segunda-feira, 30 de junho de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, três meses e un dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Revendo a gravação do jogo

Coluna Em Verso e Prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema “Jardim”..

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Recordação da casa dos mortos”.

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica, “Picolé de manga”.

Coluna Porta Aberta – Alexandre Vicente, artigo “Tribunal digital”.

Coluna Porta Abertas – Cida Pedrosa, poema, “Poema da invernada”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” – José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com  
“Aprendizagem pelo Avesso” – Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso. 
 “Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Revendo a gravação do jogo

Revi o jogo da Seleção Brasileira contra o Chile, que tive o capricho de gravar, para entender a razão dos comandados de Felipão terem enfrentado tantas dificuldades para sua classificação para a fase seguinte da competição. Aliás, assisti a essa gravação não apenas uma vez, mas várias, na verdade três, já que durante os mais de 120 minutos, com o coração ameaçando sair pela boca, não foi possível atentar para nenhum detalhe técnico, muito menos tático. Como todo torcedor (aliás, nem todo, já que muitos, pelo menos da boca para fora, torcem pela eliminação do nosso selecionado), na transmissão ao vivo, procurava enviar eflúvios positivos (como se isso fosse possível) aos nossos jogadores, para que achassem um mísero golzinho que fosse e evitassem a prorrogação e, sobretudo, a decisão por pênaltis.

Não me saía, teimosamente, da memória, aquela desclassificação brasileira diante do Paraguai, na última Copa América, disputada na Argentina. O leitor certamente se lembra do que aconteceu naquela ocasião. Nossos jogadores cobraram, de forma ridícula e irritante, todos os pênaltis (ou quase todos, já não tenho certeza), determinando nossa saída precoce daquela competição. Não queria, portanto, passar por idêntico drama, ainda mais em uma Copa do Mundo e tendo o Brasil como anfitrião. Quis o acaso, todavia, que tivéssemos que passar por esse martírio outra vez. E o resultado foi só um pouquinho diferente. Mas a diferença foi suficiente para evitar um vexame muito, muitíssimo maior do que o “Maracanazzo” de 1950.

Dois, dos cinco pênaltis, foram desperdiçados, respectivamente por William e por Hulk. Só que, ao contrário da Copa América, brilhou a estrela do goleiro Júlio César, com duas defesas providenciais. E, principalmente, fomos favorecidos pelo fator sorte, com a bola que o zagueiro chileno Jara chutou contra a trave. Ufa! Essa dramática decisão será lembrada por muitos anos, quer o Brasil conquiste a Copa (principalmente), quer fique pelo caminho. Aliás, aconteceu algo parecido (mas muito mais importante) em 1994, nos Estados Unidos, com aquela cobrança de pênalti para as nuvens do italiano Roberto Baggio, justo o maior craque da Itália, o que na oportunidade valeu à Seleção Brasileira o tetracampeonato mundial.

Mas, como ia dizendo, revi a gravação do jogo contra o Chile, e mais de uma vez (na verdade três) e sabem o que concluí? Que o Brasil não jogou tão mal como me pareceu ao vivo. “Mas como?!, dirá o leitor, achando que estou fora do eixo ou que, no mínimo, estou me deixando levar pela paixão de torcedor. Porém, é fácil de conferir. Assista a gravação. Ah, você não gravou? Azar seu! Aliás, acho que nenhum dos tantos cronistas esportivos, que deitaram falação à beça nas várias mesas redondas de que participaram, igualmente não reviu a partida. Alguns não viram sequer a edição dos melhores lances. Se vissem, não diriam tantos disparates como disseram. Se acham que estou exagerando, é fácil de comprovar ou de desmentir: revejam o jogo, assim como eu fiz.

Com toda a certeza, alguém me lembrará da bola no travessão, chutada pelo atacante Pinilla, no penúltimo minuto da prorrogação, para provar que estou errado ou até maluco.. Se aquele chute fosse convertido em gol, babau Copa para nós. Mas aí entramos em um terreno totalmente subjetivo: o das hipóteses o do que não aconteceu. É como dizer, e com razão, que “se eu não fosse pobre, seria rico”. Ora, ora, ora. Há, todavia, no meu caso, essa incômoda condição. A mesma que houve no Mineirão, posto que em outro contexto. Sejamos objetivos. Além dessa bola na trave, e da única defesa complicada de Júlio César, num chute do excelente volante chileno Aranguiz, qual outra oportunidade real o adversário teve? Nenhuma! Revejam a gravação! E quantas foram as oportunidades do Brasil? Só de Neymar, que ao vivo me pareceu ter jogado mal, foram três, numa das quais o goleiro Bravo teve que trabalhar bastante.

