segunda-feira, 31 de outubro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Liberdade no século XXI.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Encosto”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, crônica, “Nas nuvens”.

Coluna Porta Aberta – José Luiz Grando, poema “Chama negra”.

Coluna Porta Aberta – Paulo Lisker, crônica “O senhor Sadigursky”..

Coluna Porta Aberta – Eliane Triska, poema “Madrugada de orações”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Liberdade no século XXI

A liberdade é um daqueles tantos conceitos ambíguos, citados a todo o instante, mas que suscitam múltiplas interpretações. Temos intuição íntima do que significa e de como desejamos que seja, mas não conseguimos defini-la com precisão e muito menos estabelecer onde começa e onde termina, embora não em casos extremos, claro. Sua total supressão, por exemplo, nos é clara (e intolerável), posto que muito mais comum do que desejamos. Mas seu caráter absoluto e irrestrito é pura ficção. Nunca existiu e nem irá existir a liberdade sem nenhum limite. Ela é sempre relativa e parcial.
Aquela história de ser livre para fazer o que, quando e onde queremos, sem dar satisfações de nenhuma espécie, e para ninguém, dos nossos atos, é ilusão. Pode até ser (e é) o ideal dos anarquistas, que se opõem a hierarquias e sistemas de toda e qualquer espécie (inclusive do casamento), mas essa “ideologia” (creio que podemos lhe dar essa designação), nunca prosperou.
Do nascimento à morte, com maior ou menor intensidade, sempre tivemos, temos e teremos que prestar contas dos nossos atos a alguém: aos pais, aos educadores, à esposa, ao patrão, às autoridades constituídas e vai por aí afora. Sempre que tratamos de liberdade, portanto, está implícita a que é relativa. É ela que caracteriza as legítimas (será que legítimas mesmo?) democracias contemporâneas.
Bem, o assunto é fascinante, enseja muitas vertentes para reflexão, mas não é propriamente dele que vou tratar. Meu tema é muito mais trivial, é um comentário superficial e de passagem sobre o novo livro do escritor norte-americano Jonathan Franzen. E o título desse romance, sucesso editorial nos Estados Unidos e, lançado no Brasil em maio de 2011 pela editora Companhia das Letras, é justamente este: “Liberdade”.
As opiniões dos críticos a respeito desse romance oscilam de um extremo a outro. Uns, avaliam-no com incontido entusiasmo e incorrem (no meu entender) até em certo exagero. Para o jornal “The Guardian”, trata-se do livro “do ano” (no caso, 2010, quando foi lançado nos EUA) e do “século” (que, convenhamos, ainda está, praticamente, no início). A revista “Time” recebeu-o com idêntico entusiasmo. Dedicou-lhe uma das suas disputadas capas em 2010 e chamou Jonathan Franzen, de 52 anos (recém-completados) de “o grande romancista norte-americano da atualidade”.
Mas... é raro alguém conseguir agradar, simultaneamente, “a gregos e troianos”, principalmente quando se trata de literatura. Alguns críticos, por exemplo, consideram que “Liberdade” poderia ser mais “enxuto” e que são dispensáveis as 605 páginas que tem. Embora elogiem o enredo, as várias tramas, os personagens verossímeis e atuais, entendem que há excesso de descrições, que seriam supérfluas e que tornam a leitura, em determinados trechos, chata e enfadonha. Bem, considero que não se deva descambar para nenhum tipo de exagero. Ou seja, como se diz no popular, “nem tanto ao céu e nem tanto à terra”.
O livro, de fato, é muito bom e, sobretudo, atual. Trata-se de um épico enfocando uma família do Meio Oeste dos Estados Unidos da década de 1980 até a eleição de Barak Obama para a presidência, situando-se, portanto, em todo o período da polêmica gestão de George W. Bush (2001-2009) na Casa Branca. O autor cita, por exemplo, a todo o momento, o fatídico 11 de setembro de 2001, que redundou numa dramática mudança de postura e de atitude dos Estados Unidos face o mundo, notadamente com as invasões do Iraque e do Afeganistão.
O livro poderia ser mais “enxuto”? Poderia. Sempre pode. Todavia, discordo que sua extensão torne a leitura enfadonha e muito menos chata. Como discordo, também, que se trate do “romance do século”. Talvez, mas apenas talvez, possa ser considerado o “melhor do ano”, embora 2010 tenha se caracterizado por excelentes lançamentos, do mesmo nível ou, quem sabe, melhores do que “Liberdade”.
Franzen não é “marinheiro de primeira viagem”. Este já é o seu quarto livro. Os três anteriores também foram muito bem recebidos pela crítica e pelo público, apesar de não com tamanho alarde como este. Sua estréia, ocorrida em 1996, curiosamente, deu-se com uma obra de não ficção. Foi com o ensaio “Perchance to Dream” (não sei se chegou a ser lançado no Brasil), tratando do estado da literatura.
Jonathan Franzen nasceu em 17 de agosto de 1959 em Western Springs, no Estado de Illinois. Seu pai é um imigrante sueco e a mãe norte-americana. É formado em letras germânicas. Embora tenha criticado muitas vezes a televisão e as outras mídias contemporâneas, cita-as, vezes sem conta, em seu livro. Indagado a respeito, em entrevista que concedeu à Folha Ilustrada, em 27 de maio de 2011, justificou da seguinte forma esta aparente contradição: “Eu me isolo delas. Quando estou trabalhando, não tem música, internet. Gosto delas, mas distraem facilmente. Porém não vejo a razão do Twitter e o Facebook me irrita. Já o e-mail é uma invenção maravilhosa, e abrandei minha posição sobre a TV. Algumas séries se desenvolvem como os grandes folhetins do século XIX”.
Franzen admite ter sofrido influência de vários escritores, não somente contemporâneos, mas, inclusive, de vários clássicos. Cita, em “Liberdade” – e mais de uma vez – “Guerra e Paz”. A esse respeito, comentou, na citada entrevista à Folha Ilustrada: “Quando estava travado, um livro que me fez andar foi ‘O teatro de Sabbath’, de Philip Roth. Pensei muito em Stendhal, Tolstoi e em Alice Munro, gênia canadense”.
Fica, pois, mais esta sugestão de leitura e que ela o leve, caro leitor, a refletir sobre os vários aspectos da liberdade e, principalmente, sobre a ambiguidade deste conceito.

Boa leitura.

O Editor.



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Desenho de Ivan Maurício

Encosto

* Por Talis Andrade

Estranho poder
me toma o corpo
Tudo acontece
como se me
transformasse
em uma outra pessoa
Na carne que rasteja
na carne que lateja
o meu corpo age
como que possuído
por indefinida
invisível força
Estranho poder
me toma o corpo
doendo em mim
como um encosto
maligno e ruim
Dor ferida
camuflada
de vidas passadas
Errática
dor referida
atípica
que fustiga
Dor cansada
antiga
que nunca termina

(Livro “Selos do Apoicalipse”)

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






Nas nuvens

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Vivia a espreitar os deuses. Imaginava-os misturados aos mortais. Via-se num amplo salão dourado desfilando num lindo vestido branco atraindo todos os olhares para si.
Desperta de seus devaneios com o toque de seu homem em seus seios. Ele a chama de deusa, não a força...mas clama.
Repousa-a e devagar abre suas pernas, lambendo-a suavemente. Ela não pensa mais nos deuses, entrega-se com ardor e volúpia, gemendo alto para as estrelas.
Escondidos entre as nuvens, os deuses a espiam, despertos de seu sono eterno.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário






Chama Negra

* Por José Luiz Grando

A chama negra
Alastra-se outra vez e...
corpos queimados aparecem
deixados de lado.
Escarnece pobre, padece
pobre.
Engole o vômito dos barbas
brancas.
Branca depressão onde
tudo termina no coração.
Delinqüentes, tão jovens,
e ainda inocentes,
Vendendo seus corpos como
eternos
Prisioneiros sem saída.
Nada mais inebria, nem a
Neblina disfarça a vergonha
espalhada como lixo
pelo mundo capitalista.

• Poeta de Itajaí/SC


O senhor Sadigursky*

** Por Paulo Lisker


Gorducho, baixinho, fanhoso e sempre suado. Dezenas de anos vividos no Recife e não se acostumou com o clima quente e úmido da nossa cidade. Era solteirão e as noites depois das conversas com os patrícios na Praça Maciel Pinheiro, sentava-se no seu quartinho no "pé de escada" e quando a "musa baixava" compunha ou reescrevia músicas "kleizmer" que ouvira na sua aldeia onde pintores e músicos viviam sob influência do "violista no telhado" que ficou para a posteridade gravada no quadro do pintor judeu Marc Shagall.
Pra quem não conhece o estilo "kleizmer" do "violinista no telhado", produzido nas aldeias do leste europeu nos séculos passados, saiba que é uma melodia que parece que todos os instrumentos choram até quando a musica é alegre. Música que caracteriza um povo sofrido, obrigado ao exílio, migrando pelo mundo afora sem nunca se fixar em parte alguma. A eterna esperança que promete a religião judaica nas suas rezas: "Be shaná há bá be Ierushalaim, que significa: "No próximo ano em Jerusalém". Em "trocado" quer dizer que um dia voltariam à terra de seus ancestrais, Eretz Israel.
Este nome kleizmer provém da palavra hebraica "kli" que significa instrumento, neste caso, musical. Instrumentista ou tocador de um instrumento musical. Hoje em dia ela ressuscitou e é muito procurada e admirada pela geração atual dos judeus e não judeus pelo mundo afora. Uma espécie de saudade de um tempo que se foi.
Senhor Sadigursky às vezes também era maestro quando convidado para os festejos judaicos na Sociedade Israelita na Rua da Glória. Durante uma hora ou duas tomava a batuta com suas músicas "kleizmerianas" conduzindo a "Banda Acadêmica" ou a da Policia Militar do quartel do Derby, quando estas eram convidadas para animar as festas e as danças na sede da Sociedade Israelita.
Capiba era "persona grata" na comunidade judaica do Recife (um tempo morou na Pensão Internacional, casarão encostado ao nosso, na Rua Gervásio Pires). Quase sempre os dois estavam presentes nestas festividades e se dividiam dirigindo a orquestra ou a banda.
Capiba tinha uma grande estima pelo "Maestro Sadigursky" e lhe dava o maior respeito. Ele era um "músico por natureza", que nunca estudou música.Uma vez Capiba lhe perguntou onde aprendera música. O senhor Sadigursky meio sem jeito respondeu: “Com meu Rabi (rabino), na minha aldeia na Europa. Ele me ensinou a ler as escrituras sagradas e quando você acredita no que lê, a forma das letras hebraicas, a entonação dada à leitura das frases no documento, a melodia quando cantamos os Salmos, tudo isso nos introduz e ensina a divina música da vida. Foi assim que aprendi maestro Capiba!”
Capiba abraçou-o e passou para ele a batuta da banda acadêmica que tocava suas últimas composições.Este mascate senhor Sadigursky, era um "pau pra toda obra" como dizemos nós, os nordestinos. Os anciãos da época diziam que durante a Segunda Guerra Mundial uma parte de sua família sucumbiu de fome e tifo no gueto e o que sobrou foi exterminado pelos alemães nazistas nos campos de concentração espalhados pela Europa.
Ele contava aos conterrâneos, na Praça Maciel Pinheiro, que deixou na Europa, antes de vir para o Brasil, uma família de pelo menos cem parentes e parece que nenhum deles desta numerosa família sobreviveu ao Holocausto. (guetos e campos de concentração nos países conquistados pelo exército alemão nazista).
Como último recurso pediu ajuda à "Sochnut Haiehudit" (Agência Judaica) que operava em todo o mundo em busca de informações sobre sobreviventes e refugiados, espalhados e vagando pela "Europa sem fronteiras". Esta Agência contatou com dezenas de outras organizações filiadas à Cruz Vermelha e outras ONGs internacionais e nenhuma informação sobre a família Sadigursky foi conseguida.
Milhares de refugiados vagavam daqui pra lá e acolá pelo continente europeu que tornava a missão muito difícil, quase que impossível. Com o decorrer do tempo, já totalmente desiludido por não receber noticia alguma de nenhum familiar vivo, não teve outro caminho a não ser se conformar e tocar a vida para adiante. Triste e abatido estava agora pronto a "sentar Shivá". (Um costume religioso de sentar no chão durante 7 dias). Lastimando o acontecido e a enorme tristeza física e espiritual pelos familiares mortos. Neste seu caso particular, vitimas das atrocidades dos nazistas alemães e seus colaboradores.
Mas sempre vem a aurora toda manhã e com ela começa um novo espertar da humanidade e novas esperanças. Com a ajuda dos exércitos aliados que libertaram os campos de concentração e cidades ocupadas pelos nazistas começaram a aparecer listas com nomes de sobreviventes de todas as nacionalidades inclusive de judeus.
Dos Sadigursky nada! Como se a terra os tivesse engolido. As organizações civis voluntárias judaicas muito ajudaram com dinheiro, mantimentos, alimentos, porém todos seus esforços eram dedicados no sentido de retirar esta gente do continente que se transformara num verdadeiro inferno, para lugares onde seria possível reabilitá-los.
A pressão mundial foi forte, lembravam o destino do navio abarrotado de judeus que chegou a Cuba e lá também se negaram deixá-los desembarcar. Hoje eu digo aos "meus botões": “Idiotas, estes cubanos. Quantos Prêmios Nobel perderam mandando os fugitivos judeus de volta para o matadouro nazista alemão na Europa”. Quem sabe, se não foi um castigo divino que Cuba está do jeito que está no século XXI. O fim da estória foi que o navio voltou para a Europa e lá mais cedo ou mais tarde foram todos assassinados pelos nazistas e seus comparsas nos países por eles conquistados.
No Brasil a coisa não foi muito diferente. Antes e durante a guerra também o Brasil se opôs a receber fugitivos judeus da Europa. Ao terminar a guerra mudou sua política emigratória, porem com algumas cláusulas draconianas.
O pobre imigrante judeu deveria possuir uma profissão que fosse prioritária para a economia brasileira. Maneira elegante de dizer "vocês não são o nosso xodó".
Agora imaginem judeus que saíram dos campos de concentração nazistas e escaparam às câmaras de gás, aos fornos de incineração, famintos e esqueléticos: só o que lhe faltava era trazer debaixo do braço um titulo de estudos que provasse terem uma profissão prioritária para as terras brasileiras.
Interessante que a profissão prioritária mais proeminente nas cláusulas do serviço de emigração, era de agricultor. Imaginem quantos judeus europeus entrariam no Brasil. Tá vendo né! Para tudo se dá um jeito quando se está com as "costas na parede". Arrumaram os "documentos" necessários para os judeus.
Assim desembarcaram no Brasil e claro também no Recife. Ninguém podia imaginar que depois de terminar a guerra apareceria num belo dia sol, (no Recife quase sempre faz sol) como por encanto, o irmão gêmeo do senhor Sadigursky, proveniente do "inferno europeu".
A surpresa foi enorme, muito choro misturado com alegria! A Praça Maciel Pinheiro se enchia de judeus para tocar neste milagre que desembarcou agorinha no porto do Recife. Não só o senhor Sadigursky tinha mil perguntas pra fazer ao irmão gêmeo, porém a colônia israelita em peso queria saber de parentes e famílias que deles não tinham noticias desde que rebentou a Segunda Guerra Mundial na Europa. Aos poucos o pessoal entendeu que este pobre coitado só podia contar pouca coisa ao seu irmão sobre o que se passou com a sua família e olhe lá.
Não sabia nada mais, nem datas, nem lugares nem o que aconteceu mesmo com seus visinhos judeus que de noite ou de madrugada foram levados pelas tropas sadistas nazistas e seus colaboradores nos países conquistados e desapareciam para sempre, ninguém sabia para aonde. Sabia contar que se ouvia muito tiro, muita gritaria dos soldados nazistas e o latir dos seus cães.
Ele mesmo e o resto da família foram parar num campo de concentração manejado pelos ucranianos colaboradores dos malditos nazistas alemães. Daí pra frente lembrava-se só do inferno que era o campo de concentração. Os sofrimentos, os castigos, o trabalho forçado, a fome e a luta no dia a dia com uma fatia de pão e uma sopa rala com as cascas de batata que sobravam da cozinha que alimentava os soldados nazistas neste campo. Sobreviveu a este inferno que os nazistas prepararam antecipadamente com o propósito de exterminar o povo judeu. Projeto denominado a "Solução Final".

