sexta-feira, 31 de julho de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Astros do ensaio.

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “Lencinhos de adeus”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire – texto, “Pílulas literárias (XV)”.

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “O complô dos cafajestes”.

Coluna Porta Aberta – Suzana Vargas, poema “Conversa de fim de tarde”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema “Lembrete”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Astros do ensaio

O Brasil tem produzido, ao longo dos anos, excelentes ensaístas, que não ficam nada a dever aos grandes astros do gênero, de outros países. Pode-se afirmar que, diariamente, em especial nos meios acadêmicos, são produzidos primorosos ensaios, divulgados, via de regra, em meios específicos da internet. Basta acessar esses sites e/ou blogs, e conferir.
Para não cometermos injustiças, e nem causarmos melindres (afinal, o Literário é lido por inúmeros escritores), citamos, apenas, alguns desses autores, e de um passado na verdade ainda recente. Estão, neste caso, Augusto Meyer, Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção, Sérgio Milliett e o diplomata Álvaro Lins, com seu instigante livro “A glória de César e o punhal de Brutus”.
Portugal, por sua vez, conta com poucos ensaístas ilustres. Destes, destacamos, é claro, Alexandre Herculano (uma espécie de mito na literatura de língua portuguesa) e Antero de Quental. Entre os espanhóis, deve ser, forçosamente, mencionado, além do poeta Miguel de Unamuno, o filósofo José Ortega y Gassett, um dos ensaístas preferidos deste Editor.
Dos norte-americanos, já enfatizamos a atuação, em considerações anteriores, de Henry David Thoreau, cujos textos integram todos os currículos de literatura inglesa das escolas dos Estados Unidos. Mas não podem ser omitidos os nomes dos extraordinários filósofos Ralph Waldo Emerson e Will Durant (este último, autor dessa autêntica jóia literária e filosófica que é o livro “Filosofia da Vida”). James Lowell, igualmente, não deve ser esquecido.
Em língua germânica, os ensaístas que mais chamam a atenção deste Editor são Thomas Mann, Hannah Arendt e Stefan Zweig (húngaro de nascimento, que teve fim trágico, aqui no Brasil, ao cometer suicídio).
Entre os russos, apesar de algumas restrições, o destaque vai para Leon Tolstoi, em sua fase mística. Muitos críticos literários entendem que essa foi a etapa da sua decadência literária, em que teria escrito textos de qualidade inferior. Pode ser. Ainda assim, nos legou, nesse período, alguns ensaios de imensa sabedoria e profundidade.
Os ensaístas mais conhecidos (e mais lidos) são, todavia, tanto os franceses, quanto os ingleses. Na França, além de um dos criadores do gênero, Michel Eyquem de Montaigne, não podem ser omitidos nomes como os de Montesquieu, Voltaire, Hippolyte Taine, Jean de La Bruyere, Charles Auguste Saint-Beuve, Paul Valéry, Albert Camus e Marguerite Yourcenar, entre tantos e tantos outros.
Já na Inglaterra, temos uma quantidade tão grande de notáveis ensaístas, que dificilmente este Editor não irá se esquecer de algum bastante destacável. Afinal, não possui tão boa memória quanto deseja.
Além de Francis Bacon, nomes que não podem ser omitidos jamais são os de John Locke, Abraham Cowley (poeta), Daniel Defoe (jornalista), Joseph Addison, Richard Steele, Alexander Pope (o único a produzir ensaios em versos), Samuel Johnson, Henry Fielding, Oliver Goldsmith, Thomas Carlyle, Percy B. Shelley (poeta), Thomas Macaulay, William Thackerray e George Orwell, principalmente.
Que time de craques, não é mesmo?!!! Que tal você, paciente leitor e que tem pretensões a escritor, se aventurar por este gênero, que parece tão simples, mas envolve tamanha complexidade, em decorrência das idéias com que os ensaístas trabalham?! É um belo desafio ao seu talento e criatividade. Este Editor espera, um dia, ler um livro de ensaios seu.

Boa leitura.

O Editor.



Lencinhos de adeus

* Por Daniel Santos

Ainda ontem, ela engatinhava pela casa, encardia paredes, puxava a barba do tio e demais travessuras que encantavam a família – uma família quase desfeita, mas logo reunida quando a mãe empinou barriga.

Pois a lindinha nasceu e logo se aninhou no colo do pai que queria um garotão com quem jogar bola, mas deslumbrou-se ao vê-la emergir do ventre materno. Amor à primeira vista, do qual ele não se sabia capaz.

E tanto se apegou à filha que surpreendeu a todos ao dizer “gosto demais dela, queria que tivesse saído de dentro de mim”. Tal não chegou a escandalizar, que tamanho achego era claro; para ela, principalmente.

Mas, se ainda ontem engatinhava, agora ... Ah, noutro dia comprou o primeiro sutiã! Ela e a mãe festejaram. O pai agoniou-se: a filha não era mais criança, logo o trocaria por um namorado! Daí, as insônias.

Noite dessas, encontrou na área de serviço calcinhas dela ainda de molho. Com surpreendente desvelo, pendurou-as no varal. Ali, trêmulas ao vento – ele entendeu, emocionado-, acenavam como lencinhos de adeus.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



Pílulas literárias 15

* Por Eduardo Oliveira Freire

FELICIDADE

Os olhos dos pais brilham ao ver a alegria da filha comer na lanchonete famosa e ganhar os brindes da moda que vêm com a comida. Estão de barriga vazia, mas saciados em ver a pequena tão contente.

UNILATERAL

Desde menino, via o pai receber a visita do amigo e ficarem horas na sala a bater papo. Admirava-se por nunca ter havido conflitos entre eles, ao decorrer dos anos. Uma vez, curioso, decidiu ouvir o que falavam tanto. Diziam somente sobre suas respectivas vidas; quando um comentava algo que lhe acontecera, o outro relatava a sua experiência. Não havia troca, confrontos de ideias ou conselhos; estavam voltados para si mesmos.

– VOU SER INTÉRPRETE

- Por quê?
– Sou o único a decifrar o que o meu pai e minha mãe desejam falar um para o outro. Sozinhos, não se entendem.

ENCARCERADAS

I

Cansada de tomar decisões, retorna à gaiola.

II

Vive solta. Nunca quis fugir. Está presa em uma gaiola de afetos.


* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor.



O complô dos cafajestes

* Por Rodrigo Ramazzini


- Amor! Você realmente me ama?
- Amo!
- Por que então não demonstra? Por que não fala com o meu pai e assume o nosso namoro?
- É que...
- O seu amigo Leandro mal começou a relacionar-se com a minha irmã e disse-lhe que logo falará com o pai...
- Ele disse isso?
- Falou também que irá aos noventa anos do meu avô. Festa que, diga-se de passagem, você não falou que não freqüentaria.
- Volta um pouco. O Leandro pedirá a sua irmã em namoro para o seu pai. Foi isso que você disse?
- Isso mesmo!
- Sei!
- E mais...
- Tem mais?
- Ele falou que lhe procuraria para vocês conversarem, antes dele apresentar-se ao pai.
- Conversar sobre o quê?
- Oi! Planeta terra. Brasil. Rio Grande do Sul. Acorda Diego! Olha sobre o quê? Sobre o que estamos falando?
- Sobre o Leandro.
- Aí meu Deus! Vou simplificar, ou melhor, vou lhe adiantar o assunto que ele tratará com você. O Leandro lhe convidará para ir conhecer a minha família juntamente com ele.
- Ele disse isso?
- Falou! Ele só não foi à minha casa ainda porque quer falar com você primeiro.

E o Diego, passando a mão no queixo, pensou: “Bom garoto! Como combinado. Ganhamos no mínimo mais dois meses”. Sorriu. E redargüiu, beijando a testa da namorada:
- Pode deixar amor que eu falo com ele...

* Jornalista



Conversa de fim de tarde

* Por Suzana Vargas

Eu queria estar
naquelas amuradas portuguesas
de onde se avista o mar,
o Tejo,
e o Cabo da Roca
Lá descobrimos
que o Universo
é uma ilha ambulante
Está
onde estamos
e não existe para além de nós.
Eu queria estar
aqui.

* Poetisa gaúcha, radicada no Rio de Janeiro, autora de literatura infantil e ensaísta. Tem 16 livros publicados, entre os quais “Sombras chinesas” , “Caderno de Outono” (indicado ao Prêmio Jabuti) e “O amor é vermelho”.


Lembrete

* Por Flora Figueiredo

Não deixe portas entreabertas.
Escancare-as
ou bata-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas
passam apenas semiventos,
meias verdades
e muita insensatez.

* Poetisa

quinta-feira, 30 de julho de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Gênero nobre.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Etapas de uma mudança”

Coluna Contradições e Paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica “Bicicletas ergonométrica: guia prático de convivência pacífica”.

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Só para agradar”.

Coluna Porta Aberta – Cacá Mendes, crônica “Minha mãe, ele e eu”.

