Mulher”

Coluna Clássicos – Marques Rebelo, memória, “Caso de mentira”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica, “Conversando com minha mãe 5 - Pri”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica “O que pode dar certo?”

Coluna Porta Aberta – Ademir Antonio Bacca, poema, “Eu venho assim...”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Maluquice de um bando de malucos?


A tradução do livro do obscuro escritor belga Víctor Hénaux, “Queda que as mulheres têm para os tolos”, deve ter divertido muito o então jovem “projeto de escritor” Machado de Assis. É o que suponho. Isso mesmo que a escolha não tenha sido sua (o que acho mais provável). A opção por justamente essa peça satírica desconhecida, e não por outro texto qualquer, suscita, no mínimo, algumas especulações que podem, ou não, ter algum fundamento. Comentando, dia desses, o caso com amigos, foram levantadas várias hipóteses. Um deles, por exemplo, mostrou-se convencido que foi Machado de Assis que escolheu esse livro para traduzir. Acrescentou que essa decisão, no seu entender, ocorreu após o tradutor ter sido “passado para trás” na conquista de uma moçoila específica, na qual estivesse interessado, mas que teria preferido algum “bonitão” da época, de boa aparência, mas totalmente “descerebrado”, desses que fazem da conquista de belas mulheres uma espécie de esporte. Pode ser? Creio que sim. Isso, claro, se a escolha do livro foi do então “candidato” a escritor. Seria, no caso, fruto de despeito. Mas seria mesmo?

Outra hipótese é que quem escolheu essa peça para ser publicada em fascículos na revista “A Marmota” foi seu polêmico proprietário, o jornalista e tipógrafo Francisco de Paula Brito. Alguns biógrafos de Machado de Assis atribuem (erroneamente) a esse personagem o papel de ter sido o primeiro a publicar um texto do futuro Bruxo do Cosme Velho em qualquer meio impresso, no caso, sua revista. Estão equivocados. Esse pioneirismo coube a um jornalzinho artesanal, chamado (e o próprio nome já define sua “qualidade”) de “Periódico dos Pobres”, cujo editor não consegui descobrir quem era. Seu texto de estréia literária foi o soneto dedicado “à ilustríssima senhora D.P.J.A”, publicado em 1854, assinado como J.M.M.Assis. Não me perguntem quem foi a mulher homenageada. Só sei que foi uma tal de “Dona Petronilha”. Mas não consegui descobrir qual foi o título do poema em questão, porquanto desconheço esse detalhe.

Machado de Assis passou a freqüentar a livraria de Paula Brito no ano seguinte dessa publicação, ou seja, em 1855. Esse jornalista era um “figuraço”!!!! Não seria incorreto classificá-lo de humanista. Sua livraria era mais sortida, guardadas as devidas proporções, que muitos mercadinhos de bairro atuais. Vendia de tudo. Além de vender, naturalmente, livros e revistas, oferecia, aos potenciais clientes, grande variedade de remédios, de chás de diversos tipos, e até de fumo de rolo. Mas dispunha de itens insólitos, tais como porcas e parafusos e como tantas outras quinquilharias úteis (e até inúteis) que deixo por conta da sua imaginação, caríssimo leitor. Aquele local, digamos, esquisito servia, ainda, como redação e oficina gráfica que editava e imprimia uma revista bimestral, que então se chamava “Marmota Fluminense” (e que a partir de 3 de julho passou a chamar-se, apenas, “A Marmota”). Ufa!!! Mas esse lugar estranho (estranhíssimo) tinha mais motivos ainda para estranhezas. Era, para complicar, sede da “Sociedade Petalógica”. Uma loucura, como se vê!!!

Mais louca ainda era a natureza dessa “agremiação”. Seu próprio nome já sugeria seu objetivo, por mais surreal que possa parecer. Afinal, “peta” quer dizer mentira. Era, pois, ponto de reunião dos notórios mentirosos do Rio de Janeiro. Querem bizarrice maior?!! A enciclopédia eletrônica Wikipédia lembra, oportunamente, que Machado de Assis, anos mais tarde, chegou a se referir a essa sociedade insólita em uma de suas crônicas. Escreveu: "Lá se discutia de tudo, desde a retirada de um ministro até a pirueta da dançarina da moda, desde o dó do peito de Tamberlick até os discursos do Marquês do Paraná".

Não sei por que, mas essa “Sociedade Petalógica” lembra-me muito o “cenáculo” informal que mantive até não faz muito em determinado bar daqui, de Campinas, em que nos reuníamos, eu e um bando de amigos (quase irmãos), para discutir literatura, a vida, a política, o futebol etc.etc.etc. e para fazer fofoca, além de tentarmos, juntos, não raro aos berros, “salvar o mundo”, entre generosos goles de cerveja, acompanhados de tira-gostos (que ninguém é de ferro!). Era tão louco quanto a organização (ou desorganização?) de Paula Brito e seu bando de “mentirosos”, posto que sem sede própria. Pois foi ali, numa revista sediada, editada e impressa em um local tão maluco, que então já se chamava simplesmente “A Marmota”, que o livro traduzido por Machado de Assis, de autoria do obscuríssimo Víctor Hénaux, foi publicado em fascículos. Dá para levar a sério? Pois é, mas a posteridade até que o levou.

