terça-feira, 31 de janeiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Um zumbi comprovado.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica, “De Harry Potter ao Novo Testamento”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica, “Os pacientes do doutor Fróide”.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Primeira canção de Mário Quintana”..

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, artigo “Ai de ti, Haiti”.

Coluna Porta Aberta – Ana Flores, crônica “Amanhã eu penso nisso”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Um zumbi comprovado

O primeiro caso medicamente documentado de um zumbi envolveu, curiosamente, uma pessoa que sequer nasceu no Haiti. Ocorreu há meio século, em 1962 e sua experiência, além de ser relatada pelo botânico canadense Wade Davis, no livro “A serpente e o arco-íris”, foi amplamente divulgada pela imprensa, inclusive a européia. Tomei conhecimento do assunto através matéria da agência de notícias United Press International, a UPI, em 1986. Na ocasião eu era editor de política internacional do jornal “Correio Popular” de Campinas e trouxe o assunto à baila.

O primeiro caso medicamente documentado de um zumbi envolveu o britânico Clevius Narcisse, que foi declarado morto por um médico norte-americano, que vivia no Haiti e que, inclusive, assinou seu atestado de óbito. O homem em questão foi sepultado normalmente. Todavia, para surpresa, e mais do que isso, para espanto geral, dos que o conheceram e que com ele conviveram, o tal sujeito “reapareceu”, 18 anos depois, vivinho da silva, embora manifestando ainda estado de certa confusão mental. Sua reaparição ocorreu num vilarejo do país, bastante longe de onde havia sido sepultado.

A suposta morte havia ocorrido no Hospital Albert Schweitzer, em Deschapelles, em 2 de maio de 1962. A primeira reação das autoridades, quando ele reapareceu, (justificável, por sinal) foi considerar Narcisse um embusteiro que tentava se fazer passar por quem não era. A polícia local assumiu o caso. Tomou suas impressões digitais e as comparou com as da pessoa que havia sido sepultada há 18 anos, existentes em seus arquivos. Não havia dúvidas. Ambas coincidiam. Aquele cidadão era, mesmo, Clevius Narcisse, que várias testemunhas haviam visto ser enterrado. A polícia britânica, solicitada a dar seu parecer, chegou à mesma conclusão.

Interrogado pelo psiquiatra haitiano Lamarque Doyou, o tal “zumbi” revelou dados sobre sua infância e sua família que nem seus amigos mais íntimos poderiam saber, mas somente o suposto morto poderia ter conhecimento. Dessa forma... Tanto sua família, quanto outras pessoas que o conheceram chegaram à mesmíssima conclusão (equivocada, óbvio): a de que Narcisse era um zumbi de fato, que havia morrido e sido ressuscitado por algum feiticeiro vodu.

Entre os haitianos, ninguém sequer cogitou outra possibilidade. No exterior, porém, as reações foram muito diferentes. A imensa maioria achou que se tratava de uma história rigorosamente inventada, com o objetivo único de se fazer sensacionalismo, como as dos chupa cabras, óvnis e tantas outras bobagens que periodicamente freqüentam as páginas dos jornais.

Alguns (poucos) acreditaram na veracidade do episódio, mas apenas parcialmente. Propuseram-se a buscar alguma explicação racional para o caso que não tivesse nada a ver com magia. Partiam, claro, do pressuposto de que, se Narcisse estava ali, vivo, obviamente não havia morrido. Talvez passara (o que achavam mais provável) por um estado cataléptico e deve ter sido socorrido por alguém que o desenterrou assim que a catalepsia passou.

Foi esse caso que estimulou o lançamento do Projeto Zumbi, que objetivava estudar a questão dos mortos vivos do Haiti à luz da ciência. Foi o que motivou, inclusive, o envio de Wade Davis ao paupérrimo país caribenho. Narcisse disse que se recordava do médico o ter declarado morto. Disse que permaneceu o tempo todo consciente, embora sem poder mover o menor músculo do corpo. Afirmou, inclusive, que se lembrava de terem coberto seu rosto com um lençol assim que concluíram que havia morrido. E mais, disse ter visto a irmã chorando em seu velório, lembrar do seu enterro e tudo sem que pudesse fazer o mínimo movimento para provar a todos que estava vivo, apenas paralisado.

Na noite do seu sepultamento, Narcisse revelou que um sacerdote vodu o desenterrou, lhe deu de beber uma substância, que lhe devolveu alguns movimentos, e o encaminhou para uma plantação, para trabalhar como escravo. Disse que fugiu tão logo teve oportunidade, mas não retornou à cidade em que vivia porque seu irmão é que havia convencido um feiticeiro a transformá-lo em morto vivo.

Tradicionalmente, depois de ser desenterrada, a vítima recebe outra fórmula, certamente um antídoto ao “pó de fazer zumbi”, que a devolve à vida normal (ou quase). Mas Wade Davis observou que, se a pessoa sobrevive à crise inicial, não precisa dessa segunda substância. Em vez disso, lhe é administrada outra droga, talvez ópio, que lhe causa amnésia e psicose e que provoca dependência na vítima, que fica, assim, “escravizada” ao sacerdote vodu.

Para a maioria dos haitianos, que dá grande importância à independência pessoal e ao livre arbítrio, ser convertido em zumbi é muito pior do que a morte. Davis explicou que ninguém é transformado em morto vivo por acaso, por capricho, sem nenhum motivo grave. Geralmente os que passam pela experiência são acusados de transgredir estritos códigos vodus. Quando isso acontece, os transgressores são julgados em um secretíssimo tribunal religioso, incumbido de determinar a culpa ou a inocência dos réus. Se a pessoa for julgada culpada, a corte vodu determina que a fórmula, o tal “pó de fazer zumbis” seja imediatamente espalhada sobre seu corpo.

Wade explica o que as vítimas sentem até ficarem rigorosamente paralisadas, como que mortas. “Primeiro, começam a sentir náuseas e têm dificuldades para respirar. A seguir, têm uma sensação de que alfinetes e agulhas estão sendo espetados em todo o seu corpo. Ficam paralisadas e a pressão sanguínea despenca. Os lábios ficam azuis, pela falta de oxigênio. O processo todo dura cerca de seis horas”. Terrível, não é mesmo?

Falando a propósito do seu trabalho de pesquisa no Haiti, Wade Davis afirmou: “O maior desafio que encontrei foi o de separar as crenças espirituais da imensa maioria, se não da totalidade da população haitiana, das realidades científicas, ou seja, as farmacológicas, da fabricação de zumbis”. Os feiticeiros vodus negam que o botânico canadense tenha isolado a verdadeira fórmula de “trazer os mortos para o mundo dos vivos”. “A ele falta muito para desvendar o segredo dos deuses”, declarou um deles, sem se estender mais no assunto. Enfim... Da minha parte, também não me estenderei mais nesse tão polêmico tema.

Boa leitura.

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






De Harry Potter ao Novo Testamento

* Por Evelyne Furtado


“Onde está o teu tesouro, lá também está teu coração”.


Sempre gostei dessa frase e surpreendentemente a encontrei no último livro da série Harry Potter, fenômeno editorial da escritora J.K. Rowling. A inscrição é lida pelo protagonista num túmulo e não há referência no livro sobre a sua origem. Afinal, trata-se de um jazigo de uma família bruxa, nascida da fantasia da autora.

Esperando não estar blasfemando, tive quase certeza de que se tratava de uma frase bíblica. Não sou tão religiosa, nem tão erudita, portanto conheço muito pouco do Livro Sagrado. Uni o fato de apreciar a beleza da citação à curiosidade e fiz minha pequena pesquisa.

De fato, eu tinha razão. Encontrei em Mateus 6. 19: "Não ajunteis tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam. 20: Ajuntai para vós tesouros no céu, onde não os consomem nem as traças nem a ferrugem, e os ladrões não furtam nem roubam. 21: Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração".

Como já foi dito, não tenho conhecimentos vastos para falar de religião. Aproveito também para pedir desculpas aos mais religiosos por juntar Harry Potter e o Novo Testamento em um só texto. Não o faço por mal. O que me move é exatamente o sentido da passagem. Falo da minha interpretação, obviamente. A mim parece claro que os sentimentos, bons ou maus, dependem de onde depositamos nossas esperanças, nossos sonhos ou quereres.

Aquilatamos tesouros e passamos a viver em função deles. Se estes forem materiais, sofremos quando são atingidos. Temos ataques de raivas com simples arranhões em nossos carros, por exemplo. Sob outro enfoque, se nos dedicarmos às causas do bem; se nos apegarmos ao amor e à caridade, acrescidas à fé e à religiosidade, com certeza aumentaremos nossos créditos com Deus. Isso é certo.

Porém, poderemos extrair mais dessa frase e simplificá-la, até. Quando unimos nossos corações em relações sociais ou amorosas difíceis, nos sentimos profundamente infelizes. Mas não parece tão fácil adaptar a citação que deu origem a esse texto à vida prática.

Inúmeras vezes, nossos corações se unem a outro coração e neste depositamos todos os nossos sonhos. Construímos ali nossos tesouros e sofremos na relação.


A propósito, li, há alguns dias, em um blog, uma citação que vem a calhar nessas pequenas reflexões. A autora fala sobre filhos dizendo que tê-los é sentir o coração pulsando fora do nosso peito.

De qualquer maneira, estou certa de que o sofrimento resulta de onde depositamos nossos corações. E assim, certa do perdão divino, trago um pouco de espiritualidade através do tão atacado (e para mim encantador) bruxo Harry Potter, fruto da imaginação genial de J.K. Rowling.

*Poetisa e cronista em Natal/RN






Os pacientes do doutor Fróide


* Por José Calvino de Andrade Lima

Nietzsche disse: “Zaratustra é a prova de que se pode falar com a maior clareza e não ser entendido”.