Coluna Porta Aberta – Karina Monteiro, poema “Ao encontro da inspiração”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Gênero nobre

O ensaio é um dos gêneros mais importantes, instrutivos e úteis da literatura. Todavia, não se pode dizer que seja dos mais populares. Por que? Por tratar de assuntos que exigem vasta cultura do leitor para que este possa acompanhá-los, entender e usufruir minimamente dos seus ensinamentos.
Seus consumidores por excelência, pois, são filósofos, historiadores, sociólogos, cientistas, professores universitários e críticos literários, entre outros. Claro que qualquer pessoa pode (e deve) ler textos desse gênero. São fundamentais para a cultura de quem quer que seja. Poucos, no entanto, têm esse privilégio.
O ensaio é relativamente recente. Data do século XVI e um dos seus criadores foi o francês Michel Eyquem de Montaigne. É uma delícia ler suas explanações, que se constituem sempre num sofisticado “banquete de idéias” para satisfazer a fome do nosso espírito. Na Inglaterra, um dos precursores do gênero foi Francis Bacon, embora a terra da rainha tenha produzido (e continue produzindo) ensaístas notáveis.
Provavelmente, porém, o escritor do gênero mais conhecido mundo afora seja o norte-americano Henry David Thoreau. Seu livro “Desobedecendo”, clássico da literatura mundial, por exemplo, exerceu decisiva influência no pensamento e na ação de Mohandas Karamanchand “Mahatma” Gandhi, que o tomou por fundamento para estabelecer sua bem-sucedida estratégia de desobediência civil, ou seja, de resistência pacífica ao domínio colonial inglês, que resultou na independência da Índia.
E o quê, afinal, caracteriza o gênero? De acordo com a enciclopédia eletrônica Wikipédia, “ensaio é um texto literário breve, situado entre o poético e o didático, em que o autor expõe idéias, críticas e reflexões morais e filosóficas a respeito de determinado tema. É menos formal e, portanto, mais flexível que o tratado”.
E prossegue: “Consiste, também, na defesa de um ponto de vista pessoal e subjetivo sobre um assunto (humanístico, filosófico, político, social, cultural, moral, comportamental, literário etc.), sem que se paute em formalidades como documentos ou provas empíricas ou dedutivas de caráter científico”.
Para que o leitor tenha uma idéia, a maioria dos textos deste Editor, publicados em sua coluna “Ladeira da Memória” aqui do Literário, classificada, invariavelmente, de “crônicas”, é, na verdade, enquadrável, a rigor, no gênero ensaio. Trata-se da forma de expressão que ele mais aprecia (tanto para ler, quanto, e principalmente, para escrever) e com a qual se sente mais à vontade. É, portanto, apesar do seu relativamente baixo índice de leitura, o gênero mais nobre da Literatura.
Provavelmente a melhor definição de ensaio já feita até hoje seja a do filósofo e exímio ensaísta espanhol, José Ortega Y Gasset, que o caracterizou como “ciência sem prova explícita”. É isso aí, sem tirar e nem pôr. Pela importância do assunto, certamente voltaremos a tratar dele oportunamente.

Boa leitura.

O Editor.



Etapas de uma mudança

* Pedro J. Bondaczuk

A nossa vida é um contínuo e ininterrupto processo de mudança. Mudam as pessoas, com milhões de nascimentos e mortes praticamente a cada segundo de cada dia mundo afora; mudam os cenários; mudam as circunstâncias; mudamos nós. Nada é estático, embora às vezes nos pareça que seja.

A Terra gira, continuamente, ao redor do próprio eixo (posto que imaginário), orbita o sol, que por sua vez está em movimento incessante no interior da galáxia que integra e esta viaja a velocidade espantosa e inconcebível no vácuo rumo a um destino ignoto. A vida e o universo são dinâmicos.

Algumas mudanças são tão imperceptíveis que requerem certo tempo para que as notemos. Outras tantas são abruptas, velozes, instantâneas e quase sempre nos pegam de surpresa (não importa se sejam para melhor ou pior).

Mudamos todos os dias, a partir da nossa própria estrutura física. Somos vida composta por muitas vidas, que dependem de permanecermos vivos para sobreviverem também, mas que têm ciclos vitais autônomos: nascimentos, reproduções e mortes.

Todas as células do nosso corpo, independente de suas funções e morfologias, morrem e são substituídas por suas “descendentes” num processo que só se encerra quando morremos. Podemos, pois, afirmar, que a cada dia, somos outra pessoa, embora aparentemos ser sempre a mesma.

Nicoló Maquivel constatou: “Uma mudança deixa sempre patamares para uma nova mudança”. E assim, sucessivamente. Esse processo se encerra (para nós, não para a Terra, o sol, a galáxia e o universo) quando nos extinguimos. E mesmo então, continuamos mudando, posto que agora na condição de seres inanimados, de “objetos” materiais, com a contínua decomposição do que um dia foi nosso corpo.

O veneno que nos é mais letal (e que ingerimos continuamente, com prazer e sofreguidão) e mais cruel (posto que manifesta sua absoluta letalidade lentamente, quase nunca de imediato) é o tempo. Trata-se do grande agente das mudanças, algumas temporariamente para melhor, mas cujo resultado final é sempre o mesmo: nossa derrocada, extinção e posterior decomposição.

O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson escreveu, em seu livro “Old Age”, a esse propósito: “Tabaco, café, álcool, ácido prússico, estricnina – todos não passam de poções diluídas: o mais infalível veneno é o tempo. Essa taça, que a natureza nos põe nos lábios, possui uma propriedade maravilhosa que supera qualquer outra bebida. Ela abre os sentidos, adiciona poder e povoa-nos de sonhos exaltados, a que chamamos esperança, amor, ambição, ciência. Em particular, ela desperta o desejo por maiores doses de si. Mas aqueles que tomam as maiores doses ficam embriagados, perdem estatura, força, beleza e sentidos e terminam em fantasia e delírio”.

E não é o que acontece? Não vivemos projetando futuros radiosos, sem atentarmos para as mudanças decadentes que o tempo promove em nós, deixando de usufruir plenamente cada dia que nos é dado viver?!

Tomamos doses crescentes desse veneno, achando que se trate do elixir da juventude que nos proporcione vida eterna, e ficamos embriagados, totalmente bêbados com ele. Não percebemos quando perdemos estatura, já que com a velhice “encolhemos” alguns centímetros.

A perda de força, por seu turno, se manifesta igualmente com lentidão, tanta que tardamos a nos aperceber desse enfraquecimento. A beleza? Nada é mais transitório, efêmero e enganador. Ao nos acharmos belos, quando gozamos do vigor e do esplendor da juventude, estamos, sem dúvida, embriagadíssimos.

Não nos damos conta das mudanças que ocorrem em nosso corpo, em nossa pele, em nossos olhos e em nossos cabelos, a despeito dos espelhos. Achamos que a tal “beleza” é perene e interminável Subitamente, porém, ao tentarmos conquistar uma jovem parceira, que nos encante com seu frescor e juventude (que um dia, também, irão acabar), nos achando ainda belos e atrativos como outrora, ficamos negativamente surpresos e, sobretudo, aturdidos. Isso ocorre, principalmente, quando o alvo da nossa até instintiva caçada esbraveja, entredentes, ou, o que é pior, responde, com gracioso ar de galhofa, à nossa galanteria: “Você não se enxerga, seu velho babão?!”. Pois é... Não nos enxergamos de fato.

Porém, nem mesmo este choque de realidade nos cura da embriaguez produzida por essa poção doce, porém implacavelmente venenosa. Continuamos aspirando por um “futuro”, inquietos e impacientes com a sua demora, iludidos de que nele reencontraremos amores perdidos e a felicidade (que não raro está em nossas mãos o tempo todo, mas que, insensatamente, deixamos escapar por entre os dedos), quando na verdade o que está à nossa espera é a última das nossas mudanças: a morte. Embriagados ou não, todavia, desta não há como fugir.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com



Bicicleta ergonométrica: guia prático de convivência pacífica

* Por Marcelo Sguassábia



Trapacear a si mesmo arrumando outra desculpa seria infantil: você jurou que começava na segunda, e segunda é um dia que sempre chega antes do que a gente espera. Olhe só pra ela: novinha, reluzente, a nota fiscal sobre o selim ainda coberto de plástico-bolha. Dizem que vendo TV enquanto pedala o sacrifício fica mais fácil. O problema é que, pra arrumar um lugar pra sua TurboBike Magnetic Flash, você teve que tirar a TV do quarto. E poderia ser pior: um centímetro a mais e a cama também teria que ir parar no corredor.Uma bicicleta ergométrica é, literalmente, fria e calculista. Fria por ser metálica (no inverno é particularmente repugnante chegar perto); calculista pelo display multifunções que ostenta no guidom, se é que se pode chamar de guidom aquele troço que não vira nem pra esquerda nem pra direita. Enquanto você veste o agasalho esportivo, ela parece dizer: "Vem, amorzinho, monta com vontade. Prova que você é macho de verdade, vamos perder juntinhos aquela pizza 4 queijos que você ganhou ontem".

