sábado, 30 de setembro de 2017

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Onze anos, seis meses e três dias de existência.


Leia nesta edição:


Editorial – A magia do teatro.

Coluna Direto do Arquivo – Laís de Castro, conto. “Galeria Metrópole”.
Coluna Clássicos – Manoel de Barros, poema, “O apanhador de desperdícios”.
Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “Bueiro e o impeachment da presidenta Dilma”.
Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema, “Rotação”.
Coluna Porta Aberta – Glória Salles, poema, “Palavras que ferem”.


@@@


Livros que recomendo:

Poestiagem – Poesia e metafísica em Wilbett Oliveira” (Fortuna crítica) – Organizado por Abrahão Costa Andrade, com ensaios de Ester Abreu Vieira de Oliveira, Geyme Lechmer Manes, Joel Cardoso, Joelson Souza, Levinélia Barbosa, Karina de Rezende T. Fleury, Pedro J. Bondaczuk e Rodrigo da Costa Araújo – Contato: opcaoeditora@gmail.com

Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com

A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Boneca de pano” - Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Águas de presságio”Sarah de Oliveira Passarella – Contato: contato@hortograph.com.br

Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.

A sétima caverna”Harry Wiese – Contato: wiese@ibnet.com.br

Rosa Amarela”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Acariciando esperanças”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br

Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



A magia do teatro



O teatro tem, para mim – e certamente para milhões de pessoas ao redor do mundo e ao longo do tempo – um toque de magia e de transcendência inigualáveis, que outras artes não têm. Foi, sem dúvida, o primeiro sistema de comunicação em massa criado pelo homem, na Grécia antiga, e o único a ser testado e aprovado pelo tempo. Foi através dele que heróis e vilões foram exaltados (no primeiro caso) e execrados (no segundo), se tornando mitos.

Sua riqueza maior está no fato de ter múltiplas funções simultâneas. Além de divertir, instrui, informa e induz os espectadores à reflexão. É o gerador das demais artes cênicas que lhe sucederam, como o cinema e a telenovela, sem que perdesse terreno para eles. Os três convivem, hoje, harmonicamente, mostrando a força do teatro, apesar de tantas pessoas preverem, em épocas e situações diferentes, sua extinção. Estavam, evidentemente, erradas.

Estas considerações vêm a propósito de duas peças, de naturezas distintas, que foram exibidas há muito tempo, em outubro de 1995: uma em Campinas e a outra em São Paulo. A primeira foi "Símbolo de uma Resistência", sob a direção de Benê de Moraes e Marquinhos Simplício.

Trata-se de uma apologia a Zumbi, o herói negro. Destaque-se que 1995 foi o ano do tricentenário de nascimento do mítico herói negro. O enredo da peça baseia-se em um poema magistral de Solano Trindade, infelizmente pouco conhecido. Trouxe ao público, portanto, com grande oportunidade, a qualidade de um excelente texto e a performance de atores de muita garra. Foi encenada no teatro da Vila Padre Anchieta, em Campinas. Não sei se teve outras encenações, mas presumo que sim.

A outra peça que me fez refletir, da mesma época, tinha caráter menos restritivo e mais universalista. Foi "Hombre de la Esquina Rosada", baseada em um conto do mesmo nome do escritor argentino Jorge Luís Borges. Quem conhece a obra desse mago das palavras, que elegi como meu guru literário, sabe da sua complexidade. Exemplo? Sua fixação pelos labirintos, espelhos, tigres e punhais. Seus livros não são daqueles que se possam somente correr os olhos para entender o que o autor pretendeu dizer.

É preciso penetrar em sua mente, acompanhar o seu raciocínio ágil, sonhar com ele, reinterpretar a realidade que retrata, refletir. Levar ao palco o que Borges escreveu e tornar seus textos compreensíveis a plateias heterogêneas exige competência, disciplina e criatividade. E foi isso o que o grupo portenho El Angel fez. Sua diretora, Mônica Vicao, informou que "a peça discute o pensamento borgiano pela questão metafísica do tempo, a covardia e a valentia". A apresentação fez parte, naquela oportunidade, do Quinto Festival Internacional de Artes Cênicas, levado a efeito no teatro Sesc Anchieta, em São Paulo.

Como se nota, por dois caminhos distintos, o que se discutiu foi a essência do homem e o seu comportamento face à vida. Para aceitarmos as diferenças que nossos semelhantes têm em relação a nós, é indispensável o conhecimento mútuo. Ou seja, a identificação dessas dessemelhanças e as suas razões.