* SADIGORA: uma pequena cidade no leste europeu (Ucrânia) que gerou durante gerações Rabinos ultra ortodoxos.

• Escritor


Madrugada de orações

* Por Eliane Triska

Madrugadas passageiras, orem!
Aos versos torturados e insones.
São órfãos, viúvos e sem nomes
Às mãos poetas que o socorrem.

Aceito em cuidá-los como meus!
Pássaros sequiosos de alimentos
Lágrimas de choros sonolentos
Torres que se erguem para Deus!

Sopro-lhes no ventre e recito,
Versos d'um universo mais bonito;
Vagidos do berçário das estrelas

Que doam-se à luz ainda criança
E morrem no vaso da esperança
De cegos que não podem percebê-las.

• Poetisa gaúcha residente em Canoas/RS

domingo, 30 de outubro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Criando sob pressão.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “O maior desastrado”..

Coluna Direto do Arquivo – José Paulo Lanyi, poema “Prenderam o desgraçado!”.

Coluna Clássicos – Tomás Antonio Gonzaga, poema. “Poema”.

Coluna Porta Aberta – Fausto Brignol, artigo “Braço forte, mão amiga”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo “A ilusão de uma economia verde”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Criando sob pressão

O escritor russo, Fedor Dostoievski, foi, sem dúvida, um inovador, não apenas na literatura russa, mas nas letras mundiais. Essa constatação é ponto pacífico e chega a soar óbvia. Mesmo os críticos mais ferozes dos seus livros (e, creiam-me, existem) admitem sua importância. Eu poderia, facilmente, rebater os reparos que eles fazem com opiniões muito mais abalizadas do que as deles, de intelectuais de reconhecido (e merecido) prestígio mundial. Consultando a enciclopédia eletrônica Wikipédia, por exemplo, anoto a declaração do russo Alexei Remizov que, durante seu exílio em Paris, em 1927, escreveu: “A Rússia é Dostoievski. Rússia não existe sem Dostoievski”.
No período de existência da União Soviética, muitos escritores reconheceram a importância do autor de “Crime e castigo”, admitindo terem sido influenciados por ele. Máximo Gorki, por exemplo, era admirador da temática e do estilo de seu ilustre conterrâneo. Outros tantos, todavia, consideraram-no “decadente”, sem que justificassem com clareza, com argumentos sólidos, sua estúpida opinião. Quais foram esses detratores? Foram tão obscuros, que ninguém se lembra dos seus nomes. Nem eu. Já Dostoievski...
Recorrendo, ainda, à Wikipédia, cito uma referência do controvertido, todavia reputado filósofo alemão, Friedrich Nietzsche. Ele afirmou, sem restrições ou ambigüidades, que o criador do romance “Os irmãos Karamazov” era o “único psicólogo com que tenho algo a aprender: ele pertence às inesperadas felicidades da minha vida, até mesmo a descoberta de Stendhal”. Poderia citar uma infinidade de personalidades das letras que se confessaram influenciadas por Dostoievski. Ernest Hemmingway foi uma delas. Admitiu essa influência, em uma de suas derradeiras entrevistas, antes de cometer suicídio.
Um dos aspectos a considerar, na obra desse gênio literário, que considero da maior relevância, é o fato dele raramente ter escrito um livro com calma, com todo o tempo do mundo para planejar, pesquisar, redigir e revisar, sem que se sentisse, ou melhor, sem que fosse intensamente pressionado para a entrega dos originais. O escritor Mário Pontes, citado pela Wikipédia, lembra que “toda a obra (original) de Dostoievski foi escrita em circunstâncias adversas: luto, doenças, dívidas, incontrolável atração pelo jogo, censura e vigilância policial”. Você, que escreve textos literários, e não necessariamente livros, sabe, com certeza o quanto é difícil sequer escrever nessas circunstâncias, quanto mais fazê-lo bem.
A esse propósito, um leitor deste espaço, daqui de Campinas (onde resido há praticamente meio século) lembra de um filme, exibido no Teatro Castro Mendes, em 1984, que trata exatamente dessas pressões a que o genial russo era submetido para produzir furiosamente e com data marcada para a entrega de contos, novelas e romances. E, além de pressa, exigiam o padrão de qualidade que nunca faltou em nenhum dos seus escritos. Por coincidência, tive o privilégio de também assistir a essa produção cinematográfica. O filme foi exibido no contexto da “Semana do Cinema Soviético”, promovida pelo Museu da Imagem e do Som aqui de Campinas, no período de 27 de março a 1º de abril de 1984.
A produção, rodada em 1981 e que pode ser encontrada na internet, intitula-se “26 dias na vida de Dostoievski”. O roteiro, inteligente e informativo, é dos escritores Pavel Finn e Vladimir Vaynshtok. O filme foi dirigido por um dos cineastas mais populares da então União Soviética, Alexander Zarkhi, detentor do título de “Herói do Trabalho Socialista” e de “Artista do Povo”. Destaquem-se as magníficas performances dos atores Anatoli Solonitsyn (não confundir com o escritor Soljenitsyn), Euguênia Simonova e Eva Chikoulska.
O mérito principal do filme é a rigorosa construção, na verdade reconstrução, de personagens. Apresenta-nos um Dostoievski à beira de velhice (recorde-se que morreu precocemente para os padrões atuais, pouco depois de completar 60 anos), doente e alquebrado por uma vida de percalços (como os anos em que passou num campo de trabalhos forçados em Omsk, na Sibéria, cidade que ostenta, hoje, imensa estátua em sua homenagem) e dissabores. O título refere-se ao ultimato que o escritor recebeu de seu editor: que escrevesse e entregasse uma nova novela em impreteríveis 26 dias. Caso ultrapassasse esse prazo, teria os direitos autorais de todos seus outros livros confiscados, a título de multa contratual.
Esse tipo de situação nunca foi novidade na vida de Dostoievski. Pelo contrário, constituía-se em rotina. Boa parte da fortuna que sua magnífica obra literária lhe rendeu (ou poderia lhe render) foi parar em mãos de terceiros. Mais especificamente, de vorazes agiotas. E não foram poucos os que se aproveitaram da sua inabilidade para gerir as próprias finanças (e a própria vida, como destaquei em textos anteriores). O escritor tinha compulsão pelo jogo e raramente ganhava. É sina dos viciados. Perdia, perdia e perdia. Numa única noite, deixava, nos cassinos da Europa, notadamente em Monte Carlo, no Principado de Mônaco, fortunas que, se bem empregadas, assegurariam estabilidade financeira e uma vida confortável para ele e para a família por muitos e muitos anos.
Por isso, eventuais falhas em seus livros, principalmente de estilo as mais citadas (afinal, ninguém é perfeito em atividade nenhuma), têm que ser relevadas. Se elas de fato existirem (e sei lá se existem mesmo), passam despercebidas face à preponderância de sua genialidade e facilidade de escrever. E quase sempre (diria sempre mesmo) sem tempo sequer para respirar, quanto mais para pesquisar cenários e personagens, projetar enredos, redigir com calma e reflexão os textos e revisar meticulosamente seus livros, como compete a qualquer escritor que se preze.
Não é por acaso, pois, que impressionou tanto a homens geniais e sumamente seletivos, como Nietzsche e Freud (entre tantos). Ou que tenha influenciado figuras do porte de Hermann Hesse, Marcel Proust, William Faulkner, Albert Camus, Franz Kafka, Ernesto Sábato, Ernest Hemmingway e até o não menos genial Gabriel Garcia Márquez.

Boa leitura.

O Editor.