Não estou afirmando que a Seleção Brasileira fez a partida dos sonhos. Óbvio que não fez. Tanto que o gol chileno, a exemplo do que já havia ocorrido na estréia, contra a Croácia, foi um “presentão” da nossa defesa. Não tivemos meio de campo e vários dos nossos principais atletas deixaram, muito a desejar. Mas daí dizer que o Chile jogou melhor, que colocou nossa seleção na roda e tantos outros disparates ditos por aí, é não ter assistido o jogo com a devida atenção (o que no caso, é até compreensível) ou não ter frieza e espírito crítico suficientes para ser comentarista de rádio ou de TV (no caso, os que o são).

Ouso dizer que, se aquela bola do Pinilla entrasse, seria a desclassificação brasileira mais injusta da história, embora sempre tenha em mente que futebol nada tem a ver com justiça. O Brasil jogou mal? Para os padrões de um pentacampeão mundial, sim. Foi, todavia, pior do que o adversário? Objetivamente, não, não e não. Antes de me contestarem, assistam, com isenção, a gravação do jogo. Agora, que a coisa passou, não há razão para que o coração ameace sair pela boca. Só espero que os jogadores saibam extrair lições dos erros que cometeram (que foram muitos, admito) e que não os repitam contra a Colômbia. Mas que não joguem no lixo tudo o que de bom fizeram. E que não judiem tanto da gente. Que reconquistem, sobretudo, nossa confiança com a única forma em que isso é possível: com uma atuação de gala, digna de pentacampeões.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.              .    
Jardim

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Gosto de azaléias
e dos manacás.
Gosto de lírios,
lantanas assanhadas,
girassóis causticantes
e das pomposas hortênsias
com seus cachos furta-cor.
Gosto das mimosas,
das rosas cor de carmim.
Disso tudo pouco plantei,
Apenas pedi um jardim.

 * Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário


Recordação da casa dos mortos


* Por Talis Andrade

1

Vieram
soldados
de armas
nas mãos
Vieram
soldados
de botas
pretas
Gritaram forte
espancaram forte
vasculharam tudo
tudo


2

Tomaram retratos documentos
Os carcereiros regiam quase tudo
Os carcereiros não podiam acorrentar
os sonhos de liberdade a doce
esperança de encontrar
a Terra Sem Mal

3

Acaso o corpo presunto
se conserve vivo
na câmara frigorífica
Liberto dos sequazes
o corpo defunto
escape do inferno
não há como afastar
a persistente presença
do senhor da tortura
Acaso o preso escape
ileso das mãos homicidas
não há como esquecer
o contato na carne
das tenazes em brasa
a comida pastosa
empurrada na boca
as unhas arrancadas
os dentes quebrados
Não há como esconder
as visíveis marcas
confundindo a alma
quebrantando o corpo

4

Como varrer da memória
as cenas de esquartejamento
Esquecer uma madrugada
a porta da casa derrubada
foi retirado da cama
e jogado em um negro carro
idêntico aos coches
das casas mortuárias
Uma madrugada as corujas nefastas
cobriram o céu azul com suasas negras
Uma noite os olhos diante
dos horrores do holocausto
quedaram macabramente inúteis
Infaustos olhos de Santa Luzia
exibidos em um prato de prata

5

Os olhos desbotados
pela salmoura das frias
paredes dos presídios
vazados nas masmorras
do Santo Ofício
arrancados nos porões
da ditadura
Os olhos tristes
de quem sentiu
quanto (ser)vil
pode se tornar
o bicho homem
De Lázaro os olhos
de quem voltou
do país das sombras
querem
os verdes anos perdidos
o azul a paz
de longínquo cais
a liberdade dos espaços
brancas velas de uma jangada
no horizonte
pássaros velejando
o infinito
In livro O Enforcado da Rainha, p.119,

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).


Picolé de manga

* Por Daniel Santos


A mulher entrou na praça com uma nuvem de apreensões na testa, bem acima de olhos que ameaçavam já chover. Sentou-se num banco de madeira e tirou da bolsa o resultado do exame de urina: estava grávida!

Não foi total surpresa, mas a confirmação escoiceou seu ventre com gravidade jurídica. E sentiu-se culpada. Mas, sobretudo, prenhe e, por isso, túrgida, desconfortável de tão fecunda, quase um animal de quatro patas.

Difícil suportar-se grávida de um homem que já se fora, difícil imaginar-se mãe sem recursos para educar a criança, difícil esconder a barriga que enfunava sua vaga sob o humilde tailleur azul de balconista.

Levou a mão ao ventre como se quisesse arrancá-lo. Ou retê-lo? Não sabia. Às tantas, pediu ao garoto do picolé um de manga e sentiu a vida pedregosa dissolver-se na sua língua! Aí, tudo lhe pareceu mais fácil.

Entendeu como agir sem medo e tomou a decisão maior. Sentiu-se, então, enorme, possante, mangalarga. Poderia até se chamar Hermengarda – riu-se, enquanto voltava ao trabalho, a testa agora luzidia, ensolarada.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



Tribunal digital

* Por Alexandre Vicente

Todos somos heróis. Sim. De alguma forma, todos somos. Basta ver nos posts do Facebook e nos blogs. Todos queremos mostrar o que nos faz diferente. E somos todos diferentes, do contrário seríamos a burra unanimidade rodriguiana. Neste momento que cito Nelson, me sinto igual a muitos, mas não vou me abster de fazê-lo só para agradar.