Você até pensou em comprar uma bicicleta comum, dessas de 18 marchas. Observando a paisagem a coisa ficaria mais lúdica e pitoresca, com a vantagem de mostrar pra vizinhança que você cuida da forma. Mas agora é tarde, e o que resta é lidar da melhor maneira com seu novo algoz. Aí vão algumas dicas:

- Meia hora parece meio mês quando se está em cima de uma ergométrica. Melhor não ficar olhando a cada dois minutos para o indicador de tempo de exercício. Experimente a nova técnica denominada “bike meditation”: aprumando a coluna no banco, feche os olhos, respire compassadamente e imagine-se a pedalar no Caminho de Santiago. Faça da tortura algo sagrado e redentor, um instrumento de purificação da alma.

- Não tente ler jornal enquanto pedala. Além de trepidar com o movimento - o que é péssimo para a vista, em minutos seu exemplar estará empapado de suor - o que será repulsivo para quem folheá-lo depois de você.

- Evite pensar no esforço a ser feito - concentre-se nos conseqüentes resultados. Imagine-se com os pneus devidamente esvaziados, a região glútea fortalecida e os bíceps schwarzenegicamente anabolizados.

- Disfarce a aversão: seja amigável com ela. Cumprimente-a pela manhã, alise-a, pergunte como estão suas catracas. Faça dela sua aliada. Afinal de contas, ela estava muito bem lá na loja. Foi você quem inventou de trazê-la pra casa. E, como dizia o Pequeno Príncipe, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

- Com o passar dos meses, o mecanismo começa a ranger. Isso é mortalmente irritante. Para contornar o problema, assovie sua música predileta. Ou mantenha à mão um óleo lubrificante de boa qualidade, para não acordar os vizinhos de cima e de baixo do seu apartamento.

- Conforme-se com uma série de sacrifícios heroicamente praticados mundo afora, sem benefício algum para a saúde. O faquirismo, a auto-flagelação, as caminhadas sobre brasas, as filas nas repartições públicas. Você verá que, mesmo montado numa ergométrica, é feliz e não sabia.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”




Só para agradar

(Conto)

* Por Gustavo do Carmo

(I)

Na escola Olímpio só tirava nota dez. Sempre passava de ano sem precisar fazer prova final. Ficava satisfeito e orgulhoso. Para a alegria dos pais e inveja da irmã mais velha.

Apesar de tanto sucesso na educação, Olímpio cresceu e se tornou um rapaz tímido, ingênuo e infeliz. Mas ainda conservava um pouco da inteligência que tinha. Ou achava que tinha.

Um dia, decidiu vasculhar o seu armário totalmente bagunçado atrás das provas que guardava desde a primeira série do primário. Mexe aqui, remexe ali, encontrou uma pasta preta e empoeirada, repleta de antigas provas. Ao conferir as questões, que hoje lhe parecem ridículas de tão fáceis, mas cabeludas na época, percebeu que errou a maioria delas. Se fossem corrigidas por professores mais rigorosos ou por ele mesmo, tiraria 5,0 ou menos em todas elas. Nas provas em que tirou nota sete, mereceria um zero. Por ter sido um bondoso e comportado aluno, concluiu que os professores lhe davam dez só para agradar.


(II)

Aos quinze anos, Olímpio quis ser cozinheiro. Inventou umas receitas malucas de pratos, sobremesas, sucos e coquetéis. Deu para os pais, a irmã e as primas provarem. Todos, exceto a irmã, achavam uma delícia. Mas não terminavam de comer. O jovem sentiu que as pessoas lhe elogiavam só para agradar.


(III)

Aos vinte anos decidiu ser escritor. Já não confiava mais na irmã que ia criticar do mesmo jeito. Então mostrou o rascunho de um romance para os pais que adoraram. Dois anos depois conseguiu publicar o romance, pagando pela edição. Os amigos compareceram ao lançamento. Depois de lerem todos disseram ter adorado.

Mas o livro ficou encalhado. Um jornal fez uma crítica humilhante. Chamando o livro de descrição da imbecilidade e o autor de imaturo para baixo. Olímpio chegou à conclusão de que os elogios da família e dos amigos foram só para agradar.

(IV)

Um dia, Olímpio se estressou no trabalho. Brigou com um colega que foi promovido em seu lugar. Empurrou o homem que se desequilibrou e caiu de costas na janela aberta.

Morreu na hora. Olímpio foi preso e condenado por homicídio doloso. Ninguém apareceu no presídio para lhe visitar. Nem para agradar.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores






Minha mãe, ele e eu

* Por Cacá Mendes

Você não conhece o Amarildo. Não, eu também já não o conheço tanto, e o conheci muito, principalmente no tempo em que minha mãe neste mundo ainda se colocava, em matéria, para os olhos meus. O danado que sempre esteve carteiro de ofício e, naqueles tempos dos anos oitenta que eu sei, ia, pessoalmente, entregar correspondências às pessoas... Preferencialmente, em mãos. Hoje, que eu sei, não sai mais às ruas para entregas, pois a cidade cresceu um pouco mais, a agência dos correios também, e, provavelmente, ele apenas comanda os trabalhos.

Sempre muito simpático, um jovem por esses tempos de vida, naqueles anos que eu já morava por São Paulo, e eu somente chegava à minha mãe por mãos dele. Exceto nos finais de ano, quando então eu conseguia ir mesmo, em pessoa, de presente inteiro. Amarildo, provável que sim, mais novo do que eu seja, com minha metade de século, foi durante mais de uma década, seguramente, a ponte, entre mim e minha família. Das minhas idas a Monte Belo, enquanto ela viva, não me lembro da vez que Dona Neném não disse o nome do rapaz... E isso era tão forte, tão forte, que ela sempre me puxava a orelha quase, pra que eu fosse visitá-lo.

Entre os dois havia um acordo tácito, somente eles sabiam de mim, dos meus passos, mais ninguém. Nem seu Manoel, meu pai, sabia tanto... A minha mãe se quisesse falava, mas ele, por dever de ofício não podia se dar ao luxo de se justificar no ramo da fofoca, que nunca foi o de seu. Carteiro é entregador de notícia e mesmo que saiba dela em miúdos e graúdos, nunca saberá, querendo por ele, das verdades contidas numa carta. E se souber à força, fingirá até a morte, sob tortura se for, que não sabe, não sabe, não sabe, não sabe.

No dia da morte de minha mãe, no velório, ele estava lá, estava. Foi, marcou sua presença, bateu o cartão, o ponto. A mim, sutilmente, me pareceu que dizia algo no assim, como, bem isto, a ela lá estendida, candidamente, no seu último leito:
- Olha, Dona Neném, ele veio, nem vou lhe entregar a carta... não será preciso ler em voz alta, a senhora já ouviu... não? ... Ele está aí, pode olhar. Esses anos todos, eu sei... a senhora sempre dependeu um pouco da mim, mas hoje não, hoje ele está aqui, em carne, e não em notícia; a notícia, a notícia, a notícia... bem... a notícia, hoje, é a senhora, não?

* Jornalista – blog: www.cronicaseg.blogspot.com

Ao encontro da inspiração

* Por Karina Monteiro

Ela manteve-se afastada durante algumas semanas,
Adormeceu em um breve sono e agora parece despertar,
Durante os dias mais frios do inverno, ela esteve quieta, tímida,
Esperando que o próprio ritmo da vida a fizesse acordar,
Agora, com os primeiros raios de sol, reaparece e mostra seu encanto,
Com a mente e o coração fortalecidos, as palavras voltarão ao seu lugar,
Eis que quem desperta é a inspiração, que ressurge mais intensa,
Para o esperado momento da criação se revelar

* Jornalista

quarta-feira, 29 de julho de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Vida própria.

Coluna Jornalista do Sertão – Seu Pedro, crônica “Que se torne realidade”..

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, romance “Conspiração no Guadalupe”, capítulo VII, “O chocalho eletrônico da Globo”.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Caótico e extraordinário”.

Coluna Porta Aberta – Ornela França, crônica, “Primeira lição”.