Quase sempre à tardinha, José Azambujanra (personagem principal dos livros “Trem Fantasma” e “”Os pacientes do doutor Fróide”) conversa comigo e o assunto sempre gira em torno de literatura, cinema e teatro. Desta vez ele me trouxe dois poemas e comentou o trecho do texto Os pacientes do doutor Fróide pp. 12-19, edição 2007. Percebi Azambujanra deprimido. Talvez os leitores não possam entendê-lo, por ser ele considerado um herege ou mesmo um ateu! Então, resolvi transcrever as duas poesias e o trecho do texto do referido livro:

“Herege graças a Deus”

- Achas que sou herege?
O padre na igreja me disse:
O seu nome é de herege;
O nome não tem nada a ver!

No outro dia,
Logo bem cedo,
A calma somente;
E pediu: Deus me livre!

Eu tinha só dez anos,
Não disse nada a papai,
Só disse a mamãe:
Por que o padre não gosta de mim?

Hoje tenho sessenta e seis anos,
Já vi gente com nomes diversos,
Gente da pior espécie:
Mentirosos, ladrões e assassinos.

Qual a sua religião?
- Sou herege graças a Deus!

Recife, 02/08/2008
Do livro: “Fiteiro Cultural”, ed. 2011- pp.277-8.

Para os leitores entenderem,
Uma vez resolvi perguntar a um pastor:
Por favor, quem criou os filhos?
- Os pais.
E os pais,
Quem criou?
- Os avós.
E os avós?
- Os bisavós.
E os bisavós?
- Os tataravós.
E os tataravós?
- Os pais deles.
E os pais deles?
- Os primeiros humanos.
E os primeiros humanos?
Até hoje ninguém sabe explicar!!!

Rio de Janeiro, 29/08/1980

“(...) - Com o avanço tecnológico da informação, atualmente alguns dos meus clientes são internautas. Estou tratando-os separadamente. Antigamente quando alguns radiotelegrafistas ficavam com problemas psíquicos, misturavam-se com os dependentes químicos. O tratamento era à base de internamentos nos hospitais psiquiátricos. Agora nós temos outros meios: são as fazendas doadas por entidades filantrópicas, que se dedicam ao tratamento e recuperação de drogados.
- Eu lembro. Na Casa de Saúde, mesmo, tinha um colega internado que era radiotelegrafista. Com o uso obrigatório dos fones nos ouvidos, recebendo descargas sonoras, ele ficou com problemas neurológicos. Na época denunciei o Sistema... – entrecortou doutor Fróide:
– Se você for omisso em aceitar calado tudo isso, como o nosso Brasil irá reverter esse quadro? Bom, mudando de assunto, como vai o inquérito policial?
- Anda muito confuso, fica difícil. Quanto ao trintoitão da Carmem, já me comuniquei com os detetives Getúlio e Medeirinho.
- Foram eles que desvendaram o assassinato das estudantes Maria Clara e Thaís Evangelista. – disse doutor Fróide.
- Getúlio e Medeirinho estão checando todas as mensagens do grupo...

Eram quinze horas, no consultório do Dr. Fróide, quando entra o segundo paciente:

- ‘Vês? Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de tua última quimera, / Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável! // Acostuma-te à lama que te espera! / O homem, que nesta terra miserável, / Mora entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera. // Toma um fósforo. Acende o teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro, / A mão que afaga é a mesma que apedreja. // Se alguém causa inda pena a tua chaga / Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!’

- De Augusto dos Anjos. – disse o psiquiatra.
- Eu. – disse o psicopata.
- É, Eu de Augusto dos Anjos.
- Eu, me chamam. Qual é o problema? – O psiquiatra ficou receitando sem olhar para o paciente. – O Beco. O senhor conhece o poema do Beco?
- Não é de Manuel Bandeira?
-Não é. Realmente, é meu o Beco.

‘Que importa
A paisagem,
A glória, a baía,
A linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.’

- Boa. Meus parabéns. Tome esse remédio agora e o outro à noite. – despachou o paciente, chamando o terceiro paciente que estava na sala de espera falando alto e exaltado. Quando chamado já entrou falando, prosseguindo com o assunto que vinha lhe perturbando:

- São essas as criaturas de Deus! Não fica difícil de entender esse povo. Querem provar a existência de Deus com perseguições, desunião, inveja, et cétera, et cétera... José Azambujanra está mais do que certo. Ele está sendo vítima do sistema religioso... – com a voz pastosa , cansado, continuou – São elementos relacionados entre si, formando um todo, e o grande comandante é Deus. Esse pessoal tem costume de se benzer quando sai de casa, quando se acorda, quando vai dormir, quando passa em frente às igrejas católicas... – entrecortou dr. Fróide – José Azambujanra, você o conhece?
- É um homem branco. Se fosse negro, que nem eu... Esse pessoal ia dizer o quê? – e respondeu à própria pergunta: “É negro por derradeiro”. – Não é verdade?

O quarto paciente entrou recitando “Declaração de amor em vermelho e branco”, de Renato Coração de Poeta:

‘Nasceu nas águas do Capibaribe / Não há outro mais recifense que você / ”Clube Náutico Capibaribe” / Razão maior do meu viver // Há cem anos que você me apareceu / Aconteceu num dia sete de abril / Meu coração bateu forte, enlouqueceu /E de Vermelho e Branco se vestiu...’

- E você é branco pra torcer pelo Náutico? – disse um paciente torcedor do Sport.
- Nego besta – disse outro paciente torcedor do Santa Cruz.
Enquanto isso, na sala de espera um dos pacientes começou a representar “Manicômio”, de Waldir Martins (in memoriam):

‘(...) ‘Grande povo brasileiro, / Homens-grandes dessa terra, / Eu sou D. Pedro I, / Presidente da Inglaterra; / Venho aqui por derradeiro / Aliar-me a essa guerra.’ / Ta todo mundo doido! // Os doidos tão no poder!... / Menino, que confusão; / Todos eles de gravata, / Os bolsos cheios de prata / E uma bomba em cada mão... / Sai da frente que lá vem mais! // Sereno de amor... / Sereno de amar... / É por causa da morena / Que eu quero me matar. // Outro dia fiz morada / Num terreno abandonado / Bem na beira da estrada. // Deixei barraco montado, / Taquei o pau na enxada; / Ao redor plantei um gado, / Um pé de coruja magra, / Uma cobra, uma cabra... // Criei mamão, banana, / Um casal de cajarana, / Uma garrafa de cana... // Tava tudo bem certinho / Quando chegou um sinhosinho / Com a bunda cheia de bosta, / Cheio de nó pelas costas, / Dizendo preu sair, / Que aquela terra era sua, / Que eu me pusesse na rua / Antes do sol cair. // Me deu vontade rir. / Aí eu perguntei: / Me diga por favor, / A quem o senhor comprou? / Ele respondeu: / Ao seu Dirceu. // E o seu Dirceu / Comprou a quem? / Ele respondeu: / A Matusalém. // E Matusalém?... / - Ao seu Nestor... / E o seu Nestor?... / - Ao seu Bartô../
E o seu Bartô?... / - Ao outro dono!... / E o outro dono?... / - Ao outro dono!... / E o outro dono?... / - Ao primeiro dono!!!... / E o primeiro dono / Comprou a quem?! / Ele não soube responder. // Ta vendo que não convém!! / A terra não é de ninguém, / É de quem dela cuidar // Tava aqui desprezada, / Suja, descabelada, / Sem home, sem nada, /
Querendo se casar, / Topei a parada...”


*Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 12 títulos publicados, todas edições esgotadas. Blog:"Fiteiro Cultural" - http://josecalvino.blogspot.com/






Primeira canção de Mário Quintana

* Por Talis Andrade

As mãos postas sobre a harpa
eu canto a ti embriagado de tua perfeição e poesia
Eu canto a ti exclusivamente
Recompensa o meu canto com a tua presença
Teus raios me iluminem no meio do nevoeiro
Teus raios me iluminem eu teu cavaleiro
na mais bela vestidura de guerreiro
uma túnica azul calcada de bronze
uma túnica de capuz com bordados vermelhos
Eu teu cavaleiro minha espada com punho de ouro
tem o teu nome gravado
e o nome da minha espada seja mais exaltado
que o nome altaneiro de Excalibur
Vem ó deusa de radiante beleza
vem receber no teu regaço a moeda divina
a dívida sagrada

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






Ai de ti, Haiti


* Por José Ribamar Bessa Freire

Se o mundo é um vale de lágrimas, o Haiti é,certamente,
o cantinho mais irrigado desse vale (René Depestre).

Eles fizeram uma longa fila e foram embarcando, um a um, no navio chamado “Sagrado Coração de Jesus”, que zarpou de Tabatinga (AM) para Manaus neste sábado, 21 de janeiro. Os passageiros, na realidade, não sabiam direito de quem era aquele coração: de Jesus ou de Maria? Desconfiavam que era de Maria. Com todo o respeito ao calvário do filho, só um coração sangrado de mãe - onde sempre cabe mais um - pode abrigar mais de 400 haitianos com tantos sonhos, sofrimentos, dor, medo.
O medo dentro do barco-coração que descia o rio Solimões era “o medo da fatalidade que sempre acompanhou o Haiti”. Quem diz isso é um amigo chileno, Fred Spinoza, professor de espanhol em Tabatinga, que testemunhou a passagem dramática dos haitianos pelo Alto Solimões, ameaçados de se tornarem um boat people – refugiados que ninguém quer receber e que, sem chão onde pisar, transformam o barco em sua nova pátria e ficam, à deriva, vivendo na terceira margem do rio.
Fred, poeta como qualquer chileno - todo chileno verseja – me enviou trechos do Navio Negreiro de Castro Alves para ilustrar o cenário daqueles haitianos amontoados em redes armadas umas sobre as outras. No domingo passado, ele me cantou o roteiro do motor da linha: “O Sagrado Coração, que saiu ontem daqui, deve passar hoje por Fonte Boa, amanhã por Coari e chegar no Roadway, em Manaus, na terça, dia 24”. Manifestou preocupação quanto à recepção aos hermanos haitianos em Manaus.