Quando publicamos nos blogs queremos mostrar o que nos faz diferente e o que nos torna atraente. Ressalvo, não uma atração sexual; mas a atração de ser uma pessoa interessante. Citando Luigi Spreafico: “Eu escrevo prá me mostrar”.

Da mesma forma é isso que fazemos nos Orkuts e Facebooks da vida. Postamos para nos mostrar. Alguns se excedem, mas quem tem a medida exata? Podemos errar na mão algumas vezes, mas em tempos em que todos querem ser celebridade, porque não ser uma pelo menos no seu círculo de amigos?

Será que isso é falta de humildade ou tem uma explicação psico-redentora para este crime comportamental? É certo que existem os níveis de fobia sócio-digitais. Uns não se expõe por nada. Você digita o nome da pessoa no Google e não encontra nem uma pista. Por outro lado, há aqueles que se expõe demais. Numa pesquisa semelhante  você encontra logo umas três dezenas de páginas com foto, Orkut, Facebook, Twitter, Linkedin, G+, email de contato etc.

Tem aqueles que postam tudo no Facebook, desde a hora em que acordam, até a hora em que vão dormir. Estes não usam o ultrapassado diário. Se precisarem lembrar o que fizeram em determinado dia, é só entrar no FB e ver o que tá lá registrado.

“Excelência, conforme mostram os autos, a página do Facebook de minha cliente comprova que ela postou essa imagem chamada “Esperando o 744” às 14h34min por celular, quando estava em Cascadura. Sendo assim ela não poderia ter cometido o homicídio a ela imputado neste mesmo horário, no Rio Comprido.”

E aí? Vale como prova legal? Com a palavra os doutores em Direito Processual.

É possível mapear a rotina de muita gente e daí perceber se esta pessoa é ou não uma candidata a um convite para jantar com os seus pais ou seus filhos.

“Amor. Queria convidar fulano para jantar aqui em casa, mas ele é Flamengo doente. E meu pai… bom, meu pai você sabe como é, né? É o Vasco na terra e Deus no céu. É melhor deixar para outro dia.”

Outra cilada é quando você começa a planejar uma viagem de lua de mel para a Europa ou qualquer outro lugar. E aí cai na besteira de postar:

“Londres, aí vou eu!”

Alguém curte e comenta:

“Nós também vamos, que tal irmos no mesmo período? Já estou com toda a programação feita.”

O pior é quando você posta uma opinião sobre determinado assunto e ganha o seguinte comentário:

“Não esperava isso de você.”

Putz… Você tava quietinho, esqueceu que tinha um amigo que era contra determinado tema e posta lá o que você acha, sem ninguém ter te perguntado nada.

Imaginem se em 1989, você tivesse postado várias propagandas pela eleição do Collor? Com que cara você ia sair nas ruas? Pintada é que não era!

Não tô aqui falando para você se omitir, mas não dá mais para pôr a mão no fogo por outras pessoas. Principalmente na política. Post é coisa séria. E blog também.

Conforme dirá a lei: tudo que você disser, postar ou blogar pode e deverá ser usado contra você num tribunal (de bar, obviamente).


* Escritor carioca
Poema da invernada

* Por Cida Pedrosa

A fome vem entre a ravina
dos sonhos, agarra a crina
da vida, saindo o facho.

Dos deuses. Sinto as esporas
e o cavalgar sobre esmolas
na mansidão da surdina.

Nos dias que não terminam
chocalham almas meninas
ferindo a luz das retinas.

* Poetisa e vereadora no Recife


domingo, 29 de junho de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos e três meses de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Bateu na trave!

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “À margem da edição”.

Coluna Direto do Arquivo – Risomar Fasanaro, crônica, “Viagem ao Maranhão (1)”.

Coluna Clássicos – Adonias Filho, crônica, “História de Emílio”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo, “O futebol como religião secular”.

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, poema, “Soneto para Raul”..


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com “Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Bateu na trave!

Ufa! Que sufoco! A desclassificação brasileira da Copa do Mundo (justo desta que nosso País é o anfitrião) bateu, literalmente, na trave, tanto na prorrogação quanto na decisão por tiros livres diretos da marca de pênalti, no confronto com a boa equipe chilena.. Nossa Seleção, aliás, foi salva tanto pelo erro (ou azar?) dos adversários, quanto pela competência do contestado (e injustiçado) Júlio César. Que memorável volta por cima que ele deu! A eliminação do Brasil, no Mundial de 2010, no jogo que perdeu para a Holanda, foi atribuída, toda ela, a uma suposta falha do goleiro, em que o menos culpado foi ele. Mas... já virou mania nacional eleger “bodes expiatórios” para lançar sobre eles toda a culpa dos eventuais fracassos da seleção cinco vezes campeã. Em 1950, o responsabilizado foi Barbosa. Em 2010 a vítima da vez foi Júlio César.