O geneticista Albert Jacquard observa que "a nossa riqueza coletiva é constituída por nossa diversidade, 'o outro', indivíduo ou sociedade, é precioso para nós na medida em que é diferente de nós". Saint-Exupery escreveu a mesma coisa, só que de forma mais simples. Afirmou: "Se difiro de ti, longe de te fazer mal, torno-te maior". E torna mesmo, embora relutemos em admitir. Há milênios o teatro discute essa e tantas outras questões, num papel, sobretudo, educativo, em sentido maior, que desempenha de maneira inigualável.

Quantas lições nos foram deixadas por Ésquilo, Xenofontes, Aristófanes, Moliére, Bernard Shaw, Shakespeare, Albee, Beckett, Schiller, Calderón de la Barca, Cocteau, Gil Vicente, Gogol, Ibsen, Ionesco, Bertold Brecht e milhares e milhares de outros autores que nos legaram a essência da sua sabedoria, para que nos tornássemos um pouco mais sábios e mais hábeis no trato com nossos semelhantes!

E, principalmente, por atores e atrizes, que emprestaram suas mentes, seus corpos e suas emoções, para viverem as alheias e transmitirem princípios eternos, gerações após gerações! É esta perenidade, essa força, essa mágica transformação de um indivíduo em dez, em cem, em mil, que me fascina tanto no teatro.

Boa leitura!

O Editor.



Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Galeria Metrópole


* Por Laís de Castro


Não vou revelar detalhes da nossa noite de núpcias, primeiro porque ninguém tem nada com isso, e depois, porque eu tenho vergonha mesmo, mas posso afirmar que quando ela me abraçou e me beijou naquela cama macia, eu me senti como se comesse uma travessa monumental de corações de alcachofra na manteiga e coração de alcachofra é a coisa que mais gosto no mundo, depois vem marshmallow, e depois água com gás. Aquilo, que começou no subsolo dois de uma galeria nojenta do centro da cidade, depois de dois meses, estava complicando a minha vida.

A cerveja trincava de gelada e nós sentadas naquele bar da Galeria Metrópole, lá embaixo, como se o prédio todo em cima pudesse esconder as idéias contra a ditadura militar ou, no mínimo, proteger nossas cabeças contra as balas perdidas do regime naquele ano sem graça de 1967. Nem vale a pena desfiar os crimes cometidos por aquele desgoverno como um rosário doloroso, mas é preciso que todos saibam que éramos uma geração cabisbaixa e enxertada de medos.

Nessa noite, porém, tinha apenas acabado mais uma gravação do programa O Fino da Bossa e vínhamos de aplaudir a magnitude de Elis Regina, a inspiração de Chico Buarque e o vigor da voz de Milton Nascimento e muita gente boa mais, que não quero ficar repetindo que eu não sou relógio de repetição. Por enquanto nos (des)contentávamos em aplaudi-los e chorar os amigos mortos. Conseguíamos separar as coisas e continuar desfrutando de alguma alegria, porque quando a gente é jovem a vida exorbita, o sangue se encaichoeira nas veias, somos imortais seres do amor o corpo e o coração abertos como as portas dos nossos olhos e ouvidos que tudo vêem, ouvem e saboreiam.

Com os cotovelos nas mesas de madeira que mal se via com a parca iluminação daquele subsolo escuro se amontoavam os amigos de palco e platéia, os cantores, tocadores e batedores de palmas, havia uma cumplicidade tácita, cada um no seu canto, a gente não ia pedir para tirar fotografia junto e nem atrapalhava a cerveja deles, eles não vinham pedir para sair na revista, quer dizer, eu era jornalista, portanto eles não atrapalhavam a nossa. Estivemos lá dezenas de vezes, a cerveja trincando de gelada, os famosos tentando apenas ser anônimos e tomar em paz seu álcool reconfortante de cada noite, os anônimos não tentando nada além do direito ao papo de botequim e à sua emoção. O Barbudinho era um bar onde todos eram iguais na paúra, na saudade e na ânsia de só ser. Parecia haver ali uma placa: proibida a entrada da ambição, de alpinistas e de fotógrafos.

Pois ali mesmo, apesar de tudo, parecia que aquele gênio da música estava me olhando há horas, um jeito fixo, carinhoso, quase trêmulo. No começo nem pensei que fosse comigo, tenho essa mania besta até hoje, de achar que sou baixinha, feia e sem atração nenhuma, mas era comigo, alguém me proteja, socorro, aquela cara está me olhando. Meio sem jeito eu cruzava as pernas de um lado, elas ficavam mais à mostra por causa da saia curta (lembram da minissaia, vocês aí?), cruzava do outro, micava mais, acho que dava bandeira da minha falta de graça, ela quase sorria com o olhar que continuava parado em mim. Perguntei pro pessoal da mesa se aquilo estava acontecendo mesmo e eles disseram que sim. Tímida, tomei uns mil copos da cerveja trincando.

