Inusitada
volta por cima
O
reconhecimento dos méritos de homens talentosos e competentes nem
sempre ocorre enquanto estão vivos. Aliás, não exageraria se
dissesse que raramente acontece. Alguns (e não poucos) não são
reconhecidos nunca. Suas obras perdem-se no tempo e seus nomes são
apagados liminarmente da história, pelo total esquecimento. É como
se nunca houvessem existido.
Quem
perde com isso, óbvio, além do próprio sujeito que não obtém o
merecido reconhecimento, são a cultura, as artes (caso se trate de
artista) e, por fim, a civilização. Por que isso ocorre? Por uma
série de motivos. Minha opinião pessoal é que a principal causa é
que esses homens talentosos e competentes nascem em “tempo errado”,
estão muitos anos, não raro décadas e até séculos, à frente da
época em que vivem.
Todavia
há os que obtêm o reconhecimento, posto que tardio, por vias
transversas. Provavelmente em decorrência de pequenos e grandes
acasos. E isso ocorre, quase sempre, com as figuras mais improváveis
disso ocorrer, por serem, quando vivas, vítimas de escárnio
generalizado, de incompreensão e, sobretudo, de preconceito. Quando
tomo conhecimento de que algum desses gênios, talentosos e
competentes, conseguiu dar a volta por cima, vibro intimamente.
Não
sou ingênuo de acreditar no adágio que diz que “a justiça tarda,
mas não falha”. Isso pode acontecer, sim, mas como exceção. A
regra é que, na maioria das vezes, ela não apenas tarda como, acima
de tudo, falha. No que diz respeito à literatura, a perpetuação
dessas injustiças é mais copiosa e frequente
do que os incautos e alienados supõem. Cansei de garimpar em sebos
livros preciosíssimos, de escritores extraordinários, dos quais
ninguém jamais ouviu falar. Não há registro deles nem em arquivos
de jornais, nem em bibliotecas, muito menos antologias, enciclopédias
etc. Enfim, não estão registrados em lugar algum.
Há
um caso, porém, de uma improbabilíssima volta por cima, que me faz
recuperar, só um pouquinho não nego, a fé no bom gosto das pessoas
e numa certa “justiça” (mesmo que se trate de um arremedo da que
seria a ideal). Trata-se de um sujeito mulato, que nasceu exatamente
sete anos antes da promulgação da Lei Áurea (coincidentemente em
13 de maio, mas de 1881), cujo pai foi escravo e cuja mãe era filha
de escrava e que, ainda assim, teve a rara oportunidade de receber
esmerada educação. Isso deveu-se ao fato de ter como padrinho
ninguém menos do que o Visconde de Ouro Preto. Refiro-me ao genial
(e hoje essa genialidade é reconhecida quase que consensualmente)
Afonso Henriques de Lima Barreto.
Sua
vida foi uma sucessão de tormentos. Por exemplo, seu pai foi
acometido de loucura e internado em um manicômio, onde faleceu. A
mãe, mulher instruída, que era professora, morreu cedo. Coube-lhe,
ainda quase menino, a árdua tarefa de prover o sustento dos quatro
irmãos. Trabalhou, trabalhou e trabalhou, e muito. Colaborou com
vários jornais e revistas, que publicavam sua produção, é
verdade, mas lhe pagavam uma mixaria. Isto quando pagavam alguma
coisa. E achavam que estavam fazendo um favor ao talentoso escriba.
Imaginem,
caros leitores, o que era ser mulato, num Brasil que mal saíra dessa
indecência que foi a escravidão! E pior, mulato bem instruído! E
pior ainda (na mentalidade desses indivíduos de mente curta),
talentoso e criativo! Quanto preconceito, quanta imbecilidade, quanto
escárnio teve que suportar da parte dos medíocres, dos burros
enfatuados, dos doentiamente invejosos! Uma infinidade!
Seus
livros, hoje lidos, relidos, estudados, analisados e admirados, eram
alvos de ácidas críticas. O “defeito” mais suave que lhe
apontavam era o fato de se utilizar de linguagem coloquial no que
escrevia e não aquela empolada, discursiva e chata em voga na época.
Diziam que, por isso, Lima Barreto era “relaxado”. Era a acusação
mais suave.
