quinta-feira, 31 de março de 2011



Leia nesta edição:


Editorial – Comportamento humano.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Driblando o preconceito”.

Coluna Aventuras em paradoxo – Fernando Yanmar Narciso, crônica “A seguir?”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica,“Bendito templo”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Inimigo de infância”.

Coluna Porta Aberta – Giovani Roehrs Gelati, artigo “Quando há vontade política”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Comportamento humano


O homem – em sentido genérico, ou seja, eu, você, fulano, sicrano, beltrano e, virtualmente, todos os que vivem, já viveram ou viverão um dia – está longe de se comportar como ser humano. É uma fera que anda sobre os dois pés, raciocina, fala, mas cujos atos são, guardadas as devidas proporções, típicos de qualquer outro animal. É um predador por excelência, com uma característica peculiar: é o único que depreda o meio em que vive.

Essa afirmação sobre o homem pode até parecer paradoxal (não fôssemos um feixe de paradoxos), mas tem lá sua lógica. Nosso comportamento (salvo raras e honrosas exceções), ainda está tão distante do nosso potencial de inteligência, poder e bondade como a Terra está da constelação Alfa Centauro.

Somos, ainda, escravos dos nossos hormônios (aquela nossa parte instintiva e animal, alheia à nossa vontade), em detrimento dos neurônios. Ou seja, a imensa maioria das nossas reações a determinados estímulos prende-se aos instintos e não à razão, que é o que nos distingue (ou deveria nos distinguir) dos demais seres vivos. Agimos, quase sempre, por impulsos (salvo raras exceções) e não sob o comando do raciocínio. Não exercitamos, pois, o livre-arbítrio, que tanto apregoamos. Ainda não sabemos optar entre o bem e o mal. Somos escravos das circunstâncias.

Estudos revelam que utilizamos, no máximo, 5% dos bilhões de neurônios que temos no cérebro ao longo de uma vida, digamos, de 80 anos. Isso, no caso dos gênios, absolutas raridades mundo afora. Há quem utilize, quando muito, 0,5% (se tanto). A média anda por volta dos 2,5%. Ou seja, estamos muito distantes de utilizar plenamente, em todo o seu potencial, o órgão mais poderoso e mais nobre, o que comanda todos os nossos atos, voluntários ou involuntários e que é a sede da vida, de que a natureza nos dotou.

Outro aspecto, que determina nosso comportamento, é o fato de não subordinarmos nossa sabedoria ao nosso conhecimento. Ao contrário do que muitos pensam, são coisas distintas. Não somos seletivos quanto ao que deveríamos conhecer. Abarrotamos o cérebro de bugigangas, de quinquilharias, de informações inúteis e até prejudiciais, que não nos servirão nunca para nada ou que irão nos determinar um comportamento doentio, violento e distorcido, em detrimento do que poderia nos elevar, engrandecer e humanizar. Desperdiçamos, pois, os poucos neurônios que utilizamos com “lixo”, em vez de preenchê-los com aquilo que nos confere sabedoria, em sentido lato.

Quando me refiro à “humanização”, estou pensando num homem que realmente seja a imagem e tenha a semelhança com o Criador. Em nosso atual estágio de evolução (e de “civilização”), não somos, sequer, ainda, caricata e ridícula imitação, extremamente mal-feita, da divindade, do suprassumo da perfeição.

Um terceiro (e não menor do que os outros) obstáculo a ser superado é a nossa impossibilidade de conjugar os propósitos que temos ao nosso poder. Claro que me refiro aos positivos, nobres e construtivos e não aos distorcidos, egoísticos e corrompidos. Queremos muito mais do que podemos. E por que não conseguimos essa conjugação, se nosso cérebro é, potencialmente, tão poderoso? Exatamente por não concretizarmos esse potencial. Por sermos incapazes de utilizar mais de 95% dos neurônios de que a natureza nos dotou.

Arrogantes, como somos, achamos que esta geração (não toda, mas ínfima parcela dela) atingiu o ápice da evolução. Apontamos, como “provas”, nossas miraculosas conquistas tecnológicas, que deixariam pasmos e aterrorizados nossos até recentes ancestrais (digamos, do século XIX). Afinal, dizem os defensores dessa suposta “Idade das Luzes”, já voamos mais rápido do que os pássaros (nos aviões que construímos), nos deslocamos na água com maior velocidade do que os peixes (em nossos navios) e nenhum animal nos supera em rapidez na terra (nos automóveis, motos etc. que construímos). Até fora do nosso Planeta já fomos.

Todavia, em termos de raciocínio, de domínio da razão sobre os instintos, de auto-conhecimento (que é o que importa)... não evoluímos um único milímetro. Temo, até, que tenhamos retrocedido vários metros, se não quilômetros.

Daí tanta ganância, tanta violência, tantas injustiças, horrores, massacres, cinismo e tamanha solidão. Daí tanta fome, mundo afora, em meio à superabundância de alimentos. Daí tanta poluição, tanta destruição, tanto desperdício de recursos, talentos e vidas. Daí tamanha exploração do homem pelo homem. Daí esse comportamento que nada tem a ver com o verdadeiro ser humano, aquele que ainda não existe, mas que pode existir um dia (se o suposto Homo Sapiens não destruir a Terra e, com isso, desaparecer do universo).


Boa leitura.


O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk


Driblando o preconceito


* Por Pedro J. Bondaczuk


O preconceito, qualquer que seja seu alvo, fulcro, motivação e intensidade, é o mais letal dos venenos dos relacionamentos entre indivíduos, povos e nações. Escrevi a esse respeito inúmeras vezes e reiterarei o quanto for necessário meu repúdio a esse comportamento doentio e irracional. Quem é vítima desse absurdo conceito prévio que alguns fazem de seus semelhantes, sabe o quanto isso dói, revolta e frustra.

Se houve alguém que poderia falar com propriedade a respeito dos estragos emocionais que o preconceito causa na vida de quem é vítima dele, esse foi Charles Chaplin. É verdade que esse homem talentoso e sábio – a exemplo do imortal personagem que criou, o ao mesmo tempo sagaz e ingênuo Carlitos, que driblava, com agilidade, as autoridades que lhe queriam barrar o caminho em alguma das suas peripécias – driblou essas circunstâncias injustas e absurdas de que foi vítima. E isso só valoriza ainda mais seu sucesso, que hoje é consensual, 34 anos após a sua morte, ocorrida em 25 de dezembro de 1977.

Chaplin foi, por exemplo, vítima do preconceito social. Nascido nas camadas mais baixas da sociedade inglesa, elitista por excelência, em que o “berço” conta mais do que o caráter, as aptidões e as virtudes, foi encarado com irônico menosprezo pelos seus conterrâneos quase que durante sua vida toda.

Hoje, contudo, é visto como um dos heróis nacionais. Tanto que, em 1975, foi sagrado como “Sir”, ou seja, como nobre, pela Rainha Elizabeth II, em cerimônia das mais concorridas no Parlamento britânico e com ampla cobertura da imprensa internacional (e, sobretudo, nacional).