Coluna Porta Aberta – Samuel C. da Costa, conto “O negro Caetano”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Vida própria

Interessante como alguns personagens que criamos, ao contarmos determinada história – não importa se em romance, conto, novela ou peça de teatro – ganham vida própria. É como se sempre tivessem existido, em carne e osso, e nós nos limitássemos a narrar suas peripécias, às quais buscamos dar o máximo de verossimilhança.
Alguns personagens são criados para terem papéis secundários, de meros coadjuvantes, quando não de simples figurantes. Todavia, em certo ponto da narrativa, crescem, subitamente, se agigantam, tomam conta da nossa mente e parecem nos conduzir, em vez de serem “conduzidos”. Tornam-se os principais heróis, ou vilões, das nossas narrativas, quase que à nossa revelia.
São inúmeros os escritores com os quais conversei que confessaram que isso lhes acontece amiúde. Ademais, os planejamentos que fazemos, por exemplo, de um romance, não implicam em eventual engessamento da criatividade. Devem servir, somente, de linhas balizadoras e não de caminhos obrigatórios, de roteiros inflexíveis a seguir, que não possamos mudar, de acordo com as necessidades do enredo. Acho isso fascinante no processo de criação.
Há personagens que se tornam tão marcantes, que chegam a caracterizar, até, seus autores. Quando se fala de Capitu, por exemplo, não há um só leitor culto e minimamente conhecedor de Literatura Brasileira que não a associe, de imediato, àquele que a criou, com as tintas da sua imaginação e do seu genial talento: Machado de Assis.
Alguns ganham tamanha ascendência sobre seus criadores, que não se esgotam em um único romance, conto ou novela. Aparecem em livros e mais livros. Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, foi um desses casos. Pode ser citada uma imensa relação de tantos outros personagens com o mesmo destino, mas creio que isso seja desnecessário, pois o leitor, certamente, se lembrará de vários e vários que se enquadrem nesse caso.
Érico Veríssimo, na série de romances intitulada, genericamente, de “O tempo e o vento”, não se limitou a criar um único personagem desse tipo. Elaborou vários, incorporando as narrativas dos “descendentes” do seu herói original, frutos da união dos Terra com os Cambará.
Há quem chegue a achar que essa história seja verdadeira, tamanha sua verossimilhança e a perícia da sua criação. Na verdade, Érico pretendeu contar (e fé-lo magistralmente) a história de um longo período do seu Estado natal, o Rio Grande do Sul. Valeu-se da ficção para retratar uma realidade. E se consagrou.
Você, escritor amigo, quando se vir às voltas com algum desses “atrevidos”, nascidos da sua imaginação, que queira ocupar, na marra, o centro do palco, sem se contentar com o papel que você pretendeu lhe atribuir, e que ameace ofuscar, até, o seu brilho (e não raro, ofusca mesmo) não resista. Deixe que seu ousado personagem o conduza, pois o resultado, provavelmente, será alguma obra-prima da literatura do seu tempo.

Boa leitura.

O Editor.



Que se torne realidade

* Por Seu Pedro

Sonhei, uma noite destas, com Deus, que ao lado do seu filho Jesus, veio me trazer a noticia que não me quer no céu, pelo menos por enquanto. Vai alongar meus dias de vida. Mas não me garantiu dobrá-los, como sempre costumo Lhe pedir. Mas quero que me dê pelo menos uma ou duas décadas. Porém, como em tudo devemos oferecer uma contrapartida, embora ele não me tenha exigido, voluntariamente disse que vou capinar no terreno de minha vida algumas ervas daninhas que me pesam conviver. Para que Deus não pusesse as mãos na cabeça e indagasse:: “Mais uma?”, já lhe fui garantindo que não fundarei nenhum templo, nem um guichê de arrecadação.

Quando se amadurece, alguns desejos de adulto, da segunda idade, vão deixando de ter sentido É como as crianças que, ao se sentirem adolescentes, largam os carrinhos de plástico e as bonecas, para se encontrarem com uma nova realidade. Não devemos ter a idéia, ao chegar à terceira idade, que estamos conservados no vinagre e sal. Somos, sim, o Sal da Terra, oferecendo o tempero de nossa experiência, que só os muito privilegiados conquistam em tenra idade. Ai é que descobrimos que ser útil é bom. Pena que já não possamos, na terceira-idade, ir para as portas dos supermercados ajudar as mocinhas do passado, carregando as sacolas, aliviando os corpos curvados pelo tempo, e que os netinhos teimam em dizer; “Ah! Vovó ainda está forte”.

Imaginem eu, com dores nas pernas, coração operado, o diabete em alta pelas doçuras da vida, ter que atravessar correndo uma larga avenida, fugindo dos carros loucos, olhando se não aparecem motoqueiros costurando o trânsito! E ainda mais se eu estiver ajudando a um deficiente visual a atravessar o mesmo trecho! Ajudar ao cego atravessar a rua é tarefa que os jovens deveriam se preocupar, independente de serem escoteiros. Cada um na sua. Então, no que posso fazer, em uma obra de propagação do amor Dele por nós? Há a idade de contar experiências a terceiros, falar do amor de Deus por nós, resgatar vidas com o que de mais poderoso existe na face da terra, a palavra.

É da palavra que surgem as guerras, e é da palavra que vinga a paz. Estou na época de usar minha palavra para promover a missão do cristão: falar das coisas de Deus, sem demagogias, sem promessa de políticos e menos ainda sem promovet confrontos com adversários de fé, pois se estão errados, não sou eu que julgarei. Pra mim o bastante é que tenham fé. O máximo que devo fazer é encaminhar, através das minhas orações, um relatório sobre meu irmão pedindo por ele para que este nunca adoeça. Relatarei se meu irmão já abandonou ou abandonará o vício, mas jamais o proibirei, pois assim estaria indo contra o livre arbítrio. O conselho é que cada um busque a paz interior. Afinal, cada um é réu de suas próprias atitudes.

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.




Conspiração no Guadalupe 7

(Romance)

* Por Marco Albertim

Capítulo VII - O chocalho eletrônico da Globo

Sabiam que, depois do carnaval, uma angústia percorreria as ruas desertas. O ar denso era monitorado pelo Distrito Policial. Rondas, suspeitas de velhos moradores, oficiais de pijama sentados em espreguiçadeiras, imaginando um sussurro subversivo na esquina próxima.

Maújo e Chica, na quarta-feira de Cinzas, não se entregaram a mortificações; pararam de pular quando o Bacalhau do Batata tocou a última nota. Sem a orquestra, sentiram-se deserdados. Acudiu-os a lembrança de terem feito juras desconhecidas do Distrito Policial, dos oficiais de pijama. Os mais velhos, saídos de suas casas fechadas nos quatro dias, subiam para a missa da penitência na Sé. Eles desceram a ladeira, cada um com um par de tênis estropiado, a camisa de meia colada no corpo, os cabelos revirados.

Livraram-se da sujeira no chuveiro; enquanto a água escorria, urdiram outros festins licenciosos. Deitaram na posição de costume, nus; dormiram como dois peões extenuados. Quando o sol entrou pela janela, lembraram dos restos de energia. Coitaram soltando urros na garganta rouca.

Chica voltou à rotina da oficina. Maújo voltou à tediosa revisão do jornal.
.- Maújo, as páginas estão prontas. Só falta o copidesque. Lave o rosto, vá à bacia sanitária e deixe tudo que trouxe do carnaval. Tome um café quente e não deixe passar erros. É na quinta-feira, depois das Cinzas, que se vê a competência da redação.
- Minha cabeça está cheia de notas de frevo. Mas não vou confundir com as letras. O mais provável é que eu leia em ritmo de frevo-canção, com prazer. Quanto ao sanitário, vai ser o de todo dia.
- Não está doente? O que fez no carnaval?
- Renovei meu compromisso com o jornal. Pensei em traição quando uma moça de 21 anos me ensinou a dançar maracatu. Mas não quis prejudicar meu futuro brilhante nas páginas do jornal. Deixei a moça solitária.
- Você faz trapaças com as palavras. Não duvido que tenha se vestido de Pierrot, um inocente Pierrot convidando mocinhas para fotografar o mar na frente da pousada.
- É uma sugestão. Nas chuvas de março posso fotografar a natureza morta.
- Uma moça estuprada é natureza morta.
- As ninfas não se deixam estuprar, entregam-se. Só quando envelhecem desejam o estupro, mas geralmente viram atrizes decadentes. – Você tem tudo para ser uma atriz decadente, quis dizer Maújo.
- O que dizer de...

A editora fez um trejeito de atriz em cena dramática. Maújo, revisando os originais com uma esferográfica, interrompeu o trabalho; interrompeu para ver o remate. Suspeitou que fora visto com Chica, e agora, a editora fazia a caricatura de sua parelha.
- .Mercedes Cunha Borges, com quem você tomou Champagne no Savoy?
- Não sei de Mercedes. Entrevistei-a uma vez, só isso.

Alguém gritou do fundo da sala, mais alto que a vozearia da redação:
- Fugiu com o fantasma da ópera!

As risadas intimidaram a editora. Não era de falar muito, ela, vivia só, num apartamento deixado pelo falecido marido, há dois, três anos. Jurava às amigas que, de então para cá, não tivera ninguém. No carnaval encontrara com um ex-namorado. Combinaram que, a partir do sábado, seriam amantes até a quarta-feira; se desse certo, a relação se manteria por mais tempo, até algum lundu os separar, inda que resultante de uma retardatária tensão pré-menstrual. Fartou-se nos quatro dias. Feliz, voltou à redação provocando os outros com arroubos de cama. Distinguiu em Maújo, seu quieto copidesque, o objeto adequado às suas inquietações. Não teve coragem para dizer, apesar da vontade, que passara um carnaval feliz; brincara na clandestinidade, em bares refugados de Casa Forte, em fundos de sobrados de Apipucos. Passasse um bloco, misturavam-se à multidão, ela e o ex-.

A edição não demorou a fechar. Podia ter demorado, caso a editora tivesse passado o carnaval em retiro, como fizera noutros anos. Teve sorte com um folião já conhecido, sem uso de coqueteria; sorte na cama, veloz no fechamento das páginas. Sorte para Maújo que, ressacado, a aturou com o mesmo humor de quando dissera finezas no ouvido de Chica.

