domingo, 15 de julho de 2018

Estilo literário e estilo científico - Álvaro Lins


Estilo literário e estilo científico


* Por Álvaro Lins


Estudo da obra de Roquette-Pinto
Antes de tocarmos em cheio na obra do cientista, vejamos em que sentido, ou em que proporção, o autor de Rondôniapertence aos quadros da Literatura, como sabemos que pertence aos da Ciência. Questão fundamental, esta, não só para a avaliação do conjunto estrutural da personalidade e da obra de Roquette-Pinto, como também a jeito de uma operação de esclarecimento prévio, sem o que poderíamos mergulhar todos, a este respeito, num equívoco de humor involuntário.
De Roquette-Pinto sabe-se que foi, antes de tudo, um espírito científico posto face a face com a natureza. Sabe-se também, por outro lado, que é mais difícil escrever uma bela página literária do que realizar uma boa experiência de laboratório ou de campo. Desde muito tempo, talvez, porém desde Renan com certeza, sobretudo em L’avenir de la science, pôs-se em causa o problema das diferenciações entre estilo literário e estilo científico, como as linguagens de dois mundos, às vezes comunicantes, distintos quando conceituados em argumentos de absoluto.
[...]
Afigura-se-me que a forma literária de Roquette-Pinto ultrapassou com vantagem, esteticamente, o esquematismo de tão rígidas teorizações [de René Wellek e Austin Warren]; e que ele atravessou tais fronteiras, entre a linguagem literária e a linguagem científica, por efeito da mesma ciência íntima de escritor e de artista do seu colega, o polígrafo João Ribeiro, que via as fronteiras como prisões, esquivando-as com ligeireza, graça e bom gosto.
Recuso-me a aceitar, porém, que Roquette-Pinto venha a figurar na Literatura pelos seus contos de Samambaia (1934), volume em que, na primeira parte, se pode valorizar apenas alguma página naturalista ou impressionista, como o admirável retrato de seu avô, em que tanto revelou do seu próprio caráter forte e bondade sensível, produzindo-o como se ele mesmo estivesse a confessar-se nessa evocação, feita em largos traços, do velho João Roquette. Ou, na segunda parte, algumas páginas de observação ou reflexão do velho Duarte, teceduras e verídicas, conquanto mal disfarçado o personagem em figura inventada.
Dos contos de Samambaia, em conjunto, tudo me parece mal nascido e mal-acabado. Mero divertimento de cientista. Em verdade, sobre o mestre Roquette-Pinto não baixara o dom da plástica imaginação romanesca; e nele não habitava a arte de ficção: arte figurativa por excelência. Figurativa, talvez, não no mesmo grau da pintura e da escultura, que nos facultam uma visualidade direta; figurativa sob outro prisma, de maneira bem mais completa e perfeita, porque a estátua e o quadro exibem a figura numa só posição, enquanto o personagem da arte do conto ou do romance pode mostrar-se em numerosos desdobramentos de fisionomias físicas e estados psicológicos. Esta arte da ficção não seria o forte do grande Roquette-Pinto. Tampouco seria qualquer espécie de literatura pura. Acredito fácil a verificação de que nas diversas vezes, e fiz anotações neste sentido, folgando apenas por não haverem sido muito numerosas, em que o mestre deletreia abstratamente, sem ponto de apoio na realidade, como plumitivo de belas-letras, ou incursiona num terreno de devaneios largados e abandonos emocionais para alguma formulação puramente literária: então, o resultado, no geral, é de qualidade secundária, senão constrangedora. Seja, isto, em certas passagens de eloquência discutível, portanto desajustada à grandeza do sábio, seja em alguns daqueles seus estados, raros ainda bem, de sentimentalidade indiscreta, a encobrir-se a espaços o que é ainda pior num verbalismo com tendência para o sublime ou o bonito de lantejoula. Tudo de gosto duvidoso ou indiscutível mau gosto.