Outro preconceito que sofreu (este ainda mais incompreensível) foi o étnico. Alguns historiadores afirmaram que o nome Chaplin é uma corruptela do judeu “Kaplan”. Um deles foi Theodore Huff, que demonstrou, também, que a mãe de Charles, embora irlandesa, tinha ascendência judia. O ator, na verdade, divertia-se com isso e ora confirmava, ora negava (como que confirmando) essa suposta origem.

Durante a Segunda Guerra Mundial, com boa parte da Europa ocupada pelas tropas nazistas e com o pleno andamento do hediondo plano de Adolf Hitler de simplesmente eliminar “todos os judeus” da face da Terra com sua delirante “solução final”, Chaplin pareceu vacilar. Deu declarações que, seis anos depois, iria negar. Afirmou, categoricamente, em 1940, em uma entrevista à imprensa: “Eu não sou judeu!”. Contudo, no filme “O grande ditador”, em que satirizou o “füherer” alemão (apenas quatro dias mais velho do que ele), tenha interpretado o papel de um barbeiro justamente de ascendência judia.

Terminado o conflito, em 1946, Charles voltaria a se manifestar a respeito da sua suposta ascendência hebraica. Na oportunidade, desdisse o que havia dito seis anos antes. Declarou, e não apenas uma única vez, mas em várias entrevistas que concedeu: “Dizem que eu sou meio judeu e é verdade. Eu nunca neguei”.

Hoje, num mundo razoavelmente mais esclarecido (embora nem tanto), essa suposta origem étnica certamente não teria a menor importância. Mas naquele período, em que o ódio fervilhava e o preconceito disseminado pelos propagandistas nazistas era candente... Era algo perigoso. Charles poderia, por exemplo, até ser assassinado por algum fanático nazista (e nos Estados Unidos havia muitos simpatizantes dessa ideologia), somente por essa suposta origem.

A terceira forma de preconceito a que Chaplin também teve que driblar foi a ideológica. Em 1952, o criador do Carlitos foi virtualmente expulso dos Estados Unidos, por influência da então todapoderosa “Comissão de Atividades Anti-americanas”. Os processos políticos, naqueles tempos sombrios e tensos, sequer exigiam provas incontestáveis para punir quem quer que fosse. Podiam basear-se em meras suspeitas, ou em denúncias anônimas sem nenhuma comprovação. Ou mesmo em provas meramente circunstanciais e ambíguas ou em evidências improváveis e duvidosas.

O mundo estava em plena guerra fria. Dos dois lados do Atlântico, o fanatismo ideológico campeava e obcecava as pessoas, notadamente as ligadas aos respectivos governos, dos Estados Unidos e da União Soviética. Foi uma época que não condiz nem um pouco com as tradições e convicções norte-americanas, que apregoavam (e apregoam) que o país é o paraíso da liberdade e da tolerância, ou seja, a pátria da democracia.

Charles Chaplin soube que estava sendo investigado a bordo de um navio, quando regressava a Nova York, após turnê pelo exterior. Sua primeira reação, como seria de se esperar, foi de surpresa. Essa seria sucedida, tempos após, pela de mágoa e, finalmente, pela de raiva. Pudera! O ator decidiu que não se deixaria crucificar passivamente, como tantos outros fizeram, e que iria se defender com todos os recursos ao seu dispor. Estes, porém, para as circunstâncias, eram virtualmente inócuos.

O que estava acontecendo, então, nos Estados Unidos, ia contra tudo o que Charles acreditava. Na tentativa de esclarecer o mal-entendido, ele resolveu escrever diretamente ao então secretário de Justiça, James McGranery. E para que tudo andasse mais rápido, optou por enviar um telegrama à referida autoridade, esclarecendo sua posição. Foram estes os dizeres da sua mensagem: “Não sou comunista. Jamais em minha vida aderi a qualquer partido político. Sou o que o senhor chamaria de mercador da paz. Espero não tê-lo ofendido”.

McGranery, todavia, ignorou a mensagem. Não levou as palavras do ator em conta. Em vez disso, veio a público e declarou, em uma entrevista à imprensa: “Na minha opinião, ele (Chaplin) faz pronunciamentos que indicam sua atitude de desdém para com o país cuja hospitalidade o enriqueceu”.

Charles, ao regressar à Inglaterra, ainda mandou outra mensagem ao secretário de Justiça. Não se tratou (como seria lícito de se esperar naquelas circunstâncias) de nenhuma ofensa, pois isso não era do seu feitio. Escreveu, apenas: “Não penso que se deva dividir as pessoas de acordo com suas opiniões. Isso conduz ao fascismo. Creio na liberdade. Essa é a minha política”.

Alguns jornais (poucos, felizmente) atacaram o genial cineasta em suas páginas. O “Saturday Evening Post”, por exemplo, chegou, inclusive, a classificá-lo de “Pierrô Vermelho”. Não tardou, porém, para a verdade ser restabelecida. Seus acusadores jamais provaram a mais remota ligação de Charles com o comunismo. Mas não tiveram a grandeza de se retratar. Pagaram por isso. O jornal que o chamou de “Pierrô Vermelho”, não existe mais. E Chaplin...

O criador de Carlitos recebeu três prêmios Oscar ao longo de sua vitoriosa carreira. No entanto, apenas um deles, justamente o último, teve valor especial para Chaplin. Foi o de 1972, considerado como o da “reconciliação”. O prestigioso “The New York Times” afirmou, na ocasião da entrega da estatueta, em editorial: “Ainda bem que ele (Charles) veio. Se uma nação pudesse enrubescer coletivamente, e além disso amargar para sempre um sentimento de culpa, essa nação era a nossa”. E não era?!


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


A seguir?


* Por Fernando Yanmar Narciso


Posso não ser tão velho, mas tenho compulsão em pesquisar a fundo toda a história da comunicação no país, sei de tudo o que aconteceu entre a abertura da Rede Tupi em 1950 e a morte de Roberto Marinho em 2003. Todo mundo lembra com saudades dos tempos áureos da Rede Globo, do SBT e de todas as outras emissoras. Assim que a “Era Hans Donner” começou nos idos de 1976, a TV foi oficializada como comunicadora mais influente do Brasil. O estilo inovador, a linguagem ágil e o uso pioneiro de computação gráfica para criar vinhetas, logomarcas, aberturas e afins da Vênus Platinada foi prontamente imitado, mas nunca igualado por todos os outros canais na década de 1980.

Talvez a audiência de todos os canais nunca tenha sido tão alta como na década citada, pois com a abertura econômica muito pobre pôde enfim ter sua primeira Telefunken. Não há quem não se lembre das majestosas aberturas do Fantástico, lotadas de coreografias espaciais e efeitos computadorizados que, apesar de ainda estar em estado seminal, deixavam a todos nós de boca aberta. Ou das aberturas de Tieta, da releitura de Selva de Pedra em 1986, de Roque Santeiro, A Gata Comeu, Guerra dos Sexos, da própria TiTiTi, dentre muitas outras.