Boa leitura.


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk                
Mulher


* Por Risomar Fasanaro



Era ela esse desviver lento e repetido. Essa memória de asas trancadas dentro do peito, naquele desexistir de sempre. Uma cobra que perde a pele para não mais voltar. A tristeza de ser pássaro e cadeia, asas e sombras, mar e rochedo. A monotonia da vida. Jogo de damas.

Noite após noite, o mesmo ritual; mais uma vez desenroscou um dedo do pé e deixou que dele caíssem três bolinhas. Guardou-as no bolso do roupão para o dia seguinte: as passagens do marido, o sorriso na hora do almoço, as reclamações, o lanche dos netos. Foi dormir.

Às sete levantou. Antes de colocar as meias, pois sentia muito frio nos pés, desenroscou o pé direito, virou-o e aparou cinco bolinhas que escorreram do tornozelo. Com elas poderia comprar pão e leite. Antes bastava uma, agora, com o aumento dos preços, já não sabia onde iria parar.

Ainda faltava explorar o ventre. Foi o que fez na semana seguinte. Desenroscou o umbigo e dele retirou o que precisava.

A nora andava doente, precisava ajudá-la a cuidar das crianças. Fizera aquilo a vida inteira sem que ninguém percebesse; nem ela mesma, talvez. As rugas do rosto e das mãos menores que as da alma.

Agora quase nada havia. Era uma casca quase sem recheio, um ovo esquecido em um ninho durante anos. Nem mesmo o pássaro que sempre guardara, batera suas asas dentro do peito. Talvez morta, ave esquecida que ela não alimentara.. Morta na gaiola.

E veio o dia em que desenroscou dedo por dedo das mãos e dos pés e nada mais        restara em seu interior. Espremeu os olhos e não conseguiu retirar nada. Toda ela secara. A pele grudara-se aos ossos, esvaíra-se por inteiro em sua transitoriedade de flor.

Uma das netas vendo-a desesperada esfregando os olhos, perguntou-lhe qual era a razão do desespero. E ela, ou porque não quisesse ou porque não soubesse, disse ser um argueiro. A menina quis ajudar e soprou dentro do olho da avó, na tentativa de ajudá-la. Foi quando a avó desfez-se no ar, espalhando pelo ar milhares de pétalas.
 
(Conto que integra a antologia “O Buquê e o Sonho”, editora Lume, S.P. 1991)

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

Caso de mentira


* Por Marques Rebelo


Morávamos nós em São Francisco Xavier, perto da estação, numa boa casa de dois pavimentos, jardinzinho com repuxo na frente e fresca varanda do lado onde nascia o sol, se bem que por essa época não andasse ainda meu pai muito certo da sua vida para arrastar, sem alguma dificuldade, o luxo de residência tão ampla e confortável, mas temos que perdoar a ele, entre outras fraquezas, esta da ostentação, já que a perfeição foi negada por Deus à alma das criaturas. Eis, senão quando, meu irmão Aluísio, o demônio em figura de gente, ao praticar certa travessura arriscada na sala de visitas, aliás sempre fechada a chave e que, a não ser aos sábados para a limpeza, raras vezes se abria para receber gente de fora, pois poucas eram as nossas amizades, caiu e deitou por terra a elegante peanha de canela, que ficava por trás do sofá de palhinha.

Isso, convenhamos, pouca importância teria se, sobre a peanha, não estivesse, como em precioso nicho, o rico vaso da China, um legítimo Sé-Tchun, que papai freqüentemente gabava - isto é que é a verdadeira arte, meninos! - e que mamãe admirava por seu outro valor: ser das únicas coisas que escaparam à voracidade de tio Alarico, um desmiolado, quando foi feita a partilha dos bens do seu avô, que era barão e morrera na Europa.

De tarde, papai chegando, ainda nem tinha tirado o chapéu de lebre, que usava desabado, e já mamãe o punha ao corrente, com meticulosa exposição, do desgraçado acidente.
- Aluísio!

A voz de meu pai foi tão estranha, diversa e violenta, que minha mãe, coitada, ficou branca, arrependida imediatamente de ter nomeado, precipitada, o santo do milagre.

Aluísio, que se eclipsara, mal praticado o ato, apareceu, lembro-me como se fosse hoje, sem fazer barulho, de pé no chão, cabeça baixa, com aquela cara que tia Alzira classificava de "cara de boi sonso"; chegando perto de papai, levantou o rosto de fuinha, encarou-o de revés, cravando nele os olhos pequenos e irrequietos, o instante suficiente para sondá-lo com profunda sagacidade; abaixou novamente a cabeça, o cabelo nunca penteado, que mamãe ameaçava mandar cortar à escovinha, a cair-lhe em farripas pela testa enrugada e suja.

Todos nós teríamos a bom tremer pela sua sorte, que papai, de ordinário calmo, sossegado, muito brincalhão, sabia ser violentíssimo quando para tal lhe davam fortes motivos, e na fúria de que se enchia era fugir-lhe da frente, pois até a pancada fazia parte da sua maneira de ser severo. A preta Paulina, que nós chamávamos de Lalá, e que trouxera o nosso herói ao colo desde o seu primeiro dia, chorava e rezava no corredor, espiando.
- Como foi isso? - meu pai o interpelou com o cenho carregado.