Sangrado Coração


Manaus, nascida de um parto sangrento, é filha de um crime e de um roubo, cometidos em 1669 por militares portugueses. Tropas armadas invadiram e saquearam a aldeia dos Manaú, mataram muitos índios, escravizaram outros e usurparam suas terras. Seu comandante, Francisco da Mota Falcão, construiu ali, bem em cima do cemitério indígena, o Forte de São José do Rio Negro, usando a mão de obra de índios escravizados e, como matéria prima, o barro das urnas funerárias quebradas e violadas. Portanto, foi a pilhagem colonial que pariu Manaus.
Por isso, talvez, Manaus sabe ser impiedosa, cruel. Mas sabe também ser generosa, como mostra o outro lado de sua história. Muitas vítimas do terremoto de Lisboa, de 1755, foram acolhidas pela cidade já mestiça, que lhes deu teto, trabalho, comida. Na época da borracha, entre 1877 e 1914, mais de 500 mil nordestinos, fugindo da seca, migraram para a Amazônia, muitos deles armaram suas redes aqui. Com eles chegaram sírios, libaneses, espanhóis, judeus, árabes, palestinos, japoneses, espanhóis e nova leva pacífica de portugueses. Recentemente, a Zona Franca trouxe os sulistas.
Dessa forma, a cidade foi se construindo sobre os alicerces da diversidade, com trabalho, sangue e suor dos estrangeiros que souberam muito bem se integrar à sociedade de base índia. Era tudo gente de paz. Como o portuga José Ventura - o Comandante Ventura - que em 1961 morreu para nos salvar. Manaus não tinha como combater incêndios. Ele criou em 1952 o Corpo de Bombeiros Voluntários. Faleceu quando combatia um incêndio que consumia vorazmente a periferia da cidade, como nos lembra pesquisa histórica realizada por Roberto Mendonça.
Outro portuga que ama a cidade e ajudou a construí-la é o dono do bar da Bica, o Armando, o mais caboco de todos os portugas, que está nesse momento, aos 75 anos, numa UTI de um hospital manauara com uma infecção pulmonar. Armando e o comandante Ventura fizeram mais por Manaus do que o belicoso Francisco da Mota Falcão, Pedro Teixeira e todo o exército colonial. Jornais lusos editados nessa época no Amazonas, estudados pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, estão nos revelando muito sobre essa migração.


Água no feijão


Os haitianos que chegaram agora vieram também em missão de paz, de trabalho, mas foram recebidos à bala com um grito de “nós não queremos vocês aqui”. O governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), filho de um imigrante palestino que se mudou para Manaus em 1968, debochou, sugerindo que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Pra puxar o saco do governador, a colunista social Mazé Mourão atacou os haitianos, chamando-os de “abusados”. Num texto boçal, reclamou que eles estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial e “como não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada”. Preocupada exclusivamente com o quintal de sua casa, sugere: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas?”. Conclui: “Sorry, sorry e sorry, o Haiti definitivamente não é aqui”.
Que me perdoem os ouvidos pudibundos, mas esse é o lado escroto de Manaus, o lado “farinha pouca meu pirão primeiro”. A colunista social alega que “se nós não conseguimos resolver os nossos problemas, que dirá de quem chega e toma de assalto esta Manaus de Mil Contrastes”. É como se ela dissesse, em 1919, ao Comandante Ventura e às centenas de portugas que com ele vieram: “Não podemos receber vocês, porque temos muitos problemas, não temos sequer um Corpo de Bombeiros Municipais” ...E olha que nesse momento naufragava a economia da borracha, com centenas de mendigos espalhados pelas ruas da capital.
Felizmente, o outro lado, generoso e solidário, o lado “água no feijão que chegou mais um” se manifestou imediatamente. Dezenas de leitores ocuparam as redes sociais apoiando artigos que se solidarizaram com os haitianos e lhes deram as boas-vindas. Três deles merecem destaque.
Allan Gomes, com base no processo histórico da Amazônia, sustentou que “a imigração haitiana não deve ser vista como um problema, mas como parte da solução”. Da mesma forma que Manaus não podia apagar um incêndio porque carecia de bombeiros e foi salva pela migração lusa, assim também os haitianos podem contribuir para melhorar a cidade, se formos capazes de organizar e planejar a estadia deles aqui.
Alberto Jorge, coordenador geral da CARMA – Coordenação Amazônica da Religião de Matriz Africana e Ameríndia – confessa que teve ânsias de vomitar quando leu o texto de Mazé “que destila ódio e desprezo,é preconceituoso, asqueroso em todos os sentidos”. E Ismael Benigno considerou que a reação dela mais parece “um chilique da socialite Narcisa Tamborindeguy contra os pobres do que uma tentativa de entender o problema que ainda vamos ter”.
De qualquer forma, se o artigo tem algum mérito é o de desencadear um debate, permitindo revelar a xenofobia e a intolerância que trazemos dentro de todos nós, mas também a solidariedade com os refugiados. Quem sofreu o exílio, por razões políticas, econômicas ou sociais, sabe a importância dessa acolhida. É evidente que a questão é complexa, é claro que precisamos organizar uma intervenção de forma mais planejada, mas sem preconceitos, como o de um leitor de Mazé Mourão, que se referiu depreciativamente à religião dos haitianos e à magia negra.
Se a colunista social não pedir desculpas, publicamente, nós, os que ficamos chocados com seu texto - sorry, sorry, sorry - acamparemos com os haitianos no quintal da casa dela. Faremos um trabalho de magia negra para transformá-la em um ser inteligente, sensível e solidário. Se bem que suspeito não existir magia capaz de dar jeito nisso. Mas a gente tenta.


P.S. - O poeta haitiano René Depestre escreveu, entre outros, um belo livro – “Aleluia para uma Mulher-Jardim”, editado em português em 1988. Não tive acesso à edição brasileira, mas à edição francesa, de 1981, de onde traduzi a frase, diz: “Si le monde est une vallée de larmes, Haiti est le coin le mieux arrosé de la vallée” (pg. 40)

Publicado no Diário do Amazonas em 29 de janeiro de 2012


* Jornalista


Amanhã eu penso nisso

* Por Ana Flores


Na última cena do clássico norte-americano ...E o vento le¬vou, Scarlet O´Hara, mulher mimada e imatura, ao ser abandonada pelo homem que a amava mas que se cansara de suas leviandades, e deixada sozinha no casarão onde moravam, leva no máximo dois minutos para se lamentar. Depois, enxuga as lágrimas e diz “Agora estou cansada. Amanhã eu penso nisso”. Olhando à nossa volta ou mesmo para dentro, vamos perceber que a ‘Síndrome de Scarlet O´Hara’ afeta mais gente do que imagina nossa vã filosofia, até mesmo quem nem sabia que ela existe.
Sabe aquele livro que você tanto queria e finalmente encontrou num sebo e que até hoje está olhando pra você lá da sua estante? Que há seis meses você se propôs a começar a ler “no fim de semana que vem” e continua adiando o projeto? Pois é, nem falta de tempo nem de resistência física para abri-lo: é apenas o lado Scarlet O´Hara em ação. Combinar certinho aquele encontro com amigos do peito, sugerido e desejado por todos há tanto tempo, mas sempre adiado com desculpas do tipo “É uma coisa e outra, essa vida corrida, blá blá blá”? Não é só vida corrida, é a síndrome. Livro se lê em casa, em ônibus, avião ou sala de espera. E bastam dois ou três minutos para pensar numa data para o encontro com aqueles amigos e mais três para telefonar e sugerir a data. Quando o encontro acontece, todos gostam e se divertem, até se passarem mais seis meses, dois anos ou a vida inteira para se combinar outro. Que pode nunca mais acontecer.
Dentre as lendas urbanas que circulam na internet, uma que me impressionou (é, eu às vezes me impressiono com essas bobagens internéticas) foi a de uma mulher que comprou uma lingerie sensual e comentou com a irmã que ia esperar para usá-la numa ocasião especial com o marido. Um ano depois, o marido encontrou a lingerie, ainda intocada na embalagem, ao arrumar as coisas da mulher depois do enterro dela. Descontado o clima folhetinesco do episódio, este é um bom exemplo da síndrome em questão. Ocasião especial a gente faz acontecer ou fica no prejuízo.
A leitura, o encontro, a visita, o e-mail para saber notícias do amigo que se mudou para longe, o curso de culinária ou de capoeira, a viagem sonhada há tantos anos, nada disso acontece sem o primeiro passo. E para isso, ninguém melhor que o próprio interessado - quando existe mesmo interesse. Guardar a louça inglesa ou a lingerie para “ocasiões especiais” e usar sempre a mesma louça do diário e as calcinhas e os sutiãs de todos os dias, ou não arranjar tempo para planejar e executar aquilo que se quer e se pode fazer são desperdícios que produzem uma única vítima: quem nunca aposta nos próprios so-nhos. Todo mundo tem um lado de Scarlet, mas só o tempo acaba mostrando quem venceu a parada.

• Escritora

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Polêmica sobre os zumbis continua.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “A enforcada”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, crônica, “A vida se encaminha”.

Coluna Portas Aberta – Leonardo Boff, artigo, “Desenvolvimento sustentável: crítica ao modelo padrão”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, artigo “Velha câmara de vereadores, espaço nosso!”.