Caso a Seleção Brasileira fosse eliminada, desta vez o vexame seria muito maior do que o de 64 anos atrás, que continua entalado na garganta da torcida nacional, embora restem poucos remanescentes que testemunharam aquele fiasco (que eu não considero como tal). A eliminação teria ocorrido não em uma final, como em 1950, mas em fase inicial da etapa eliminatória. O Brasil não seria vice-campeão como naquela oportunidade (título que, para nós, não vale nada e é considerado da mesma forma que a última colocação), mas, dependendo dos critérios, poderia ocupar um pífio 16° lugar. Esta geração – que se não é uma das melhores da história, está muito distante de ser das piores – ficaria marcada para sempre com o signo do fracasso. Ou, para ser mais enfático, do vexame.

Felizmente, as circunstâncias aleatórias desta vez atuaram a nosso favor. E quis o acaso que o mesmo atleta, ridicularizado, vilipendiado e marginalizado pela torcida, que nos últimos quatro anos contestou até sua simples presença entre os selecionados, evitasse uma decepção nacional muito maior do que aquela de 64 anos antes. Torcedores e, principalmente, a imprensa especializada, se esquecem que futebol não é ciência exata. Que nem sempre a equipe melhor preparada e com jogadores mais habilidosos, é a vencedora. Estamos tratando de um jogo, com todos os fatores aleatórios, de sorte e azar, que o cercam. E não é apenas a Seleção Brasileira que está sujeita a esses caprichos. Todos os remanescentes da competição podem amargar inesperadas surpresas.

Dada a má performance dos comandados de Felipão, salvos pelas traves e pela providencial ação de Júlio César, muitos (diria a maioria) já estão dando, como líquida e certa, a eliminação do nosso super estrelado selecionado. É possível prever, com razoável margem de acerto, algo assim? Entendo que não! Quem pode garantir, por exemplo, que os adversários (que será apenas mais um, caso o Brasil tropece) nas fases seguintes, se os pentacampeões avançarem até a final, conseguirão (ou conseguirá) neutralizar nosso jogador mais habilidoso e decisivo, Neymar, mesmo que a poder de pancadas, como os chilenos fizeram? Como prever outro erro grosseiro, igual ou pior ao que Hulk cometeu na cobrança do fatídico arremesso lateral? Será que o meio de campo brasileiro continuará tão inoperante como se mostrou na Batalha do Mineirão? Será que Fred passará mais um jogo em branco, ele que é artilheiro nato, com tanta intimidade com o gol? Será que a arbitragem fará vistas grossas às infrações dos antagonistas? Será? Será? Será? Pode até ser que sim, que tudo isso se repita ou ocorra coisa pior. Mas as probabilidades disso ocorrer são equivalentes às de eu acertar sozinho nos números da megassena.

Aprendi que, no futebol, prognósticos não passam de meros palpites. Podemos acertar ou errar, todavia jamais serão previsões. Ninguém, mas ninguém mesmo tem a mais remota capacidade de saber de antemão o que não aconteceu e que pode nunca acontecer. Aliás, como ocorre em tudo na vida. O fato é que o quarto degrau, da escada metafórica de sete, que conduz ao título da Copa do Mundo, bem ou mal, foi vencido. É verdade que a Seleção Brasileira não o escalou galhardamente, como esperávamos. Digamos que “se arrastou” penosamente até ele, bafejada pela providencial ação do acaso. O fato é que agora restam só três desafios a separarem esta geração de jogadores da glória. Se ela conseguir vencê-los, será decantada em verso e prosa por anos e anos a fio. Se claudicar e ficar pelo caminho... duvido que conte com a mínima complacência de apaixonados torcedores, movidos exclusivamente por irracionalidade, que não comporta reconhecimento e nem justiça.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.                 
À margem da edição

* Por Pedro J. Bondaczuk


O artista é o sujeito que lança mão apenas da imaginação para criar obras nascidas exclusivamente da sua fantasia. Já o cientista se atém ao concreto, ao comprovável, àquilo que pode ser racionalizado e repetido quantas vezes se desejar, desde que certas regras sejam rigorosamente respeitadas, certo? Errado!

O que entendemos por ciência não é mais do que fruto da especulação. O que hoje é tido como dogma incontestável, amanhã pode estar totalmente ultrapassado por novas "descobertas", que por sua vez talvez sejam superadas por outras, e mais outras e mais outras, em um número de vezes que pode se perder no infinito.

