Os
devaneios do general
*
Por Érico Veríssimo
Abre-se
uma clareira azul no escuro céu de inverno.
O
sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da
cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o
pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros
galos respondem.
O
sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se
enchem de joias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão
brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as
nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é
todo um clarão de puro azul.
O
General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O
quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra
ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama
antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes,
lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do
Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações
dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens
diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e
ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro
ouvir o General Chicuta Campolargo.
O
general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá
para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada
no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham
ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada
do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um
ronco que lembra o do estertor da morte.
O
general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando
num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento.
O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.
Os
galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara
reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.
Animado
aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general
entreabre os olhos e devaneia…
Jacarecanga!
Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde
nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro
quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo
todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente
municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.
O
general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade
ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um
artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena
sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora
tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele,
sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de
degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao
ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou
vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!”
Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a
Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha
veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na
mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.
—
Sente-se,
canalha!
O
Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares
dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a
página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do
adversário.
—
Abra
a boca! — ordenou.
Mendanha
abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos,
amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.
—
Come!
— gritou.
Os
olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.
—
Coma!
— sibilou o general.
Mendanha
suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do
revolver e rosnou com raiva mal contida.
—
Coma,
pústula!
E
o homem comeu.
Um
avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O
general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro
se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho
para o ar, numa ameaça.
—
Patifes!
Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no
cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem
macho.
Fica
olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos
telhados da cidade.
No
seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas.
Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para
gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje!
Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem
contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que
voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A
guerra perdeu toda a sua dignidade.
O
general remergulha no devaneio.
93…
Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se
aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de
cinquenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!
Morte…
O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os
olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais
esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de
acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.
Os
seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária
estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque
rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo.
Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo.
Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os
“maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo
não se poupa. Ferro neles!”
Sorriu
um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos
mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio
pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais
sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não
ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a
madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens
degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general
passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos,
antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no
espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar
churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na
mente: “Inimigo não se poupa”.
O
general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um
gato é um bicho.
Lambe
os lábios gretados. Sede. Procura gritar:
—
Petronilho!
A
voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de
um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.
—
Petronilho!
Negro safado! Petronilho!
Começa
a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta
aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e
um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?
— Que é, vovô?
—
Morreu
a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o
Petronilho?
—
Está
lá fora, vovô.
—
Ele
não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.
—
Não
precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?
—
Quero
um copo d’água. Estou com sede.
—
Por
que não toma suco de laranja?
—
Água,
eu disse.
A
neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus
negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu
no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto,
um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com
tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo,
na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos
nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal
educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a
transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão
delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que
lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do
Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em
1923…
Um
dia ele perguntou ao menino:
—
Chiquinho,
você quer ser general como o vovô?
—
Não.
Eu quero ser doutor como o papai.
—
Canalhinha!
Patifinho!
Petronilho
entra, trazendo um copo de suco de laranja.
—
Eu
disse água! — sibila o general.
O
mulato sacode os ombros.
—
Mas
eu digo suco de laranja.
—
Eu
quero água. Vá buscar água, seu cachorro!
Petronilho
responde sereno:
—
Não
vou, general de bobagem…
O
general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente
atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.
—
Canalha!
— cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!
—
Suco
de laranja — cantarola o mulato.
—
Água!
Juventina! Negro patife! Cachorro!
Petronilho
sorri:
—
Suco
de laranja, seu sargento!
Com
um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do
criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e
esquiva-se do golpe.
O
general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos,
fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados,
uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.
Petronilho
sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio
oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa,
comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os
últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta
Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos
escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última
eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general
chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu,
disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…
Petronilho
compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr
do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou.
O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já
falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém
mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a
notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como
enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a
Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de
meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno
metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo
desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo!
Cessar Fogo! Acampar”.
E
recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para
glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o
busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.
Mais
sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o
copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os
beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato
volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.
O
general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe
pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus
candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua
conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma
sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser
brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz
que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor
resistência a uma ordem sua.
Fecha
os olhos e recorda a glória antiga.
Um
grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto
brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão
incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em
divagações…
Que
será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais
aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem”
da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que
acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade,
fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus
antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã
o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos
Campolargos!
E,
dispneico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia
do sol.
De
repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:
—
Vovô!
Vovô!
Traz
a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do
general.
—
A
lagartixa, vovozinho…
O
general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha
delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar
interrogador. Alvorotado, o menino explica:
—
Degolei
a lagartixa, vovô!
No
primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa.
Depois murmura, comovido:
—
Seu
patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se
poupa. Seu patife!
E
afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de
sáurio.
*
Foi
um dos escritores brasileiros mais populares do século XX.
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