Coluna Porta Aberta – Pedro Du Bois, poema “Ao longe”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Polêmica sobre os zumbis continua

A existência ou não dos zumbis do Haiti (não os mortos vivos da crença popular, mas as pessoas, em estado cataléptico, de letargia, por efeito de determinadas drogas, que se manteriam numa condição tal que seria como se estivessem mortas, embora mantivessem os sinais vitais) gera, ainda, compreensivelmente, intensa polêmica. Isso mesmo depois das pesquisas do botânico canadense, Wade Davis, que garante, inclusive, ter a fórmula da substância que causaria esse estado, que ele teria adquirido de sacerdotes vodus. Verdade? Mentira? Embuste? Sensacionalismo? Prefiro não tomar partido. Só sei que a controvérsia existe e que todas essas teses têm defensores e detratores.

Uns recusam-se até a tocar no assunto, considerando-o ridículo, por se tratar, no seu entender, de tola crendice de pessoas ignorantes. Outros acreditam nas supostas descobertas de Wade Davis. Outros, ainda, preferem esperar mais um pouco, até que surjam provas mais concretas ou da existência dos zumbis – palavra que teria se originado de “jumbie” termo que os índios usavam para “fantasma” ou de “nzambi”, expressão utilizada por determinadas tribos do Congo para caracterizar “o espírito de uma pessoa morta” – ou de que tudo não passa de um grande embuste.

No Haiti, todavia, o assunto é levado a sério e não somente em âmbito popular e inculto, mas até por pessoas sumamente esclarecidas e racionais. Shirlei Massapust, no excelente texto “O pó dos zumbis haitianos”, lembra que uma lei de 1835, ainda em vigor, “já condenava a criação de zumbis”. E o atual Código Penal desse país, no artigo 246, “classifica o uso em alguém de uma substância que gera um período prolongado de letargia sem causar a morte como tentativa de assassinato”. E acrescenta: “se a substância causar aparência de morte e resultar no enterro da vítima, o ato é classificado como homicídio”. Ponto, pois, para o canadense Wade Davis. Afinal, as autoridades reconhecem, oficialmente, que existe alguma substância que provoca estado de letargia, como ele assegura.

Ressalve-se que o botânico canadense – que atualmente trabalha para a “The National Geographic” – foi para o Haiti, pela primeira vez, não por conta própria, mas enviado a esse país pelo Museu Botânico de Harvard, a mais importante instituição dos EUA (talvez do mundo) no estudo de substâncias psicoativas, a maioria das quais feita de plantas. Quem lhe fez o pedido para que investigasse a questão “in loco” foi o Dr. Nathan S. Kline.

Esse ilustre cientista foi um dos primeiros a acreditar que, por trás do mito dos zumbis, havia um fundo de verdade. E tinha a idéia de que os tais mortos vivos eram nada mais do que pessoas em estado cataléptico, sob o efeito de alguma droga. Argumentava que, se a sua teoria fosse confirmada, essa substância poderias ser utilíssima na medicina, no campo da anestesiologia.

Davis, no entender do Dr. Kline, tinha o perfil ideal para desincumbir-se da missão. Como estudante graduado do Museu, era perito na farmacopéia derivada de plantas. Saberia, portanto, o que procurar e como. Ademais, tinha experiência no trato com nativos. Trabalhara, no passado, na selva amazônica, em contato com tribos locais e também com os índios do Norte do Canadá, sua terra natal.

Davis descobriu que os sacerdotes vodus não criavam zumbis na base somente de palavras mágicas ou passes esotéricos, como se afirmava. Usavam, isso sim, pós, feitos com plantas secas e animais. Seu desafio era obter amostras dessas substâncias, para que fossem submetidas a análises nos laboratórios dos Estados Unidos. Aliás, esta era a instrução específica que recebera do Dr. Kline.

Davis teria agido da forma mais meticulosa possível, com estritos padrões científicos. Coletou não apenas uma amostra do tal pó, mas oito, de quatro regiões diferentes do Haiti. Como as obteve? O então jovem botânico relata isso em detalhe, quer no livro “A serpente e o arco-íris” (lançado no Brasil), quer no “Passage of Darkness” (inédito em nosso país).

As oito amostras de pó que Wade Davis teria coletado, ao serem analisadas, mostraram conter ingredientes diferentes. Mas sete delas tinham pelo menos quatro substâncias em comum. A primeira delas seria a neurotoxina chamada tetrodotoxina, encontrada em uma ou mais espécies de um peixe, o baiacu, muito apreciado na culinária japonesa, mas que requer um preparo especial, sob pena de fulminar quem o come. Para que o leitor tenha uma idéia da letalidade desse ingrediente, basta dizer que ele é 500 vezes mais ativo do que o cianureto. Davis comenta a propósito: “É o veneno não protéico mais poderoso do mundo. Uma gota introduzida na cabeça de um alfinete é suficiente para matar”.

Outra substância presente nas quatro amostras seria a extraída de uma espécie de sapo boi (Bufo Marinus). A terceira proviria de um outro batráquio, o Osteopilus dominicensis, de efeito irritante, todavia não letal e, finalmente, a quarta seriam restos humanos transformados em pó. Algumas das amostras teriam outros ingredientes, que apenas irritavam a pele, extraídos de diversas plantas, lagartixas, aranhas e até vidro triturado. Todas foram testadas em ratos e macacos, aplicadas diretamente sob a pele dos animais e os teriam deixado letárgicos, depois imóveis. Mas, após certo tempo, todas as cobaias teriam se recuperado por completo.

Wade garante ter em seu poder a verdadeira fórmula de “produzir zumbis”. Diz que está guardada em um frasco de cinco centímetros. “Parece terra negra seca”, explica. A fórmula em questão também contém partes de sapos, répteis, tarântulas e ossos humanos. “É, basicamente, mistura de coisas raras”, completa. O objetivo da zumbificação não seria o de matar as vitimas, mas a de obter escravos para as plantações, sem que seus parentes nem mesmo desconfiem disso. Verdade? Mentira? Sensacionalismo? Mistificação? Não sei. Mas que o assunto é interessante, ah, isto é.

Boa leitura.

O Editor.




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A enforcada

* Por Talis Andrade

No remoinho do bar
que faz a mulher
suspensa pelo pé
Prisioneiros do umbigo
nenhum conviva observa
quanto distante a mulher
se conserva
Em obscuro ponto
onde nada lhe alcança
nem os risos
que vêm das ruas
nem os sussurros
dos orgasmos
nos cômodos
escuros
Suspensa pelo pé
entre o céu e a terra
bêbada de soma
bêbada de sono
a mulher busca esquecer
este mundo louco
onde todos têm
a mesma fome
a mesma febre
onde todos têm
uma única
fatídica
carta de tarô
Suspensa pelo pé
a mulher espera fugir
dos repulsivos
convulsivos apelos
deste mundo louco
onde todos têm
a mesma aparência
onde todos têm
a mesma carência
Suspensa pelo pé
as mãos amarradas nas costas
a mulher espera eva-
dir-se da rotina
de uma vida
em que todos
copiam o outro
bebendo o mesmo
copo de chope

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






A vida se encaminha

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Observo da minha janela a vida que se encaminha. Pássaros novos se apresentam e aprendem rapidinho a roubar a ração da Lola. A viuvinha, esperta como só, já escarnece da pobre, que nunca é rápida o bastante. Os parasitas voltaram e quando o vento sacode o pé de acerola, é como se caíssem flocos de neve.
O chão está coalhado de pétalas que ao serem pisadas fazem o mesmo barulhinho de um gongolo esmagado. Dei outra topada na pobre da Julinha, que até hoje não sei ao certo se é uma tartaruga, jabuti ou um cágado. Minha irmã diz que ela é burra.
Ouço uma voz distante me perguntando se não tenho coisa melhor para fazer. Ignoro o comentário. Hoje é sábado. Tem um pombo no telhado da vizinha de olho no meu quintal. Se eu fosse ele não desceria. Pombos são lerdos e a cachorra os odeia.
De repente penso no meu pai, que sempre para no meio do corredor com a toalha em uma das mãos e a cueca na outra. Ele esquece onde fica o banheiro. Acabo comparando-o ao pequeno passarinho que raramente desce do muro e fica o tempo todo coçando o peito com o bico.
Choro, mas apenas por medo das lembranças, que aos poucos vão desbotar, dos registros que se dissiparão. Respiro fundo duas, três vezes, esfrego rapidamente os olhos e afugento as lágrimas. A vida se encaminha.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário






Desenvolvimento sustentável:crítica ao modelo padrão

* Por Leonardo Boff

Os documentos oficiais da ONU e também o atual borrador para a Rio+20 encamparam o modelo padrão de desenvolvimento sustentável: deve ser economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto. É o famoso tripé chamado de Triple Botton Line (a linha das três pilastras), criado em 1990 pelo britânico John Elkington, fundador da ONG SustainAbility. Esse modelo não resiste a uma crítica séria.

Desenvolvimento economicamente viável: Na linguagem política dos governos e das empresas, desenvolvimento equivale ao Produto Interno Bruto (PIB). Ai da empresa e do pais que não ostentem taxas positivas de crescimento anuais! Entram em crise ou em recessão com conseqüente diminuição do consumo e geração de desemprego: no mundo dos negócios, o negócio é ganhar dinheiro, com o menor investimento possível, com a máxima rentabilidade possível, com a concorrência mais forte possível e no menor tempo possível.

Quando falamos aqui de desenvolvimento não é qualquer um, mas o realmente existente que é aquele industrialista/capitalista/consumista. Este é antropocêntrico, contraditório e equivocado. Explico-me.