O artista, porém, e em especial o poeta (mas também o cronista, o contista, o romancista, o ensaísta etc.) desenvolve, com anos de exercício, a aptidão de explorar sutilmente o subconsciente à cata de emoções que lhe sirvam de matéria-prima para maravilhosas obras de arte. Sons, imagens, odores, sensações agradáveis ditadas pelos cinco sentidos, são transformados por esses criadores (que valorizam e dão nobreza à vida humana) em melodias, telas, esculturas, palavras que formam metáforas bem ajustadas e harmoniosas. Com o talento de que são dotados, nos transmitem suas emoções, às quais agregamos as nossas, ditadas por nossa própria experiência pessoal.

Todos temos, a rigor, em nós, um artista adormecido, embora muitas vezes não pareça que seja assim. Ocorre que alguns sufocam esse pendor natural, voltados que estão para coisas aparentemente mais importantes, mais "sérias" e que, na verdade, quando submetidas a uma análise lógica mínima, se revelam supérfluas, triviais, fantasiosas e absolutamente dispensáveis. Só a arte dá dimensões divinas ao ser humano. É por seu intermédio que ele verdadeiramente se revela em toda a sua grandeza e transcendência.

Esse imenso preâmbulo, esse enorme “nariz de cera” (e aí está a vantagem de redigir um texto não-jornalístico) vem a propósito de abordar a experiência singular que tenho o privilégio de viver, há já 17 meses, de ser o editor do Literário, sábia criação da direção do Comunique-se, que abre espaço a jornalistas de todo o País para que mostrem outro lado do seu talento: o de escritores. O de artistas que enxergam além da realidade e “criam” um mundo, paralelo ao real, mas que extrapola a realidade, pintado com as tintas do imaginário.

Quando fui convidado a assumir essa tarefa, de tamanha responsabilidade, assustei-me. Embora com décadas “de janela”, como editor, e uma “quilometragem” imensa em literatura, como leitor e produtor de textos (que ascendem a dezenas de milhares), cheguei a duvidar que fosse capaz de encarar tamanho desafio. Antes de responder ao convite, resolvi consultar colegas jornalistas e amigos que considero de muito bom-senso sobre se deveria, ou não, aceitar a proposta.

A tônica geral dos comentários foi esta: “Sai dessa, Pedrão! Imagina! Jornalista não sabe escrever, a não ser utilizando fórmulas pré-estabelecidas, preso que está aos tais manuais de redação. Além disso, está acostumado a sempre ver só o lado ruim, vicioso e corrupto da vida. Jornalistas são pessimistas por natureza. Vêem catástrofes medonhas em tudo, até numa simples queda de bicicleta!”. Apesar dessas “recomendações”, decidi seguir meus instintos e encarar o desafio. E, para minha felicidade, constato que meus conselheiros estavam redondamente enganados! Generalizaram e descambaram para a burrice. Deveriam atentar para o que disse Nelson Rodrigues, ao constatar que “toda generalização é burra!”. E como é.

Editei e encaminhei para publicação, nesse período, mais de 1.500 textos. A grande maioria constituída de trabalhos excepcionais, e em praticamente todos os gêneros: crônicas, ensaios, poesias, peças teatrais, contos e até um romance inteiro, publicado em capítulos semanais. O leitor do Comunique-se, portanto, tem o privilégio do acesso a textos de altíssima qualidade literária (basta acessar os arquivos para verificar que não exagero) e de graça. Todos, absolutamente todos, obras de jornalistas!

De início, contávamos com um quadro de 25 colunistas semanais. Muitos, todavia, em razão de motivos os mais diversos – a maioria em virtude desse compromisso conflitar com outros, de caráter profissional – “pularam” do barco. Perderam o privilégio de um espaço nobre e único, com essas características, na internet. Outros, porém, os substituíram, sem que a qualidade decrescesse. Ademais, publicamos vários trabalhos de mais de 300 colaboradores não-fixos, 30% dos quais estudantes de jornalismo. Alguns desses textos (se não a maioria) são marcantes! São muito bem escritos e, sobretudo, originais.

Recebo, semanalmente, por volta de uma centena de colaborações, de todo o País, cada uma melhor do que a outra. Até o momento, um percentual baixíssimo, coisa em torno de menos de 10%, foi recusado, por “falta de qualidade literária”. Claro que alguns textos precisaram ser editados, para corrigir alguns erros – notadamente de estilo, caracterizado, principalmente, pela mistura de tratamento “tu” e “você” e alguns de concordância, de pontuação, de acentuação e de crase – antes de serem programados para publicação. Afinal, esta é a principal tarefa do editor (posto que não a única), não é mesmo?

Houve quem reclamasse das mudanças efetuadas no que escreveram, o que me deixou pasmo. Como jornalistas, essas pessoas deveriam saber que nos grandes jornais, raramente, são publicadas matérias rigorosamente como são escritas. Nas editoras, livros passam, via de regra, por profundas revisões. Se fossem divulgados exatamente como são redigidos... seria um Deus nos acuda! Tanto os redatores, quanto os editores, em pouco tempo, seriam demitidos! Os textos são submetidos, sempre, invariavelmente, a um copy-desk, para se adequarem tanto ao espaço que o editor dispõe, quanto à qualidade exigida. Mas foram poucos, pouquíssimos, mínimos, os problemas dessa ordem.     