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O maior desastrado

* Por Pedro J. Bondaczuk

O sujeito desastrado, aquele que invariavelmente tropeça onde e quando não deveria tropeçar, que mostra extrema inabilidade nas tarefas e relacionamentos mais triviais e que faz tudo errado, quando as circunstâncias lhe são benignas e favoráveis, faz a delícia dos que vivem de fazer humor. Hollywood sempre explorou com competência o tipo, para fazer multidões rirem (mais do que isso, chorarem de tanto gargalhar) com personagens trapalhões, como o imortal Carlitos de Charles Chaplin, o Gordo e o Magro, os Três Patetas, Cantiflas, Edie Murphy e tantos e tantos outros, que ao longo dos anos foram um santo remédio para desopilar nosso fígado.
Na literatura, o tipo também (como não poderia deixar de ser) é bastante explorado. Na televisão, nem é preciso lembrar. Todos os programas humorísticos têm lá o seu trapalhão, com ou sem bordões característicos, a garantirem o Ibope das emissoras. Todos nós, porém, em maior ou menor medida, somos, em determinadas circunstâncias, incorrigíveis desastrados. Nem sempre nossas trapalhadas são motivos de riso para os outros e, pior, para nós mesmos. Às vezes, são para se lamentar e se chorar. Marcam nossas vidas e, não raro, as arruínam.
No mundo, convenhamos, não faltam pessoas desastradas, que fazem tudo errado e depois se queixam das conseqüências, que quase sempre são óbvias e, portanto, evitáveis. Há, por exemplo, os que envenenam os relacionamentos afetivos com prepotência, egoísmo e ciúme e depois acham estranho o fato de acabarem sozinhos.
Há, também, os que se mostram irresponsáveis na execução de suas tarefas e se lamentam quando são demitidos. Mas o maior desastrado de todos é o sujeito com reconhecido potencial para ser bem-sucedido nas artes, nos esportes, em alguma profissão etc., mas desperdiça seu talento ao fazer escolhas equivocadas.
A maior insensatez é a da pessoa com obsessão pelo dinheiro. É a de quem concentra toda a atenção e esforços somente nisso, a pretexto de “ganhar a vida”. Todavia, agindo assim, na verdade a desperdiça, deixando de usufruir bons momentos que surgem em seu caminho e que dificilmente voltam depois de haverem passado.
O que devemos é nutrir um ideal elevado e sair na sua conquista, empenhando, nisso, o que tivermos de melhor. Escreva um poema ou um romance; componha uma sinfonia; pinte uma tela com competência; esculpa uma escultura perfeita; construa uma casa ou uma ponte; descubra a cura de uma doença ou faça outra coisa bela ou útil qualquer, mas sem se preocupar com o que ou o quanto isso irá lhe render.
Se o que você fizer de fato tiver valor, fatalmente você será recompensado por isso. E se não for? A satisfação íntima da realização de uma obra-prima será uma compensação mais do que valiosa, pois é algo que não tem preço. Não seja, pois, o desastrado dos desastrados. Não faça como aquela mãe que jogou o bebê junto com a água do banho. Nunca jogue a vida fora!
Um dos princípios fundamentais do budismo diz que para evitarmos sofrimentos – causados, sobretudo, pela frustração – temos que eliminar os desejos. Se não todos, pelo menos a maior parte deles precisa ser eliminada. Quanto mais os eliminarmos, maiores serão as possibilidades de nos sentirmos felizes. Impossível? Não! Mas é extremamente difícil.
Somos (salvo raríssimas exceções) desastrados nesse aspecto. Desejamos tanto o que pode ser alcançado, quanto (e principalmente) o que está absolutamente fora do nosso alcance. E este último tipo de desejo é que se torna a grande armadilha, que nos impede de encontrar (e de trilhar) o caminho da felicidade.
Quantas vezes somos sumamente felizes e sequer percebemos! Se mantivéssemos essa situação ideal, se a usufruíssemos em sua plenitude e se não desejássemos nada, além dela, nossa vida transcorreria no que os poetas chamam de “mar de rosas”. Não é isso, porém, o que fazemos.
Queremos mais, mais e mais, sempre mais, e nem tudo o que desejamos (diria a maioria) nos é conveniente, útil, saudável, benigno ou, sobretudo, factível. Em três tempos, a frustração, o ressentimento, a sensação de fracasso e a mágoa toldam-nos o céu que, nublado, não nos permite vislumbrar o resplendor das estrelas. E, num piscar de olhos, deixamos que fuja de nossas mãos o pássaro esquivo da felicidade.
O poeta Vicente de Carvalho disse isso com elegância, classe e beleza. Escreveu, no terceto com que encerrou seu célebre soneto “Velho tema – I”: “Essa felicidade que supomos/árvore milagrosa que sonhamos/toda arreada de dourados pomos,//existe, sim; mas nós não a alcançamos/porque está sempre apenas onde a pomos/e nunca a pomos onde nós estamos”. E não é verdade? Somos ou não somos, pois, incorrigíveis trapalhões, imensos desastrados?!



* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk






Prenderam o desgraçado!1
(1- ou O doce vagido da existência)


* Por José Paulo Lanyi


Um dia a cidade sorriu, vingada da solidão
Puseram-lhe as mãos, enfim
Deram-lhe uns tapas
Entregaram-no a uma mulher2

A sádica ria
Ah, como ria!
De tudo o que faria com ele!

A mulher tinha todos os dentes
O pobre, nenhum

Quanto mais ele chorava,
Mais ele alegrava,
E muitos vieram bisbilhotá-lo (sic)

Meteram-lhe na cela
Cunharam-lhe o RG
Celebraram, matreiros,
Incenso, mirra, algema dourada
“Mais um!”, “mais um!”, “mais um!”,
Berraram os algozes, ao som das charangas
E de naipes de trombetas, também...
(ah!, e das cuícas, se bem me lembro...)

Deixaram-lhe lá, o sem-vergonha
Agora ele apanhava e batia, já
Sem cerimônia
E a sádica sorria, feliz,
Apesar da enxaqueca- ressalte-se-, aquela maldita enxaqueca. A enxaqueca é um mal feminino. As mulheres, como se sabe, enfrentam a dor com uma bravura que, de tão brava, poder-se-ia dizer masculina, mas isso é assunto para uma página inteira de prosa. Prossigamos, então, com os meus versinhos:

Certo tempo depois, 18 anos, pouco mais, pouco menos,
Prisão perpétua, ainda, bem entendido,
Nada de azul ou de rosa
Agora, a cor que lhe desse na telha
Prisioneiro exemplar, acinzentou o firmamento, o boçal (refiro-me ao prisioneiro, jamais chamaria o céu de boçal, que isso fique claro)

A sádica?! Oh!, ele chamou-a de mãe!
Um dia mandou-a pastar, como qualquer idiota poderia prever

Casou-se (ele, não a mãe) com outra
Ainda mais sádica,
Ambos com a bunda vermelha (chicotes vergastam as bundas mais improváveis) e a boca abarrotada de dentes

Juntos, cunharam RGs,
Ao som dos apitos
(e dos gemidos que habitam as entranhas do mundo)

Um dia, contudo, libertaram-no
Mas ele não voltou para contar para onde foi2A

Quem souber, por favor me avise
Por ora, me entendo com os copos
E com as curvas das mulheres
Sádicas, (oh!, ignóbil formosura!) cheias de enxaqueca para dar e, principalmente,
Vender.


2- Glossário de idéias para o leitor pouco chegado a uma sutileza: é a mãe do nenezinho, sacou? O prisioneiro é qualquer um que nasce no mundo, valeu?

2A- É uma imagem da morte, essa é fácil- ao menos, foi o que o meu cachorro achou...



(*) Jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea “Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos” (no prelo), todos da editora O Artífice. Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a trilha “Invernada Op1 N1” e a sinfonia Atlântica.






Poema

* Por Tomás Antonio Gonzaga

De amar, minha Marília, a formosura
não se podem livrar humanos peitos.
Adoram os Heróis, e os mesmos brutos
aos grilhões de Cupido estão sujeitos.
Quem, Marília, despreza uma beleza
a luz da razão precisa;
e se tem discurso, pisa
a lei, que lhe ditou a Natureza.

Cupido entrou no céu. O grande Jove
uma vez se mudou em chuva de ouro;
outras vezes tomou as várias formas
de General de Tebas, velha e touro.
O próprio deus da guerra, desumano,
não viveu de amor ileso;
quis a Vênus, e foi preso
na rede, que lhe armou o deus Vulcano.

Mas sendo Amor igual para viventes,
tem mais desculpa ou menos esta chama:
amar formosos rostos acredita,
amar os feios de algum modo infama.
Quem lê que Jove amou, não lê nem topa
que amou vulgar donzela:
lê que amou a Dánae bela,
encontra que roubou a linda Europa.

Se amar uma beleza se desculpa
em quem o próprio céu e terra move,
qual é a minha glória, pois igualo
ou excedo no amor ao mesmo Jove?
Amou o pai dos deuses soberano
um semblante peregrino;
eu adoto o teu divino,
o teu divino rosto, e sou humano.


(Do livro "Marília de Dirceu").


• Poeta barroco mineiro, um dos participantes da Inconfidência Mineira






Braço forte, mão amiga

* Por Fausto Brignol

Se você necessitar de internação no Hospital Militar de Bagé, RS, deverá preparar-se para acampar. O hospital fornece o básico, mas não mais que isso.
Leve cobertores e travesseiros, caso contrário poderá passar frio ou sofrer um torcicolo. A teoria é de que soldado dorme em cima da própria mochila e que travesseiros e cobertores são adereços desnecessários.
Não esqueça o celular, que será indispensável. O hospital não tem telefone. Ou, por outra, o telefone do hospital não é disponibilizado para os pacientes ou acompanhantes.
Se você tiver algum familiar naquele hospital, não esqueça de levar a comida. Se optar pelo rancho, prepare-se para usar talheres de plástico. Haverá um pouco de arroz e um caldo negro lembrando feijão. Talvez uma verdura. Uma comida espartana. Tente comer o tijolinho que lhe dão de sobremesa para diminuir o ardor da forte comida militar. E depois use o único palito que lhe foi ofertado. Leve água, apenas por garantia de não passar sede.
Se desejar tomar um chimarrão, leve água quente de casa.
Não esqueça também, de levar papel higiênico, sabonetes, toalhas...
Acredito que devemos fazer uma campanha cívica para salvar o Hospital Militar de Bagé. Por uma questão de saúde. Saúde e civismo.
Observe que se o paciente estiver sozinho, desacompanhado e necessitar de atendimento de urgência, não terá como acionar a campainha, porque não existe campainha nos quartos e apartamentos.
Em substituição, há um telefone ligado diretamente com a enfermaria. Somente com a enfermaria. Se o paciente estiver sozinho e necessitar de algum atendimento de urgência, poderá ou não ter tempo de tirar o fone do gancho. Caso consiga, deve contar com a sorte para ser atendido rapidamente.
Em caso de muita preocupação a respeito de uma pessoa querida que se encontre baixada naquele hospital e você desejar telefonar para saber a respeito, prepare-se para obter uma resposta depois de um tempo não inferior a dez minutos. Os rapazes da recepção, muito solícitos, encaminharão a sua ligação para a enfermaria e isso significa demora. Mas não se preocupe em demasia, porque ficará ouvindo uma música, que poderá ser interpretada como uma calma marcha marcial. Enfim, quando uma enfermeira atender e der as informações solicitadas você se sentirá mais feliz, mas talvez reste alguma dúvida, momento em que você poderá pedir que lhe telefonem de volta. Não peça, ou ficará sabendo que o telefone do hospital não tem bina, o seu número não ficou gravado e não adiantará informar o número, porque não é permitido telefonar do hospital para meras informações.
Urge uma campanha da sociedade civil bajeense para salvar o Hospital Militar. Talvez uma campanha de doações, como tantas que são feitas. Uma campanha assistencialista, com chamadas em rádios, jornais e televisão.
Quanto ao atendimento, é bom. Daquele jeito militar, entenda-se, mas, dadas as extremas dificuldades do hospital, devemos ser compreensivos.
Enfermeiras e médicos são muito compreensivos com os pacientes. Perguntam a toda hora se desejam ter alta. Não é brincadeira. Aconteceu com minha esposa.
Teve que ser internada devido a uma infecção estomacal. Não sabemos ainda se de origem viral ou bacteriana. Não sabemos se é (era?) realmente somente uma infecção estomacal. O diagnóstico não nos foi revelado. O médico que assinou a baixa apenas disse que era uma infecção. Mais nada. Militares são lacônicos, economizam palavras. O médico viu os exames e disse que ela teria que tomar soro contínuo e depois fazer novos exames para ver se deveria ou não ter alta.
Isso foi na sexta-feira passada, dia 21 de outubro. Ela foi encaminhada à enfermaria e uma enfermeira a levou para um apartamento muito bonito. Depois, pediu que ela deitasse e administrou o soro. Ela deitou com a roupa que estava vestindo. No quartel é tudo muito rápido.
Ficamos esperando o médico para nos inteirarmos do diagnóstico, e prováveis maiores orientações. O médico não apareceu. Até agora.
No dia seguinte, o almoço estava salgado. Em um papel pendurado por fita durex na bandeja estava escrita a palavra “Livre”.
No mesmo dia, de tarde, uma médica muito simpática perguntou se ela sentia dores no estômago, se estava bem e se desejava tirar o soro e ter alta. Expliquei que o médico que tinha assinado a baixa é que teria que assinar a alta da paciente, mas depois dos exames – conforme ele mesmo tinha dito. Quase brigamos, mas a médica condescendeu que talvez eu tivesse alguma razão e Lidia continuou com o soro.
Por mais alguns minutos. Procedimentos médicos em hospitais militares são procedimentos militares. Pouco depois, uma enfermeira – forte, falando alto, quase aos gritos, disse que tinha ordem para tirar o soro da paciente. E tirou. Deixou-a com uma agulha presa no braço para o caso de futuras injeções na veia. Injeções que não aconteceram.
No dia seguinte, de tarde, Lidia estava tomando os seus remédios – porque sofre de outras doenças que não cabe aqui serem relatadas – quando foi surpreendida por uma enfermeira, que perguntou por que ela estava se medicando.
Lidia respondeu que estava se medicando por que sofre de outras doenças. Ninguém naquele hospital muito militar sabia disso. O médico não tinha perguntado. Nem o médico nem nenhuma enfermeira. Lidia ainda perguntou para a enfermeira se sabia o que significava “interação medicamentosa”.
Vejam na Wikipédia:
“As interacções entre fármacos são alterações que se produzem nos efeitos de um fármaco devido à ingestão simultânea de outro fármaco (interacção fármaco-fármaco ou interacções medicamentosas) ou aos alimentos consumidos (interacções fármaco-alimento). Esta interação pode reduzir o efeito de um dos fármacos ou potencializá-lo, o que pode causar efeitos imprevisíveis no tratamento.”
Ela teve sorte, mas poderia ter sido vítima de danos ou até de perigo de morte, devido à ignorância militar do médico e das enfermeiras.
Pouco depois, Lidia, sentindo-se totalmente desprotegida, perguntou se poderia ir embora. E lhe foi dito que sim! Ela chamou um táxi e veio para casa. Antes, retirou a ociosa agulha que pendia do seu braço.
Minha esposa é pensionista militar e paga mais de oitenta reais por mês para o FUSEX (Fundo de Saúde do Exército) para ser atendida, quando necessário. O pai dela foi um oficial que serviu a vida inteira ao Exército Brasileiro. Ela esperava ser atendida decentemente. Somente isso, nada mais.