Lembram-se de quando a Rede Manchete, lançada em 1983 com uma vinheta impressionante, se anunciava como “A TV do século XXI”? Pois é, sequer chegou lá... Que dizer então da eterna segundinha, agora eterno 4º lugar SBT, na época com dinheiro de sobra pra tentar imitar os efeitos de computador da própria Globo e da ABC americana? Até as músicas da contraparte gringa ele plagiava na cara dura! OK que nem sempre o resultado do Ctrl+C- Ctrl+V convencia, mas algumas tentativas ousadas continuam na memória de muitos desocupados como eu.

Mas, como tudo na vida é substituível, nas décadas seguintes a TV foi lentamente sendo substituída pela internet, que começou como um tipo de “social club” para os mais abastados nos anos 90 e veio com força total no Brasil das lan-houses da Era Lula.

Chegamos a um ponto em que nenhuma emissora quer saber mais de inovar e tentar trazer de volta seu antigo público cativo. A computação gráfica televisiva já não chama mais tanta atenção como há 25, 30 anos. Até mesmo Darth Hans Donner se burocratizou, passando a fazer cada novo projeto simplesmente no piloto automático.

Basta largar tudo na mão de um computador e garantir o cheque no fim do mês. Digam o que quiserem, mas, apesar de apreciar muito, não há coisas mais frias e sem alma que animações feitas em computador. Hoje em dia, parece absurdo, mas naquele tempo eles eram capazes de torrar oceanos de dinheiro simplesmente para fazer um programa infantil. Bozo, Xuxa, Mara Maravilha, Sérgio Malandro, todos os apresentadores tinham sets de filmagem colossais, bandas, coreografias, auditórios lotados de crianças e mamães, gente fantasiada, gincanas... Eis a prova que ninguém mais põe fé nos pimpolhos de hoje. Os programas ditos infantis de agora são tão baratos que são gravados dentro de um quarto ou em cenários minúsculos e claustrofóbicos, cheios de tons pastel e elementos cenográficos frios e sem atrativos. Às vezes os programas sequer têm apresentadores. Basta passar os desenhos que fica tudo numa boa.

Nada é mais triste que assistir um poderoso império sendo devorado pela decadência com o passar dos anos, dando lugar a algo maior, melhor e mais rápido, não acham? Aquilo que outrora servia como ponto de referência, como símbolo de pujança e imponência, capaz de engolir a tudo que seus olhos podiam alcançar, conforme as décadas correm passa a ser considerado um mero degrau na escada evolutiva.

Queremos sempre mais, mais e mais. Se andarmos pela rua num carrão importado último tipo e ao parar no sinal vemos um sujeito num carro muito maior, mais potente e moderno que o nosso, automaticamente passamos a nos ver dentro de uma lata de sardinha caríssima. É a vida.

Onde é que foi parar o brilho da TV brasileira, minha gente? O que aconteceu com o glamour de décadas passadas? Dinheiro não lhes falta, apenas a motivação para superarem a si mesmas. Mas já que aparentemente as emissoras não têm o menor interesse em restaurar suas glórias passadas e partir para um combate real contra a internet, só nos resta especular qual será o próximo acontecimento que devorará os sites de relacionamento e afins.


• Designer e colunista do Literário


Bendito templo


* Por Marcelo Sguassábia


Sei que isso quer dizer bem pouca coisa para você, que não foi nem protagonista nem testemunha, mas ainda assim insisto. Observe que ocorre uma química interessante, no laboratório de física, entre o aluno número 11 e a aluna número 39. E que dessa química há bolhas púrpuras que entornam do tubo de ensaio. Em cada bolha um duende cativo, rindo de se matar, não se saberá nunca de quê. Elemental das minas, de dentes gastos e feios, primo daquele outro que dorme entre os halteres da sala de ginástica.

Presente, professora. A professora presente como a merenda intacta na lancheira, há décadas e décadas sem sinal de bolor e ainda ali mesmo, embaixo da carteira. Perto do taco solto, onde se guardava a cola. Não a que grudaria o taco: a que passaria de ano você, ele, os números 7, 15, 28 e a turma inteira do fundão.

Tudo pode acontecer no intervalo entre uma aula e outra, até o que poderia acontecer em qualquer tempo e lugar, menos no intervalo entre uma aula e outra de uma escola com brasão lustroso e nome a zelar. A normalista de 1915 deixou um recado na parede. Raspe as últimas quatro ou cinco camadas de pintura e verá uma mensagem cheia de PHs, escrita em tinta verde. Casta que nem meia três quartos, certinha que nem saia plissada. Sem nenhuma segunda intenção as poucas linhas da moça, prometida em casamento a um filho de fazendeiro. Terão uma renca de filhos num casarão de pé direito alto, com janelas enormes e vista para o morro.

É terminantemente proibido fumar mas todos fumam como se acreditassem que o fazem escondidos, fingindo supor que o inspetor não sabe. Ele que, à época, tinha essa idade minha. Vou te dedar. Vou te pegar na rua. Vou meter uma barata morta dentro da caixa de giz e espalhar que foi você.

Repare ainda que o cheiro da massa de modelar não muda, inspire fundo e tire a prova. Agora não se mexa, permaneça assim o tempo que aguentar, com o ar preso nos pulmões. Feche os olhos e morda a polpa da lembrança, a doce e sem semente, aquela de se guardar no cofre e jogar o segredo fora.

Os hormônios explodem e formam fila para fazer filhos embaixo da mesa do professor, atrás do muro da cantina, onde mais houver espaço e oportunidade de infringir as normas disciplinares do templo de instrução. Mas a façanha fica na vontade. Você nunca foi disso, nós todos não éramos. Ou éramos mas não tínhamos coragem, o que é muito mais provável. Cantemos então o hino nacional, com a mão direita no peito, vendo a bandeira que sobe.


* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”


Inimigo de infância


* Por Gustavo do Carmo


Durante oito anos Júlio foi humilhado por Giovanne no colégio. Não sofria agressões físicas, mas enfrentava piadinhas, gozações e chantagens. Piadinhas pelo seu jeito tímido e franzino, o seu óculos fundo-de-garrafa, os dentes superiores maiores e as orelhas de abano, que lhe rendiam os apelidos mais variados: Florzinha, Pulguinha, Cientista Maluco, Dentinho, Abridor de Garrafa ou de Lata, Dumbo e Orelhão Telefônico. Gozações quando tropeçava e caía no meio da rua ou acabava fazendo xixi nas calças na primeira série. E as chantagens eram sempre para obter algum lanche, uma cola ou mesmo dinheiro. Uma vez inventou um empréstimo inexistente que Júlio teria feito com ele para comprar uma merenda no recreio. Deu um prazo de duas semanas para receber o pagamento com a grave ameaça de morte e desova na vala. Qualquer reação do pobre menino era neutralizada com uma nova chantagem.

Giovanne era muito mais alto e forte do que Júlio. Parecia derrubar qualquer coisa com o mínimo esforço. Tinha cabelos louros raspados com máquina quatro. Por isso Júlio tinha muito medo. Os seus coleguinhas também. Exceto Mário, tão forte e mal-encarado como Giovanne, porém um amor de pessoa. Ele sempre defendia o amigo mais novo e ingênuo das provocações do colega de sala mau-caráter.

— Por que não procura alguém do seu tamanho, imbecil? Dizia Mário quando Giovanne vinha com ameaças.