Caramba,
fico pensando cá com meus botões: se eu vivesse naquela época de
tamanha pequenez mental estaria frito. Meus textos não renderiam
nada, nem o suficiente para pagar um cafezinho. Por que? Porque é
justamente a linguagem coloquial (sem querer me comparar, óbvio, em
genialidade a Lima Barreto) a principal característica do meu
estilo.
Muitos
dos seus biógrafos – talvez até subconscientemente guardando
alguns resquícios de preconceito – enfatizam que o escritor se
tornou alcoólatra, que sofria de depressão e que teve, até, que
ser internado em hospital psiquiátrico por causa de tudo isso.
Pudera! Com uma vida tão sacrificada, com tantas e tamanhas
decepções, covardias sofridas e gratuitas agressões, seria de se
admirar se conservasse a sanidade mental. Eu não conservaria. Lima
Barreto morreu cedo, bastante jovem, na capital paulista, em 1º de
novembro de 1922 (justo no ano da realização da Semana de Arte
Moderna da qual foi legítimo precursor, posto que nunca reconhecido
como tal).
Tudo
levava a crer que seria esquecido e não se falaria mais nisso.
Contudo... Anos após sua morte, umas duas ou três décadas, as
coisas começaram a mudar. Pessoas cultas e inteligentes, com sólida
formação literária, começaram a ler seus livros cada vez mais e a
identificar neles raríssimo talento, incrível criatividade,
profundo senso de humanidade.
Resumindo,
hoje esse escritor de vida tão atribulada é cada vez mais estudado,
reverenciado e admirado. Centenas de documentários a seu respeito
foram (e continuam sendo) exibidos na televisão, quer em canais
abertos, quer nos por assinatura. Vários filmes foram rodados
baseados em suas obras. Assisti, há
uns oito anos, na TV
Brasil, um deles, reproduzindo com fidelidade um de seus contos mais
geniais, “O homem que falava javanês”.
Já
li essa história deliciosa pelo menos cinco vezes, a ponto de quase
decorá-la. Mas “ver” seus personagens, que ganharam vida na
tela, fez com que eu descobrisse nuances que não havia detectado e
sequer suspeitado na leitura. Uma infinidade de livros foi escrita
analisando sua obra. Outra infinidade, certamente, ainda será. E não
é só isso. O escritor mulato foi homenageado pelo “povão”, que
tão bem retratou em sua obra. Uma dessas homenagens veio da Escola
de Samba Unidos da Tijuca que, em 1982, fez um desfile comemorativo,
tendo por samba-enredo “Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre”.
Mas
a divulgação mais copiosa, de maior penetração e projeção, por
se tratar de paixão nacional, veio da dramaturgia na TV. O enredo da
novela “Fera ferida” – escrito por Aguinaldo Silva, Ana Maria
Moretzsohn e Ricardo Linhares, sob a direção do quarteto Dennis
Carvalho, Marcos Paulo, Carlos Magalhães e Carlos Araújo –
exibida em horário nobre pela Rede Globo, no período de 15 de
novembro de 1993 a 16 de julho de 1994, foi inspirado em várias
obras de Lima Barreto. Tinha elementos dos romances “Clara dos
Anjos”, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Triste
fim de Policarpo Quaresma”, “Vida e morte de M. J. Gonzaga de
Sá”, além de “traços” de personagens dos contos “Nova
Califórnia” e “O homem que falava javanês”.
Agora
pergunto: quem sabe, ou se lembra, ou já ouviu alguém falar do nome
dos que o escarneceram, dos que o ridicularizaram, dos que torceram o
nariz diante da sua pessoa e das suas obras? Quem souber deles, cite,
nominalmente, pelo menos um. Não dá para citar, não é mesmo?
Desapareceram, retornados que foram à sua comprovada
insignificância. Tiveram vidas fáceis, ostentaram luxo e riquezas,
foram bajulados por basbaques, mas... Foram totalmente apagados do
livro da vida. Já Lima Barreto... incorporou-se à alma do Brasil,
país que simbolizou a caráter. Deu definitiva volta por cima, mesmo
que improvável por qualquer parâmetro lógico.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Mesmo que postumamente, é bom alguém se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.
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