• Jornalista e escritor


A ilusão de uma economia verde

* Por Leonardo Boff

Tudo o que fizermos para proteger o planeta vivo que é a Terra contra fatores que a tiraram de seu equilíbrio e provocaram, em conseqüência, o aquecimento global é válido e deve ser apoiado. Na verdade, a expressão “aquecimento global”esconde fenômenos como: secas prolongadas que dizimam safras de grãos, grandes inundações e vendavais, falta de água, erosão dos solos, fome, degradação daqueles 15 entre os 24 serviços, elencados pela Avaliação Ecossistêmica da Terra (ONU), responsáveis pela sustentabilidade do planeta(água, energia, solos, sementes, fibras etc). A questão central nem é salvar a Terra. Ela se salva a si mesma e, se for preciso, nos expulsando de seu seio. Mas como nos salvamos a nós mesmos e a nossa civilização? Esta é real questão que a maioria dá de ombros.
A produção de baixo de carbono, os produtos orgânicos, energia solar e eólica, a diminuição, o mais possível, de intervenção nos ritmos da natureza, a busca da reposição dos bens utilizados, a reciclagem, tudo que vem sob o nome de economia verde são os processos mais buscados e difundidos. E é recomendável que esse modo de produzir se imponha.
Mesmo assim não devemos nos iludir e perder o sentido critico. Fala-se de economia verde para evitar a questão da sustentabilidade que se encontra em oposição ao atual modo de produção e consumo. Mas no fundo, trata-se de medidas dentro do mesmo paradigma de dominação da natureza. Não existe o verde e o não verde. Todos os produtos contem nas várias fases de sua produção, elementos tóxicos, danosos à saúde da Terra e da sociedade. Hoje pelo método da Análise do Ciclo de Vida podemos exibir e monitorar as complexas inter-relações entre as várias etapas, da extração, do transporte, da produção, do uso e do descarte de cada produto e seus impactos ambientais. Ai fica claro que o pretendido verde não é tão verde assim. O verde representa apenas uma etapa de todo um processo. A produção nunca é de todo ecoamigável.
Tomemos como exemplo o etanol, dado como energia limpa e alternativa à energia fóssil e suja do petróleo. Ele é limpo somente na boca da bomba de abastecimento. Todo o processo de sua produção é altamente poluidor: os agrotóxicos aplicados ao solo, as queimadas, o transporte com grandes caminhões que emitem gases, as emissões das fábricas, os efluentes líquidos e o bagaço. Os pesticidas eliminam bactérias e expulsam as minhocas que são fundamentais para a regeneração os solos; elas só voltam depois de cinco anos.
Para garantirmos uma produção, necessária à vida, que não estresse e degrade a natureza, precisamos mais do que a busca do verde. A crise é conceptual e não econômica. A relação para com a Terra tem que mudar. Somos parte de Gaia e por nossa atuação cuidadosa a tornamos mais consciente e com mais chance de assegurar sua vitalidade.
Para nos salvar não vejo outro caminho senão aquele apontado pela Carta da Terra:”o destino comum nos conclama a buscar um novo começo; isto requer uma mudança na mente e no coração; demanda um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal”(final).
Mudança de mente significa um novo conceito de Terra como Gaia. Ela não nos pertence, mas ao conjunto dos ecossistemas que servem à totalidade da vida, regulando sua base biofísica e os climas. Ela criou toda a comunidade de vida e não apenas nós. Nós somos sua porção consciente e responsável. O trabalho mais pesado é feito pelos nossos parceiros invisíveis, verdadeiro proletariado natural, os microorganismos, as bactérias e fungos que são bilhões em cada colherada de chão. São eles que sustentam efetivamente a vida já há 3,8 bilhões de anos. Nossa relação para com a Terra deve ser como aquela com nossas mães: de respeito e gratidão. Devemos devolver, agradecidos, o que ela nos dá e manter sua capacidade vital.
Mudança de coração significa que além da razão instrumental com a qual organizamos a produção, precisamos da razão cordial e sensível que se expressa pelo amor à Terra e pelo respeito a cada ser da criação porque é nosso companheiro na comunidade de vida e pelo sentimento de reciprocidade, de interdependência e de cuidado, pois essa é nossa missão.
Sem essa conversão não sairemos da miopia de uma economia verde.Só novas mentes e novos corações gestarão outro futuro.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.

sábado, 29 de outubro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Platão e o Mito da Caverna.

Coluna Direto do Arquivo – Fernando Mariz Masagão, poema “Carta a um amor antigo”..

Coluna Clássicos – Honoré de Balzac., conto, “O elixir da longa vida”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “São Pedro de Atacama – A vida”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, poema “O anjo que morava em mim”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema “Poema”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Platão e o Mito da Caverna


As pessoas comuns, que não se destacam por altos dotes de inteligência e sólida cultura, têm, dada a educação formal que recebem (no lar e, principalmente na escola), altamente deficiente, apenas uma pálida e distorcida noção do que se entende por “realidade”. Conhecem apenas seus reflexos e jamais sua extensão.
Era assim no passado remoto, quando o conhecimento adquirido era passado, de uma geração a outra, somente de forma oral, já que não existia ainda o alfabeto e, por conseqüência, a escrita. E continua da mesma forma, pelo menos para a maioria, a despeito do magnífico aparato de comunicação que temos ao nosso dispor.
Entre vários conceitos, por exemplo, a concepção que o homem contemporâneo tem do bem é eivada de distorções e de equívocos. Mais equivocada ainda, fundada em mitos e em contradições, é a sua idéia de divindade. Ou seja, do conceito do suprassumo da perfeição.
A educação formal que se ministra (que na verdade não passa de mero adestramento), salvo raras e honrosas exceções, equivale a se amarrar uma pessoa na entrada de uma gruta escura, sem que ela possa se mover para lado algum, por onde penetra, por uma pequena fenda, tênue raio de sol que, refletido nos objetos, e nos que passam pelo local, projeta sombras nas paredes. Essa imagem resume o célebre “Mito da Caverna”, do filósofo grego Platão, exposto no livro sexto de “A República”.
A totalidade das religiões apresenta o conceito da divindade (ou de divindades, no caso das politeístas), de forma primária, parcial e distorcida. O homem projeta em Deus suas próprias imperfeições, fraquezas e paixões. Ele é figurado, com uma variação ou outra que não O diferencia tanto, como um Ser que premia os bons e castiga os maus. Ou seja, como uma entidade sujeita a suborno, mediante oferendas, velas, orações interesseiras, variados rituais e promessas vagas, em troca de perdão e, sobretudo, de proteção.
O bem supremo, todavia, certamente não é nada disso. O conhecimento pleno é impossível de ser atingido, dada sua extensão e dadas as limitações humanas, embora a sabedoria possa, até certo ponto, ser conseguida. Esta, no entanto, se faz inútil, se desacompanhada de ações.
A tendência de quem “conseguiu enxergar a luz” (e não apenas seus reflexos) é utilizar o conhecimento adquirido em proveito próprio, e nunca a de compartilhar o que aprendeu. Tende a esquecer os que permaneceram atados à frente da entrada da caverna, tendo diante de si apenas sombras de sabedoria.
Platão ressaltou que a virtude dessa ciência da realidade “tanto pode ser um bem inefável, quanto um mal”. Os maus também podem alcançar a agudeza do conhecimento, com a mesma competência dos bons, contudo, desperdiçam essa luz em atos mesquinhos e projetos reprováveis.
O Mito da Caverna e, por extensão, toda a filosofia platônica, toma como ponto de partida o “conceito”. O professor Theobaldo Miranda Santos, em seu “Manual de Filosofia”, destaca que este era o verdadeiro objeto da ciência para Sócrates, o mestre de Platão, cujas lições ele ouviu por dez anos. Mas, ao contrário do mestre, relacionou-o com a realidade.
O conceito, por exemplo, pode ser distorcido, como no caso das sombras vistas pelos que estavam amarrados à frente da entrada da caverna. Esses prisioneiros da ignorância, confiando apenas nos sentidos, achavam, até, que as vozes que ouviam eram provenientes dessas ilusões de ótica, que achavam que eram reais.
A realidade só poderia ser vista à luz do sol, fora da gruta, e após a vista ter se acostumado à luminosidade, vencido o ofuscamento decorrente do tempo passado em trevas. Mas se esses homens, libertados da caverna, já ambientados à luz solar, voltassem ao estado anterior, ou seja, à escuridão, em pouco tempo voltariam a pensar como antes. Regrediriam na identificação da realidade.
Platão ressaltou que “os ofuscamentos físicos, assim como os morais, são de duas formas: daqueles que saem das trevas para a luz e dos que da luz revertem às trevas”. Ou seja, recaem na ignorância, por falta de exercício da recém-adquirida nova visão da sabedoria. Quem já contemplou a visão divina, por exemplo, não quer (compreensivelmente) voltar a se ocupar das coisas humanas, com suas feiúras de caráter e horrendas distorções.
Mesmo no plano das idéias, Platão condenava os extremos. Afirmava que nem os que não têm educação (ou seja, os que jamais viram a luz do sol fora da caverna) e nem os demasiadamente educados (os que nunca estiveram atados à frente da entrada da gruta) seriam bons servidores da sua cidade ideal.
Os primeiros não o seriam por falta de objetivos pelos quais pudessem pautar sua conduta. Sua realidade não era mais do que um conjunto de sombras, de reflexos, de distorções. Para eles, portanto, a acomodação era a melhor estratégia. Pelo menos, ela envolveria menos esforços.
Os demasiadamente educados, por sua vez, julgar-se-iam “superiores e bem-aventurados”. Achariam que tinham galgado o próprio cimo do Olimpo. Não seria de se estranhar se achassem que tinham certa espécie de parceria com os deuses. Por essa razão, não se sentiriam motivados para agir.
Se o leitor observar com atenção, verá que é exatamente o que ocorre ao nosso redor, no nosso cotidiano. Uma determinada pessoa, por exemplo, dedica-se com muito afinco aos estudos. No princípio, está cheia de ideais nobres em relação à humanidade e não mede sacrifícios para atingir sua meta. Sonha em salvar o mundo, não por interesse pessoal, por fama, fortuna ou poder, mas somente por idealismo.
Todavia, à medida que galga os degraus que a aproximam da meta e mais se distancia da massa inculta, abre mão dos objetivos primitivos. Elitiza-se e traça novas metas, absolutamente individuais. Descer ao nível da maioria, obviamente, nem lhe passa pela cabeça. O estágio que atingiu é muito superior ao dessa massa inculta. O recurso seria trazer o máximo possível dessas pessoas ao patamar de conhecimentos que conquistou. Contudo, nesta altura, sua motivação original já se esvaiu e seu ideal de salvar o mundo virou fumaça. E sua visão da realidade enche-a, na verdade, apenas de um imenso tédio.
Na opinião de Platão, existia, para além do plano dos fenômenos palpáveis, visíveis, audíveis, palatáveis e cheiráveis, ou seja, o dos sentidos, um outro mundo. Seria um planeta de realidades constituídas dos mesmos atributos dos conceitos que existem em nosso mundo interior, mas não no físico. E estas seriam as nossas “idéias”.
Elas não seriam apenas meras formas abstratas do pensamento. Seriam realidades objetivas e com o atributo da eternidade. As coisas terrenas não passariam de meras cópias, eivadas de imperfeições e, sobretudo, passageiras das idéias.
O filósofo, para Platão, era aquele que havia atingido a plenitude do conhecimento. Por essa razão, tinha um papel preponderante na vida da cidade ideal. A ele caberia a tarefa de instruir e orientar as pessoas, para que subissem em direção ao sol da realidade. Eles é que teriam que libertar os que estavam atados em frente à entrada da caverna, os ajudar a acostumar a vista à luz natural e impedir que retroagissem às trevas.
Os filósofos, após sua ascensão aos planos elevados do mundo superior, tinham a obrigação moral de regressar ao convívio dos ignorantes, para esclarecê-los e guiá-los. Cabia-lhes o papel tanto de mestres, quanto de guias, com a cautela de também não regredirem à ignorância, por falta de prática da sabedoria. Competia-lhes proteger os mais frágeis, além de formar as classes políticas e dirigentes da cidade, para que nunca exorbitassem do seu poder e nem jamais se omitissem das suas obrigações. Este é, em resumo, o teor do Mito da Caverna, exposto por Platão no Livro VI de “A República”.