Ele foi à casa da tia de Chica, também para beber os ungüentos de cozinha preparados pela velha. Chica descera para a pousada.

A ladeira da Misericórdia, de cima a baixo, era um cenário de fim de guerra. O casario fechado, o fedor do lixo não recolhido, dos esgotos abertos. Chovera o bastante para escorrer no calçamento o lixo miúdo. Depois, o calorão incidiu nas bocas de esgoto, carregando a morrinha das ruas.

Maújo chutava latas vazias, de cerveja, para chamar a atenção. Herdara o costume com Gertrude, quando voltavam do Estrela. Provocavam coronéis em fim de carreira. De pijama, os militares tinham pouca autoridade, ficavam ridículos. Tinham desprezo pelos moços; odiavam os chutes doidos em latas depois da meia-noite. Reclamavam, batiam com a janela em seguida. Maújo pedia uma desculpa maquinada. Riam debochados, ele e Gertrude, na curva da primeira esquina. “Não suporto aquele cara do sobrado do Bonfim”, ela dissera. “Lembra-me Mussolini, com o peito estofado na varanda. Olha para a rua como se fosse seu quintal, e aprova ou não, com o nariz para cima, quem passa na calçada. Tenho vontade de cagar em sua porta.” Gertrude, enquanto comia nos bares, juntava gases no tubo digestivo, para dispará-los como obuses nas portas onde intuía o ronco de um fascista. Em casa, chegava vazia de vapores. “Ele pode atirar em sua bunda”, advertia Maújo. “Tem uma pistola no baú ou na mesa de cabeceira.” Os generais-de-pijama não andavam armados; quando iam à padaria, comentavam, alto, que estavam de olho nos ladrões de casas. Não havia arrombadores. Os generais se valiam de suas rápidas aparições para mandar recados aos subversivos de Olinda, acoitados, conforme diziam, no Maconhão; na furna, conforme os homens do Distrito. “Não daria tempo. Tenho a agilidade de uma guerrilheira. Ele tem a preguiça dos aposentados. Teria um infarto quando visse o monte de fezes em espiral, na frente de seu portão.” Um oficial fora levado às pressas ao hospital, quando vira de sua janela, a troça Caranguejos na Lata fazer pouco de oficiais aposentados. Não morreu. O bloco foi forçado a recolher os instrumentos. O compositor da música respondeu a inquérito no Distrito. “General resiste a cerco e tomba, há muito que não leio um título assim.” Toda a cidade cercada por tropas de coturno, catando guerrilheiros. O imaginoso casal urdia-se oculto no santuário do Guadalupe, junto da velha igreja, feito dois atentos devotos.

Maújo, meio-morto, com a memória no passado longínquo, remoçou-se na Praça de São Pedro.

O carro do Distrito estacionara ao lado da igreja. Três policiais desceram para revistar dois homens na escadaria da frente, europeus turistas com sacolas nas costas. Revistados na cintura, na bagagem. Foram conduzidos na Veraneio, no banco de trás, entre dois polícias. Cocaína. A Veraneio partiu cantando os pneus. Juntara gente. Ninguém ajuizou sobre a ação policial. O ajuntamento dispersou-se mudo, com medo de um dedo-duro encoberto.

Às nove da noite, ruas e becos desertos, portas e janelas fechadas. Um ou outro veículo, sem a pompa do carnaval, em rondas; rostos graves olhando das janelas. A lataria dos carros, comida pela ferrugem nas beiras, sacudia-se nos paralelepípedos. Os moradores distraíam-se no televisor, na novela; em cada janela ouvia-se o chocalho eletrônico da Globo. O barulho compunha um concerto com o badalo dos sinos.

O barulho místico dos sinos, sós, eram um roteiro profano de bares, gafieiras; os repiques cercavam-se de atos profanos.

O chocalho eletrônico, prendendo o morador no sepulcro em que cada casa se tornara, dava-lhe a extrema-unção. Trancados, os vizinhos não se comunicavam, mesmo crendo que viviam em comunidade porque torciam pelo fim trágico do vilão da novela.

Água para a vovó, lavagem de pratos, catação de feijão para o dia seguinte. Bocejo de sono depois da leitura da ficha técnica, inda que não entendessem de direção, de produção...

Nos aposentos, Maújo ligou o televisor. Chica reclamou; estava lendo O Romanceiro...

(Continua na próxima semana)

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.




Caótico e extraordinário

* Por Sayonara Lino

Faz tempo que ando incomodada com algumas classificações a respeito da personalidade humana. Eu mesma já estive muito condicionada a isso e hoje percebo que muitas divisões existem para que haja um tratamento mais preciso no caso de haver algum problema a ser tratado. Considero o ser humano rico em sua multiplicidade e não acredito em alguém que seja “uma coisa só”, apesar de saber que alguns traços de personalidade predominam, claro. É justamente pela variedade que uma pessoa não se torna empobrecida, monocromática, previsível de causar sonolência.

Eu sou um bom exemplo do quanto alguém pode ter características variadas, até mesmo antagônicas. Sempre fui extremamente extrovertida e comunicativa. Amo encontrar os amigos e conhecidos, badalar, rir, me divertir. Toda vez que saio da toca é quase um ritual: bato um papo rápido com o porteiro, cumprimento os vizinhos, paro com um e outro. Desço a rua e encontro sempre mais gente e falo, continuo conversando. Adoro falar sozinha e não vejo mal algum nisso. Enfim, o diálogo me traz um enorme prazer. Em contrapartida, sou uma das pessoas mais introspectivas que conheço. Preciso de momentos em que possa estar totalmente integrada com minha essência. Amo estar só. Minha alma é solitária. Vira e mexe, recolho meus pedaços e mergulho em mim.

Compartilhar é algo extraordinário. Estar em companhia de pessoas queridas é incrível. Só que nesse exato momento estou me sentindo inteira, em casa, sozinha. É sábado à noite. Resolvi ler um livro que me aguardava na estante havia tempo: “Uma Vida Inventada – Memórias Trocadas e Outras Histórias”, da Maitê Proença. Ótimo, rico, inteligente. Não consigo parar. Tem muita profundidade, estou amando cada detalhe, cada página. Só alguém que busca autoconhecimento poderia escrever de forma tão natural. Suas frases me capturaram, a identificação foi imediata.

Acho que meus dois lados que parecem totalmente opostos se complementam e formam a base do que sou. Deve ser assim que funciona.

Para não perder o elo com o mundo nos momentos em que me transformo em uma ostra lacrada, procuro escrever mais, me expressar, externar o que passa em meu universo. Vou revirando minhas entranhas para encontrar os pontos nevrálgicos. Não se trata de doença, não é necessário medicação. Para as questões de temperamento ainda não encontraram pílula eficaz. Opto por respeitar quem sou, buscar energia em meu íntimo. Energia para enfrentar esse mundo caótico e extraordinário.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Diretora de Jornalismo e redatora da Revista Mista, que é distribuída em Governador Valadares, Ipatinga e Juiz de Fora, MG e colunista do portal www.ubaweb.com/revista.




Primeira lição

* Por Ornella França

Atrás de quem estaria aquele 'a' com de cor forte e densidade neutra? Atrás de quem? A certeza é que ele não parava de dançar na folha rosa e eu me diverti. Olhei calmamente aquela criatura que por nome de vogal podemos identificar, depois de encaixar os óculos onde são realmente úteis e, dessa maneira, pude ver que não era apenas um. Lá estavam os dois 'as' que naquela situação, em minúsculas, parecia um só.
Só então pude ver que os gêmeos dançantes estavam abraçados pelo 'n' da minha mãe. O que esse ‘n’ fazia ali? Antes era apenas um ‘a’ dançante. A música parou, ou pelo menos, o ‘a’ acomodou-se junto daquele ‘n’. De certa fora o ‘n’ era a desculpa para separar e unir os dois ‘as’.
Separando-os dava a possibilidade de formar novas palavras, unindo-se descobri aquele nome cheio de poesia e música. Era sim o nome dela. ana, em fôrma e caixa baixa, me mostrando pela primeira vez atrás de lentes oculares um nome maternal e divertido.
Descobri sim como era que chamavam minha mãe, nasal e carinhosamente. Assim ganhei o meu primeiro palíndromo. Ana de qualquer maneira foi o início de tudo, justo quando abri os olhos para ver o mundo. Palindromicamente falando, ana nasceu depois das lentes dos novos óculos que ganhei. E nem parece que perdi tanto pois ainda lembro daquele ‘a’ se mexendo e remexendo na folha rosa com letra mini, querendo dizer que não queria ficar só por ali. Meu ‘a’ aquietou-se depois disso, mas disse que não quer ficar só por aqui. Não custa se enrolar com outras letras para me divertir novamente. Vai lá, ‘a’.