Aluísio era muito imaginativo e, sem titubear, inventou-lhe ali mesmo não sei que história fantástica em que entrava um bandido, verdadeiramente o autor do lamentável desastre, fugindo logo após praticá-lo, sem que ninguém visse, pois ele, Aluísio, tinha sido a única pessoa que presenciara tão misteriosos fatos, por acaso, acrescentava com razoável dose de modéstia, quando fora buscar na sala o álbum de retratos para folhear, o que, inexplicável dado o seu gênio incapaz de ficar parado um segundo, era inegavelmente uma das suas maiores distrações.
- Nada pude fazer - continuou num tom diferente, porque um medo, para que mentir?, um medo terrível tinha-o invadido, paralisando-lhe os movimentos, tirando-lhe a fala, tornando-o mudo, incapaz de gritar por socorro, como seria natural, não é mesmo?

Meu pai ouvia de boca aberta, numa admiração indisfarçável pela inteligência fantasiosa do pequeno. Eu e mamãe estávamos bestificados, Paulina, arregalando medonhamente os olhos, nem podia acreditar.

Aluísio descreveu ainda, com brilhante colorido e absoluta segurança de ânimo, o aspecto do sujeito: trazia compridas suíças, cor de fogo frisava, com aquele sutil amor pelo detalhe, um dos seus mais brilhantes característicos e uma meia máscara roxa nos olhos; as botas vinham até os joelhos, parece que estava armado, mas isso não garantia porque uma imensa capa preta envolvia-o todo.

Depois, quando percebeu que poderia, sem receio, terminar, fez um silêncio brusco deixando cair os braços, que agitara adequadamente no correr da sensacional narrativa.

Papai não se conteve - soltou uma tremenda gargalhada. Sentou-se na cadeira mais próxima a se estorcer, chamou-o para junto de si, passou-lhe a mão pela cabeça: Você ainda há de dar coisa na vida! - sentenciou com legítimo orgulho paternal. Em frases truncadas, sem continuidade, para o restrito e ainda boquiaberto auditório, traçou-lhe um esplendoroso porvir, e mandou-o passear.

Pegando na palavra paterna, durante umas tantas semanas, Aluísio pôs os livros de banda e não parou em casa, soltando papagaios no morro, jogando gude na rua, no meio de molecada. Chegou dia, porém, em que tanta liberdade precisava ter um freio; papai ralhou - vagabundo! - e mamãe passou o cadeado no portão de ferro. O acidente é que jamais foi esquecido, ficando conhecido na família, e contado às visitas entre gargalhadas, como o caso do bandido, ao invés do vaso da China, como seria mais justo, dada a sua origem.

Mas, origens e transformações, tudo são injustiças neste mundo, rótulos de ouro e mercadorias baratas, tanto assim que falhei, redondamente, na primeira ocasião que tentei empregar o mesmo método do mano Aluísio, hoje advogado, e se, incontestavelmente bem colocado, com uma bonita carreira na sua frente, nem por sombra tem aquele portentoso futuro que profetizara meu pai, posto para sempre distante do nosso afeto, bom pai, quando naquele ano, tão doloroso para a minha gente, chegavam os primeiros rigores do verão.

Havia uma moringa em nossa casa, da qual somente papai lhe bebia a água. Ficava dia e noite, cheia, na varandinha da copa, à sombra plácida da mangueira, para a água ficar mais fresca e se impregnar do leve sabor a barro que papai tanto prezava. Em domingos de verão, se não era infalível, freqüentemente aparecia Seu Sousa para palestrar algumas horas; mamãe achava-o extremamente cacete, mas atendia-o com especiais finezas, porque o marido, que ela colocava pouco abaixo das coisas celestes, elogiava-o, com sincero ardor, como sendo um homem de peso e medida! Seu Sousa não escondia, como poderia fazer usando colarinhos mais altos, uma velha cicatriz no pescoço e era bastante enjoado, não variando nunca de conversas questões de terrenos para vender - e de graças: Você tem água gelada com gelo, compadre?

Papai respondia logo:
- Gelo é um perigo, seu burro! Mas tenho a minha bilha fresquinha e gritava para dentro: - Onde está a moringa? Olhem que o Sousa também quer.

Como se acabou de ver, este privilegiado senhor era o único mortal com quem meu pai dividia o precioso conteúdo da sua moringa. Este célebre objeto, externamente, não correspondia em absoluto a tão súbitas distinções, comuníssima moringa, dessas que se encontram nas menos sortidas das quitandas. Talvez custasse poucos tostões mais, não duvido, por ser pintada, porque lá isso era ela, com casinhas e beija-flores, dentro de um oval que era uma espécie de grinalda de florezinhas róseas e azuis. - No mais uma banalíssima moringa, como já se disse.

Já que falamos de moringa, falemos também de peteca, o que à primeira vista parecendo extravagante, senão absurdo, tem memorável relação nos acontecimentos da minha existência.

Fora uma das minhas grandes ambições, ideal de criança, bem se nota, mas, pela vida adiante, não creio que, das muitíssimas que me vieram, todas tivessem sido maiores ou melhores que a da ingênua posse duma peteca.