Boa leitura.

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Carta a um amor antigo

* Por Fernando Mariz Masagão

Quando acudi ao choro que me ofertastes na infância de minha maturidade
não sabia que regaria com tuas lágrimas a flor que murchava em mim.
Quando pensei desprezar toda a sorte de sortilégios que a fé inocula
teu hálito movia minhas montanhas.
Quando quis rir, só pude chorar de feliz.
Quando tentei chorar, a dor já era imensa e se prestava a tudo.
Havia algo de impreciso que te cercava e até hoje me cerca.
Persiste ainda um gosto de novo em tudo o que me destes,
mesmo depois de todos os séculos que se arrastaram
e arrancaram mil anos de minha vida.
E se alguma coisa se perdeu não foi o amor,
fomos nós mesmos
confusos de nossas almas.

*Fernando Mariz Masagão é músico, dramaturgo, poeta e colaborador de publicações online sobre arte, com crônicas e críticas musicais. Guitarrista e vocalista de bandas de rock'n'roll, tem formação clássica vigorosa, em cursos de regência sinfônica, apreciação musical e instrumentação.






O elixir da longa vida

* Por Honoré de Balzac

(..)
Num suntuoso palácio de Ferrare, certa noite de inverno, D. Juan Belvidero recebia festivamente um príncipe da casa de Este. Nessa época uma tal recepção constituía espetáculo maravilhoso que só os tesouros reais ou o fausto dum grande senhor poderiam proporcionar.
Sentados à volta de rica mesa iluminada por velas perfumadas, sete mulheres alegres trocavam frases ligeiras, num ambiente de admiráveis obras primas de decoração, com os mármores brancos sobressaindo de paredes de estuque vermelho, a contrastarem com preciosas tapeçarias turcas. Vestidas de cetins e resplandecendo ouro e pedrarias que fulguravam menos que os seus olhos, todas falavam de paixões intensas e diversas como os seus tipos de beleza. Só não diferiam nas palavras nem nas ideias, a que o ar, um olhar, certos gestos prestavam um comentário libertino, sensual, melancólico ou zombeteiro.
Uma afirmava: "Os meus encantos sabem aquecer o coração gelado dos homens já idosos".
E outra: "Gosto de estar recostada em coxins, para pensar, com embriaguez, nos meus adoradores".
Uma terceira, noviça nesta espécie de banquetes, sentia-se inclinada a corar:
"No fundo do meu coração, dizia, sinto um remorso. Sou católica e receio o Inferno, mas amo tanto, oh! tanto!, que poderei sacrificar pelo meu amor a Eternidade!"
A quarta, esvaziando uma taça de vinho de Chio, exclamava: "Viva a alegria! Eu encarno uma existência nova em cada dia que passa. Esquecida do passado, ébria ainda dos meus sucessos quotidianos, todas as noites esgoto uma vida de felicidade, trasbordante de amor".
Aquela que estava sentada junto de Belvidero fixava-o com olhar ardente. Conservava-se silenciosa e pensava: "Se o meu amante me abandonasse, nem por isso me entregaria a excessos para o matar!" Logo sorriu, mas a sua mão convulsa destruía uma caixa de amêndoas, em ouro, maravilhosamente cinzelada.
- Quando será Grão-Duque? perguntou a sexta mulher ao Príncipe, com expressão de alegria cruel nos lábios e um brilho de bacante nos olhos.
- E tu, dize-me, quando morrerá o teu pai ? - indagou a sétima, lançando o seu raminho de flores a Belvidero, com um delicioso gesto traquinas. Era uma rapariga de ar inocente, habituada a divertir-se com as coisas sagradas.
- Ah! não me falem disso! - exclamou o jovem e belo D. Juan. Há neste mundo um único pai eterno, e a desgraça quer que seja o meu!
As sete cortesãs de Ferrare, os amigos de Belvidero e o próprio Príncipe soltaram uma exclamação de horror.
Duzentos anos depois, no tempo de Luís XV, as pessoas de bom tom ter-se-iam rido daquele dito de espírito. Mas, talvez que as almas conservassem ainda, no começo dum festim, a sua lucidez. Apesar do clarão das velas, do fremir das paixões, do aspecto dos vasos de ouro e prata, dos vapores do álcool e da presença de encantadoras mulheres, subsistiria ainda no fundo dos corações um pouco do respeito pelos sentimentos humanos e as coisas divinas, que luta até a orgia o afogar nas últimas gotas dum vinho espumoso. No entanto, já as flores se estiolavam, os olhos desumanizavam-se e a embriaguez chegava, segundo a expressão de Rabelais, à ponta dos pés. E neste momento de silêncio abriu-se uma porta e, como no banquete de Baltazar, o Diabo surgiu sob a aparência de velho criado, de cabeça encanecida, o andar vacilante e as sobrancelhas contraídas. Fez a sua entrada com ar triste e com o olhar murchou as grinaldas, amorteceu o brilho das pratas douradas, o viço das pirâmides de frutos, o esplendor da festa, o vermelho dos rostos e a cor dos coxins amarfanhados pelos níveos braços das mulheres; lançou, enfim, a tristeza no estonteamento, proferindo em voz cava estas palavras sombrias:
- Senhor, vosso pai está a morrer.
D. Juan ergueu-se lançando aos seus convidados um gesto que poderia traduzir-se por: "Desculpem-me, isto não sucede todos os dias".
A morte dum pai não surpreende os jovens entre os esplendores da vida ou as loucas expansões dum festim. É tão brusca nos seus caprichos como uma bacante nos seus desdéns, embora, mais fiel do que estas, nunca iluda ninguém.
No momento em que D. Juan fechou a porta da sala do banquete e caminhou por uma extensa galeria, tão álgida como escura esforçou-se por tomar uma atitude hipócrita porque, pensando na sua dignidade de filho, tinha posto de lado a alegria juntamente com o guardanapo. A noite estava lôbrega. O discreto serviçal que conduzia D. Juan ao aposento paterno iluminava mal o seu amo, de maneira que a Morte, ajudada pelo frio, o silêncio e a obscuridade pôde suscitar na sua alma, talvez por uma reação da embriaguez, algumas reflexões graves. Assim interrogou o seu passado e ficou cabisbaixo como um acusado caminhando para o tribunal.
Bartolomeu Belvidero, pai de D. Juan, era um nonagenário que passara a maior parte da vida em grandes transações comerciais. Tendo percorrido as mais frequentes vezes as regiões enfeitiçadas do Oriente, adquirira avultadas riquezas e, segundo dizia, conhecimentos mais preciosos que o ouro e os diamantes, a que já então nenhuma importância ligava. "Prefiro um dente a um rubi e o poder ao saber", declarava sorrindo. Este excelente pai gostava de ouvir D. Juan contar-lhe as estúrdias da juventude e dizia, com ar chocarreiro: "Meu querido filho, faz todas as asneiras que te possam divertir". Devia ser o único velho que sentia prazer diante dum jovem, pois iludia assim a sua velhice com a contemplação de uma vida tão radiosa como era a de D. Juan.
Aos sessenta anos Belvidero apaixonara-se por um anjo de beleza e de inocência. O filho fora o único fruto desse tardio e breve amor. Havia quinze anos que o velho chorava a morte da sua querida Joana. A numerosa criadagem e o filho atribuíam a esta dor os hábitos singulares que o ancião contraíra. Refugiado na álea menos confortável do palácio, de onde raramente saía, o próprio D. Juan não entrava ali sem a sua prévia autorização. Quando este estranho anacoreta passeava pelo palácio ou nas ruas de Ferrare, parecia procurar qualquer coisa que lhe faltava, caminhando abstrato, hesitante, meditabundo, como que em luta com uma ideia ou uma recordação. Enquanto o filho dava festas e o palácio ressoava com as expansões da sua alegria, enquanto os cavalos escarvavam nas cocheiras ou os pajens discutiam jogando os dados pela escadas, Bartolomeu Belvidero comia diariamente sete onças de pão e só bebia água. Se consentia em servir-se de um prato de galinha era para dar os ossos a um cão de água preto, seu fiel companheiro. Não o incomodava o ruído. Quando doente, se o som duma corneta ou o latido dos cães o estremunhavam, contentava-se em dizer: "Ah!, é D. Juan que volta!"
Jamais existiu um pai tão compreensivo e indulgente. Por isso o jovem Belvidero, habituado a tratá-lo sem cerimônia, tinha todos os defeitos das pessoas amimadas, vivendo com seu pai como uma cortesã caprichosa com amante velho, conseguindo o perdão de qualquer impertinência com um sorriso, vendendo o seu bom humor e deixando-se amar. Reconstituindo no pensamento o quadro dos seus anos de mocidade, D. Juan compreendeu que lhe seria difícil descobrir uma razão de queixa do autor dos seus dias.
Agora, ao atravessar a galeria que o levava ao quarto de Bartolomeu moribundo, sentiu despertar um remorso no fundo do coração e inclinava-se a perdoar-lhe ter vivido tanto tempo. Nutria sentimentos de piedade filial, como um ladrão que preza a honestidade ante a possível posse de um milhão bem roubado. Em breve entrou nas desconfortáveis e enormes salas que compunham os aposentos do pai. Depois de experimentar os efeitos de uma atmosfera úmida, em que o cheiro a mofo se exalava das velhas tapeçarias e dos armários cobertos de pó, encontrou-se no quarto do velho, diante do seu leito nauseabundo, junto da lareira apagada. O candeeiro disposto sobre a mesa gótica projetava, a intervalos desiguais, manchas de luz mais ou menos intensas sobre o leito e mostrava o rosto do ancião sob aspectos que variavam. O frio entrava pelas frinchas das janelas mal fechadas e a neve, fustigando as vidraças, produzia um ruído surdo. Esta cena contrastava tão chocantemente com a que D. Juan acabava de abandonar, que ele não pôde deixar de estremecer. Percorreu-o um arrepio quando, ao aproximar-se da cama, um clarão do candeeiro provocado por uma lufada do vento, iluminou a cabeça do velho. Tinha as feições descompostas e a pele, colada aos ossos, apresentava tons esverdeados, que a brancura da almofada tornava ainda mais horríveis. Contraída pela dor, a boca entreaberta e desdentada deixava escapar uns gemidos lúgubres, que pareciam prolongados pelos uivos da tempestade. Não obstante estes sinais de destruição, dimanava daquela cabeça uma força sem limites. Dir-se-ia um espírito superior em luta com a Morte. Os olhos encovados pela enfermidade conservavam uma fixidez singular. Parecia que Bartolomeu procurava abater com o seu olhar um inimigo postado junto do leito. A sua mirada, fixa e gélida, tornava-se tanto mais terrível porquanto a cabeça se mantinha imóvel como os crânios lívidos que se vêem nas mesas de anatomia. O corpo, desenhado por inteiro pela cobertura da cama, denunciava a mesma fixidez nos membros. Tudo morrera nele menos os olhos. O ralo que se escapa da sua boca tinha qualquer coisa de mecânico.