— Então venha, reagia Giovanne. E os dois valentões chegavam às vias de fato. Mário se prejudicava por causa disso. Por pouco não foi expulso da escola. Só não aconteceu porque, além de ser um aluno exemplar, foi defendido por Júlio na frente da rigorosa diretora. O tímido menino se comportou como um grande advogado, dizendo que as brigas eram em sua defesa. Como punição, Júlio e Mário ficaram apenas estudando duas horas depois da aula.

Giovanne nunca era punido porque diziam que o seu pai subornava a diretora. A família era muito rica, mas todos desconheciam a origem de sua renda. Todo mundo especulava que o pai seria traficante de drogas, dono de cassino clandestino, político influente ou mesmo um empresário honesto com medo de escândalos.

O tempo passou. Vinte e cinco anos depois, Júlio tornou-se um respeitado advogado (profissão que escolheu na época em que defendeu o amigo valente), com muito dinheiro que ganhou em suas causas vitoriosas. Casou-se com Rebecca e teve um filho que batizou de Mário em homenagem ao seu herói dos tempos do colégio, que virou policial militar, mas levou um tiro durante uma ação contra traficantes e ficou paraplégico.

Um dia Júlio lembrou de Giovanne. Imaginou que, apesar de ter sofrido muito com ele na escola, ele deve ter se regenerado e se tornado um homem honesto e respeitável. Contou para a esposa – que desconhecia o brutamontes, pois conheceu o marido apenas na faculdade – que sonhou com o inimigo de infância. E no sonho foi surrado por ele.

Religioso, Júlio acreditava piamente que Giovanne virara um homem normal. Para eles, todos têm direito a uma segunda chance. Por isso, iniciou uma busca por notícias do inimigo de infância. Queria encontrá-lo e até se desculpar por supostamente tê-lo chateado. Ou então ouvir, sem querer cobrar, um pedido de desculpas e justificativas pelas ameaças que sofria. Sonhou com uma amizade madura e até uma parceria nos negócios. Desejou rir de todas as brigas que tiveram no passado.

— Você está louco, querido? Levava surra... Questionava Rebecca, estranhando a decisão do marido, antes de ser interrompida por Júlio.

— Não. Eu nunca apanhei dele.

— Mas você não acabou de dizer que levou uma surra dele?

— Eu SONHEI que levei uma surra dele.

— Mesmo assim. Você já me contou que ele te humilhava, chantageava e ameaçava.

— Isso foi há vinte e cinco anos atrás, Rebecca. Hoje ele já é um homem feito. Você está sendo preconceituosa.

— Se ele já fazia tudo isso naquela época, imagina hoje? Eu não vou deixar você procurar esse cara! Nós temos o Mário para cuidar e eu ainda sou muito nova para ficar viúva. Promete que não vai procurar esse homem?

Júlio levantou-se da mesa do café sem responder nada à esposa. Despediu-se do filho que ainda dormia e foi para o escritório. Em seu notebook acessou a internet e procurou pelo nome de Giovanne Ribeiro Tagliarine, que era o nome completo do seu inimigo. Não achou nada. Entrou no orkut e também nada encontrou.

Na verdade, só localizou dois ex-colegas do primeiro grau: Luciano, um rapazinho tímido, que também era provocado por Giovanne, principalmente pelo seu jeito efeminado, e Natália, a menina por quem era apaixonado na época. Mandou e-mails para os dois.

Horas depois, o primeiro respondeu que formou-se em jornalismo e assumiu a sua homossexualidade. Não sabia de Giovanne e nem queria saber. Tinha trauma dele. Já Natalinha não tinha notícias do bad boy do colégio há anos, mas deu um conselho de amiga, pelo bate-papo:

— Esquece esse cara, senão você vai se arrepender. Ele é um bandido. Vai por mim. Em vez de sentir medo, Júlio encorajou-se ainda mais. Estava cego de esperanças em encontrar Giovanne regenerado. Aliás, não era mais esperança. Já se tornara uma obsessão reencontrar o cara que o humilhou por oito anos.

Júlio contratou um detetive que estudou com ele na faculdade para descobrir o paradeiro de Giovanne. Um mês depois, recebeu um dossiê: Giovanne Ribeiro Tagliarine é filho de uma brasileira, Genilce, com um italiano, Pietro, empresário condenado por contrabando, tráfico de drogas, homicídio, formação de quadrilha, falsidade ideológica e corrupção. De Giovanne só conseguiu a informação de que ele fora condenado na juventude por tentativa de homicídio e lesão corporal contra um pedreiro que dormia na rua. Ficou seis meses preso. Mas logo ganhou uma condicional. Atualmente administra uma fazenda no pantanal.

Júlio agora se convenceu. De que Giovanne virou um próspero e pacato fazendeiro, descansando no interior da violência da cidade grande.

Chegou em casa, arrumou as malas e, com o endereço da fazenda de Giovanne nas mãos, partiu de avião do Rio para Campo Grande, onde pegaria uma chalana para a fazenda. Mentiu para a esposa porque, com certeza, ela faria um escândalo dramático e o impediria de viajar e encontrar o ex-inimigo. Avisou apenas que foi para Brasília a trabalho, sem dizer o motivo

Júlio não mostrou e nem comentou sobre o dossiê para ninguém. Mas esqueceu em casa e a primeira a ler o material foi Rebecca, que logo percebeu que a pasta não era nenhuma petição. Desesperou-se. Deixou o filho na casa da mãe e correu atrás de Mário, o verdadeiro amigo de infância do marido.

— Mário, você precisa me ajudar! O Júlio enlouqueceu e viajou para o Mato Grosso do Sul para encontrar aquele monstro que o humilhava na infância.

— Me desculpe, Rebecca. Gosto muito de vocês, mas eu não vou poder ajudá-la.

— Como não???? O Júlio está correndo muito perigo. Eu achei um dossiê sobre esse tal de Giovanne. O cara é um bandido. Foi condenado por agressão quando jovem. É filho de um mafioso.

— Eu estou sem falar com ele há três anos. Desde quando ele começou a dizer que queria encontrar esse cara.

— Mas só tem um mês que ele está com essa paranóia. Ele começou a falar disso ao me contar um sonho que teve com o tal de Giovanne que ainda o surrou.

— Só tem um mês que ele te conta, né?

Depois de duas horas de viagem desde o aeroporto da capital sul-matogrossense, Júlio chegou à fazenda. Não era uma simples fazendinha do interior. Era um latifúndio de um verde que doía os olhos. O pasto por onde circulavam vacas holandesas e boi zebu era tão bem aparado que parecia ser de veludo. Do outro lado do portal de mármore com portas de mogno, havia um haras com dez cavalos puro-sangue e a mansão de quinze quartos e vinte e cinco cômodos.

Mas Júlio não chegou a conhecer. Foi recebido por três parrudos seguranças vestidos com terno e gravata de primeira linha e esporas nos sapatos. Foram as últimas pessoas que viu antes de ser acordado na enfermaria da fazenda por um coroa gordo, de cabelos brancos, rosto bastante enrugado, olhos verdes e corpo forte vestido com um terno de linho impecavelmente branco.