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Ora, se o homem de ciência Roquette-Pinto pertence aos quadros da Literatura, e é evidente que sim, isto se deve exclusivamente ao estilo de arte literária com que ele exprimiu ou revelou a tão variada temática das suas obras. Não é pelos contos, nem pelos versos, que se encontra Roquette-Pinto na bem-aventurança do Reino das Letras onde também ocorre que muitos são os chamados e poucos os escolhidos, mas graças à forma de expressão, ao estilo literário, ao ritmo do seu mundo interior quando exteriorizado para ordenar esteticamente a temática do cientista e as ideias positivas do pensador.
Está nos quadros da Literatura, não apenas nos da Ciência, pela frase vibrátil, pela composição esteticamente proporcionada de tantos capítulos de Seixos rolados e Ensaios brasilianos; ou, entre as obras menores, da aula “Conceito atual da vida” (1920), do guia das coleções do Museu Nacional sob o título Antropologia (1915) das conferências sobre Goethe (1932), Leopardi (1942) e Saint-Hilaire (1953). Está nos quadros da Literatura, pela dúctil forma expositiva e dignidade de expressão verbal do pensamento, em livro de maturidade suprema como Ensaios de antropologia brasiliana (1933). Está nos quadros da Literatura, principalmente, pela forte construção estrutural de Rondônia (1916), em que se alternam as páginas de ascética objetividade do cientista e as páginas de emotividade do artista tragadas com beleza formal.
Fixemos um exemplo pelo avesso: esta mesma obra Rondônia, e com este mesmo aparelhamento científico, se fora mal escrita, ou construída aleijadamente, não seria literatura: seria ciência, apenas ciência. Pois é pelo estilo que um autor e uma obra se instalam na Literatura. O estilo: selo e sinal de sua nobreza. Não o esqueçamos: é pelo estilo, em primeiro lugar, que um ser se realiza, se fixa e permanece. E não só o homem; as vidas coletivas também. Sim, pelo estilo é que as civilizações subsistem; e prolongam-se em outras idades. Representa, assim, a arte estilística um elemento de perpetuidade e imortalidade dos seres; aquele que mais seguramente oferece uma garantia de sobrevivência.
Aliás, as características do estilo de Roquette-Pinto não são o refinado esteticismo, nem mesmo a beleza depurada em requinte verbal. Caracterizam-no outros valores: a medida, a clareza, o equilíbrio, a ordem; e o emprego preciso dos vocábulos, habituado que se achava desde muito à construção dos períodos curtos, claros, diretos, ainda isto representando, no seu caso, um recurso didático de professor em permanente comunicação escrita com o publico.
Não obstante, como na conferência sobre Saint-Hilaire, ou como numa das primeiras páginas de Rondônia, que mais adiante transcreverei, situando-a entre as mais fortes e nítidas já escritas por um homem de ciência no Brasil, utiliza-se às vezes Roquette-Pinto das frases longas, em que, através de incidências coleantes, pontuações abundantes e sinuosidades sintáticas, o pensamento se desenrola igualmente, por entre essas mesmas sutilezas e habilidades, para operar uma penetração aguda ou duradoura no espírito do leitor, repercutindo mais fundo em sugestões emocionais, infiltrando-se em nuanças psicológicas ou sociológicas.
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E aqui está como se me afigura a beleza difícil, rara, contudo sempre necessária, de uma frase longa e desdobrada: que ela nos transmita, afinal, a imagem de um corpo a avançar, ou a deslizar, com a lentidão, a elegância e a dignidade de um cisne sobre as águas. Acrescente-se, em consequência, que uma lição musical do estilo consiste em criar ou desenvolver, num processo quase imperceptível de interioridade, um ritmo harmônico por efeito do jogo entre frases longas e curtas, lentas e apressadas, desde que haja, no escritor, a ciência literária como a tinha, em música, César Frank capaz de justapor e imbricar um motivo-andante e um motivo-alegro.
 
* Professor e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.

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