* Jornalista

O negro Caetano

* Por Samuel C. da Cost
a

Em memória de Miguel Maria da Costa

I
Era um silêncio constrangedor que se abatera naquela mesa, embora o requinte da mesma sugerisse que aquele seria uma família abastada, dos talhares de prata aos cristais importados. Mas o que permanecia na cabeça das pessoas ali sentadas eram os gritos ensurdecedores de horas antes.

Na mente do coronel Adamastor de Sousa Andrade, aquele negro tinha ido longe demais ao afrontá-lo em público. Por isso, tinha que chicoteá-lo
-Aquele negro maldito teve o que mereceu – resmungou o velho coronel, sem levantar a cabeça.

Sua mulher, já com a saúde frágil, decide ficar quieta, como também a filha do casal Sousa Andrade. Já não bastara ver seu único filho homem criado com tanto zelo voltar-se contra ele?! Logo Adamastor, monarquista e escravocrata convicto, não poderia abrigar em seu lar um republicano e abolicionista, mesmo que fosse seu filho.

Não restou-lhe outra saída senão expulsá-lo de casa. O fato de não saber aonde tinha errado na educação daquele menino deixou Adamastor profundamente magoado. E, sentado à mesa, ainda ressoavam na cabeça do velho coronel as palavras do negro Caetano posto no tronco:
-Vos mercê vai morre por dentro coroné!

Aquelas palavras foram demais. Ele tinha que pegar na chibata e pessoalmente dar uma lição no mondongueiro. Tinha que chicoteá-lo até a morte, em público, para que todos soubessem que quem realmente mandava ali era ele, ‘’Adamastor’’, e ninguém mais.


Il

Atordoada pelo efeito do álcool, a mente de outrora coronel Adamastor de Sousa Andrade trazia as lembranças das palavras do negro Caetano:
-Vos mercê vai morre por dentro coroné!

Maltrapilho e macambúzio, perambulando pelas ruas da cidade, o velho coronel revê em sua mente a mulher e a filha, acometidas de uma doença misteriosa, morrerem lentamente. E revê na sua combalida mente seu filho e adversário político vencê-lo na política.

Contudo, o que mais doía no peito no velho curumba foi ver sua fazenda de café, uma das melhores da região, arruinar-se por causa de uma praga, que ele jamais vira antes na região. Aquilo significava, realmente, que ele tinha morrido por dentro.

* Poeta e cronista em Itajaí/SC

terça-feira, 28 de julho de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Tarefa facilitada.

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro – crônica, “O solar”.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “A hora de Soledad Barret Viedma”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Os seios da amada”.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, poema “Superfície”.

Coluna Porta Aberta – Ed Santos, conto “As histórias do Amadeu”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Tarefa facilitada

Ser escritor, hoje em dia, é muitíssimo mais fácil do que, digamos, há apenas trinta anos. Se recuarmos mais ainda no tempo, teremos que valorizar ainda mais quem se dedicava, então, a esta fascinante atividade de produzir livros. O advento do computador pessoal trouxe facilidades a quem vive de escrever que Honoré de Balzac, ou Leon Tolstoi, ou Victor Hugo não acreditariam que se tornassem possíveis, se algum “profeta” de sua época lhes dissesse que um dia estariam ao dispor dos seus sucessores.
Até praticamente fins do século XIX, por exemplo, não havia, ainda, sequer, máquina de escrever. Não tinha sido inventada. Os textos eram redigidos de forma manuscrita, arrancados na unha. Os redatores, não raro, até, tinham, por canetas, meras penas de aves (a preferida, parece, era a de ganso).
Para que a tinta não borrasse o papel, e não comprometesse o trabalho às vezes de um dia todo, os esforçados escritores de então recorriam a um pó secador especial. Isso, quem conhecesse o produto e pudesse comprá-lo. O advento da caneta-tinteiro foi considerado um avanço espetacular, quase que um “milagre”. Esferográfica? Nem pensar! Não havia, igualmente, sido inventada ainda.
As revisões dos textos, produzidos de forma tão rústica e artesanal, eram uma loucura! O redator rasurava todo o papel e, após cada correção, acréscimo e/ou supressão que fazia, tinha que copiar tudo de novo, agora com as devidas retificações. E fazia isso duas, três, cinco, dez vezes ou mais. Haja paciência! Os grandes clássicos da literatura mundial nasceram dessa forma. Qual o escritor da atualidade teria tanta paciência, e produziria obras tão marcantes, com as condições do seu colega do passado? Será que haveria algum capaz disso? Duvido!
E não era só a produção de textos que se tornava façanha digna dos “doze trabalhos de Hércules”. O escritor de antigamente não tinha (óbvio) a internet para divulgar o que havia escrito. Não contava, portanto, com o recurso do e-mail, por exemplo. Hoje, se eu quiser a opinião de alguém, sobre o que acabei de escrever, antes de sequer pensar em publicar em qualquer veículo ao meu dispor, é fácil e rápido. Basta encaminhar, pelo correio eletrônico, o texto a algum amigo (que entenda do riscado, claro) e rapidamente obterei a resposta. Os escritores de antigamente não tinham essa moleza (e nenhuma outra).
Ademais, tenho condições de divulgar fartamente o que escrevo, antes mesmo de ao menos cogitar e reunir tudo em livro. Conto com milhões de sites e blogs da internet (meu próprio ou dos outros) ao meu dispor. Só nesse aspecto, já levo uma vantagem monumental sobre os meus colegas de profissão do passado.
Quando a máquina de escrever foi inventada, e começou a se popularizar, foi comemorada como imenso “feito da tecnologia”. Os escritores celebraram o ingresso, finalmente, no que entendiam ser então a “modernidade”. Hoje... Convenhamos, esse instrumento, que nos foi tão útil há apenas duas décadas ou menos (alguns, que resistem à informática, ainda o utilizam) não passa, a rigor, de peça de museu. Torna-se a cada dia mais raro e logo, logo tende a desaparecer de vez.
Claro que, tanto em passado remoto, quanto na atualidade, o escritor, para se dar bem e obter razoável sucesso, devia e deve contar com um fator fundamental: o talento. Se não tiver... Melhor que procure outra atividade, para não ter que conviver com um rosário de fracassos e frustrações. Só que hoje, a informática liberou-o de uma infinidade de tarefas enfadonhas e rotineiras, proporcionando-lhe tempo e condições para se concentrar quase que exclusivamente no conteúdo do que vai escrever.
Por tudo isso, não são exageradas as reverências que prestamos a um Balzac, a um Zola, a um Hugo, a um Dostoievski e a tantos e tantos e tantos mestres da literatura mundial. Pelo contrário, eles mereceriam mais, muito mais do que isso. Além de criativos (diria, geniais), foram, sobretudo, pacientes. Suas obras, que hoje nos ilustram e servem de referenciais para tudo o que escrevemos, foram, literalmente, arrancadas a muque dos seus privilegiados cérebros.

Boa leitura.

O Editor.



O Solar

* Por Risomar Fasanaro

Chovia muito, e tive a impressão de que não conseguiríamos chegar até o local, tão grande era minha ansiedade. Visitar aquele lugar foi a razão de, depois de muita indecisão, eu ter finalmente resolvido fazer aquela viagem indo contra todos os obstáculos: o frio intenso que faz, nesta época, no sul e nos países que visitaria, e a gripe suína. Tudo ia contra.

Quando eu dizia aos amigos para onde iria, a exclamação era sempre a mesma: “você está louca? Viajar para um lugar tão frio? Você não tem medo da gripe suína? Lá estão os principais focos...”

Sim, eu sabia de tudo isso. O estado do Rio Grande do Sul, a Argentina e o Paraguai estão entre os locais mais atingidos pela gripe, mas quando vi que havia uma passagem por aquele solar no roteiro da viagem, não resisti. Cancelei minha ida ao Recife e fui à região das Missões e das Cataratas.

Quando li “O Tempo e o Vento” de Érico Veríssimo senti muita vontade de conhecer aquela região, e desta vez não deixaria passar a oportunidade.

Muito intuitiva, sabia que não pegaria gripe nenhuma. Ainda mais feliz como tenho andado, acredito que nenhum mal vai me atingir.

Mas não vou escrever hoje sobre as Missões. Prefiro começar pelo meio. Falando dele. Começo pelo dia de chuva torrencial que enfrentei para conhecer o lugar onde ele nascera. E mal acreditei quando desci do ônibus e entrei no solar. A emoção foi tamanha que não deu para esconder. Percebendo-a, o diretor do museu pediu licença para me abraçar, enquanto me dizia: “eu sei o que é esta emoção, pois também já a senti.” Sim, no local construíram um museu onde há alguma coisa sobre a pessoa que busco. Algumas fotos e textos que falam de sua breve, mas marcante passagem por nosso planeta.

Ansiosa, pergunto: ele viveu aqui? Onde era o seu quarto? Mas Diego, o guia me diz que não. A casa foi construída após a sua morte . Mas se quisermos conhecer, ainda existem as ruínas da casa onde nasceu e passou parte da infância, que fica mais embaixo, perto do rio.

A maioria do Grupo não manifesta o desejo de embrenhar-se pela mata com aquela chuva, a se molhar e se arriscar a ficar gripada. Olho pra Diego e lhe peço: se ninguém quiser ir, eu vou. Você me leva? Ele diz que sim.