D. Juan procurou vencer um retraimento para se aproximar do moribundo, ostentando ainda ao peito o raminho de flores oferecido pela cortesã, trazendo assim para junto da morte de seu pai os perfumes da festa e o cheiro do vinho.
- Divertias-te? - murmurou o velho ao deparar com ele.
Nesse instante a voz pura, suave da cantora que deliciava os convivas, acompanhada pelos acordes dum violino, fez esquecer os uivos do temporal ressoando no quarto fúnebre. D. Juan desejaria bem que não se tivesse feito ouvir ali tão crua afirmativa à pergunta do moribundo.
Este prosseguiu:
- Não te quero mal por isso, meu filho...
Tais palavras, repassadas de doçura, feriram D. Juan que, no íntimo não perdoou essa pungente bondade paternal:
- Que remorso, pai! - suspirou hipocritamente.
- Pobre Juanin - insistiu o moribundo com voz lúgubre. - Fui sempre tão indulgente para ti que não poderás desejar a minha morte.
- Oh! - exclamou D. Juan, se fosse possível restituir-lhe a vida, daria para isso uma parte da minha!
"Estas coisas podem sempre dizer-se", pensou discretamente. "Parece que estou a prometer o mundo à minha amante".
Mal tinha completado este pensamento o cão ladrou. Aquele ladrido cheio de perspicácia fez estremecer D. Juan. Afigurou-se-lhe ter sido compreendido pelo animal.
- Sabia muito bem, meu filho, que podia contar contigo - continuou Bartolomeu. Viverei pois, e ficarás satisfeito. Viverei, mas sem roubar um só dos dias que te pertencem.
"Já delira!", comentou para si o filho.
Depois acrescentou, em voz alta:
- Sim, querido pai, viverá pelo menos tanto como eu, porque a sua imagem nunca se apagará no meu coração.
- Não se trata dessa espécie de vida - replicou o velho, reunindo as poucas forças para se erguer um pouco pois sentia-se abalado por uma dessas suspeitas que só despertam sob o travesseiro dos agonizantes.
- Escuta, Juanin - prosseguiu, enfraquecido por aquele último esforço: desejo tanto morrer como tu privares-te de amantes, de vinho, de cavalos, de cães, enfim de dinheiro...
"Assim o creio", conjecturou ainda D. Juan, ajoelhando à cabeceira do leito e beijando uma das mãos daquele quase cadáver:
- Pai, querido pai - disse, temos de nos submeter à vontade de Deus.
- Deus, sou eu! - resmungou o velho.
- Não blasfeme! - suplicou o jovem, deparando no pai com uma expressão de ameaça. Tenha cuidado, porque recebeu já a extrema-unção, e eu nunca me resignaria vendo-o morrer em pecado!
- Queres ou não escutar-me?! - vociferou o agonizante, rangendo os maxilares.
D. Juan calou-se. Caiu no quarto um silêncio sinistro. Por entre os silvos surdos do granizo, lá fora os acordes do violino e o canto melodioso ouviam-se novamente, tênues como a luz dum dia que desponta. O ancião sorriu:
- Agradeço-te teres convidado cantoras e músicos. Há festa, mulheres jovens e belas, brancas e de cabelos negros, os melhores prazeres da vida... Dize-lhes que fiquem, porque eu vou renascer.
"É já o auge do delírio!", pensou o filho, quando Bartolomeu lhe disse de súbito:
- Descobri o meio de ressuscitar. Olha: Procura na gaveta da mesa; poderás abri-la carregando no botão que esta oculto pelo entalhe que figura um grifo.
- Pronto, meu pai.
- Bem. Tira de lá o frasquinho de Cristal.
- Está aqui...
- Gastei vinte anos... - ia o moribundo a contar, mas sentiu que o seu fim chegava e esforçou-se por acrescentar:
- Logo que eu tenha soltado o último suspiro, fricciona-me todo o corpo com esse líquido, e eu ressuscitarei...
- Há muito pouco - notou D. Juan.
Entretanto, Bartolomeu, se já não podia falar, tinha ainda a faculdade de ouvir e ver. As palavras do filho fizeram-lhe voltar a cabeça num movimento brusco. Ficou com o pescoço torcido como o duma estátua de mármore condenada pelo escultor a olhar eternamente de lado. As suas pupilas dilatadas tinham tomado uma imobilidade odiosa. Estava morto.
Expirara ao perder a sua última e única ilusão. Ao procurar a sua derradeira salvação no coração do filho, encontrara neste um túmulo mais profundo do que o preparado pelos homens para jazida dos seus mortos. Os cabelos eriçaram-se-lhe de pavor, só o seu olhar pareceu exprimir ainda alguma coisa. Era já como um pai que se erguia do sepulcro para suplicar vingança a Deus.
- Pronto! O homenzinho acabou... - cuidou D. Juan.
Na ânsia de observar o misterioso frasco à luz do candeeiro à semelhança de um apreciador que examina a sua garrafa no fim do repasto, olhava perplexamente para o pai e o frasco. A seu lado, o cão de água observava da mesma maneira, ora o frasco ora o dono morto.
O candeeiro projetava clarões movediços. O silêncio tornara-se mais solene.
O violino e a voz da cantora tinham emudecido. O jovem estremeceu, parecendo-lhe que o defunto se mexera. Intimidado pela fixidez acusadora dos seus olhos, foi cerrar-lhos como teria fechado uma persiana batida pela rajada em noite invernosa.]
Conservou-se de pé, imóvel, perdido num caos de pensamentos. De súbito um ruído seco, lembrando o duma mola emperrada, cortou a mudez. Surpreendido D. Juan quase deixou cair o frasco. Inundou-o um suor mais frio do que aço de punhal. O galo de madeira pintada do relógio familiar surgiu e cantou três vezes. Era daqueles maquinismos engenhosos, de que se serviam os sábios da época para despertarem à hora fixada para as suas lucubrações. A aurora avermelhava já as janelas. D. Juan tinha passado dez horas a refletir. O velho relógio era mais fiel do que ele ao cumprimento dos seus deveres para com Bartolomeu. Aquele mecanismo compunha-se de corda, alavanca e rodas dentadas, enquanto ele tinha o músculo peculiar aos homens, que se chama coração. Para não se arriscar a perder o precioso líquido, D. Juan voltou a guardá-lo, cepticamente, na gaveta da mesinha gótica. Nesse instante ouviu nas galerias do palácio um tumulto confuso.
Eram vozes indistintas, risos abafados, todo o rumor dum grupo alegre procurando conter-se. Finalmente, a porta abriu-se e o Príncipe, com os restantes convidados aparecerem com a desordem estonteada dos dançarinos surpreendidos pela claridade da manhã, quando o sol luta ainda com a pálida chama das velas. Vinham para dar ao jovem herdeiro as condolências da etiqueta.
- Terá o nosso D. Juan tomado a peito esta morte? - perguntou o Príncipe ao ouvido da Brambilla.
- Talvez - respondeu ela, porque o pai era um homem extremamente bondoso.
As meditações noturnas de D. Juan tinham-lhe gravado no rosto uma tal expressão que o grupo se sentiu perplexo. Os homens permaneceram hirtos. As mulheres, com os lábios ressequidos pelo álcool, as faces maceradas pelos beijos, ajoelharam e rezaram. O órfão não pôde deixar de estremecer à vista das alegrias contidas, dos risos desfeitos, dos cantos sumidos, da juventude apagada, da beleza desvanecida, de tudo aquilo que personificava o melhor da vida perante a Morte. Porém naquela amável Itália do tempo, o Pecado e a Religião, conjugavam-se de tal maneira que se confundiam.O Príncipe apertou afetuosamente a mão a D. Juan e todos os rostos esboçaram simultaneamente uma idêntica expressão, meio triste, meio indiferente. Depois toda esta fantasmagoria protocolar desapareceu, deixando mais vazio o aposento mortuário. Era bem a imagem da Vida.
Ao descer a escadaria, o Príncipe confiou a Rivabarela:
- Quem teria julgado assim o nosso D. Juan, um fanfarrão da impiedade?... Afinal, adorava o pai!
- Reparou no cão?... - indagou Brambilla.
- Aí temos o nosso amigo fabulosamente rico - sugeriu, suspirando, a Bianco Cavatolino.
- Que importa...? - desdenhou a orgulhosa Veronese, que destruíra, com mão nervosa a dourada caixinha de amêndoas.
- Não te importo...? - clamou o Duque. Pois com os seus escudos será tanto um príncipe como eu!
A princípio D. Juan, cedendo a mil pensamentos, hesitou entre vários partidos a tomar. Depois de ter avaliado os tesouros acumulados por seu pai, voltou, de noite, para o quarto fúnebre, a alma esmagada sob feroz egoísmo. Encontrou todos os serviçais ocupados em ordenar os paramentos do catafalco em que o falecido senhor seria exposto no dia seguinte, ao centro duma suntuosa câmara ardente - espetáculo de grande curiosidade, que toda a Ferrara viria admirar.
A um sinal de D. Juan, os criados detiveram-se interditos e trêmulos.
- Deixem-me só - ordenou com a voz alterada. Continuarão depois de eu sair.
Quando os passos do velho Mordomo, que foi o último a retirar-se, deixaram de se ouvir sobre as lajes, D. Juan fechou precipitadamente a porta e disse consigo:

- Experimentemos...
O corpo de Bartolomeu fora deitado sobre uma longa mesa. Para ocultarem o odioso espetáculo de um cadáver a que extrema decrepitude e magreza davam o aspecto de simples esqueleto, os embalsamadores tinham envolvido num lençol todo o corpo, exceto a cabeça. Esta espécie de múmia jazia no meio da dependência, com o sudário a desenhar-lhe vagamente as formar esguias e agudas. No rosto já apareciam largas manchas violáceas, que indicavam a necessidade de se apressar o embalsamamento. Apesar de escudado pelo seu cepticismo, D. Juan hesitou em desrolhar o frasquinho de cristal. Tremia tanto quando se aproximou da cabeça do defunto que se sentiu constrangido a aguardar um momento. Porém, este jovem, bem cedo corrompido completamente pelos costumes duma corte dissoluta, foi encorajado por uma ideia digna do famoso Duque de Albin, ao mesmo tempo que era aguilhoado pela curiosidade. Dir-se-ia que o próprio Diabo lhe segredava estas palavras, que lhe ecoavam no coração: "Umedece um dos olhos". Pegou num pano e, depois de o embeber àvaramente no precioso líquido, passou-o ao de leve sobre a pálpebra direita do cadáver. O olho abriu-se...
- Ah! - exclamou D. Juan, enclavinhando os dedos no frasco, tal como apertamos, em sonhos, a haste de que nos suspendemos num precipício. Via aquele olho pleno de vida, como olho de criança na cabeça dum morto, a luz cintilando no seu humor líquido juvenil, apenas velada por belos cílios negros, trazendo à memória essas singulares claridades que o viajante avista nos campos desertos, em noites de Inverno. Aquele olho resplandecia, parecia querer precipitar-se para D. Juan, pensava, acusava, condenava, ameaçava, vociferava, mordia. Todas as paixões humanas se agitavam nele, as súplicas mais ternas, a cólera dos reis, o amor de uma donzela pedindo misericórdia aos seus algozes. Tinha, por fim, a mirada profunda que um homem lança aos outros do último degrau para o cadafalso. Havia tanta vivacidade naquele fragmento de vida que D. Juan recuou, apavorado. Passeou pelo aposento sem ousar fixar aquele olho, que ele revia no chão, nas tapeçarias, por toda a parte. Toda a dependência estava semeada de pontos luminosos, fulgurantes de vida, de inteligência. E todos esses pontos que eram outros tantos olhos, perseguiam, cercavam D. Juan.
"Será capaz de viver mil anos", calculou ele incontidamente, ao voltar junto do pai, levado por uma atração diabólica a contemplar aquela centelha de luz vivente.
De súbito a pálpebra fechou-se e voltou a abrir-se ágil, como a de uma mulher que concede. Se uma voz lhe tivesse dito: "Sim", D. Juan não se sentiria mais aterrado.
- Que fazer? - pensou.
Ainda teve coragem para tentar cerrar aquela pálpebra, mas os seus esforços foram inúteis.
- Será um parricídio esmagá-lo? - perguntou-se diante do olho.
- Sim - fez-lhe este compreender com uma piscadela irônica.
D. Juan debruçou-se para o esmagar. Uma grossa lágrima rolou pelas faces encovadas do cadáver e caiu sobre a mão do filho.
A lágrima queimou-o. Sentou-se, fatigado por uma luta que lhe lembrava a de Jacob com o anjo.
Por fim levantou-se, murmurando:
- Contanto que não haja sangue...
Depois, procurando a todo o transe não se acobardar, esmagou o olho, servindo-se de um pano e voltando o rosto. Um gemido inesperado, angustioso, surpreendeu-o. Era o cão que morria uivando.
- Conheceria o segredo do velho? - indagou-se, deitando uma olhadela ao fiel animal.
D. Juan Belvidero passou depois aos olhos do mundo por um filho piedoso. Mandou construir um monumento de mármore do mais branco sobre o túmulo de seu pai, confiando as figuras que o ornariam aos mais célebres artistas da época. Só se sentiu perfeitamente tranquilo no dia em que a estátua paterna, ajoelhada aos pés da Religião, impôs o seu peso enorme sobre a sepultura em que enterrou o único remorso que ainda poderia sobressaltar-lhe o coração nos momentos de maior lassidão.
Depois de feito o inventário das riquezas acumuladas pelo velho orientalista, tornou-se avarento. Acaso não tinha ele de garantir duas vidas com o seu dinheiro? O olhar tornou-se-lhe perscrutador, alongando-o pela sociedade humana e melhor compreendendo o mundo por avistá-lo através de um túmulo. Analisou os homens e os seus atos para não se importar, de uma vez para sempre, com o passado representado pela História, o presente, encarnado pelas leis e o futuro, desvendado pelas religiões. Tomou o espírito e a matéria, misturou-os num cadinho e, nada aí encontrando que valesse a pena, tornou-se, autenticamente, D. Juan.
No segredo das ilusões humanas, jovem e belo, lançou-se para a vida, desprezando o mundo para melhor dele se apoderar. Assim, a sua felicidade não poderia ser a ventura burguesa que se contenta com o cozido trivial, uma confortante botija de água quente na cama, no inverno, um candeeiro para a noite e umas pantufas novas em cada trimestre. Apoderou-se da existência como um símio que apanha uma noz e, sem perda de tempo, trata espertamente de desembaraçar o fruto da casca inútil, para lhe saborear a polpa. A poesia e os sublimes arroubos das paixões deixaram de o interessar. Procurou evitar, o erro de certos homens poderosos que, supondo que as almas ingênuas crêem nas almas fortes, das ideias efêmeras. Poderia bem caminhar, como eles, com os pés sobre a terra e a cabeça a tocar os céus: contudo, preferia refestelar-se e devorar de beijos os lábios, duma mulher meiga, fresca e perfumada, já que, semelhante à Morte, extinguindo impudentemente tudo por onde passava, exigindo só o amor que possuía, um amor à oriental, que lhe proporcionasse apenas amores longos e fáceis.
Amando na Mulher só a fêmea, adotou a ironia como a atitude própria da sua alma. Quando nos seus braços as amantes subiam ao paraíso, perdidas num êxtase de embriaguez, acompanhava-as, meio grave, meio expansivo, tão sincero como um estudante alemão. Dizia sempre - Eu, enquanto a louca apaixonada dizia - Nós. - Sabia admiravelmente deixar-se cativar por uma mulher. Tinha sempre o domínio suficiente para a fazer acreditar que tremia como o estudantinho do liceu que segreda à primeira rapariga com quem volteia num baile: "Gosta de dançar?". Mas não sabia menos utilizar uma espada dura e abater comendadores. Ocultava-se zombaria na sua simplicidade e riso nas suas lágrimas, chorando tão bem como a esposa que diz ao marido: "Dá-me uma carruagem ou morrerei de tísica!". Para o negociante o mundo é um acumulado de mercadorias e um bom montante de notas de Banco; para a maior parte dos jovens é uma mulher; para algumas mulheres, um homem; para certos espíritos, um salão, um meio de intrigas, um bairro ou uma cidade inteira. Para D. Juan o mundo era ele! Modelo de graça e de brandura, espírito sedutor, soube sempre levar a água ao seu moinho. Simulando deixar-se conduzir, nunca ia além do limite onde queria ser levado. Quanto mais observava mais ia duvidando. Ao analisar os homens, descobriu que, muitas vezes, a coragem não passava de temeridade, e a prudência, de cobardia; a delicadeza era patetice e a generosidade, astúcia; a justiça, um crime, e a probidade, uma convenção. Descobriu, ainda, que, por um singular destino, as pessoas verdadeiramente honestas, delicadas, justas, prudentes e corajosas não mereciam a menor consideração social.
- Que cruel ironia! - dizia de si para consigo. Não, é certamente, obra de Deus.
Então, renunciando a um mundo melhor, nunca mais se descobriu ao ouvir pronunciar nomes sagrados e considerou as imagens das igrejas como simples obras de arte. Assim, conhecendo o mecanismo das sociedades humanas, procurava não ferir demasiado os preconceitos, por não se sentir tão forte como os carrascos, mas iludia as leis sociais com subtileza e espírito. Foi a encarnação de D. Juan, de Molière; do Fausto, de Goethe; do Manfred, de Byron e do Melmoth, de Maturin. Grandes figuras criadas pelos maiores gênios europeus, cantadas em acordes de Mozart e, talvez, um dia, em árias de Rossini. Entes terríveis, que o príncipe do Mal eterniza e de que se encontram alguns exemplares através dos séculos, quer quando tais personagens entram em negociações com os homens, encarnadas em Mirabeau, quer se contentem em agir subrepticiamente, como Bonaparte ou em abraçar o mundo numa ironia, como Rabelais. Mas o Gênio, ainda mais profundo, de D. Juan Belvidero, resumiu, com antecipação, todas essas figuras criadas pela genialidade. A sua foi uma perpétua zombaria, em que envolveu os homens, as coisas, as instituições e as ideias.
Tendo conversado em boa familiaridade, durante meia hora, com o papa Júlio II sobre a Eternidade, ao concluir disse-lhe, sorrindo:
- Se é em absoluto necessário escolher, prefiro crer em Deus a acreditar no diabo; o poder, aliado à bondade, pode proporcionar-nos melhor refúgio do que aliado à potência do Mal.
- Sim concordou o Pontífice, mas o Senhor quer que façamos penitência neste mundo...
- Pensais então sempre nas vossas indulgências? - tornou Belvidero. Pois bem, eu tenho reservada, para me arrepender da primeira vida, uma outra completa existência...
- Ah! se compreendes assim a velhice - insistiu Júlio II - arrisca-te a ser canonizado...
D. João sorriu; a terminar:
- Depois da vossa elevação ao Papado tudo é possível.
E foram ver os operários ocupados na construção da imensa basílica consagrada a São Pedro.