Numa loja de brinquedos meus olhos ansiosos tudo punham de parte, trens e velocípedes, jogos e rema-remas, para buscá-la humilde e escondida. Como, quando ia à cidade, voltava sempre com as mãos abanando e sofria horrivelmente no bonde o fato de ter, mais uma vez, deixado na sua vitrine o objeto dos meus caros sonhos, o ir à cidade era motivo para mim de secretos padecimentos, e, infelizmente, isso acontecia com certa regularidade semanal, pois mamãe, não gostando de sair sozinha, e como eu era o filho mais velho, preferia-me para acompanhá-la. Tem mais juízo! - falava. Talvez por isso mesmo fizesse o Aluísio tanta diabrura - não gostava de ir à cidade. Preferia ficar em casa, longe dos ralhos da mãe, a fazer o que lhe desse na cabeça pedras nos quintais vizinhos, estripulias no alto do muro, maldades até, como no dia em que cortou, com o machado, o rabo da gata malhada que Lalá tinha criado com papinhas.

Uma tragédia os meus passeios, porque mamãe não chamava de outra maneira as minhas saídas. Voltava sucumbido. À noite sonhava com ela, a peteca querida, via-a minha, pular no ar, ao bater das palmadas estrepitosas, lept, lept, com as penas vermelhas, lindíssima peteca! Interessante é que não ousava pedi-la aos meus pais, sabendo perfeitamente que pouco seria o seu preço para que eles ma negassem. Idiota, poderão dizer, ilógico, poderão argumentar, levando em conta a facilidade de pedir que é própria das crianças. Nada me fará mudar: pura verdade é o que conto e a mim é quanto me basta.

Vivi assim, longo tempo, sonhando com petecas e ambicionando-as nas montras, quando um belo dia, um dos domingos do Seu Sousa - parece incrível - ele me presenteou com uma.

Nessa tarde excepcional eu compreendi o segredo difícil das simpatias. Olhei de frente o velho amigo de meu pai e, se continuei a achá-lo feio, é impossível esconder que achei-o infinitamente agradável. A grosseira cicatriz do pescoço, longe de qualquer piedade pela má aparência que causava, infundia-me, pelo seu dono, uma notável admiração, tentando ligá-la heroicamente a um episódio desconhecido da sua vida, um ataque inopinado que sofrera, de inimigos covardes, ficando aquele ferimento por lembrança, amarga e sempre viva, da sua coragem reagindo. Cheguei a rir das suas eternas piadas, corria a buscar a moringa quando era hora, ficava perto dele, ouvindo-o conversar (soube aí ser proprietário de não sei quantos terrenos em Botafogo), esperava por ele no portão, levava-o até o bonde quando se ia, largos passos, que eu mal acompanhava, o chapéu-chile de abas para cima.

Pois da moringa e da peteca nasceu uma desgraça: minha mão inexperiente impeliu a última contra a primeira e esta ficou em cacos. Ninguém se alarmou: "moringas há milhões por este mundo, iguais como as formigas" - serenou-me minha mãe, que fazia comparações engraçadas.

Tínhamos já acendido a luz quando papai chegou, atrasado, para jantar, e como fizera demasiado calor durante o dia, entrando suado, com sede, gritou logo:
- Vejam a minha moringa!

Contaram que se quebrara e eu fora o culpado por andar jogando peteca dentro de casa. Chamou-me. Dirigi-me a ele serenamente e tratei de inventar a aventura de um gato que perseguindo um rato...

Eu era, porém, pouco imaginativo e até a meio da minha história, trivialíssima, não conseguira encaixar nenhuma passagem de extraordinário realce. Verdade seja dita, não passei além do meio: papai deu-me um tabefe na boca:
- Mentiroso!

Puxou-me pelas orelhas, levou-me para o quarto, sem jantar, disse-me, com dureza, "que um homem que mentia não era um homem", pôs-me de castigo uma semana, preso em casa, sem pôr os pés fora, na varanda que fosse. Aluísio, insensível à minha prisão, folgava, não parecendo sentir a falta do companheiro. Era de vê-la a facilidade indiferente com que supria, nos seus brinquedos, a minha pessoa ausente. Da janela do meu quarto, enquanto descansava as mãos doloridas de copiar, com boa letra e sem nenhum erro, as trinta páginas da minha geografia, que papai, pela manhã, antes de sair, inflexivelmente, me marcava, ficava vendo-o correr, subir às árvores, com desembaraço e agilidade. E invejava-o surdamente. Tinha dez anos.

(Oscarina, 1931)


* Pseudônimo literário do escritor Edy Dias da Cruz, membro da Academia Brasileira de Letras.
Conversando com minha mãe 5 – Pri


* Por Urda Alice Klueger


(Para Rogério Gil Theodorovicz e a Pri)


Sabe, mãe? Taí outra coisa que não tenho com quem conversar. Naquela altura minha vida estava dividida entre o pessoal do trabalho, os estudantes de História e a mãe. Não havia tempo para falar com mais gente, e então eu fui contando tudo para a mãe.

O primeiro colega que eu conheci no primeiro dia do curso de História foi o Rogério. Acho até que já o encontrei no Vestibular. Sei que ele esteve sempre junto, sempre por perto, como acho que ainda hoje está, embora agora a gente se encontre mais nas redes sociais. Mas era um amigão, bom para fazer trabalhos em equipe juntos, estudioso, curioso, acabou indo pesquisar o seu povo, que eram os descendentes de ucranianos da região de Canoinhas, isto já na especialização.