É antropocêntrico pois está centrado somente no ser humano, como se não existisse a comunidade de vida (flora e fauna e outros organismos vivos) que também precisa da biosfera e demanda igualmente sustentabilidade. É contraditório, pois, desenvolvimento e sustentabilidade obedecem a lógicas que se contrapõem. O desenvolvimento realmente existente é linear, crescente, explora a natureza e privilegia a acumulação privada. É a economia política de viés capitalista. A categoria sustentabilidade, ao contrário, provém das ciências da vida e da ecologia, cuja lógica é circular e includente. Representa a tendência dos ecossisstemas ao equilíbrio dinâmico, à interdependência e à cooperação de todos com todos. Como se depreende: são lógicas que se auto-negam: uma privilegia o indivíduo, a outra o coletivo, uma enfatiza a competição, a outra a cooperação, uma a evolução do mais apto, a outra a co-evolução de todos interconectados.

É equivocado, porque alega que a pobreza é causa da degradação ecológica. Portanto: quanto menos pobreza, mais desenvolvimento sustentável haveria e menos degradação, o que é equivocado. Analisando, porém, criticamente, as causas reais da pobreza e da degradação da natureza, vê-se que resultam, não exclusiva, mas principalmente, do tipo de desenvolvimento praticado. É ele que produz degradação, pois dilapida a natureza, paga baixos salários e gera assim pobreza.

A expressão desenvolvimento sustentável representa uma armadilha do sistema imperante: assume os termos da ecologia (sustentabilidade) para esvaziá-los. Assume o ideal da economia (crescimento) mascarando, a pobreza que ele mesmo produz.

Socialmente justo: se há uma coisa que o atual desenvolvimento industrial/capitalista não pode dizer de si mesmo é que seja socialmente justo. Se assim fosse não haveria 1,4 bilhão de famintos no mundo e a maioria das nações na pobreza. Fiquemos apenas com o caso do Brasil. O Atlas Social do Brasil de 2010 (IPEA) refere que cinco mil famílias controlam 46% do PIB. O governo repassa anualmente 125 bilhões de reais ao sistema financeiro para pagar com juros os empréstimos feitos e aplica apenas 40 bilhões para os programas sociais que beneficiam as grandes maiorias pobres Tudo isso denuncia a falsidade da retórica de um desenvolvimento socialmente justo, impossível dentro do atual paradigma econômico.

Ambientalmente correto: O atual tipo de desenvolvimento se faz movendo uma guerra irrefreável contra Gaia, arrancando dela tudo o que lhe for útil e objeto de lucro, especialmente, para aquelas minorias que controlam o processo. Em menos de quarenta anos, segundo o Índice Planeta Vivo da ONU (2010) a biodiversidade global sofreu uma queda de 30%. Apenas de 1998 para cá houve um salto de 35% nas emissões de gases de efeito estufa. Ao invés de falarmos nos limites do crescimento melhor faríamos falar nos limites da agressão à Terra.

Em conclusão, o modelo padrão de desenvolvimento que se quer sustentável, é retórico. Aqui e acolá se verificam avanços na produção de baixo carbono, na utilização de energias alternativas, no reflorestamento de regiões degradadas e na criação de melhores sumidouros de dejetos. Mas reparemos bem: tudo é realizado desde que não se afetem os lucros, nem se enfraqueça a competição. Aqui a utilização da expressão “desenvolvimento sustentável”possui uma significação política importante: representa uma maneira hábil de desviar a atenção para a mudança necessária de paradigma econômico se quisermos uma real sustentabilidade. Dentro do atual, a sustentabilidade é ou localizada ou inexistente.


* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.


Velha câmara de vereadores, espaço nosso!

* Por Elaine Tavares

Florianópolis é uma cidade na qual a cultura popular vive mesmo é escondida pelas ruelas, becos e cantões. Andando pelo centro quase nada se vê. Pouca coisa diz do nosso jeito de ser. O que pontifica é a Casa do Artista Popular, na Alfândega, que é coisa bem legal, mas apenas espaço de vendas. Não é lugar de encontros.
Até alguns anos atrás, a Praça XV era um pouco esse lugar. Ali estavam os artesãos com suas belezas feitas à mão, suas flautas, suas melodias. Sob a figueira centenária a gente passeava, sentava, conversava, ficava à toa, só fruindo. Mas, a então prefeita Ângela Amin resolveu “limpar” o centro e expulsou – com a força bruta - os artesãos. Muitos foram embora e os que ficaram foram confinados às barraquinhas de lona, em outros espaços.
A praça ficou vazia de vida, perdeu seu encanto e até a figueira chorou. O colorido da vida deu lugar à aridez. As ruas do centro não oferecem lugares de encontro para quem não queira consumir. São feitas para carros. E os calçadões são apenas corredores de compras. É incrível observar que numa cidade dita turística, a histórica rua Felipe Schmidt não tenha um único lugar onde as pessoas possam ficar à larga, quietas, observando as gentes a passar. O que havia antes era o Senadinho, com suas mesas vermelhas, nas quais a gente se deixava ficar olhando os passantes, jogando conversa fora, mofando a pomba na balaia, quando muito tomando uma cerveja ao fim da tarde.
Mas, agora, as mesas foram proibidas, assim como os bancos (de sentar, explique-se). Não se pode parar nas ruas de comércio. É só o andar frenético das compras. Salvam-se algumas mesinhas de dominó, expressão ainda viva da cultura do Desterro. Cidades como Montevidéu, Buenos Aires, Madrid, Bilbao, Paris, Rio de Janeiro, Lisboa, enfim, qualquer dessas que se prestam ao passeio e ao turismo, têm como política justamente esse deixar-se ficar às ruas, com seus bocados típicos, sua música, sua beleza, suas gentes, sua cultura.
Mas Florianópolis não. Não há um banco sequer ao longo dos calçadões e, aos pobres, o melhor é que fiquem lá no terminal de ônibus. Outro dia andava eu, distraída, e vi o grande prédio da antiga Câmara de Vereadores. Ali está, bem em frente à Praça, escondido atrás de tapumes, há anos, se desfazendo. Um lugar belíssimo para uma casa de cultura, que abrigasse a arte, o teatro, o cinema, um café com mesinhas na rua, nas quais as pessoas pudessem ficar sem a pressão do consumo. Pois ali está, um espaço público entregue às moscas enquanto a gente vive tão carente de ambientes de encontro.
A cidade precisava fazer essa luta pela vivencialidade. Os espaços que têm são privados e caros. E a gente merece um lugar bonito, cheio de coisas belas, gratuitas ou quase, para a pura fruição. Assim que reivindico o casarão cor-de-rosa para nossa vida comum. E conclamo a todos os artistas, músicos, artesãos, gente da cultura a encampar essa luta. Assim como interpelo o Dário: Diz aí prefeito, pode ser ou tá difícil? Que o poder público restaure a Câmara e permita que a gente possa sentar em prosaicos banquinhos no calçadão, fruindo a cidade. Afinal, a cidade é nossa, ou não?

• Jornalista de Florianópolis/SC


Ao longe

* Por Pedro Du Bois

Sobre o monte
ao longe
distingo
a única presença
azulando o espaço
(perco a visão do aproximado)
os olhos detidos
ao instante
sonham
a seca noite
que me invade.

• Poeta

domingo, 29 de janeiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Livro que desfaz mitos.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Música da vida”.

Coluna Direto do Arquivo – Fábio de Lima, crônica “Doce ilusão verde e amarela”.

Coluna Clássicos – Castro Alves, poema, “O povo ao poder”.

Coluna Porta Aberta – Lêda Selma, conto “Quantos furdunços já provoquei!”.

Coluna Porta Aberta – Ivo Theis, artigo “Pra variar”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Livro que desfaz mitos


O botânico e antropólogo canadense Wade Davis viajou, em 1982, quando ainda era estudante da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ao Haiti. Seu objetivo era o de investigar se havia algum fundo de verdade no mito vodu dos zumbis. Permaneceu dois anos e meio no país, entrevistando um grande número de pessoas, visitando cidades, estudando os costumes locais, freqüentando cultos e colhendo todas as informações que lhe fossem possíveis.

Depois desse tempo, em que se empenhou o quanto pôde para confirmar ou desmentir a suposta zumbificação, regressou a Cambridge, com malária, hepatite, mas também com farto material para um livro. Antes mesmo de escrevê-lo, assegurou que tinha tantas e tamanhas revelações a fazer, que o texto seria lido como um romance de espionagem. E, de fato, não frustrou seus leitores. “A serpente e o arco-íris”, publicado no Brasil por Jorge Zahar Editor, foi um sucesso. Creio que atualmente esteja esgotado. Mas pode ser encontrado, ainda, nos bons sebos. De quebra, o material que colheu rendeu um filme, rodado em 1987, dirigido por Wes Craven, que teve razoável bilheteria.

Mas Wade Davis trouxe, do Haiti, algo mais do que somente material para seu instigante livro. Trouxe o que garantiu ser a fórmula secreta para se produzir zumbis. “Parti sem saber nada do país e cheguei apenas com a curiosidade”, revelou o botânico, em entrevista que deu ao jornalista Gino Del Guércio, da agência de notícias United Press International (UPI), em matéria escrita e divulgada para milhares de jornais assinantes, em várias partes do mundo, em abril de 1986. “Tive sorte, muita sorte. Abri uma caixa de Pandora que consumiu três anos da minha vida”, acrescentou Wade.

O livro “A serpente e o arco-íris” é, como o autor havia prometido antes mesmo de escrevê-lo, desses que não conseguimos parar a leitura enquanto não chegarmos ao final. Um dos seus méritos é o de desvendar o vodu tal qual ele de fato é, desfazendo equívocos a seu respeito, principalmente o que considera esse culto como mera prática de magia negra. Wade prova que não é bem assim. Tive a oportunidade de trazer ao seu conhecimento, caríssimo leitor, algumas informações a propósito dessa prática religiosa, colhidas em outras fontes, diversas do livro do botânico canadense. A leitura das suas observações apenas me confirmou a exatidão dos dados que colhi em minhas próprias pesquisas.