Ainda sentia o gosto enferrujado do sangue na boca quando ouviu:

— Por que não disse antes que era você, Júlio? Meu velho amigo de infância!


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.


Quando há vontade política


* Por Giovani Roerhs Gelati


Há uma grande diferença entre dizermos “quando há vontade” e “quando dá vontade”. Se há vontade, é porque interesses estão em jogo: seja particular, de uma sociedade ou de uma nação. Se dá vontade, geralmente é resultado de estarmos sendo pressionados para realizar determinada coisa: em política falamos de pressão da opinião pública.

E os nossos governantes trabalham assim. Quando há vontade política, pode saber: alguma estão aprontando, é dinheiro ou vantagem que estão pondo no bolso. Quando dá vontade é porque a mídia e ONGs estão pressionando e a vontade popular clama por mudança.

Difícil não concordar: reclamamos da burocracia que retarda obras, não deixa chegar recursos que seriam muito importantes para pessoas carentes. Mas, quando há vontade política, os governos demonstram enorme capacidade de mobilização e agilidade na tramitação de leis. Que o diga Julian Assange, fundador do WikiLeaks. Feriu os interesses dos Estados Unidos e de países europeus e rapidamente foi tirado de cena, sendo preso sob uma acusação que nunca teria que responder se não falasse demais - a verdade.

Um dos problemas que muitos governos enfrentam é o não-planejamento da utilização de recursos. Então, a demora no repasse das verbas e a burocracia fazem jorrar pela torneira afora muito dinheiro que poderia ser bem empregado em áreas necessitadas. Contudo, quando há vontade política, não falta planejamento. Cria-se a estratégia -que todos conhecemos e que sempre surte efeito- de esperar a Copa do Mundo ou as Olimpíadas para votar mais um aumento. E aprová-lo, como ocorreu no ano passado.

Reclama-se do salário de muitas categorias historicamente postas em segundo plano no cenário orçamentário: segurança, saúde e educação. Porém, quando há vontade política, a Câmara dos Deputados vota em regime de urgência e consegue a aprovação da maioria como em um passe de mágica. Prova disso foi o reajuste ocorrido no ano final do passado que transformou os vencimentos do presidente da República, do vice, dos ministros de Estado, deputados federais e senadores em absurdos 26,7 mil reais.

Quando há vontade política, o Governo encontra o déficit zero, merchandising de campanha. Foi assim com a Yeda Crusius, ex-governadora do Rio Grande do Sul. Era candidata à reeleição ao governo gaúcho nas últimas eleições. Somou os depósitos judiciais e encerrou os seus cálculos assim: pagamos todas as contas, com déficit zero. Perdeu a eleição e novo governo que assumiu mudou o termo de “déficit zero” para “rombo nas contas públicas”.

A oposição agride ferozmente a situação quando há vontade política, exigindo um salário mais digno aos professores. Mas, ao assumir o Governo, o buraco mostra-se mais embaixo: não dá para realizar o sonho pregado outrora. Em contrapartida, se os professores fazem greve, prejudicam o andamento do ano letivo e a sociedade pressiona, começa a dar vontade política: o governo trata de propor algumas migalhas de reajuste salarial.

É o que está ocorrendo com o Governo Tarso Genro, no Rio Grande do Sul. Propôs um aumento de R$ 38,00 ao magistério, correspondente a 10,91% de aumento. Uma proposta anterior de 8,5% já havia sido recusada pelo CPERGS (Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul). É dessa maneira que o Estado pretende valorizar a classe?

O novo Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020) foi aprovado pelo Governo Federal e reza em sua cartilha que 7% do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil deverá ser aplicado na educação. Para termos uma ideia de como estamos longe desse objetivo, em 2000, 3,9% do PIB era aplicado em educação e em 2008, o percentual variou para míseros 4,7%. O Governo demonstrou, até o momento, que não há vontade política em priorizar o magistério.

Se não há vontade política em valorizar a classe dos professores, então que isso ocorra quando dá vontade política, através da pressão da sociedade. Porque muito mais alto que os 7% almejados para a educação, é o preço que pagamos pelo sucateamento de escolas e pela desvalorização dos professores.


• Contista, cronista e escritor gaúcho, graduado em Língua Portuguesa pela PUCRS Campus Uruguaiana

quarta-feira, 30 de março de 2011



Leia nesta edição


Editorial – Força sem limites.

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica “Aquele romance que nunca foi e jamais poderia ter sido”.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Melhor assim”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, crônica,“Cangaceiros II”.

Coluna Porta Aberta – Keli Vasconcelos, crônica “Suor, calor, Brasil, esperança”.

Coluna Porta Aberta – Guilherme Scalzili, crônica “Bolada”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. O twitter é: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Força sem limites


Tudo o que é pensado, intuído, sentido, visto e ouvido; tudo o que acontece conosco ou ao nosso redor, ou que apenas pode acontecer (e até o que não pode), acaba por virar literatura. É infinita a capacidade humana de expressão. E por diversos meios: ou mediante imagens, ou apenas por sons, ou por ambas ou, principalmente, pela magia da palavra.

Não falta, pois, campo para a criação artística. Por mais que sejam explorados, os temas jamais se esgotam. É possível abordar um mesmo assunto inúmeras vezes, e sempre de forma original, encontrando novos e insuspeitados ângulos a considerar, nuances que escapam à primeira abordagem, sutilezas, detalhes e filigranas.

Claro que isso requer talento, poder de observação, atenção, criatividade e, sobretudo, vontade, muita vontade. É o que me fascina em Literatura (e em outras artes também, embora meu foco, por razões compreensíveis, seja o das belas letras).

Essas reflexões vêm a propósito de uma declaração de Ian McEwan, escritor britânico ganhador do “Booker Prize” de 1998, em entrevista publicada pela Folha de S. Paulo, em 12 de dezembro de 1998. Ele afirmou, na oportunidade: “Não há o que não possa ser contado, porque a engenhosidade humana e a força da metáfora não têm limite. Preservar o incompreensível compete às religiões; o que compete à literatura e também, de outro modo, à ciência, é iluminar. Chegar ao entendimento de um evento é chegar à verdade, e a verdade não trai nada. O escritor que é verdadeiro consigo mesmo não trai nada”.

Há uma série de considerações que podem ser feitas em torno dessa afirmação. McEwan (autor, entre outros livros, dos romances “Ao Deus-dará”, “Cães negros”, “A criança no tempo”, “O inocente”, “O jardim de cimento”, “Primeiro amor, último sacramento”, “O sonhador”, “Amsterdam” e “Enduring Love”) destaca, por exemplo, a força da metáfora, que diz “não ter limites”.

Trata-se de recurso típico dos poetas, embora não exclusivo deles. Seu hábil manejo elimina a carência de palavras dos dicionários para descrever determinadas situações, notadamente emoções, de forma inteligente, verdadeira e artística. Usá-la com habilidade e pertinência é o desafio aos bons escritores, que eles “tiram de letra”.