Só tenho uma queixa, nesse já relativamente longo período em que tenho o privilégio de ser o editor do “Literário”: a pequena quantidade de comentários nos textos postados. Afinal, a melhor característica da internet é a possibilidade de se estabelecer interatividade entre autor e leitor. Mais do que isso, porém, fico furioso, possesso até, quando algum participante desse espaço é tratado de forma desrespeitosa. Quem tem acesso a essas obras deveria, isto sim, se conscientizar do privilégio que tem. Afinal, recebe, absolutamente de graça, produções de alta qualidade que, de outra forma, teria que pagar (e muito) para poder ler.

A grande maioria dos participantes é de escritores consagrados e, simultaneamente, jornalistas vencedores. São pessoas que, generosamente, “doam” a quem quiser o fruto do seu talento. O mínimo que merecem, portanto, é respeito. Claro que críticas bem-fundamentadas e comentários educados são sempre bem-vindos. Servem como balizadores, como referenciais, como parâmetros para os autores. Fico frustradíssimo quando algum texto meu passa em “brancas nuvens”. Minha decepção, porém, é maior, muitíssimo maior quando os dos nossos ilustres colunistas, e dos nossos generosos colaboradores, não são comentados.         

Noam Chomsky constatou, em um artigo publicado há algum tempo nos Estados Unidos, que “um grande escritor ou pensador pode modificar o caráter da língua e enriquecer seus meios de expressão sem afetar a estrutura gramatical”. É isso que aqueles que dão vida ao Literário fazem. Ou seja, modificam (para melhor, claro) o caráter do idioma e enriquecem os meios de expressão com o seu talento, sua inteligência, sua percepção e, sobretudo, sua generosidade. Por isso, merecem todo o nosso prestígio e nossa total consideração, se não nossa comovida gratidão!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk  
  
Diário de viagem ao Maranhão (I)


* Por Risomar Fasanaro


Há pelo menos dez anos tentava conhecer um pouco do Maranhão. Mas não conseguia e ia sempre parar em outro lugar: Recife, Natal, Belém, Manaus, Ilha do Marajó. E ficava sempre aquele sentimento de não ter ido aonde queria realmente ir. Mas agora consegui. Fui conhecer um pouco bem menos do que queria, de São Luís, dos Lençóis Maranhenses e de Alcântara.

Fiz questão de pedir à agência para hospedar-me em uma construção antiga. Informaram- me que poderia me hospedar na Pousada do Francês. Um casarão do século XVIII, tombado pelo patrimônio histórico. Havia hotéis mais confortáveis, se eu quisesse, e insisti: quero um lugar onde encontre um pouco do pó de séculos passados, algum limo de outras eras, sombras de passos de pessoas que nunca vi, nunca ouvi. E foi para lá que fui.

Antes deve ter morado ali algum francês, imagino, o que deu nome ao local, depois, disseram-me na pousada, se transformara em um cortiço. Padres compraram a propriedade, restauraram-na, e agora tornou-se um dos hotéis mais simpáticos da cidade.

Era madrugada quando chegamos, mas isso não impediu de me encantar com a beleza do casarão. Logo na entrada vejo um gramofone em cima do balcão e já viajo pelo tempo, imaginando se ali alguém colocou um disco de Chiquinha Gonzaga. Dizem meus primos, ser nossa ancestral, o que justificaria, para os meus, minha forma rebelde de ser.

Acredito piamente nessa história, primeiro porque aumenta minha auto-estima, segundo porque em uma entrevista pela TV ouvi Rosa Maria Murtinho dizer que Djenane Machado é descendente dela, e como há muito tempo escuto de meus primos que a atriz é nossa prima em terceiro ou quarto grau, a “lenda” confere.

Relógios antiqüíssimos marcam o tempo. Tempo que naquela terra corre com suavidade. Uma lentidão que lembra o deslizar do tempo das sinhazinhas com suas longas saias rodadas, a caminhar com cuidado pelos irregulares pisos de pedras. Mas nesse primeiro dia apenas vou dormir. E tenho um sonho altamente significativo. Coisa para ser analisada por terapeuta junguiano ou por algum mestre esotérico. Outra vida? Outra reencarnação? Não sei. Como disse Guimarães Rosa em “Grande Sertão: veredas“ eu quase de nada sei, mas de muita coisa desconfio”.

Levanto cedo, tomo café com frutas, sucos, bolinhos de tapioca fritos e bolo de mandioca quase igual ao que minha mãe fazia, porque vocês sabem, nem a magia de uma viagem sonhada há tanto tempo, supera as receitas da mãe da gente.