Quando Rogério chegou ao curso de História, nos seus parcos 21 anos de vida, já chegou com muitas dificuldades: perdera o pai pouco antes, e sua mãe lutava pelo pão do dia a dia lá na sua Canoinhas, tocando um pequeno comércio. Mas ele era cheio de vida e de otimismo, e com entusiasmo contava das suas pequenas aventuras na terra dele e num tempo em que vivera em Curitiba, e tais aventuras ficavam grandes, magníficas, na voz entusiasmada dele, e nunca que ele se queixava da vida. Bem no comecinho, já na primeira semana de aula, ele nos contou da sua grande preocupação: Vanusa, a namorada que ficara para trás, na sua terra, tendo dentro dela um bebezinho que eles tinham feito, e todos nós nos tornamos mais ou menos padrinhos e madrinhas daquela criancinha que ainda não havia nascido.

Priscila foi o nosso primeiro bebê no curso de História, e dia a dia eu contava para a mãe as novidades: das dificuldades que o Rogério, sua mulher e a Pri enfrentavam para ficarem juntos aqui em Blumenau, afinal, e de como aquela pequenina família batalhava pelo direito à felicidade e à vida, e lembro como a mãe se admirava a cada coisa que eu contava, orgulhosa que era dos meus valorosos jovens companheiros historiadores:
- Isto é que é um rapaz de valor! Fosse outro, talvez esquecesse que deixara uma filhinha para trás!

Ao longo daqueles anos, Rogério, eu e a mãe acabávamos nos encontrando, e o Rogério contava coisas assim:
- Sábados à tarde eu tiro para brincar com a minha filha!

Curiosa, a mãe queria saber mais:
- E de que brincam?
- Do que a Pri quiser. De boneca, de casinha, de qualquer coisa...

Íamos embora e a mãe reafirmava:
- Rapaz de valor!

O tempo passou, muitas coisas aconteceram, Pri ganhou a irmãzinha Maria Luisa, e sabe a mãe o que houve recentemente, agorinha, neste começo de ano? A Pri passou no vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina, e está indo embora para Florianópolis, estudar Odontologia!

Outra pessoa não iria entender o meu entusiasmo e a minha alegria por saber que a menininha do Rogério já chegou ao vestibular e foi lá e deu um show, e então achei que deveria contar tal coisa para a mãe.

Pri, parabéns, parabéns, parabéns! Tenho certeza que, lá do outro lado, minha mãe está feliz por tua causa, também!

Blumenau, 14 de Fevereiro de 2015.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



O que pode dar certo?


* Por Clóvis Campêlo


Tudo bem, admito que alguns só se interessem pelo que pode dar certo. Em nome das utopias, porém, peço clemência. O que seria do homem moderno sem o direito de sonhar e idealizar coisas? Não me arrisco a responder. Como diria o meu amigo Renato Boca-de-Caçapa, o mundo é uma bomba chiando. A qualquer hora pode explodir. É necessário, assim, que existam válvulas de escape bem ajustadas. As utopias nos servem de contrapeso à dureza da existência. Imaginar e idealizar é preciso, portanto.

Porém, nem tudo o que se pense e se idealize será viável nesse mundo de usuras. Assim, por um senso precioso de justiça, se a produção agrária de um país só lhe permite comer um quilo de feijão por semana, comer dois significa tirar o feijão da boca de alguém. Mas, numa sociedade de consumo que estimula o individualismo e a concentração de renda, será que alguém mais além de mim se arriscaria a pensar assim?

Nesse mundo complexo e perdulário, talvez nem mesmo se tenha o direito de pensar dessa maneira. Esse tipo de pensamento comunista exigiria um esforço de reeducação muito grande e desprendido. Talvez eu esteja querendo demais.

Hoje se inventa e se produz de tudo no mundo mecanizado e industrializado. A finalidade dessa produção não é atender às vicissitudes primárias do cidadão, mas sim criar falsas necessidades, alimentando vaidades e ambições doentias.

Não acredito em quase nada do que o Papa fala, mas quando ele se coloca contra o consumismo excessivo e deletério, não posso deixar de lhe dar razão. Não é a toa que o filósofo do povo acima citado, nos delírios etílicos nas mesas dos bares do Recife, costume dizer com ênfase que o consumismo é pior do que o comunismo. Homem do povo, dado a libertinagens e teorias libertárias, coerente com o seu modo incômodo e anticapitalista de ser, nunca o vi defender nenhum sistema de acumulação de bens. Como afirma com veemência, isso só existe no “mundo civilizado”. Aqui, somos educados para a nulidade e a falta de visão comunitária. O homem urbano moderno é um triste solitário que se esconde da vida com medo de perder seus parcos vinténs. Ilude-se com o vil metal.

Mas, afinal qual a maneira certa e satisfatória de enfrentar a vida? Nem eu mesmo sei! Somos tão condicionados e deformados pela (des)educação da vida moderna que perdemos o prumo da verdadeira liberdade e da satisfação pessoal.