Outro aspecto abordado por McEwan é o comprometimento do escritor (e de todos os artistas por extensão) com o esclarecimento (ou tentativa dele) do que em princípio pareça (e de fato seja) nebuloso. Ressalta que “preservar o incompreensível compete às religiões”. Afinal, esta trata do grande e insondável mistério para a mente humana, que é a glória, grandeza, eternidade e transcendência do Criador de todas as coisas, Onipotente, Onipresente, Onisciente e Infinito.

Como explicar algo assim e torná-lo minimamente compreensível? Como fazer caber em uma mente efêmera e limitadíssima os conceitos do infinito e do eterno? Esse, sim, pois, é tema em que nós, escritores, não devemos nos meter. É incompreensível para nós e, portanto, intraduzível. É da alçada das religiões. No mais... Compete-nos associar-nos à nossa atividade gêmea, a ciência na tarefa do esclarecimento, próprio e alheio. Ela e a arte têm por missão iluminar, espancar as trevas, trazer a lume o escondido e o não-revelado (ainda), fazendo, no tempo certo, tal revelação.

A Física fá-lo partindo de hipóteses, testadas exaustivamente, até que se transformem em leis, como a da gravidade, do tempo, do espaço etc.etc.etc. O escritor vale-se, por seu turno, das palavras. E quando estas ameaçam deixá-lo na mão, recorre às metáforas, quanto mais engenhosas melhores, e finda por dizer o supostamente indizível.

Compete-nos buscar ingentemente entender todo e qualquer evento. Entendido, torna-se mais fácil de ser comunicado, descrito, desnudo, absolutamente desvendado. Mas McEwan observa, também, que “o escritor que é verdadeiro consigo mesmo não trai nada”.

Podemos, eventualmente, mentir para o mundo (e não raro mentimos) e fazer dessa mentira tão verossímil, a ponto dela adquirir foros não só de verdade, como até de dogma. Mas jamais podemos nos enganar. Não ser sincero consigo próprio equivale ao suicídio intelectual (senão moral). Quem faz isso, pode ser tudo (impostor, hipócrita, falso etc.etc.etc.), menos escritor. Nosso fulcro é a verdade. E esta, como McEwan destaca, “não trai nada”. Pense nisso!


Boa leitura.


O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk


Aquele romance que nunca

foi e jamais poderia ter sido


* Por Mara Narciso


O casal de canários, após duas semanas, vê o primeiro filhote bicar a casca do ovo. Sai úmido, frágil, mas pouco depois se apruma, levanta o pescocinho, enquanto seu irmão também vem ao mundo. É um grande dia no ninho. A frenética busca por alimentos começa. Ora vai um, ora vai o outro catar insetos para os esfomeados bichinhos.

O casal de gente acaba de se conhecer. A moça sabe o que quer: companhia masculina, um amigo para socializar as coisas boas e ruins da vida, alguém para compartilhar o dia a dia, um companheiro para fazer a vida menos árdua. O rapaz não está certo do que deseja, pois alguma coisa o prende: talvez o passado, talvez o presente, ou, quem sabe, o futuro? Misterioso, pede para que não haja apego. Ela deseja discrição, nada de sentimento de posse, ciúmes, coisa alguma que se configure em namoro, pelo menos por enquanto.

A necessidade dos canários é que o pescoço dos bebês-pássaros fique mais firme, que eles cresçam, e que gritem bem alto por comida. Os pais defendem, muito bravos, o espaço do ninho e não permitem que intrusos, sejam outros animais ou aves, inclusive maiores que eles, invadam o território da família.

O relacionamento da moça e do rapaz evolui de forma secreta e não apenas discreta, como solicitado. As perguntas não podem ser feitas, e muito menos respondidas. Há uma evasiva, uma escapulida, como se houvesse algo grave para ser ocultado. Todo questionamento é visto como invasivo e só pode ser respondido em alguma conjunção estelar específica, ou pessoalmente, mas este momento especial nunca chega. Há muitos telefonemas no começo, depois fugas, despistes, não respostas, com o rapaz mais fugidio do que mosquito ensebado. Pouco se vê, pouco se fala, mas aponta a possibilidade de as coisas poderem acontecer, mesmo sem promessas. A ordem é não haver compromisso.

Os filhotes-canários crescem, emplumam-se. A faina de buscar comida é interminável, pois os animaizinhos estão muito esfomeados. O apetite pantagruélico vem da pressa que a natureza tem de resolver seu problema: dar autonomia aos passarinhos. O desejo dos pais, já exaustos, é que os bichinhos cubram os corpinhos de penas, e possam voar.

O namoro não sai do lugar, aliás, sai, dá dois passos atrás, dentro de uma situação inesperada: cena de ciúme explícito numa situação a dois que não tem nome. Até o imponderável pode sofrer uma medição. O que é aquilo? Nem o rapaz sabe. Fixa-se numa obsessão inexplicável. O relacionamento escasso fica mais esquisito. Os meses passam, e mesmo com investimento, interesse, e expectativa, no início, bilaterais, o caso não flui.

O ninho fica pequeno para a família-pássaro, e isso é bom sinal. Espera-se que os filhotes se tornem adultos. A vida faz a sua evolução temporal, e a natureza ordena: nasçam, cresçam e tornem-se independentes.

O rapaz e a moça contam os meses, mas a contagem torna-se ridícula, pelo inusitado do retornar antes de ir. Surgem queixas e cobranças. Parece haver uma estratégia deliberada, um jogo de esconde-esconde, uma corrida de gato e rato, em que na mesma hora em que nada acontece, há um alento, uma possibilidade.

A mãe-passarinho vê os filhos enfeitados, cobertos com penas amarelas. As asas estão fortes, no ponto dos dois se arriscarem no mundo maravilhoso de voar, ser livres, vagar pelo céu, ir além. A canária-mãe incentiva os filhos. Canta alto, agita o corpo, sacode as asas, mostra como é, empurra o filhote maior para a borda do ninho. Toda a família espera o vôo inaugural. O filho mais velho olha desconfiado, inseguro, vê o abismo profundo da borda do ninho. Olha os pais, que lhe enchiam o papo de alimento, vê o irmão, e no seu pavor, tem uma vertigem, desequilibra-se, cai em queda livre, e sem conseguir voar, esborracha-se contra uma pedra. Morre numa plastra de órgãos disformes.

Gente não é robô. Não sabe fazer de conta que não sente nada. Afeto brota, e o que fazer com ele? Os jovens medrosos têm o mesmo destino do passarinho. Como não têm coragem para atingir os píncaros celestes, na hora de voar, separam-se, secam seus sonhos não realizados, ajeitam seus sentimentos amarrotados e seguem suas medíocres vidas. Separados.


* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.


Melhor assim


* Por Sayonara Lino


Hoje não tenho conselhos sensatos para oferecer, nem posso dizer que esteja otimista. Tenho muitos questionamentos, mas, na verdade, não sei se desejo encontrar uma resposta certeira, exata. (como se a vida fosse feita de certezas).

Acredito que preciso de mais tempo para ficar só, já que estar em minha própria companhia tem sido um encontro feliz, na maior parte do tempo.

Estou correndo de pessoas críticas, não por medo dos dedos apontados ferozmente em minha direção, mas porque esse tipo de gente precisa mesmo é de um espelho.