Caminho pelas ruas, junto com Edilena, minha amiga de longa data. O primeiro sentimento que me toma é o de decepção. Ao redor da pousada, casarões coloniais estão desmoronando, me emociono vendo aquilo, meus olhos se enchem de lágrimas, e pergunto aos moradores quem é o secretário de Cultura e se é fácil falar com ele. Dizem que sim, e logo depois, na volta, consigo a adesão de outros hóspedes para formar uma comissão e ir falar com ele. Mas temos calma, não vamos por atalhos, que nem sempre são os melhores caminhos. Ainda vimos muito poço da cidade, não podemos nos precipitar.

Fotografo os azulejos dos mais diferentes padrões. Quando surgem alguns com padrão diferente, Edilena me chama a atenção, para fotografá-los. Eles sempre me encantaram. Durante anos comprei revistas que traziam fotos de São Luís e de Alcântara por causa deles. Ao passar as fotos para o computador, meu filho se espanta: “mas, mã, (é assim que ele me chama) você tirou todas essa fotos de azulejos?” “É... e receio ter me escapado algum padrão diferente”. Não por acaso tento me tornar uma ceramista.

As portas, janelas, telhados são de uma beleza sem fim. Fico sabendo que além de eira e beira; ali existem tribeiras. São telhas colocadas umas sobre as outras e que denotam as posses materiais dos proprietários dos casarões e sobrados.  

As casas onde a beira do telhado é de apenas uma telha indica que o proprietário tem pequenas posses, se há duas camadas de telhas são chamadas de eira e beira; e indica que são pessoas de mais posses; já os que têm três camadas de telhas, chamadas tribeiras, são os grandes proprietários, a classe dominante.

As estreitas ruas de pedras me levam a pensar quanto suor e sangue de escravos escondem em suas reentrâncias. É domingo, a cidade está deserta e as raras pessoas que encontramos nos previnem que aquela região é perigosa, e que naquela região acontecem muitos assaltos, e continuamos nosso passeio, tentando esconder a máquina fotográfica.

Já é hora do almoço e nossa curiosidade nos leva a pedir arroz de cuxá com peixe frito e pirão, um arroz feito com uma verdura chamada vinagreira, camarão seco, gergelim torrado e muitos frutos do mar. E sem exagero, jamais saboreei arroz tão delicioso.

À tarde fomos circular pela cidade, guiados por Rai, a guia. Uma moça loira, muito simpática, e apaixonada pela história de sua terra. Chovia muito, por isso alguns lugares só vimos do ônibus, mas logo depois a chuva cessou e pudemos descer. Ela nos levou ao Beco Quebra Bunda, assim batizado porque ali as pessoas caem muito, depois mostrou o Beco da Bosta, local por onde passavam os escravos carregando grandes baldes com as fezes dos senhores, para jogar no mar.

Fizemos uma parada para tomar sucos, refrigerantes e conhecemos o guaraná “Jesus”, refrigerante cor-de-rosa, gostoso demais, completamente diferente de todos os refrigerantes que conhecemos no sul, e que alguém no bar nos informou, há um contrato com a Coca-Cola que impede a sua venda aqui e em outros estados. Coisas que nunca vou entender.

A guia nos conta que no ano passado seu filho teve dengue hemorrágica e foi graças àquele guaraná que ele conseguiu aumentar o número de plaquetas sanguíneas.   

Continuamos nossa caminhada e nos detivemos em frente ao Teatro Arthur Azevedo. Construído em 1815 por dois comerciantes portugueses, com o nome de Teatro União, é o segundo teatro mais antigo do Brasil. Foi inaugurado em 1817; em 1852 passou a se chamar Teatro São Luís; e por causa dos padres Carmelitas as obras foram paralisadas. Os religiosos não aceitavam a construção de um edifício profano no Largo do Carmo, próximo a um sagrado (Convento do Carmo). Por isso, para não desgostar os padres, os engenheiros inverteram a frente do Teatro para a Rua do Sol. Em 1922 foi rebatizado com o nome do teatrólogo ludovicense, Arthur Azevedo. Patrono justo, já que ele consolidou o teatro de costumes no Brasil e é considerado pelos críticos o principal autor do teatro de revista.

A sua capacidade é de 750 espectadores e possui estrutura que comporta tecnologia de aparelhagem de som, iluminação e vídeo dos mais avançados.

Tivemos, Edilena e eu, a felicidade de estar em São Luís, capital da Cultura, título mais do que justo dado a uma cidade que transpira cultura e arte  por todos os cantos, exatamente na semana em que se comemorava a “Semana do Folclore”, tema que tratarei na próxima semana. Alguém poderia estar mais feliz do que nós duas?