Somos repetitivos como o cão de Pavlov. Raciocinamos em bloco, robotizados como androides produzidos em série e incapazes de nos desviarmos da programação a que fomos submetidos desde a mais tenra idade.

Talvez nos fosse necessário um novo grito do Ipiranga, ríspidos, às margens do rio da vida, olhando nos olhos furiosos do futuro, quebrando os grilhões do presente e do passado.

Recife, fevereiro 2015

* Poeta, jornalista e radialista, blogs:



Eu venho assim...


* Por Ademir Antonio Bacca


eu venho assim pela noite,
paixão incontida aflorando o peito,
água represada que não se contém,
explode
e arrasta as emoções incautas
que encontra pelo caminho.

eu venho assim meio sem jeito
pelas ruas,
vadio no meu pensar,
abandonando lembranças pelas esquinas,
sem pressa nenhuma de chegar
e não te encontrar.

* Jornalista, poeta, contista e produtor cultural


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos e onze meses.

Leia nesta edição:

Editorial – Polêmica (e deliciosa) tradução de Machado de Assis.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Racismo e preconceitos”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “Tudo novo de novo?”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, crônica, “Confiança”

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “Filosofia de banheiro”.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema, “Perda”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


  
Polêmica (e deliciosa) tradução de Machado de Assis

As mulheres têm, de fato, queda pelos tolos ao escolherem parceiros para se relacionar? O escritor e advogado belga, Victor-Georges Hénaux, acreditava que sim. Tanto que escreveu um ensaio satírico, transformado em livro, publicado em 1850, sem nenhum destaque, em seu país de origem, mas que fez um barulho danado entre nós. Não se sabe como essa obra chegou ao Brasil e, principalmente, como foi parar em mãos de Machado de Assis. O que sei é que provocou controvérsia dos diabos, que ainda persiste, até hoje, em alguns círculos não tão bem informados, envolvendo o Bruxo do Cosme Velho. Vamos aos fatos.

Ocorre que Victor Hénaux era (e ainda é) ilustríssimo desconhecido na Europa, sujeito obscuro do qual pouco (ou virtualmente nada) se sabe. Tanto que há controvérsias até mesmo sobre sua nacionalidade. Algumas fontes (escassas e incompletas) dão-no como francês, embora seja belga de nascimento. Não encontrei referências sequer sobre quando e onde nasceu. E nem a mesma coisa quanto à data e local de sua morte. E, para complicar ainda mais, não se sabe se escreveu e publicou outras obras além da citada e, em caso afirmativo, quais e quando.

E onde entra Machado de Assis em toda essa história? Ele traduziu, e publicou em fascículos, entre abril e maio de 1861, o livro de Hénaux, cujo título original era (ou é, pois essa obra pode ser encontrada hoje, com a maior facilidade, na internet) “De l’amour des femmes pour les sots”, na revista “A Marmota”. “E daí”, perguntará o leitor, que nunca soube dessa controvérsia, atônito pelo envolvimento de Machado na história, “qual o problema?”. Bem, não é um probleminha. É um problemão! Ocorre que a revista publicou os capítulos dessa obra sem nenhuma indicação de autoria. Não esclareceu que se tratava de uma tradução e nem quem foi o tradutor. Em alguma parte, aparecia, meio que perdido, o nome de Machado de Assis, mas sem indicar por que. Foi o que bastou para que se concluísse que ele era o autor desse delicioso ensaio satírico.

Nesse mesmo ano, o seriado de “A Marmota” foi publicado em livro. Todavia, nada de aparecer o nome de Henaux. Aparecia o de Machado de Assis, mas agora como tradutor. Mas do que? De quem? Nada! Apesar disso, todo o mundo, sem exceção, continuou achando que o Bruxo do Cosme Velho (que por essa época não era conhecido por esse apelido e não havia lançado, ainda, nenhum livro, nem mesmo “Crisálidas”) era o verdadeiro autor de “Queda que as mulheres têm para os tolos”. Os poucos que notaram a referência de que ele havia “apenas” traduzido essa obra, acharam que houvera equívoco. Que a autoria, de fato, era de Machado. E os raríssimos que eventualmente chegaram ao nome de Victor-Georges Hénaux entenderam, erroneamente, que este era nada mais do que mero pseudônimo do escritor brasileiro. Mas... não era.

Tanto a confusão persistiu que, quando da publicação das obras completas de Machado de Assis, quando ele já era consagrado e reconhecido como um dos maiores escritores da Literatura mundial, o erro foi mantido. Aliás, foi ampliado. O livro foi publicado como sendo “peça teatral” do Bruxo do Cosme Velho, embora não tenha absolutamente nada a ver com teatro. Confesso que entrei de gaiato nessa confusão. Citei, em duas crônicas distintas, esse livro como sendo de Machado de Assis, que é como o volume que tenho em mãos o apresenta. Aproveito, pois, o ensejo para retificar aquelas minhas citações.

Cá para nós, isso não diminui em nada a grandeza de Machado de Assis e muito menos mancha sua reputação. Muito pelo contrário. Ressalta sua qualidade de tradutor. Ao contrário do que muitos que traduzem obras de outras línguas fazem, ou seja, que seguem literalmente os significados das palavras – e esbarram em expressões idiomáticas intraduzíveis, resvalando, não raro, para o ridículo – Machado praticamente reescreveu o livro, “reinterpretando-o”, num português correto, claro, simples e cristalino, inteligível a todos. Seu estilo característico está ali, todinho, sem tirar e nem pôr, tornando o texto tão fascinante e irônico, mas sem soar desagradável ou agressivo.