- O Apóstolo genial que constituiu o nosso duplo poder - acrescentou o Papa Belvidero, merece este monumento. Mas, por vezes, durante a noite, penso que um novo dilúvio apagará tudo isto e será forçoso recomeçar.
D. Juan e o Pontífice riram, compreendendo-se. Um tolo teria ido, no dia seguinte, divertir-se com Júlio II em casa de Rafael ou na deliciosa Vila Madama, mas Belvidero foi vê-lo oficiar pontificalmente, para se convencer das suas dúvidas. Num banquete, o Rovére teria podido desmentir-se e comentar o Apocalipse.
Mas esta lenda não foi criada para fornecer elementos aqueles que desejem escrever memórias sobre a biografia de D. Juan. Destina-se a provar às pessoas honestas que Belvidero não morreu no seu duelo com uma figura de pedra, como querem fazer-nos acreditar alguns biógrafos.
Quando atingiu os sessenta anos, Belvidero fixou-se em Espanha. Aí, mais avançado em idade, desposou uma jovem e encantadora andaluza. Por cálculo, não foi bom esposo nem bom pai. Tinha concluído que nunca seremos tão ternamente amados como pelas mulheres a quem damos menos atenções. Dona Elvira, santamente criada por uma velha tia, nos confins da Andaluzia, a algumas léguas de San-Lucar, era toda dedicação e graça. D. Juan pressentiu que seria mulher para lutar durante muito tempo contra uma paixão antes de lhe ceder. Assim esperou poder conservá-la virtuosa até à sua morte. Foi um divertimento arriscado, uma como que partida de xadrez que reservou para jogar quando já fosse velho. Decidiu, pois, subordinar todos os seus atos ao êxito da comédia que deveria ter o desfecho no seu leito de morte. Assim a sua fortuna permaneceu enterrada no palácio de Ferrare, onde ia raramente. O resto dos seus bens empregou-os em viajar, no prolongamento da sua vida - artimanha esta que deveria ter ocorrido também a seu pai. Porém, tal astúcia não foi para ele de grande proveito. O moço Filipe Belvidero, seu filho, saiu-lhe um espanhol tão conscienciosamente religioso quanto o pai era ímpio. Isto, talvez, em obediência ao provérbio: Pai avarento, filho pródigo.
O abade de San-Lucar foi escolhido para diretor espiritual da Duquesa de Belvidero e de Filipe. Era este eclesiástico um santo homem, de admirável estatura, bem proporcionado, belos olhos e rosto à Tibério, fatigado pelos jejuns, empalidecido pelas macerações e dia a dia tentado, como são os solitários. O já então idoso D. Juan esperava talvez poder ainda matar um anacoreta antes de terminar o primeiro prazo da sua vida. Mas, ou porque o abade fosse de temperamento tão forte como ele, ou por que Dona Elvira possuísse menos ardência ou mais prudência do que a Espanha habitualmente concede às mulheres, Belvidero viu-se constrangido a passar os seus dias calmo como um velho reitor de aldeia, sem escândalos caseiros. Por vezes sentia prazer em apanhar a mulher ou o filho em falta para com os seus deveres religiosos e ordenava-lhes imperiosamente que cumprissem as suas obrigações de fiéis da Santa Sé Apostólica. Finalmente, raro era tão feliz como quando ouvia o afável cura de San-Lucar, Dona Elvira e Filipe entretidos em discutir um caso de consciência. Entretanto, apesar dos cuidados extremos que dedicava à sua pessoa, os dias da sua decrepitude chegaram; e, com os achaques da idade, vieram as imprecações da impotência, tanto mais desesperadora quanto mais vivas eram as recordações da sua ardente juventude e de sua voluptuosa maturidade. Aquele homem para quem o maior divertimento era obrigar os outros a acreditarem nas leis e nos princípios de que desdenhava, adormecia à noite atormentado por um talvez... Modelo de bom-tom, aquele duque, ousado numa orgia, soberbo mas cortês, espirituoso junto das mulheres, a quem vergava pelo coração como um campônio verga uma haste de vime, enfim aquele homem de Gênio, tinha um defluxo renitente, uma ciática arreliadora, uma gota feroz. Via os dentes irem-se-lhe como, ao fim duma festa noturna, as mulheres mais brancas e melhor vestidas se retiraram, uma a uma, abandonando a sala deserta e desguarnecida. Depois, as suas mãos afoitas tremeram, as pernas esbeltas vacilaram e, uma noite, a apoplexia apertou-lhe a garganta com as suas mãos aduncas e gélidas. Tornou-se, desde então, quizilento, áspero. Censurava a dedicação do filho e da mulher, atribuindo os seus cuidados enternecidos, desvelados, ao fato de ele ter empregado toda a sua fortuna em rendimento vitalício. Elvira e Filipe choravam lágrimas amargas e redobravam de carícias para com o maldoso velho, que, em voz enfraquecida, que procurava tornar afetuosa, dizia:
- Meus amigos, minha querida esposa, perdoam-me, não é verdade? Atormento-vos um pouco. Ah!, meu Deus! porque te serves de mim para pôr à prova estas santas criaturas? Eu, que devia ser a sua alegria, não passo do seu martírio...
Assim os acorrentava à cabeceira do seu leito, fazendo-lhes esquecer meses de rezinga e de crueldade, naquela hora em que lhes desvendava os inesperados tesouros da sua espirituosidade e da sua falsa ternura. Este seu modo paternal resultou infinitamente melhor do que o outro usado por seu pai. Por fim o seu estado agravou-se de tal maneira que, para o meterem na cama, era necessária uma manobra tal como a de meter uma embarcação num canal perigoso. E chegou o dia da morte. Tão brilhante e céptica personagem, em quem só a inteligência parecia escapar à mais terrível de todas as destruições, viu-se entre um médico e um confessor, as suas maiores antipatias. Mas mostrou-se jovial. Para ele não existia qualquer luz cintilando para além da cortina que ocultava o futuro. Sobre essa tela, opaca para os outros e diáfana para ele, as belas, arrebatadoras delícias da mocidade moviam-se como sombras.
Foi numa bela noite de verão que D. Juan sentiu que a Morte se aproximava. O céu de Espanha tinha uma admirável pureza, as laranjeiras perfumavam o espaço; as estrelas irradiavam uma viva claridade. A natureza parecia oferecer-lhe provas irrefutáveis da sua próxima ressurreição. Um filho carinhoso, dedicado, contemplava-o com amor e respeito.
Cerca das onze horas desejou ficar só com tão cândida criatura:
- Filipe - disse-lhe com voz de um afeto e uma ternura tais que o moço estremeceu, chorou de felicidade ao ouvir o pai pronunciar assim o seu nome. - Escuta, meu filho - continuou o moribundo. Sou um grande pecador. Por isto toda a vida pensei na Morte. Outrora fui amigo do grande papa Júlio II. Esse ilustre pontífice receou que os meus excessos me levassem a cometer qualquer pecado mortal entre o meu último suspiro e o momento em que me ministrassem os santos óleos. Para que assim não sucedesse fez-me presente de um frasco contendo água santa que, noutros tempos, jorrava dos rochedos do deserto. Guardei segredo sobre esta concessão da Igreja mas fui autorizado pelo dito Papa a, in extremis, revelar tudo a meu filho. Encontrarás esse frasco na gaveta da mesa gótica, que nunca deixei afastar da minha cabeceira... O frasquinho também te poderá ser útil, querido Filipe. Jura-me, pois, pela tua salvação, que executarás pontualmente as minhas determinações!...
Filipe fitou o pai. D. Juan conhecia bem a expressão dos sentimentos humanos para não morrer em paz sem reconhecer fidelidade nos olhos do filho, para mais lembrando-se de que seu pai morrera de desespero soletrando-lhe nos olhos as intenções:
- Merecias melhor paternidade, Filipe - prosseguiu D. Juan. Assim ouso confessar-te, meu filho, que, no momento em que o abade de San-Lucar me administrava o Sagrado Viático, eu pensava na eterna incompatibilidade de dois poderes tão fortes como o de Deus e o Diabo...
- Oh!, meu pai!
- E dizia comigo: quando Satã fizer a paz com a divina onipotência, deverá, sob pena de ser um grande réprobo, estipular o perdão dos seus sequazes. Este pensamento não me largou mais. Porque eu irei para o Inferno, meu filho, se não cumprires à risca os meus últimos desejos...
- Oh!, diga-mos sem demora, meu pai!
- Pois bem. Logo que eu tenha expirado, talvez daqui a poucos minutos, pegarás no meu corpo ainda quente e estendê-lo-ás sobre uma mesa, no meio deste quarto. Depois apagarás o candeeiro. A claridade das estrelas devera bastar-te. Então despes-me e, enquanto fores rezando padre-nossos e ave-marias, elevando a tua alma a Deus, terás o cuidado de umedecer, com essa água miraculosa, os meus olhos, os lábios, toda a cabeça, em primeiro lugar e, em seguida, sucessivamente, os membros e o tronco. Entretanto, filho, toma bem nota de que o poder de Deus é tão grande que não deverás estranhar coisa alguma!
Nesta altura, D. Juan, que sentia a morte chegar, acrescentou com voz temível:
- Segura bem o frasco!
Depois expirou suavemente nos braços do filho, que vertia copiosas lágrimas naquelas faces irônicas e lívidas.
Era cerca de meia-noite quando D. Filipe Belvidero colocou o cadáver sobre a mesa. Beijou-lhe a fronte e os cabelos encanecidos e apagou o candeeiro. A claridade suave do luar que iluminava o campo com revérberos caprichosos mal permitiu ao piedoso mancebo distinguir o corpo do pai, como uma alongada mancha branca no seio da sombra. Embebeu um pano no líquido e, recolhido em oração, ungiu a cabeça do querido defunto, em profundo silêncio. Ouvia indistintos rumores, mas atribuí-os ao cicio da brisa na copa das árvores. Mal acabava de molhar o braço direito do morto quando lhe pareceu que outro braço veio apertar-lhe tenazmente o pescoço. Sentindo-se estrangulado, soltou um grito dilacerante e deixou cair o frasco, que se quebrou. Os criados acorreram trazendo luzes. O grito tinha-os aterrado como se a trombeta do Juízo Final tivesse abalado os ecos do mundo. Num momento o quarto encheu-se de gente. A criadagem, trêmula, encontrou D. Filipe desmaiado mas seguro pelo braço forte de seu pai, que o estrangulava. Depois - caso sobrenatural!- os circunstantes depararam com a cabeça de D. Juan tão jovem e bela como a de Antinos; uma cabeça de cabelos negros, olhos brilhantes, boca vermelha, e que se agitava horrivelmente sem poder mover o corpo esquelético a que pertencia.
Um velho serviçal gritou:
- Milagre!
E todos aqueles espanhóis repetiram, em uníssono:
- Milagre!
Suficientemente religiosa para não se fiar nos mistérios da Magia, Dona Elvira mandou chamar o abade de San-Lucar. O pároco assim que pôde constatar o milagre, pensou logo aproveitar-se do extraordinário fato, como homem esperto e abade que só desejava aumentar os rendimentos da freguesia. Declarando imediatamente que D. Juan seria canonizado, infalivelmente, marcou a cerimónia para a epifânia para o seu convento, que daí em diante - declarou - San-Juan de Lucar. A estas palavras, a cara do defunto teve um esgar irônico.
A inclinação dos espanhóis por este gênero de solenidades é tão conhecida que não será difícil conceber a pompa das cerimônias religiosas em que o cura de San-Lucar celebrou a trasladação do bem-aventurado D. Juan Belvidero para a sua igreja.
Alguns dias depois da morte daquele ilustre senhor, o milagre da sua ressurreição incompleta foi tão largamente comentado, de povoação em povoação, num raio de cinquenta léguas à volta de San-Lucar, que, num grande espetáculo de peregrinação, os curiosos acorreram de todos os lados, atraídos pela perspectiva de um Te Deum solenemente cantado à luz dos círios. A antiga mesquita, agora igreja do convento de San-Lucar, maravilhoso edifício construído pelos mouros e cujas abóbadas escutavam, havia séculos, o nome de Jesus em substituição do de Allah, não pôde conter a multidão que vinha assistir ao ato. Apertados como formigas num formigueiro, os fidalgos, com suas capas de veludo e belas espadas à cinta, conservavam-se junto dos pilares, quase sem espaço para dobrar o joelho que só ali se dignavam dobrar. Encantadoras camponesas com as vasquinhas a moldarem-lhe as formas airosas, davam o braço a velhos encanecidos. Moços, de olhos ardentes, eram vistos ao lado de velhas arrebicadas. Avistavam-se ainda, entre a multidão, parzinhos jovens radiantes de alegria, namoradas curiosas trazidas pelos bem-amados, algumas casadinhas de fresco, e, finalmente, crianças receosas pela mão das mães. Toda aquela gente estabelecia flagrantes contrastes, carregada de flores, colorida, despertando um surdo rumor na quietação da noite.
As grandes portas da igreja descerraram-se. Os que haviam chegado tarde de mais ficaram no adro, assistindo de longe, pelos portais escancarados, a um espetáculo de que as reduzidas cenas das óperas modernas nunca poderão dar uma pálida ideia. Devotos e pecadores empenhados em ganhar as boas graças dum novo santo, acenderam em seu louvor milhares de círios na vasta igreja, flâmulas interesseiras que emprestavam aspectos de magia ao majestoso templo. As escuras arcarias, as colunas e os seus capitéis, as capelas profundas, resplandecendo de ouro e prata, as galerias, os rendilhados mouriscos, os mais subtis pormenores daquela arquitetura delicada, desenhavam-se num exuberante clarão, como as figuras caprichosas dos grandes brasidos ardentes. Era um mar de luzes, dominado ao fundo pelo coro dourado sobranceiro ao altar-mor, rivalizando, em esplendor, com o Sol nascente. Com efeito, o brilho dos áureos lampadários, dos candelabros argênteos, dos panejamentos, das imagens e dos "ex-voto" parecia esmorecer ante o relicário que continha o corpo de D Juan. Os restos mortais do ímpio resplandeciam de pedrarias, flores, ouro, plumas brancas como asas de anjo e substituíam, sobre o altar, um painel de Cristo. À sua volta numerosas flamas erguiam no ar clarões rutilantes.
O bom abade de San-Lucar, com paramentos pontificais, a mitra ornada de pedras preciosas, de sobrepeliz e báculo de ouro, sentava-se, como monarca, num cadeirão de luxo imperial, no meio do seu cabido, composto de impassíveis anciãos encanecidos, vestidos de alvas e que o rodeavam, como as santas figuras que os pintores agrupam, nos seus painéis, à volta do Eterno.
O grande chantre e os dignitários do capítulo, ostentando as vistosas insígnias das suas prerrogativas eclesiásticas, iam e vinham por entre nuvens de incenso. Quando chegou a hora da solene consagração, os sinos tangeram e todos dirigiram ao Altíssimo a primeira hosana de louvor, que iniciou o Te-Deum. Clamor sublime! Eram vozes puras, cristalinas, de mulheres em êxtase, confundidas com vozes masculinas, fortes e graves, num coro tão poderoso que o órgão não conseguia dominá-lo com o vibrar dos seus largos acordes. Só as notas agudas dos meninos do Coro e as dos barítonos suscitavam a ideia da infância e da força naquele fantástico concerto de vozes humanas unidas num sentimento de amor:
- Te Deum laudamus!
Do âmago do vasto templo enxameado pela multidão ajoelhada, aquele coro cresceu como uma claridade que cintilasse repentinamente na noite e o silêncio como que foi cortado por um ribombar. As vozes ascendiam com as nuvens do incenso que toldavam as majestáticas maravilhas arquitetônicas em diáfanos véus azulados. Tudo era magnificência, perfume luz e polifonia.
No momento em que o grave hino de gratidão e de amor atingiu o altar-mor, D. Juan, suficientemente cortês para nada levar a mal, esboçou um lívido sorriso e envaideceu-se no interior do relicário.
Porém o Diabo, lembrando-lhe o risco de passar assim por um homem vulgar, por um santo, um bonifrates ou um Pantaleão, perturbou a grande polifonia de amor com um bramido, a que se juntaram as mil vozes do Inferno. A Terra abençoava, e o Céu maldizia. O templo estremeceu sobre os seus remotos alicerces.
- Te Deus laudamus ! - clamava a multidão.
- Vão para todos os diabos, estúpidos animais que sois! Deus! Deus! Que sois vós com o vosso Deus encanecido?
E uma torrente de imprecações correu como caudal de lavas ardentes, arremessadas por uma erupção do Vesúvio.
- Deus Sabaoth!... Sabaoth! - bramiam os crentes;
- Insultais a majestade do Inferno! - tornou D. Juan, rangendo os maxilares.
Momentos depois o seu braço ressuscitado, saindo do relicário, ameaçou a turba com um gesto de desespero e de ironia.
- O santo abençoa-nos! - gritaram as velhas, as crianças e as noivas, credulamente.
Desta maneira somos muitas vezes iludidos nas nossas crenças. Mas o homem superior ri-se dos que o louvam e louva, muitas vezes, aqueles de quem se ri no seu íntimo.
No momento em que o pároco, prosternado ante o altar, entoava: Sancte Johannes, ora pro nobis..." ouviu distintamente a palavra - imbecil!
- Que se passa ali? - exclamou o coadjutor ao ver o relicário mover-se.
O Santo antes parece o Diabo - retorquiu o prior.
Nesse instante a cabeça vivente de D. Juan separou-se violentamente do seu corpo inerte e foi cair sobre a cabeça do esbelto e jovem oficiante:
- Lembra-te de D. Elvira! - gritou aquela cabeça mordendo o abade.
Este deixou escapar um grito de dor, que interrompeu a solene cerimônia. Todos os padres acudiram e rodearam o seu superior hierárquico.
- Pateta! Dize agora que existe um Deus! - rugiu ainda a voz infernal, quando o abade, atingido no crânio pela mordedura, expirava.


Paris, Outubro de 1830


• Romancista francês, fundador do Realismo, aujtor da “Comédia Humana”, consistente de 96 romances.