Wade revelou que o vodu, de fato, é uma prática religiosa sofisticada. Concluiu que a sua história é, no fundo, no fundo, a própria história do Haiti, desde sua origem africana, com escravos trazidos do continente negro para trabalhar na produção de açúcar, nos muitos engenhos comandados por franceses, em toda a Ilha Hispaniola, onde se situa, também, a República Dominicana, até os dias atuais. O culto é praticado, também, em várias outras ilhas do Caribe e até no Brasil.

Como todas religiões que se prezem, o vodu não se dedica, somente, ao lado espiritual dos fiéis, embora este seja, óbvio, seu aspecto prioritário. Tem, também, um sistema de medicina natural bastante evoluído, baseado no multimilenar conhecimento de fitoterapia, ou seja, do poder curativo das plantas. Davis revela que esse culto tem, ainda, “um sistema de educação e um sistema de lei e ordem que poderiam estar ligados a todo o sistema de sanções sociais” da sociedade haitiana.

Quanto aos zumbis, o botânico canadense revela o óbvio. Ou seja, que eles não são mortos vivos coisa nenhuma. São pessoas vivas, vivíssimas e que, mesmo no estado cataléptico, conseguem conservar a consciência. Fazer um “morto” andar, trabalhar etc. como se vivo estivesse, mas sem o comando do cérebro, claro, é o absurdo dos absurdos. Isso não existe, nunca existiu e jamais existirá. Quem acredita nessa bobagem é o crédulo dos crédulos ou, mais especificamente, o suprassumo do ignorante.

Na entrevista concedida à UPI, antes de escrever seu best-seller, Wade Davis enfatizou: “Os zumbis não são pessoas que tenham surgido dos mortos. Em vez disso, são as que receberam uma droga cujos efeitos se assemelham à morte. Paralisa-lhes e reduz-lhes as batidas do coração e o ritmo da respiração a zero. Mas os pacientes continuam conscientes”.

Peço licença para transcrever trecho de um texto que colhi no blog Biblioagrogriot (HTTP//:biblioafrogriot.blogspot.com), bastante revelador, que explica, com lógica, clareza e coerência, os motivos da forma preconceituosa com que o vodu é tratado ainda hoje em várias partes do mundo, notadamente nos Estados Unidos.

“E de onde se tirou essa idéia de o vodu ser demoníaco? Em primeiro lugar, o Haiti era a única nação negra independente por cem anos. Os haitianos costumavam comprar navios de escravos que iriam para os EUA e dar-lhes liberdade no Haiti. O país deu dinheiro a Simon Bolívar em suas lutas de liberação da Gran Colômbia . Mas em 1915 o exército americano ocupou o Haiti. Era época da segregação, e a maioria dos soldados eram homens sulistas, crescidos em meio ao racismo, e todos, do cabo ao sargento, acabaram assinando contrato para escrever um livro. E os livros que saíam tinham títulos como ‘Fogo vodu no Haiti’, ‘Aparição na terra vodu’, ou ‘A ilha mágica’, todos cheios de crianças que eram levadas para o caldeirão e zumbis se levantando dos túmulos para atacar pessoas. Foram essas histórias que deram origem aos filmes de Hollywood da RKO nos anos 1940. Esses livros e filmes terríveis diziam essencialmente aos americanos que qualquer país onde coisas terríveis assim acontecem, precisa de redenção pela ocupação militar”.

Como se vê, tudo no mundo tem explicação lógica e racional, basta procurá-la com método e empenho. Ou, pelo menos, quase tudo tem. Por trás de toda a lenda, por mais absurda que esta pareça (como é o caso dos mortos vivos do Haiti) sempre há um fundo de verdade. Compete às pessoas racionais e lógicas procurá-lo e demonstrá-lo.

Boa leitura.

O Editor.



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Música da vida


* Por Pedro J. Bondaczuk


Os poetas costumam comparar as fases da vida às quatro estações do ano. Atribuem à primavera, a infância cheia de encantos; ao verão, a adolescência repleta de energia; ao outono, a maturidade do bom-senso e ao inverno, a velhice da solidão e frustrações. Discordo dessa comparação.
Prefiro outra, mais positiva e próxima da real. Afinal, as estações do ano repetem-se a cada 365 dias, indiferentes ao fato de estarmos vivos ou não. Considero, por exemplo, a primavera como a alegria; o verão, o entusiasmo; o outono; o bom-senso e o inverno, a experiência que se consegue, apenas, com vivência.
Temos essas fases não apenas uma vez na vida, mas inúmeras. Teremos, por exemplo, tantas “primaveras” quantas quisermos, desde que estejamos predispostos a elas. O mesmo vale para as outras três estações, claro.
Quase tudo no mundo, no terreno dos pensamentos, sentimentos e atos, é questão de dosagem. Os mais milagrosos remédios, se tomados em doses inadequadas, tendem a ser ou ineficazes ou, até mesmo, venenosos. Tomados de menos, não surtem efeitos e, demais, intoxicam.
Alguns venenos mortais, por seu turno, em doses pequeníssimas e rigorosamente exatas, são milagrosos remédios. O mesmo raciocínio se aplica para o sonho e a realidade, por exemplo. Sonhadores em excesso, que se limitam a sonhar sem nada fazer para tentar tornar real o que se sonhou, mais cedo ou mais tarde se frustram. Descambam para o desencanto. Realistas em demasia, por seu turno, levam vidas cinzentas, tristes e sem graça. Ambos, sonho e realidade, nos são necessários. O problema é acertar na dosagem.
Temos, isto sim, que pôr paixão em tudo o que fizermos, não importa se essa obra é de caráter material, intelectual, filosófico ou artístico. Claro que essa chama, esse entusiasmo, essa fúria de concretizar o que existe só em nossa mente tem que ser “temperada” com outros ingredientes, como razão, prudência e bom-senso.
A paixão, em si, em seu estado natural, é selvagem e muitas vezes incontrolável. Tende a alucinar quem não sabe dosar sua intensidade. Mas sem ela, nenhuma das nossas obras parecerá, aos mais atentos (e, de fato, não o será), com alma, verdade e autenticidade. Mesmo que perfeita, na forma e na concepção, soará falsa, artificial e sem vida. É essa iluminação que transforma o que fazemos em obras-primas que desafiam o tempo e a sucessão de gerações.
Sou fascinado, particularmente, por sons harmoniosos e coerentes. Nasci com alma de músico, embora nunca tenha composto uma única canção (não me refiro a letras, que já fiz muitas, mas à melodia) e não me sinto habilitado para tanto. Também não toco instrumento algum e minha voz é muito grave, não se prestando, portanto, à interpretação. Mas tenho o que comumente se chama de “ouvido musical”.
Neste instante, ouço em surdina, na casa vizinha, o canto de um pássaro, que identifico como o de um canário belga. Aprendi esse tipo de identificação ouvindo um disco, que meu saudoso pai ganhou do engenheiro Johann Dalgas Fritsch. Sei que essa afirmação pode parecer um disparate, mas não é. A referida gravação não só existe como é um achado, sobretudo artístico. Mistura o canto dos mais variados pássaros da fauna brasileira com peças musicais de Bach, Beethoven, Chopin etc. O efeito é devastador, em termos de derrubar as barreiras que represam emoções!
Dalgas Fritsch gravou vários LPs do tipo e tenho três deles. Chamo essas gravações de “música da vida”, que de fato são. O canto mais impressionante é o do uirapuru, da Amazônia. Diz a lenda que quem o ouvir conservará para sempre seu amor. Tomara que seja verdade! Gosto de ouvir esses discos, sobretudo, a cada amanhecer.
Cada novo dia que nasce é uma oportunidade que a vida nos dá de realizar sonhos e alcançar (e conservar) a felicidade e a alegria de viver. Nunca sabemos de quanto tempo ainda dispomos para pormos em prática nossos planos. Podem ser muitos dias, milhares deles, como pode, também, não ser mais nenhum. Daí ser tremenda tolice desperdiçar nosso tempo com picuinhas, rancores inconseqüentes e nunca construtivos, ciúmes, inveja, cobiça e tantos outros sentimentos que só nos trazem dor, amargura e infelicidade e às pessoas que nos rodeiam.
Não desperdiço os meus. Procuro vivê-los com intensidade, com alegria, bom-humor e encantamento. Três coisas em especial me fascinam, encantam e entusiasmam: vida, amor e beleza, nesta ordem. Viver é, para mim, simultaneamente, mistério e privilégio, quaisquer que sejam as circunstâncias. Amar, por seu turno, é sempre uma bênção, mesmo que não haja correspondência. Se houver... será um delírio! E, finalmente, a beleza (não a física, necessariamente, mas a que se expressa em todas as coisas, até nas aparentemente mais feias), inspira-me, acalma-me e me desperta intensa alegria e profunda reverência.
Devemos ter, sempre e a cada momento, essa atitude de celebração face a vida. Mesmo que não venhamos a nos dar conta, ou que questionemos essa idéia, temos muito mais motivos para comemorar pelo fato de estarmos vivos, do que para eventualmente lamentar. Trata-se de oportunidade rara e única, de um privilégio e de uma bênção. Nós é que, em geral, arruinamos nossas vidas com atitudes negativas, pensamentos nefastos e ações desastradas, ou “destrambelhadas”, como costuma dizer um amigo.
A sabedoria, sem dúvida, é importante e devemos nos empenhar para obtê-la. Reflexão é fundamental para conhecermos o nosso íntimo e as pessoas que nos cercam. Mas as emoções sadias e intensas são essenciais. Celebremos e vivamos intensamente cada dia que temos, do amanhecer ao anoitecer. Minha forma particular de celebrar é ouvindo, sempre que posso (e nesse caso, posso sempre) a encantadora, a inspiradora, a misteriosa “música da vida”.



* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk






Doce ilusão verde e amarela

* Por Fábio de Lima


A cidade chama-se Felicidade e fica no sertão de Pernambuco. Ela está 321 km distante de Recife. Sentado no batente da porta de casa, com o nariz escorrendo, com a mão direita coçando os piolhos da cabeça, Romário Ferreira Silva, 7 anos de idade, vestido com um short vermelho – sem camiseta ou chinelo – olha o asfalto quente, enquanto 4 bois magros acompanhados de dois cabritos, também magros, pisam lento neste asfalto feito brasa. Romário pensa que o mundo roda devagar.

O vento abafado e escaldante não refresca nada. A poeira cega os olhos daqueles que se atrevem a olhar longe. O cachorro pulguento, com pêlo ralo, dorme à sombra como se morto estivesse. O armazém da esquina está com as portas fechadas, pois é horário de almoço. Romário não tem comida esse dia. Órfão de pai – espera a mãe voltar do sítio de um conhecido onde foi tentar arrumar algo para ela e o filho comerem. Romário pensa que o carrapato na pata do cabrito lembra uma bolinha de gude.

Sr. Roberto, dono do armazém, é considerado o rico da região, visto que sempre tem o que comer. Ele passa na frente de Romário voltando de casa para seu estabelecimento comercial, enquanto limpa os dentes utilizando os dedos da mão direita e coça a barriga utilizando os dedos da mão esquerda. Tilito, o cachorro sarnento que dormia na sombra, acorda e levanta a cabeça para espiar o movimento. Romário pensa que sua mãe está demorando.

Um táxi entra na rua e pára de frente com a casa de Dona Severina. Desce um rapaz bem vestido, de óculos escuros, com jeito de homem de cidade grande. Dona Severina já aparece na porta chorando. Os dois se abraçam. O motorista do táxi ajuda o moço a colocar as malas para dentro de casa. O táxi vai embora. Romário e Tilito só olham. Romário pensa que quando for grande vai para a cidade grande também.

Risolange, menina mais bonita da região, na flor de seus 17 anos, filha de Sr. Roberto e vizinha de Romário, vinda da escola, aparece na subida da serra. Caderno abraçado ao peito, lápis e caneta com as pontas para fora do bolso da calça jeans, camiseta branca com o símbolo do grupo escolar e chinelo de dedo, cabelo alisado por óleo de cozinha e batom vermelho nos lábios, esboça um sorriso para Romário quando consegue pisar em asfalto já plano. Romário pensa que na escola deve ter comida.

Tilito se levanta e anda devagar até o armazém. Romário olha em volta para ver se está sozinho. Cospe em cima de uma formiga que teima em subir no batente onde ele está sentado. Romário sorri, enquanto a formiga se desespera mergulhada na saliva do garoto. No começo da serra Dona Josefa aparece carregando algo nas costas e dando passadas firmes de quem tem pressa. Romário corre ao seu encontro. Ao se encontrarem nada falam um para o outro. Dona Josefa lhe dá um saco de feijão e sobe a serra com um saco de farinha. Ambos sorriem e pensam que o mundo é bonito.

*Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Atua como repórter freelancer para o jornal Diário do Comércio (SP) e é diretor de programação da Cinetvnet (TV pela WEB). Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.






O povo ao poder

* Por Antonio Castro Alves


Quando nas praças s'eleva
Do Povo a sublime voz...
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz...

Que o gigante da calçada
De pé sobre a barrica
Desgrenhado, enorme, nu
Em Roma é catão ou Mário,

É Jesus sobre o Cálvario,
É Garibaldi ou Kosshut.

A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor!

Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua seu...
Ninguém vos rouba os castelos

Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.

Na tortura, na fogueira...
Nas tocas da inquisição
Chiava o ferro na carne
Porém gritava a aflição.
Pois bem...nest'hora poluta

Nós bebemos a cicuta
Sufocados no estertor;
Deixai-nos soltar um grito
Que topando no infinito

Talvez desperte o Senhor.

A palavra! Vós roubais-la
Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão.
Mas qu'infâmia! Ai, velha Roma,
Ai cidade de Vendoma,
Ai mundos de cem heróis,
Dizei, cidades de pedra,
Onde a liberdade medra
Do porvir aos arrebóis.

Dizei, quando a voz dos Gracos
Tapou a destra da lei?
Onde a toga tribunícia
Foi calcada aos pés do rei?
Fala, soberba Inglaterra,
Do sul ao teu pobre irmão;
Dos teus tribunos que é feito?
Tu guarda-os no largo peito
Não no lodo da prisão.
No entanto em sombras tremendas
Descansa extinta a nação
Fria e treda como o morto.
E vós, que sentis-lhes os pulso
Apenas tremer convulso
Nas extremas contorções...
Não deixais que o filho louco
Grite "oh! Mãe, descansa um pouco
Sobre os nossos corações".

Mas embalde... Que o direito
Não é pasto de punhal.
Nem a patas de cavalos
Se faz um crime legal...
Ah! Não há muitos setembros,
Da plebe doem os membros
No chicote do poder,
E o momento é malfadado
Quando o povo ensangüentado
Diz: já não posso sofrer.

Pois bem! Nós que caminhamos
Do futuro para a luz,
Nós que o Calvário escalamos
Levando nos ombros a cruz,
Que do presente no escuro
Só temos fé no futuro,
Como alvorada do bem,
Como Laocoonte esmagado
Morreremos coroado
Erguendo os olhos além.

Irmão da terra da América,
Filhos do solo da cruz,
Erguei as frontes altivas,
Bebei torrentes de luz...
Ai! Soberba populaça,
Dos nossos velhos Catões,
Lançai um protesto, ó povo,
Protesto que o mundo novo
Manda aos tronos e às nações.

• Um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos






Quantos furdunços já provoquei!

* Por Lêda Selma

Que sou distraída, que me desligo às vezes, que sofro uns apagões inacreditáveis, que perco tudo dentro e fora de casa, é sabido, aliás, mais que isso, é notório. Tanto que, não raro, sou lembrada pelos óculos que, durante mais de hora, procurei desesperada e, ao final, encontrei-os no lugar de onde não saíram: meus olhos. Sapatos, então... Com eles nos pés, já desmontei um guarda-sapatos enorme no afã de encontrá-los.

Outro fato, para muitos inconcebível, minha entrada no elevador de um hotel em Recife, e cuja subida empreendi ao lado de dois cavalheiros, um moreno e outro de cabelos grisalhos, os quais alegremente cumprimentei com simpático e turístico ‘bom-dia para vocês!’. O detalhe intrigante: o de cabelos grisalhos era meu marido (há 41 anos), mas só me dei conta, ao ser abordada por ele, desentendido, à porta da suíte: “O que deu em você, no elevador?”. Confusa, confessei: não o reconheci, ora! Dizem que esse é meu recorde. Será?!

Alguns creditam tal status àquela do casal que, a meu pedido, me seguiria, após sairmos de uma festa, até a porta do prédio em que resido. Tudo bem, e daí, qual o problema? Bem, não haveria nenhum se eu, a alguns quarteirões de casa, instigada pelo medo que me impingia a sensação de alguém estar me seguindo, não houvesse acionado a polícia. Isso mesmo, a polícia! Pois é, acionei-a. Sob a alegação de que certo carro preto (melhor, afro-descendente), dirigido por um suspeito, acompanhado de seu cúmplice, estava no meu encalço com o determinado propósito de assalto ou sequestro. Ainda bem, a luz alta do carro do ‘provável’ assaltante/sequestrador, seguida de chamada para meu celular (“missão cumprida, boa-noite!”), desmanchou tamanho equívoco. Embora aliviada, nem me lembrei de agradecer a gentileza do casal. Só dia seguinte. Até hoje, os dois desacreditam daquele meu “antológico branco”, como o catalogaram.

Um furdunço e tanto promovi, convenhamos. Aliás, promovo. Afinal, não sou parcimoniosa na arte de perpetrá-los. Tanto que, de outra feita, minha filha incumbiu-me de segurar uma sacola, na qual havia um par de sapatos de grife, recém-comprado no shopping, enquanto efetuaria um pagamento no caixa eletrônico. Solícita, acatei o pedido e dirigi-me a uma loja; dei uma olhadinha básica nas vitrines e coloquei, displicentemente, a incumbência, ou seja, a sacola, sobre o balcão e deixei meus olhos e minha curiosidade desfilarem ali e acolá. De repente, percebi uma sacola sozinha sobre o balcão, modelo esquecida, abandonada mesmo, e avisei à moça do caixa: alguém esqueceu esta sacola aqui. Não me bastasse isso, resolvi perguntar às pessoas da vizinhança: esta sacola é sua? E sua? Ei, está procurando uma sacola? Ante tantas negativas, sugeri à funcionária da loja que recolhesse a esquecida até que a dona fosse buscá-la.

Minha filha voltou, e, ao nos dirigirmos à escada rolante, a surpresa: “Mãe, cadê minha sacola?!”. Acordei. Hum... a tal sacola...! Ih! estou perdida! – concluí. Refeita do susto, o jeito, dizer-lhe: corre, filha, pois, se ninguém decidiu portar-se de forma desonesta, e se a atendente aceitou minha sugestão, pode ser que ainda encontre sua sacola.

O pior foi a reação da moça do caixa que, em estágio máximo de estranheza e cheia de suspeitas, esbravejou: “Como assim, sua mãe deixou a sacola no balcão, se ela, de corpo presente e em viva voz, perguntou à loja inteira de quem era a maldita?! E você me vem com esta agora?! Francamente!”. Fui salva, e a reputação de minha filha também, pelo comprovante de compra da sapataria, ufa!