A sempre providencial enciclopédia eletrônica Wikipédia informa: “Em 2008, a Edunicamp (editora da Unicamp) lançou uma edição organizada por Ana Cláudia Suriani da Silva e Eliane Fernanda Cunha Ferreira que põe fim à polêmica: trata-se de uma edição bilíngüe, tornando finalmente acessível o texto de Hénaux e permitindo a comparação que demonstra ser o texto de Machado de Assis, de fato, uma tradução”. Querem saber? Li ambas as  versões – a original, em francês, e a traduzida (diria interpretada ou reescrita) pelo escritor brasileiro – e esta última dá de dez a zero na primeira, em termos de graça, charme, ironia e humor. Não há termos de comparação.

Eu, se fosse o escritor belga, daria, de papel passado e tudo, co-autoria do livro a Machado de Assis. Afinal, foi o brasileiro que o tirou do absoluto ostracismo (pelo menos aqui no Brasil) revelando o que pensava, sobretudo das mulheres e da sua possível (não seria provável?) propensão para os tolos, os saradões e atléticos, mas (salvo exceções) com um amendoim seco por cérebro. E olhem que o Bruxo do Cosme Velho, na época, sequer havia começado, ainda, sua notável e inigualável carreira literária...

Boa leitura.


O Editor.

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Racismo e preconceitos

* Por Urariano Mota


As notícias gritam como se fossem novos jornaleiros, diante dos trens das nossas vidas:

“Uma comunidade de quase 100 mil usuários numa rede social, que se declaram profissionais da classe médica brasileira, se tornou palco de uma guerra de classes no entorno da corrida presidencial, entre Dilma Roussef  (PT) e Aécio Neves (PSDB).

Com o título de ‘Dignidade Médica’, as postagens do grupo pregam ‘castrações químicas’ contra nordestinos, profissionais com menor nível hierárquico, como recepcionistas de consultório e enfermeiras, e propõem um ‘holocausto’ entre os eleitores da petista.
Médicos, professores e estudantes de medicina estão entre os 97.901 membros da comunidade na rede social Facebook. Entre postagens de revolta com a situação econômica do País e xingamentos a nordestinos, os participantes confessam que fazem campanha pró-Aécio até dentro do próprio consultório – público ou privado – convencendo os seus pacientes.
Eles dizem que colocam ‘a recepcionista no lugar dela’ com ameaças de que perderia o emprego com a reeleição de Dilma.

O discurso de ódio conta com frases de ‘nível de conversa que pobre entende’ e ameaças de expulsão do grupo caso o usuário se manifeste contra os ideais da página.

Um usuário protesta: ‘70% de votos para Dilma no Nordeste! Médicos do Nordeste causem um holocausto por aí! Temos que mudar essa realidade!’ ”

A gente ouve esses uivos e fica difícil manter o espírito sereno. Eu queria ter apenas as palavras mais simples para falar a meus irmãos, pais, amigos, humanidade nordestina.

Assim como os melhores poetas pediam inspiração às musas quando partiam para uma empreitada além das suas forças, a minha nulidade e pequena poesia pede socorro aos músicos que tocam a meus ouvidos neste instante. Começo pela invocação da melodia e execução de gênio que vem de Felinho, no frevo Formigão:

Ouviram? Felinho acende, serena, mata e ressuscita o que é universal.

Depois, peço a luz, a bênção e o amor do povo nordestino para ouvir e escutar Asa Branca.

Vocês perdoem porque falo do Nordeste falando da gente de todo o mundo. Pois assim não é a defesa da humanidade, quando cantamos a sua excelência no canto da nossa vida  mais íntima?

Então exijo uma última licença aos uivos, aos latidos contra a gente boa, mãe da terra  do Nordeste, que cheira como cuscuz de manhã no chão quente molhado pela chuva. Chamo Lenine, o compositor.

Assim posto e defendido, posso agora convocar uma seleção de nordestinos que é também uma seleção do povo brasileiro. Não direi que esta é A Seleção, a única, porque seria tão estúpido quanto os preconceitos contra os meus pais, filhos, amigos, nordestinos irmãos que somos de todas as nacionalidades do Brasil. Mas falo agora e convoco os ofendidos mais próximos. Chamo os nossos paraíbas, cearás,  baianos, nortistas, cabeças-chatas eternos.

Lá de cima da região, invoco primeiro os maranhenses. Em ordem alfabética, os irmãos Azevedos, Aluísio e Artur, diria melhor, em ordem de privilégio, pois num casa só, em um só lugar e tempo, saíram dois escritores da formação brasileira.

Depois, entre tantos, porque estamos numa seleção dos sonhos, chamo Gonçalves Dias, do nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores, lembram?

Depois, num salto da maior arbitrariedade, pois assim são os sonhos, convoco o gênio de Catulo da Paixão Cearense, Catulo da Paixão Cearense, Catulo da Paixão Cearense, e não precisa convocar mais ninguém. Bastava Luar do Sertão, e Flor amorosa, é uma rosa orgulhosa, presunçosa, tão vaidosa.

