segunda-feira, 23 de julho de 2018

Editorial - Inusitada volta por cima


Inusitada volta por cima


O reconhecimento dos méritos de homens talentosos e competentes nem sempre ocorre enquanto estão vivos. Aliás, não exageraria se dissesse que raramente acontece. Alguns (e não poucos) não são reconhecidos nunca. Suas obras perdem-se no tempo e seus nomes são apagados liminarmente da história, pelo total esquecimento. É como se nunca houvessem existido.

Quem perde com isso, óbvio, além do próprio sujeito que não obtém o merecido reconhecimento, são a cultura, as artes (caso se trate de artista) e, por fim, a civilização. Por que isso ocorre? Por uma série de motivos. Minha opinião pessoal é que a principal causa é que esses homens talentosos e competentes nascem em “tempo errado”, estão muitos anos, não raro décadas e até séculos, à frente da época em que vivem.

Todavia há os que obtêm o reconhecimento, posto que tardio, por vias transversas. Provavelmente em decorrência de pequenos e grandes acasos. E isso ocorre, quase sempre, com as figuras mais improváveis disso ocorrer, por serem, quando vivas, vítimas de escárnio generalizado, de incompreensão e, sobretudo, de preconceito. Quando tomo conhecimento de que algum desses gênios, talentosos e competentes, conseguiu dar a volta por cima, vibro intimamente.

Não sou ingênuo de acreditar no adágio que diz que “a justiça tarda, mas não falha”. Isso pode acontecer, sim, mas como exceção. A regra é que, na maioria das vezes, ela não apenas tarda como, acima de tudo, falha. No que diz respeito à literatura, a perpetuação dessas injustiças é mais copiosa e frequente do que os incautos e alienados supõem. Cansei de garimpar em sebos livros preciosíssimos, de escritores extraordinários, dos quais ninguém jamais ouviu falar. Não há registro deles nem em arquivos de jornais, nem em bibliotecas, muito menos antologias, enciclopédias etc. Enfim, não estão registrados em lugar algum.

Há um caso, porém, de uma improbabilíssima volta por cima, que me faz recuperar, só um pouquinho não nego, a fé no bom gosto das pessoas e numa certa “justiça” (mesmo que se trate de um arremedo da que seria a ideal). Trata-se de um sujeito mulato, que nasceu exatamente sete anos antes da promulgação da Lei Áurea (coincidentemente em 13 de maio, mas de 1881), cujo pai foi escravo e cuja mãe era filha de escrava e que, ainda assim, teve a rara oportunidade de receber esmerada educação. Isso deveu-se ao fato de ter como padrinho ninguém menos do que o Visconde de Ouro Preto. Refiro-me ao genial (e hoje essa genialidade é reconhecida quase que consensualmente) Afonso Henriques de Lima Barreto.

Sua vida foi uma sucessão de tormentos. Por exemplo, seu pai foi acometido de loucura e internado em um manicômio, onde faleceu. A mãe, mulher instruída, que era professora, morreu cedo. Coube-lhe, ainda quase menino, a árdua tarefa de prover o sustento dos quatro irmãos. Trabalhou, trabalhou e trabalhou, e muito. Colaborou com vários jornais e revistas, que publicavam sua produção, é verdade, mas lhe pagavam uma mixaria. Isto quando pagavam alguma coisa. E achavam que estavam fazendo um favor ao talentoso escriba.

Imaginem, caros leitores, o que era ser mulato, num Brasil que mal saíra dessa indecência que foi a escravidão! E pior, mulato bem instruído! E pior ainda (na mentalidade desses indivíduos de mente curta), talentoso e criativo! Quanto preconceito, quanta imbecilidade, quanto escárnio teve que suportar da parte dos medíocres, dos burros enfatuados, dos doentiamente invejosos! Uma infinidade!

Seus livros, hoje lidos, relidos, estudados, analisados e admirados, eram alvos de ácidas críticas. O “defeito” mais suave que lhe apontavam era o fato de se utilizar de linguagem coloquial no que escrevia e não aquela empolada, discursiva e chata em voga na época. Diziam que, por isso, Lima Barreto era “relaxado”. Era a acusação mais suave.