O silêncio, nesse mundo de urros, berros, euforia, para mim é uma benção. Mergulho em um mundo à parte. Não é esquizofrenia, nem depressão. Dispenso diagnósticos, especialmente se vierem de leigos. Preciso de paz. Como diz uma amiga; “Eu não tenho depressão, as pessoas me deprimem”. Apoiado.

Continuarei caminhando, resistindo, abraçando o que for saudável e deixando para trás tudo o que não acrescenta e que for possível evitar.

Que venha apenas o que me fizer bem, porque o resto já foi varrido e seguramente afirmo: melhor assim.


• Jornalista, fotógrafa e colunista do Literário


Cangaceiros II


* Por Marco Albertim


Por influência de padre Cícero, Sinhô Pereira e Luís Padre vão para Minas Gerais. A mesma influência faz Lampião aceitar a proposta de combate à Coluna Prestes. Virgulino é recebido em Juazeiro do Norte, como herói, e dá autógrafos. O funcionário federal Pedro Uchoa de Albuquerque concede-lhe a patente de capitão e promete-lhe armas. Com a palavra empenhada ao vigário de Juazeiro do Norte, de abandonar o cangaço tão logo ponha fim à Coluna, volta para Pernambuco. É atacado pela polícia, bate em retirada. Não recebe armas, dinheiro nem o fardamento prometidos.

O bando está enfraquecido, posto que no confronto de Triunfo morreram Luís Pedro – lugar-tenente depois da morte de Levino -, Virgínio, Ezequiel, Mergulhão e Mariano. Para despistar a polícia, espalha seus homens por Pernambuco, Alagoas, Bahia, Ceará, Sergipe e Rio Grande do Norte, os cinco estados juntos na caça ao cangaceiro. Estabelecido na Bahia nos anos l928 e l929, ordena um baile depois de efetivar um massacre no município de Queimados.

Constam do currículo de Lampião a morte de cinco mil pessoas, o incêndio de 500 propriedades, a morte de cinco mil reses, o estupro de 200 mulheres e 200 confrontos. Com a Revolta Constitucionalista de São Paulo, o governo precisa de tropas. Para compensar, utiliza rádios em vilas e cidades. Sabendo da novidade, Lampião diz: “No dia que pegá um trem deste, o macaco que tivé com ele, tem que enguli tudo.”* Também perdia a calma quando ouvia falar em ônibus, porque o veículo podia transportar as volantes.

Em 1931, apaixonado por Maria Déia de Oliveira, a Maria Bonita, leva-a para o bando. Desde então, com o dinheiro acumulado, passa a ter costumes sofisticados; permite o uso do álcool pelos seus “cabras.” Para ele, conhaque Macieira ou uísque; para o estado-maior, Old Tom Gin; para os “cabras”, cachaça, genebra e quinado.

A vinda de Maria Bonita abre caminho para mais 38 mulheres cangaceiras. Distinguem-se Dadá, mulher de Gato, presa em Alagoas, em l936; Luísa, mulher de Cabeleira; Ana do Bonfim, mãe de João do Bonfim e hábil no uso da peixeira; Lili, viúva de Lavandeira; Lídia, bonita, fogosa, mulher de Zé Bahiano; Sila, Nilda Ribeiro de Souza, raptada aos 14 anos por Zé Sereno; e Adília, mulher de Canário. Todas cangaceiras, dividindo tarefas com os homens, inclusive nos recontros, e tendo direitos iguais.

Antes de ser cercado pelas tropas chefiadas pelo coronel João bezerra, Virgulino é celebrado na quadrinha: Lampião tem muita ideia/Sua vida está segura/Atirá nele é bobaje/A bala bate e não fura/A mulé de Lampião é danada pra luxá/Perfume de toda carta/Tem dentro de seu borná.

Lampião é morto com Maria Bonita e mais onze cabras. Em julho de 1938.

*Ranulfo Prata – Lampião


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.


Suor, calor, Brasil, esperança


* Por Keli Vasconcelos


O Sol nasce para todos. O ditado é até manjado, mas falta completar que suar, também, é para muitos. Ouvimos quase sempre o chavão “O dinheiro que ganho vem do suor do meu rosto”, “suor frio”, entre tantos verbetes do sábio palavreado popular.

Aliás, este Brasil deveria ser, além de “a pátria das chuteiras”, o reduto do suor. Suamos para tudo e, mesmo nos momentos mais infames, precisamos deste verbo “suado” para a felicidade nos preencher. Não sei se por influência dos trópicos ou dos tipos. Das tribos ou dos tributos. Das fases ou das famílias.

A essência do suor é o calor humano que, mesmo na animalidade cotidiana, está em voga, explorado e “todo” sorrisos. Mesmo com dilemas, vemos uma oportunidade para soltar as melenas, as feras e entrar na festa. De dizer “bem-vindo” sem ter convite. Declamar “sim”, depois de tantos “nãos” ouvidos.

É fato: quem não acalora tem alma oca, sem vida. No ônibus, no metrô, no trem ou em qualquer meio de transporte devidamente lotado, sente-se o calor humano até nos mais deprimidos. E vamos rumo ao desconhecido, espremidos, gargalhando dos problemas escondidos.

Esta força é encontrada também naqueles que preservam gestos simples: a gentileza, o “obrigado”, o “com licença”, a inocente “desculpa”. Palavras escoam como o suor absorvido pela blusa do esportista. Às vezes evaporam, mas caem como uma tempestade no fim do dia.

Quantas vezes alguém está numa fila e, do nada, fala sobre as mazelas? Quantos momentos o seu ombro não secou as lágrimas do aflito? Sua mão afaga o desespero, procura emprego, sacoleja o brinquedo...

Ora, de duas, uma, se nunca fizera isso outrora: ou não está vivo, ou veio de alguma província que não se chama Brasil. Pode ser um ilustre corrompido no meio de trabalhadores incorruptíveis...

Famintos, ainda temos afabilidade. Melhor quando o calor humano está de barriga cheia.

E, nessa vida transpirada em verdades sufocadas, os brasileiros vêem da janela do ônibus o escaldar da labuta. Um prédio em construção, o tilintar da pá no cimento. O sorriso suado escorrido no rosto do pedreiro que não se cansa.

O calor provocado pela gota suada de esperança.

*Keli Vasconcelos é jornalista de São Paulo. Atuou em rádio, assessoria de imprensa, editora e revistas. Hoje realiza trabalhos como freelancer.

Bolada

* Por Guilherme Scalzili


Na segunda-feira (20 de março) o mundo futebolístico presenciou uma divertida gafe jornalística, que propicia boa reflexão sobre a cobertura esportiva dos grandes veículos. Eram cerca de 16 horas quando assessores do Fluminense anunciaram que o técnico Gilson Kleina deixaria a Ponte Preta e assumiria o time carioca. No início da noite, porém, depois de uma longa reunião com a diretoria alvinegra, Kleina avisou que ficaria.