Vendo meu entusiasmo, alguns se animam e o seguem. Eu me atrapalho toda pra colocar a capa de chuva e acabo sendo a última da fila. Vamos por um estreito e escorregadio caminho por entre as árvores. Vou quase correndo para não me perder do grupo, e com isso escorrego e caio na lama, mas ninguém vê. Levanto e continuo pela trilha.

Chegamos. Da casa restam apenas os alicerces. Diego nos diz que ela era de madeira, por isso não resistiu ao tempo. E é com profunda emoção que leio o outdoor fincado entre as ruínas do que foi um dia a casa onde viveu o menino Che. O grande amor platônico de minha juventude.

O pequeno grupo se mantém em silêncio, olhando os alicerces da casa, parte de uma parede e a floresta que a cerca.

Muitos pássaros cantam e Diego nos mostra o rio Paraná, lá embaixo e que era a paisagem vista da janela dos Guevara.

Afasto-me um pouco do Grupo para sentir melhor a energia daquele lugar. Fico imaginando o Che menino, brincando no meio daquelas árvores todas, cercado de pássaros, quatis, e tantos outros bichos. Mas rememoro com mais intensidade a figura daquele rapaz moreno, belíssimo, em cujo rosto se destacavam grandes olhos negros entre cílios e sobrancelhas espessas. Impossível esquecer aquele olhar que povoou o sonho de tantas jovens nos anos sessenta.

Minhas botas e meias estão encharcadas, estou com toda roupa ensopada mas só depois de sair dali é que me dou conta disso.

Pergunto a Diego, o guia, sobre o lugar onde ele foi encontrado e assassinado, e ele me diz que hoje é um local sagrado onde as pessoas vão em peregrinação levar flores e fazer pedidos àquele jovem santo.

Caminho de volta relembrando aquela figura que tinha por bandeira não o simples limite das fronteiras, mas sim o amor ao próximo, e que foi em nome desse amor que dedicou a vida: a defesa dos povos oprimidos, independente da cor, da classe social, da nacionalidade.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.




A hora de Soledad Barret Viedma

* Por Urariano Mota


Amigos, aquilo que há muitos e muitos anos eu sentia por todos os poros e sentidos, aquilo que meu faro pressentia, que a hora de Soledad Barret Viedma se acercava, agora chegou. Em julho, a Boitempo Editorial publica o meu, o nosso livro, “Soledad no Recife”.

Para quem não sabe, Soledad Barret Viedma foi torturada e morta no Recife em 1973, grávida e traída, depois de entregue a Fleury pela marido, o Cabo Anselmo.

Um dos leitores de Soledad no Recife assim se expressou:

“O livro alcança e fere vários tipos de leitores, desde os que já conhecem a história do ‘massacre da chácara São Bento’ até os que a desconheçam totalmente.

É um relato candente, comovido e comovente, construído desde um ponto de vista original, qual seja, o de uma voz narrativa pertencente a quem tenha conhecido os dois protagonistas históricos da trama, Daniel, aliás, Cabo Anselmo (ou será o contrário?), e Soledad, a jovem idealista assassinada, com os demais companheiros. O relato recupera um clima de época através das letras de música com muita habilidade.

É um relato testemunhal, no sentido bíblico da palavra, e ao mesmo tempo confessional. É testemunhal porque visa dar testemunho, contar uma verdade, trazer à luz fato que revela e elucida”.

Portanto, amigos, não foi em vão esperar tanto tempo.

“Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia....

... Dizendo: - Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida”.

A bela e brava Soledad Barret Viedma volta à vida em julho. Em todas as livrarias.

* Jornalista e escritor



Os seios da amada

* Por Talis Andrade


Estonteantes rosas
Pássaros contidos
Como nomear
as formas
gêmeas dos seios
da minha amada

Que conservam
os meus olhos
como recordação

Nas minhas mãos
o perfume
de macias pétalas

- Duas pêras!
Descrevem os cânticos
de Salomão
- Duas pêras!
Pelo guardar do sabor
na minha boca

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).





Superfície

* Por Evelyne Furtado


Hoje não tenho o que dizer
Falei tanto
Sai de mim
Deixei-me a um canto
Flui superficialmente pelo piso
Vivi sem me dar conta dos meus
Nem dos seus
Sentimentos.

Hoje eu fui como muitos
Outros
Seres
São.
Nada importante me ocorreu
Fechei a porta à dor
Ou a qualquer outra emoção
Mais profunda.

Hoje sou uma página da Caras:
Colorida e vazia.

* Poetisa e cronista de Natal/RN



As histórias do Amadeu

* Por Ed Santos

Na época em que parou de trabalhar, o Amadeu não ligava muito pra isso de tecnologia. Male-male usava o controle-remoto do videocassete – sensação da época. A Flavinha sua filha, era a responsável por ler, entender e repassar aos pais todas as informações dos manuais, além de pôr as coisas pra funcionar.

Mas depois que foi embora morar com o namorado, deixou pai e mãe órfãos nessa questão. A última coisa que fez foi ensinar o pai a usar o telefone celular. Usar não, ensinou ele a fazer e atender as ligações. Pra pôr no vibracall era o fim do mundo.Freqüentemente, durante as partidas de dominó, o Amadeu conversava com os amigos sobre vários assuntos e a discussão sobre a dificuldade com os eletrônicos sempre vinha à tona.
- Vocês viram o celular novo que eu ganhei de aniversário de casamento? Tem até MP3.
- Que coisa é essa Carlos? MP3? – pergunta o Amadeu curioso.
- É um sistema pra tocar músicas. Você grava no computador as músicas que você quer ouvir, e depois transfere pro celular. Pra ouvir é só pôr esses fonezinhos aqui ó.
- Ah, lembrei! A Flavinha já tinha me mostrado um radinho que ela tem com esse tal MP3. Mas assim no celular eu nunca tinha visto não.
- É coisa de tecnologia né Amadeu! Você nunca ouviu falar? Computador você conhece, né?
- Claro que sim né Carlos! Mas o que tinha lá em casa a Flavinha levou embora quando foi morar com aquele mané. E eu nunca mexi. Nem sei como funciona! Mas vem cá, e esse telefone aí? Faz ligação também ou só toca música?
- Se pôr crédito faz normal, mas ainda não carreguei não.
Amadeu ficou encantado com a novidade. Um celular que toca música no fonezinho, quem diria. Ele achou o máximo! “Mas e se tocar o telefone, como vou saber? E pra atender? Tem que desligar a música?” Melhor deixar pra lá. Outra hora ele pergunta pro Carlos, aliás, não tinha nem computador em casa. E outra, também não podia ficar mostrando pros amigos em plena mesa de dominó, que não sabe o que é MP3. Basta os “micos” que a Marilda fazia ele pagar.
No outro dia, na caminhada, eis que o Carlos aparece com o tal celular e seus fonezinhos.
- E aí Carlos, vai caminhar assim com esse troço ai pendurado?
- Claro! Enquanto caminho, ouço um Paulinho da Viola de primeira! Nem vou lembrar das safenas que carrego aqui no peito.
O Amadeu então resolve que daquele dia em diante ia se inteirar completamente sobre essas coisas modernas. Não podia, mesmo com essa idade, deixar de saber delas. Ainda mais depois daquela manhã em que não conseguiu conversar com o amigo enquanto caminhava. Sentiu-se muito só, ao contrário do amigo que tinha arranjado um novo companheiro – o tal celular com MP3.
A primeira providencia que tomou após o banho, foi ligar – do celular – pra Flavinha.
- Oi filha, tudo bem?
- Diga pai. Que surpresa é essa? Aconteceu alguma coisa?
- Não. É que resolvi comprar um computador e queria uma opinião sua.
- Mas pai, o senhor não sabe ligar nem a TV direito! O que te deu?
- Ah, Flávia, não dá pra ficar desatualizado né? E outra, cansei de ficar jogando dominó o dia inteiro.
- Olha só o pai! É assim que se fala!
- Você me ajuda então filha?
- Pode deixar. Semana que vem vou arrumar um tempinho pra ir aí, e conversamos tá?
- Tá bom filha.
- Tchau, beijo. Dá um beijo na mãe.
- Dou sim. Tchau!
E desligou o celular. Ficou olhando pro aparelho assim com jeito de quem queria desmontá-lo pra saber o que tinha lá dentro. Queria desvendar os segredos da tecnologia. Bendito MP3!
Pronto. O primeiro passo tava dado. Agora vinha a parte mais difícil: convencer a Marilda de incluir mais uma despesa nas contas do mês. O computador tinha que ser financiado né? Afinal, benefício de aposentado é aquela coisa!

* Jornalista – blog http://ocioduroderoer.blogspot.com.

segunda-feira, 27 de julho de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Talento não tem idade.

Coluna Sensibilidade e sutilezas – Aliene Coutinho, poema “Dúvidas”

Coluna A vida como ela é – Celamar Maione, conto “Dia D”.

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “La vie en rose”.