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.


Pra variar


* Por Ivo Theis

Quarta-feira, 18 de janeiro de 2012: em audiência no Tribunal de Justiça, de São Paulo, na qual estiveram presentes, entre outros, os representantes da massa falida da Selecta, o juiz titular da 18ª Vara Cível da Comarca da Capital, Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, decidiu conceder 15 dias de prazo para que a prefeitura de São José dos Campos, o governo do Estado e a União negociassem uma solução.

O caso: a “solução” era para uma comunidade de sem-tetos que, em 2004, ocupou um verdadeiro latifúndio urbano, de 1,3 milhão de metros quadrados, em São José dos Campos, São Paulo. Essa comunidade era constituída, até domingo, por cerca de 1,7 mil famílias, ou seja, entre seis e oito mil pessoas. Gente simples, pobre, humilde.

Domingo, 22 de janeiro de 2012, 6h: à força de 2 mil soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo, oriundos de 33 municípios, acompanhados de helicópteros, blindados, armas de fogo, bombas de gás e pimenta, a gente simples e pobre da Ocupação Pinheirinho foi, truculentamente, desalojada de seus casebres.

Ainda o caso: os moradores desalojados que, fazia oito anos, viviam no Pinheirinho, integravam uma comunidade de gente simples pobre. Mas, eram pais e mães de família, que erigiram seus casebres por meio de mutirões, trabalhavam e tinham filhos nas escolas.

Domingo, 22 de janeiro de 2012, fim do dia: depois de muita violência (com feridos graves, talvez, até mortos), não havia mais Ocupação Pinheirinho. Tivesse alguém permanecido e teria de sobreviver sem água, eletricidade, telefone – cortados. E sem a Capela Madre Tereza de Calcutá, construída pelos moradores, tombada sob o peso dos tratores da prefeitura.

Outra parte do caso: contrariando decisões da Justiça Federal, as ordens para o despejo executado pela Polícia Militar teriam partido do governador Geraldo Alckmin. E a massa falida da (acima referida) Selecta, que reclama o terreno, é de propriedade de um tal Naji Nahas. E tudo indica que essas coisas se ligam...

Quanto à violência: ela foi material e simbólica, policial e governamental, e também esteve presente na manipulação da informação. Não foi dirigida contra branco rico e poderoso. Foi perpetrada contra o povo simples e pobre, contra a gente humilde e indefesa. Pra variar.

• Professor, economista e doutorado em Geografia

sábado, 28 de janeiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Culto que caracteriza um povo.

Coluna Direto do Arquivo – Euclides Farias, crônica “Sabedoria de caboclo”.

Coluna Clássicos – Artur Azevedo, conto, “Os dez por cento”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, relato de viagem,“Mostrando o esplendor da América para meu amigo Carlinhos Klitzke”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica “Retrato de uma moça nem sempre bem comportada”.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema “Soneto”.



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Culto que caracteriza um povo


O que há de verdade sobre os propalados zumbis do Haiti (se é que exista alguma? É lenda ou realidade? É magia ou engodo? Efeito de alguma poderosa e desconhecida droga de efeito cataléptico ou desesperada tentativa de busca de notoriedade, por caminhos tortuosos e insólitos, de algumas pessoas que “atestam” sua existência? E o vodu, é magia negra ou religião como outra qualquer? Dedica-se à prática do bem ou se volta para o mal como muitas pessoas (equivocadamente, com base puramente em preconceitos) acreditam e propalam? Perguntas, perguntas e mais perguntas. Comecemos pelo insólito culto, de origem africana, da sofrida população do país caribenho, o mais pobre das Américas e dos mais miseráveis do mundo.

O vodu é o principal elemento de integração, não somente religiosa, mas também cultural, social e até política, do povo haitiano. A forma como é praticado, hoje, caracteriza-o como sincretismo com o cristianismo (no que se assemelha à umbanda). Isso se deve ao fato da sua prática ter sido proibida, em certa época, pelos franceses, colonizadores da Ilha Hispaniola, no Caribe, onde o Haiti está localizado, juntamente com a República Dominicana.

O vodu original tem elementos de predominância pagã. Sua origem é africana, sendo sua raiz detectada em Daomé e na região conhecida como Fon. Aliás, o idioma esotérico adotado pelos fiéis originou-se dessa área, tão pouco conhecida do continente negro. No Haiti, o vodu é praticado através de três ritos distintos: congo, rada e nagô, cada qual com seus templos e liturgias próprios, diferenciados, principalmente, pelo tipo e pelo ritmo dos tambores e pelos cantos e danças.

Os voduistas crêem na possessão dos deuses, sob a proteção de Loa, a divindade suprema de seu panteão. O adorador é possuído através da dança e dos movimentos rítmicos levados ao paroxismo. Os cantos e as batidas dos tambores são executados até que os fiéis que os dançam se vejam prostrados pela exaustão. É quando entram em transe.

Um dos principais Loas do vodu do Haiti foi como que “beatificado”. Ou seja, foi pessoa física, existiu de fato, não sendo, pois, fruto da imaginação dos crentes. Trata-se de Makandall, tido e havido como uma espécie de profeta e assim tratado. Por essa razão, foi reverenciado e, posteriormente, deificado.

Em 1758, quando escravo dos senhores de engenho franceses, esse personagem previu a destruição dos tiranos da ilha, de todos eles, mediante envenenamento. Estes reagiram, de forma violenta, acusando-o de incitar rebelião e punindo o infeliz “profeta” com a morte na fogueira. Makandall foi conduzido, acorrentado, a uma praça pública e, ali, foi queimado vivo. Entretanto, depois da sua morte, testemunhada por uma multidão de adeptos, vários desses seus seguidores garantiram terem-no visto vivo, e em diversas partes do Haiti. A notícia não tardou a se espalhar.

A lenda da miraculosa sobrevivência, ou melhor, da “ressurreição” de Makandall cresceu, ganhou inúmeros detalhes, acrescentados por diversas supostas testemunhas e, hoje, os voduístas crêem que, no momento em que o fogo foi aceso, o “profeta” foi possuído por Loa, que o livrou das chamas e da conseqüente morte.

O vodu é praticado, também, em algumas comunidades negras do Sul dos Estados Unidos. Combina práticas mágicas (entre as quais a transformação de pessoas que praticam o mal em zumbis), o falismo e o satanismo. Implica em sacrifícios aos deuses, hoje realizados com o sangue de animais, como cabras, galos e galinhas. Todavia, houve tempos em que a oferenda às suas divindades era o sangue de uma donzela branca. Por razões óbvias, essa prática foi abolida. Pudera!

Como todas as religiões, o vodu tem, também, seus sacerdotes, conhecidos como “papalois”. Todavia, não é um culto machista, como a maioria conhecida. Conta, igualmente, com sacerdotisas, as “mamalois”, com os mesmos poderes e idêntica reverência de seus colegas masculinos. A iniciação deles é um processo dificílimo e de longa duração, podendo demorar até décadas se preciso.

Um dos elementos mais importantes do seu ritual é o tambor, para a marcação rítmica. Há vários tipos e tamanhos deles, havendo alguns de dimensões tão grandes que o ritmista, para tocá-los, tem que subir numa escada, ou numa árvore. Um dos principais tambores é o “assótor” (que os voduistas acreditam que encarna uma das suas principais divindades, do mesmo nome) que, através de seu som, transmitiria sua palavra aos fiéis. As danças são realizadas à luz da lua, ao redor de fogueiras e os devotos, durante o culto, atingem o estado de êxtase, quando então comem a carne dos animais recém sacrificados, numa espécie de comunhão.

Dois dos inúmeros deuses vodus têm destaque entre os fiéis. O primeiro é a entidade que preside os cemitérios, o deus dos mortos, cujo nome é Baron Samedi. O segundo, ou segunda, é a deusa do amor, responsável pela fecundação, pela fertilidade dos casais, chamada de Maestra Erzulie.

O ex-presidente (na verdade, ex-ditador) haitiano, François Duvalier, falecido em 1971 e que era conhecido como “Papa Doc”, foi estudioso do voduísmo, culto que não somente não proibiu no país (como fez com tantos outros), como, principalmente estimulou.
E fez as seguintes observações a respeito dessa religião: “O vodu possui uma doutrina, materializa-se nos ritos, oferendas e sacrifícios, em uma hierarquia sacerdotal e de iniciação – todos os elementos culturais que encontram suas fontes nas religiões de diferentes tribos levadas para São Domingos. Existe certa tendência encaminhada para confundir o vodu com a magia negra. Mas não é assim na crença popular, que diferencia claramente essas duas entidades, a tal ponto que o servidor dos Loas Radas, divindades benévolas, deve abster-se de práticas mágicas, sob pena de severas sanções. Para eles, são mais recomendáveis as obras de beneficência, principalmente aquelas que são mais conhecidas por nelas imperar o sentido da caridade, como as oferendas denominadas comida das almas e comida dos indigentes. Além do mais, o vodu, como qualquer outra religião, se propõe a alcançar os fins de caráter humanitário”.

Quanto aos zumbis, a controvérsia, certamente, ainda vai prosseguir por muito tempo, despertando a fantasia de aventureiros (e de escritores), o espírito de pesquisa dos estudiosos e dando oportunidade de ação aos inescrupulosos e oportunistas.

E volto ao meu questionamento inicial Lenda ou realidade? Magia ou engodo? Efeito de alguma poderosa e desconhecida droga de efeito cataléptico ou desesperada tentativa de busca de notoriedade de embusteiros, por caminhos tortuosos e insólitos? São estas as questões que tentarei responder na sequência, com os parcos recursos de que disponho.

Boa leitura.

O Editor.




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