Redes de televisão (Bandeirantes, Record, Globo), jornais (Lance,Gazeta Esportiva, Globo), a rádio CBN, portais informativos (Terra, ESPN) e comentaristas famosos (Renato Maurício Prado,Milton Neves, Sidney Rezende) caíram na mentira e passaram a vergonha de fazer ridículas correções para um engano que poderia ter sido evitado com um simples telefonema.

O episódio evidencia a arrogância dessa crônica bairrista que ajuda a CBF e o Clube dos 13 a dizimar os clubes do interior. Todos acreditaram na lorota porque não lhes parecia razoável que a gloriosa Macaquinha fosse mais atraente para um técnico promissor do que o “grande” cheio de privilégios e bafos midiáticos. Se envolvesse qualquer time de capital, teriam realizado pelo menos uma checagem rudimentar.

Bem feito.


*Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.

terça-feira, 29 de março de 2011



Leia nesta edição:


Editorial – Meticuloso exame.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Cora Coralina”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica “A grande mentira”.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Da purificação”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, crônica “No Campeche”.

Coluna Porta Aberta – Letícia Nascimento, crônica ”Autismo”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Meticuloso exame


A quantidade de temas à disposição do escritor é imensa, avassaladora, diria, até, infinita. Por isso, fico admirado quando algum deles se queixa de falta de assunto para justificar o fato de não escrever um novo livro, ou vários deles. Balela! O que lhe falta, na verdade, é vocação para a atividade. Ou talvez lhe falte disposição e amor pelas letras. Se o tal “escritor” tiver talento, nunca, jamais, em circunstância alguma, lhe faltarão assuntos para desenvolver, não importa de que forma ou em que gênero. É mais provável, até, que se sinta paralisado, ou pelo menos atrapalhado, no momento de escolher sobre o que escrever, mas por excesso de alternativas, não por falta delas.

Claro que, para abordar com segurança e eficiência determinado tema é necessário que se saiba o máximo que for possível a respeito. É uma tolice tentar ditar cátedra sobre o que não se sabe. Requer-se, do escritor, sobretudo, capacidade ímpar de observação, sem a qual dificilmente chegará a qualquer lugar. Ou seja, a habilidade de sempre encontrar ângulos novos e originais mesmo nos assuntos mais batidos (ou principalmente nestes), naqueles super explorados. Isso é possível? Aí é que está o nosso grande desafio. E refiro-me, aqui, apenas ao concreto, ao palpável, ao visível, ao real, sem entrar na seara da imaginação.

Gustave Flaubert, em carta enviada ao seu “filho espiritual”, Guy de Maupassant, deu-lhe o seguinte conselho a propósito: “Aquilo que devemos fazer é examinarmos com a demora suficiente e bastante atenção o que quisermos descrever, a fim de descobrir algum aspecto que ninguém tenha ainda visto ou de que ninguém tenha ainda falado. Em todas as coisas existe algo de inexplorado, porque estamos habituados a utilizar-nos de nossos olhos apenas com a recordação daquilo que já foi antes pensado a respeito do objeto de nossas contemplações”.

Para que essa descrição original seja possível, todavia, é preciso atentar para a forma como outros descreveram o tal objeto, ou a tal pessoa ou a tal situação não importa. Nessa pesquisa, interessa tanto o que os outros observaram, quanto (e principalmente) o que deixaram escapar, ou seja, de observar. Nesse processo, é indispensável que não nos deixemos impressionar pela forma com que aquilo foi pensado pelos que nos antecederam. Nosso intuito é explorar, exatamente, as lacunas que deixaram. E Flaubert garante que sempre haveremos de encontrar aspectos inexplorados, ou mal-explorados. Minha experiência pessoal diz que ele estava coberto de razão.

No citado texto escrito para Maupassant, o autor de “Madame Bovary” também observou: “Todas as coisas, por insignificantes que sejam, contêm um pouco de desconhecido. É este o que devemos procurar. Este método forçou-me a descrever em poucos períodos as pessoas e os objetos de um modo que os singularizava exatamente, diferençando-os de todos os objetos ou pessoas da mesma raça ou espécie”. Daí ter produzido obras-primas, originais, inigualáveis, primorosas, como “Madame Bovary”, “Salambô”, “Memórias de um louco” e “A educação sentimental”, entre tantas outras.

Claro que esse processo requer, além de aguçada capacidade de observação, aspecto que faço questão de reiterar, paciência, muita paciência. Isso sem insistir na existência de talento para as letras. Nenhuma obra-prima nasce por geração espontânea. E esqueçam essa balela de inspiração. O que nos move em literatura (como ademais, em tudo na vida) é a “transpiração”. É o esforço, é a autodisciplina e, em resumo, é o trabalho, muito trabalho. “Tanto esforço vale a pena?”, perguntam-me, amiúde, os que julgam que escrever meia dúzia de lugares comuns já os qualifica como escritores e que, quando fracassam, se julgam injustiçados. Claro que, quem pensa dessa maneira, não tarda a cair em si e a se frustrar face sua incapacidade. Afinal, nem é do ramo. A literatura não é a sua praia.

A originalidade, tão preciosa e pretendida, não está em temas complexos e nem na mera descrição do insólito. Está, isto sim, no supostamente comum, no aparentemente trivial, nos assuntos que a maioria desdenha, por entender que não tenham importância ou que esta seja ínfima. É aí, na sua exploração, de sorte a interessar e prender os leitores, que se revela o genuíno talento. É a grande matéria-prima das obras-primas, das que não se esgotam face à passagem do tempo, mas, pelo contrário, se valorizam, mais e mais, à medida que anos, décadas ou séculos transcorrem.

Baseado na experiência pessoal (personalíssima), Flaubert dá um exemplo, a Maupassant, de como seu “filho espiritual” poderia ser original na descrição de pessoas, cenários, objetos etc.: “Quando você passar junto de um merceeiro sentado à frente de seu armazém, ou de algum porteiro fumando seu cachimbo, ou de um cavalo de cabriolé num ponto de estacionamento, mostre-me aquele merceeiro e aquele porteiro na posição em que estavam, com seu aspecto físico, salientando também, por meio da fidelidade de seu retrato, toda a natureza moral dos mesmos, de modo que eu nunca os possa confundir com outros merceeiros ou porteiros. E faça-me ver com uma simples palavra, com uma frase, que o cavalo do cabriolé não se parece com os outros cinqüenta que se seguiam e que o antecediam”.

Esse tipo de descrição, convenhamos, não é para qualquer um. É necessário (reitero pela enésima vez) talento, muito talento, aquele consensualmente reconhecido. Mas apenas essa aptidão não basta. Há muito sujeito talentoso, mas sumamente distraído, para não dizer relapso. É necessário que a ela se agregue uma capacidade ímpar de observação, diria, a feita com olhos de lince, que enxerguem muito além das meras aparências.

Requer-se, também, sólida cultura, advinda da leitura obsessiva de “n” livros. Mas não aquela apressada, desatenta, que não se detém em nuances e que se constitui, até, em desrespeito ao autor dos livros lidos. Dessa, qualquer escritor genial, como foi Gustave Flaubert, certamente prescinde e dispensa. Sendo observador, culto, autodisciplinado e atento, não há como faltar assunto ao homem de letras talentoso. Tente.


Boa leitura.


O Editor.

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