Coluna Porta Aberta – Mara Narciso, crônica, “Vida compartimentada”.

Coluna Porta Aberta – Andrés Colmán Gutieerez, artigo “El regreso de Soledad Barrett”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Talento não tem idade

Há alguma idade ideal para se manifestar o talento para a Literatura, escrevendo um livro, e dando início, dessa forma, a uma carreira literária? A resposta é: não! Tudo vai depender de uma série de fatores, como a cultura, a capacidade de observação, a autodisciplina, a força de vontade e, principalmente, a realidade de vida de cada um. E tudo isso não depende de idade.
Castro Alves, Álvares de Azevedo e tantos outros jovens brilhantes, que cursavam Direito na tradicionalíssima faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, em meados do século XIX, por exemplo, já eram escritores “veteranos”, mal completaram a maioridade. O mesmo ocorreu em Coimbra, com uma geração que se notabilizou pela boemia, mais ou menos na mesma época, conforme Eça de Queiroz nos retrata tão bem em alguns de seus livros, notadamente em “A Correspondência de Fradique Mendes” e “Cartas da Inglaterra”.
Em compensação, conheço um escritor que produziu seu primeiro livro somente aos 66 anos, um após sua aposentadoria em uma empresa multinacional. Sua intenção era a de escrever suas memórias (que nem sonhava em publicar), agora que os filhos estavam criados, que era avô, e que dispunha, além de talento inato para a Literatura (sufocado por tantos anos), o fator experiência. Além de bastante tempo livre (que ele achava que seria de mais quatro anos de vida, no máximo). Acabou escrevendo, e publicando, um romance, de muito sucesso de vendas, com críticas altamente favoráveis.
Bastou “abrir as torneiras da alma”, para que jorrassem idéias em profusão. E os livros foram se sucedendo: um, dois, cinco, dez. Publicou, até a presente data, quinze e já está escrevendo o décimo sexto. Ele, que achava que viveria mais quatro anos, se tanto, acabou de completar oitenta anos, em pleno vigor físico e mental. Trata-se de figura bastante conhecida nos meios literários e culturais, que não revelarei quem é, porquanto ele não me autorizou a isso.
Como se vê, o talento pode se manifestar em qualquer idade, bem como o sucesso (ou o fracasso que, infelizmente, é mais comum). Quem escreve seu primeiro livro, digamos, aos vinte anos, encontra alguma dificuldade na falta de vivência. Não é nada, porém, que não possa suprir com argúcia e capacidade de observação. Por outro lado, tem, a seu favor, o entusiasmo característico da juventude. Ele é suficiente para lhe assegurar êxito? Talvez sim, talvez não.
Já quem se dispõe a escrever em idade, digamos, provecta, tem como aliada uma vasta experiência de vida. Já viu e viveu muitas coisas e tem tudo para tornar seus textos reflexivos, profundos e, caso se trate de ficção, verossímeis. Há o risco, todavia, de sequer completar sua obra. O tempo, implacável e tirano, cobra um preço às vezes duríssimo de quem viveu intensamente.
O filósofo norte-americano, Ralph Waldo Emerson, fez as seguintes ponderações a esse propósito, no livro “Old Age”: “Nós adiamos o nosso trabalho literário até que tenhamos maturidade e técnica para escrever, mas um dia descobrimos que o nosso talento literário não passava de uma efervescência juvenil que perdemos”.
Pense nisso, meu caro escritor, tenha você recém-completado vinte anos e esteja com a cabeça repleta de sonhos e de projetos ou seja da eufemisticamente chamada “Terceira Idade”, com medo que seu tempo de vida se esgote antes que manifeste seu talento, que escondeu do mundo (por falta de coragem ou de oportunidade) por tantos e tantos anos.

Boa leitura.

O Editor.



Dúvidas

* Por Aliene Coutinho

Eu tenho dúvidas...
Sobre o que quero,
O que não quero,
Sobre o que sei
E sinto.
Se sou quem vejo,
nua e crua
Ou sou o que pensam os outros.
São tantas as perguntas
Que me faço
Que prefiro calar.
Faço silêncio,
Engulo o grito,
Engasgo,
Entalo,
E engulo de novo.
Olho para o canto
Onde acumulo
Minhas perguntas,
Elas se amontoam,
Se misturam
E me atrapalham.
Jogo por cima
Delas um pedaço
De cortina velha
E tiro as lentes
Para não mais enxergá-las.
Eu tenho dúvidas
Se quero respostas.

* Jornalista e professora de Telejornalismo




Dia D

* Por Celamar Maione

Levantei da cama 9 da manhã. Abri a janela e deixei o sol entrar no quarto. Segunda-feira. Primeiro dia de férias. Estava disposto. Um dia inteiro só pra mim. Preciso mesmo descansar,.ocupar a cabeça com as coisas belas da vida. Não agüento mais botecos fedorentos. Tiros. Sirene de polícia. Delegacias. Algemas. Acabar com a bandidagem é tarefa ingrata. Estressa. Destrói a família . Aumenta a pressão. Causa labirintite. Por falar em labirintite, deixa eu tomar meu remédio.

Hoje nada me impede de ser feliz. Nem as ligações insistentes da mãe dos meus filhos. Aquela jararaca. Três anos de namoro. Casei achando que encontrara a mulher da minha vida. Durante o namoro era boazinha, carinhosa e compreensiva. Concordava com tudo o que eu dizia. Não reclamava dos meus plantões na delegacia. E adorava quando saíamos e eu estava armado. Casamos. Durou oito anos. No primeiro ano de casado ela já mostrava que eu me metera numa grande roubada. O docinho se transformou numa mulher ciumenta, autoritária e chata. Implicava com os meus plantões e quando eu era chamado para algum atendimento de emergência, ela fazia a maior cena de ciúme. Só faltava me amarrar no pé da mesa. Ainda assim, tivemos dois filhos. Quando o menor completou um ano, saí de casa. Em meio a muitas ameaças, abandonei a vidinha de casado: medíocre e sem emoção.

Já tinha outra engatilhada. Uma ex-namorada que reencontrei no velório de um amigo. Saí de casa e fui morar com ela. Durou pouco. Seis meses. Ela não suportou os escândalos da mãe dos meus filhos e nem meus plantões. Decidi dar um tempo e passei a sair sem compromisso. Toda semana uma mulher nova. Adoro mulher. São boas por pouco tempo. Depois de alguns meses começam a dar defeito. E eu passei a trocar morenas, por ruivas, por mulatas, loiras. Eu não queria me aborrecer. Já tenho uma profissão desgastante, uma ex-mulher no meu pé, não dá para arrumar namorada chata. Meu negócio é relaxar nas folgas. No momento estou sozinho.

Terminei com Rose tem uma semana. Mas acho que sou muito gostoso. Ela não sai da minha cola. Dez torpedos no celular, só no domingo. Chato quando uma mulher não entende que terminou. Elas se humilham, correm atrás, fazem escândalo. Pelo visto Rose é o tipo pegajosa. Sabe do que mais? Não quero nem saber. Vou curtir minhas férias. Vou passar uma semana na casa dos meus pais no interior de Minas e depois vou pegar muita praia e muita mulher. Beber. Dançar e recuperar meu tempo perdido com apurrinhação. O que a gente leva da vida? Momentos. Apenas prazer e momentos felizes. Chega de Rose. Já falei que não quero mais. Se ela não me entende, que se dane. Não sou babá de mulher carente.

Entediado, abro a geladeira: “Nada pra comer. Nem um pãozinho.Vou ter que ir na padaria“. Preciso de um pão doce. Adoça a boca. Antes, bermuda. E claro, mesmo de férias, não largo a minha pistola, nem para tomar banho. Desci o elevador com a minha vizinha gostosona. Vai trabalhar. Beleza estar de férias! Coloquei o pé pra fora do prédio. A poluição me fez mal . Fiquei tonto de repente. É a maldita labirintite. Frescura. Agora é só atravessar a rua e comprar o pão. Depois volto pra casa e leio meu jornal de ponta a ponta.

Entro na padaria e bato o olho numa loira linda, tomando café. Ela me encara. Tem os olhos azuis mais tristes que já vi. Escolho um pão doce, sem desviar o olhar da loira. Nunca a vi na padaria. Será que mora no meu prédio? Estou de cabeça baixa separando as moedas para pagar meu pão. Sinto um bafo quente no meu cangote. Um homem fedido me empurra gritando com o caixa :
- Perdeu meu irmão ! Perdeu ! A grana.Anda. Se não te furo todo !

Não acredito! Assalto? Férias? Que merda tava acontecendo? Minha visão embaçou. Peguei minha pistola. Atirei. Senti as costas ardendo. Levei um tiro. Caí. Porra! Que sensação de merda. Tudo rodando. A loira se aproxima gritando :
- Sou médica ! Chamem uma ambulância.

Segurou forte minha mão :
- Agüenta firme. Não se mexe.

Foram as últimas palavras que ouvi. Não senti mais meu corpo. Passei a flutuar. Que delícia ir para o céu refletido naqueles olhos azuis.

*Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.