Caramba, fico pensando cá com meus botões: se eu vivesse naquela época de tamanha pequenez mental estaria frito. Meus textos não renderiam nada, nem o suficiente para pagar um cafezinho. Por que? Porque é justamente a linguagem coloquial (sem querer me comparar, óbvio, em genialidade a Lima Barreto) a principal característica do meu estilo.

Muitos dos seus biógrafos – talvez até subconscientemente guardando alguns resquícios de preconceito – enfatizam que o escritor se tornou alcoólatra, que sofria de depressão e que teve, até, que ser internado em hospital psiquiátrico por causa de tudo isso. Pudera! Com uma vida tão sacrificada, com tantas e tamanhas decepções, covardias sofridas e gratuitas agressões, seria de se admirar se conservasse a sanidade mental. Eu não conservaria. Lima Barreto morreu cedo, bastante jovem, na capital paulista, em 1º de novembro de 1922 (justo no ano da realização da Semana de Arte Moderna da qual foi legítimo precursor, posto que nunca reconhecido como tal).

Tudo levava a crer que seria esquecido e não se falaria mais nisso. Contudo... Anos após sua morte, umas duas ou três décadas, as coisas começaram a mudar. Pessoas cultas e inteligentes, com sólida formação literária, começaram a ler seus livros cada vez mais e a identificar neles raríssimo talento, incrível criatividade, profundo senso de humanidade.

Resumindo, hoje esse escritor de vida tão atribulada é cada vez mais estudado, reverenciado e admirado. Centenas de documentários a seu respeito foram (e continuam sendo) exibidos na televisão, quer em canais abertos, quer nos por assinatura. Vários filmes foram rodados baseados em suas obras. Assisti, há uns oito anos, na TV Brasil, um deles, reproduzindo com fidelidade um de seus contos mais geniais, “O homem que falava javanês”.

Já li essa história deliciosa pelo menos cinco vezes, a ponto de quase decorá-la. Mas “ver” seus personagens, que ganharam vida na tela, fez com que eu descobrisse nuances que não havia detectado e sequer suspeitado na leitura. Uma infinidade de livros foi escrita analisando sua obra. Outra infinidade, certamente, ainda será. E não é só isso. O escritor mulato foi homenageado pelo “povão”, que tão bem retratou em sua obra. Uma dessas homenagens veio da Escola de Samba Unidos da Tijuca que, em 1982, fez um desfile comemorativo, tendo por samba-enredo “Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre”.

Mas a divulgação mais copiosa, de maior penetração e projeção, por se tratar de paixão nacional, veio da dramaturgia na TV. O enredo da novela “Fera ferida” – escrito por Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares, sob a direção do quarteto Dennis Carvalho, Marcos Paulo, Carlos Magalhães e Carlos Araújo – exibida em horário nobre pela Rede Globo, no período de 15 de novembro de 1993 a 16 de julho de 1994, foi inspirado em várias obras de Lima Barreto. Tinha elementos dos romances “Clara dos Anjos”, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, além de “traços” de personagens dos contos “Nova Califórnia” e “O homem que falava javanês”.

Agora pergunto: quem sabe, ou se lembra, ou já ouviu alguém falar do nome dos que o escarneceram, dos que o ridicularizaram, dos que torceram o nariz diante da sua pessoa e das suas obras? Quem souber deles, cite, nominalmente, pelo menos um. Não dá para citar, não é mesmo? Desapareceram, retornados que foram à sua comprovada insignificância. Tiveram vidas fáceis, ostentaram luxo e riquezas, foram bajulados por basbaques, mas... Foram totalmente apagados do livro da vida. Já Lima Barreto... incorporou-se à alma do Brasil, país que simbolizou a caráter. Deu definitiva volta por cima, mesmo que improvável por qualquer parâmetro lógico.


Boa leitura!

O Editor.


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Um comentário:

  1. Mesmo que postumamente, é bom alguém se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.

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