Mas o que dizer de uma seleção de maranhenses onde não estivesse João Do Vale? O carcará não perdoa, pega, mata e come, porque A ema gemeu. E assim desço rápido para a Paraíba, com o pedido urgente da presença de  Jackson do Pandeiro.

Esses fundamentais a gente  chama com o coração na boca. Oi no forró de Sá Juaninha em Caruaru, cumpade Mané Bento só fautava tu. Matemo dois soldado, quatro cabo e um sargento, cumpade Mané Bento só fautava tu.

Penso que Deus é nordestino. Pois se não for, como explicar uma terra onde é magnífica a gente brasileira? José Lins do Rego, Canhoto da Paraíba, Ariano Suassuna, Sivuca.

Ainda acham pouco e excedem na altura de José de Alencar, Patativa do Assaré, Dom Helder Câmara, Os Índios Tabajaras, o maestro Eleazar de Carvalho. E vem mais com Câmara Cascudo, o gênio que ensinava aos gringos que jacaré quando dorme fecha o olho.  E mais Torquato Neto e Mário Faustino.

Pois se Deus não for nordestino, como explicar a origem de Frei Caneca, Manuel Bandeira, Paulo Freire, João Cabral, Carlos Pena Filho, Joaquim Cardozo, Solano Trindade, Ascenso Ferreira, Alberto da Cunha Melo, Hermilo Borba Filho, Nelson Rodrigues, Antonio Maria,  Gilberto Freyre, Mario Schemberg, José Leite Lopes, Josué de Castro.

E Lula, o cara que levou o Brasil a uma posição de destaque em todo o mundo, como explicar? Eu não sei, porque fico sem explicação para a vida e obra de Abelardo da Hora, Vitalino, Lula Cardoso Ayres, Cícero Dias, e mais Graciliano Ramos, Jorge de Lima, e aquele que virou nome de dicionário, Aurélio Buarque de Holanda.

Sim, e como esquecer Castro Alves, Luís Gama, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Marighella, Glauber Rocha e Bule-Bule?

Trezentas e sessenta e cinco igrejas de Salvador me amaldiçoariam se esquecesse a Mãe Menininha. Pior e abaixo de ruim estaria se não mencionasse os aboiadores dos sertões, que cantam como um longo lamento, e num salto para o litoral nem lembrasse da poesia marginal do Recife. E Dona Santa e o maravilhoso maracatu que fez Milton Nascimento incorporar os mais antigos ancestrais, como explicar?

Tenho ou não razão de pensar que Deus é nordestino?

Para quem ainda duvida, eu acrescento ainda outros grandes nomes do Nordeste.

Os compositores de frevo: Capiba, Nelson Ferreira, Levino Ferreira, J. Michiles, Maestro Nunes, Duda, Irmãos Valença, Edgar Moraes, Luiz Bandeira

Músicos: João Pernambuco, Luperce Miranda, Spok, Maestro Forró, Lalão, Henrique Annes, Chico Science, Alceu Valença, Geraldo Azevedo

Poetas: Daniel Lima, Mauro Mota

Escritores: Joaquim Nabuco, Osman Lins

Advogados: Mércia Ferreira, Roque de Brito Alves

Comunistas: Gregório Bezerra, Paulo Cavalcante, Diógenes de Arruda Câmara, Davi Capistrano, Naíde Teodósio

O primeiro socialista do Brasil: Abreu e Lima, o “general das massas”

Pintores: Ismael Caldas, Samico, Guita Charifker, Teresa Costa Rego, Vicente do Rego Monteiro

Economistas: Celso Furtado, Tania Bacelar

Socialistas: Miguel Arraes, Pelópidas da Silveira, Padre Reginaldo, Padre Henrique

Nutricionista: Nelson Chaves

Eu não sei se  é a visão do mar, que do Alto da Sé se avista em Olinda, que se abre azul para a África e faz a gente sentir um gosto do carinho antigo do Brasil. Eu não sei se é da terra dos altos coqueiros, cuja sombra nos abriga do calor das ladeiras, que amaciam os pés para que não virem pontapés mortais contra os preconceituosos.

Eu não sei se é do caminhar no Recife Antigo, enquanto passo por trilhos de bondes impressos nos paralelepípedos, mas quando olho as esquinas do Recife me digo, “a história vem toda de volta nestas ruas”.

Quantas gerações nos falam neste lugar do Nordeste. Quantos irmãos sentimos que se espalham em todos os estados, do Maranhão à Bahia. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, com  nordestinos discriminados em outros sotaques.

Eu não sei. Mas sinto que o título lá em cima poderia ser também “por que tenho a felicidade de ser nordestino”.

Isso  porque Deus antes de ser de todos os brasis, amou e criou aqui no Nordeste. É da história a informação. Assim como é na história, pela história que existimos e somos.

Esses preconceitos que explodem agora mais que nos envergonham. Eles nos gritam entre uivos a vergonha que sentem do Brasil. Fazer o quê? Que venha em nossa ajuda o Frei Caneca, de quem faço uma breve adaptação para este momento:

Entre o preconceito e a pátria
Não duvida  meu coração:
O Nordeste levou-me todo.
Preconceitos que uivem em vão.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.