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

História de Emilio

* Por Adonias Filho

Paulino Duarte sabia, desde que Miguel Duarte morrera, ele sabia que, bem no abismo da sua alma, havia um grande medo inexplicável. Uma coisa inexprimível, irreversível, estagnante, que o fazia ouvir vozes, particularmente aquela voz vazia que pronunciava o nome de Lica. Era como alguém que endoidecia, vagando pela casa fechada, trêmulo, escutando alarido do vento nas palmeiras do quintal. Os ratos corriam na despensa, calafetava os buracos das paredes com canhamaço. As vozes, porém, continuavam, fracas como um bocejo. Pálido, da sala, só encontrava sossego quando abria a porta e chamava os cães aos berros. Entre eles, as pulgas mordendo, sentia-se calmo e adormecia. No entanto, na noite seguinte o mesmo martírio, a mesma tortura. Algumas vezes, no reflexo da luz, distinguia o rosto do pai bêbado, a barba falhada de Juca Pinheiro. Foi em uma dessas noites, pouco tempo após a morte de Miguel Duarte, que ouviu, dentre o ruído da chuva, fortes pancadas na porta da cozinha. Acorreu, empunhando o facão, e abriu a porta com um grito: “Quem está batendo aí?” E, encontrando um homem, quase despido, inteiramente molhado, perguntou: “A quem você procura?” O homem respondeu: “Miguel Duarte.” Deteve-se, o coração aos saltos, e respondeu: “Miguel Duarte! Miguel Duarte morreu!” O homem apertou as mãos, uma na outra, como se estivesse com frio, e disse: “Eu preciso falar com Miguel Duarte, a minha conversa é sobre Ubaldo, que está morto e bem morto.” Paulino Duarte recuou, exaltado: “E foi você quem matou Ubaldo? Ubaldo... Mas, quem é você? Que tem a ver meu pai com esse Ubaldo?” O homem fitou-o de relance, respondendo: “Lica, sabe. Faze anos, muitos anos... Ah! O meu nome? Emílio, sim senhor, Emílio.” Entrou na cozinha, os olhos nas panelas, dando a entender que estava faminto.

Comera fartamente, a corcunda deformando o dorso. Depois, sentando-se, acendeu o cachimbo. Disse, a voz pairando no ar como uma lástima: “Eu não posso sair, ficarei aqui durante muitos anos.” Calou-se, sacudindo a cabeça como um tonteado, embuçado no solilóquio que se revelava pelo cochicho dos lábios. Paulino Duarte, alegre por encontrar alguém que lhe fizesse companhia, ouvindo o latejar das próprias têmporas, julgou fosse ele um pouco doido. Perguntou-lhe: “Mas, como foi isso? De onde vem seu conhecimento com meu pai? Por que Juca Pinheiro nunca me falou nisso?” Ele interrompeu: “Espere, espere, eu conto.” E, já na sala, trajando uma roupa enxuta que Paulino Duarte lhe emprestara, a luz empalidecendo o seu rosto como se fosse de cera e um escultor o houvesse feito naquela hora , começou a narrar a sua história. Paulino Duarte não o interrompeu uma única vez.
- Coisas existem, na nossa vida, infalíveis como a própria morte. Tarde ou cedo, acabam por chegar um dia. Precisamos aguardá-las com insensibilidade, quase com desprezo, para vencê-las ou por elas sermos vencidos. A desgraça que me esperava era uma coisa assim. Eu sabia que ela chegaria. Juro, pela minha honra, que sabia. Aguardei-a, prevenido, dizendo a mim mesmo, aconselhando-me naqueles ermos de Duas Barras: “O difícil, Emílio velho, não é vencer, o difícil é saber fracassar.” E esperava, hora a hora, que viesse, e me agarrasse impiedosamente, transformando-me nisso, neste homem acuado que agora sou. Antes - faz tantos anos , apesar de doente, sempre fora uma criatura mais ou menos feliz. Meu pai, que Deus o tenha no céu, morrendo, deixou-me a sua pequena fazenda. Vivia deslumbrado, sem nenhum amargor, amigo de todo mundo. Ali, esquecido naqueles ermos, aprendi a esmiuçar as coisas, decifrar os mistérios, o campo me ensinava, ajudava-me a compreender a vida. Tudo possuía um aspecto de alegria eterna, o sol ou o vento, a noite ou a água. Gostava de ficar deitado sobre a “barcaça” aberta, sonhando, contando indefinidamente as estrelas do céu. Idealizava, naquelas noites de solidão, o céu nos meus olhos como um desenho mágico, idealizava grandes aventuras, exóticas histórias de amor e guerra. Sentia-me inocente como a ave de ninho feito na cumeeira da casa. Assim - como é triste lembrar! - decorreram anos, muitos anos da minha vida. Uma tarde, porém, voltando do rio, encontrei um homem, uma pessoa estranha. Chamava-se Manuel Pedro.

Quer saber quem era Manuel Pedro? Como era Manuel Pedro? Olhos vivos de gato em uma fisionomia parada de estátua. Dir-se-ia não haver sangue, sangue e nervos, no rosto chato. Apenas um bloco de carne, sem pêlos, nariz acurvado como bico, testa ampla, boca pequena, sempre fechada, escondendo os dentes de animal carnívoro.


* Um dos mais importantes escritores do País, membro da Academia Brasileira de Letras