Para encurtar essa história maluca, depois de umas quatro horas foi que eu imaginei estar comendo aquela travessa de alcachofras de que falei lá em cima. No dia seguinte, ela se levantou, vou para o Rio de Janeiro, moro lá, mas na semana que vem tenho que fazer O Fino de novo (fazer era cantar lá e O Fino da Bossa, para os mais jovens, era o programa de MPB comandado por Elis Regina na TV Record de então, de saudosa memória) eu te vejo no Barbudinho e eu lá quieta, sentada na mesa, tomando o café mais preto do mundo, não precisa me dizer nada, pensava, eu sou jornalista e sei que você é casada e tem um filho pequeno, porra. Em casa, aquela noite não me saía da cabeça, nem do estômago que doeu o dia inteiro e nem dos pulmões, eu fumava tanto que tossi o dia todo. Sou burra, besta, porque fui fazer isto, uma alteração mental, um frenesi, imprudência, insensatez, sei lá o que mais, isso pode dar uma merda só, naquele tempo, todos hão de convir que não era como é hoje. Aconteceu de novo na semana seguinte e na outra e na outra. Meu coração estava encharcado daquela paixão e eu me entreguei mais cegamente do que morcego de dia, tinha a impressão de que aquela mulher tinha nascido para ser minha, todo mundo odiava a segunda-feira, eu esperava como uma criança espera o seio materno que vai lhe alimentar.

Com 20 anos eu precisava trabalhar, então fiz uma espécie de bolsa para guardar todo aquele amor, pendurei no peito e não dei nenhuma bandeira. Era tudo guardado a oitocentas chaves, sete seriam pouquíssimas naquele caso. Eu chorava, ria, viajava do extremo desespero à mais cruel euforia, que em cubículos de alucinação deste tipo só pisam os apaixonados ou mães que perdem filhos e em camarotes de euforia só se sentam os desesperançados. Bebia, ávida, toda a água do flagelo e da fortuna do amor num gole. Para saciar aquela sede nem mesmo toda a água do universo.

Na minha aparência, contudo, não deixei que a mutação sequer tangenciasse. Eu era a mesma. Se me arrancassem a pele, sim, surgiria uma ferida profunda, onde a tristeza e a felicidade se misturavam como café e leite.

Era exatamente uma xícara de café com leite que eu sorvia, com a paz possível, antes de sair para o trabalho, quando o telefone tocou eu te amo, eu te amo, eu te amo, falava devagar e pausadamente a voz que o país inteiro conhecia, como se quisesse que a mensagem fosse melhor entendida. Tola, perplexa e muda, do lado de cá, esqueci de perguntar como ela sabia meu telefone, que, vocês hão de lembrar, em 1967, celulares eram objetos de filme de ficção, os números de São Paulo só tinham cinco algarismos e DDD, nem pensar. As ligações eram feitas por telefonistas que avisavam, solenes, demora de duas horas, chamarei depois. A cabeça zumbindo, eu também te amo, eu também te amo, escandi cada sílaba e ela avisou vou fazer a bosta da Jovem Guarda domingo, por um lado odeio tudo isto, por outro venero porque me leva até você, espero lá e aí a gente foge daquele monte de chatos logo que eu acabar, que merda, ter que cantar lá, tudo culpa do festival.

Depois daquele telefonema, quando pisei na redação perguntaram se eu tinha chorado, tinha, meu cachorro morreu, nunca tive um cachorro na vida, mentia para os amigos, para a família, andava na transversal, o que tinha, na verdade, era um medo desgraçado que me zumbia na cabeça como motor de carro velho, aos trancos e barrancos. Depois de três meses eram três vezes por semana, não sei como ela se virava, mas estava sempre ao meu lado, o telefone tocava toda hora, eu te amo, não me deixa, eu só repetindo que também, que não deixava, travada total, entregue ao destino, tinha um colega de redação a quem eu contava tudo – afinal, sucumbi, ninguém é de aço – ela era árabe, maktub, me dizia e me abraçava e conversava comigo quando eu descia os degraus da perdição até um buraco mais fundo do que aquele subsolo onde tudo começara.

Eu era a mais feliz de todas as mulheres que já haviam pisado na face da terra. E a mais infeliz. Eufórica. Depressiva. Naquela redundante montanha russa mental, sorvia em goles a doce paixão ancestral e vomitava em amargas e caudalosas golfadas o pavor do fim vaticinado.

Reunião de pauta, o poderoso chefão despachando as duplas, você e o Ferreira vão ver porque O Fino da Bossa acabou, não vai mais pro ar. Vê se tira uma entrevista bomba... eu não ouvi nem mais uma palavra do que ele dizia e minha roupa ficou inteira molhada de um suor súbito, todo mundo querendo saber o que era aquela palidez total, pressão alta, pressão baixa, água com açúcar, sal embaixo da língua, senta aqui, deita, vai pro ambulatório, não vou, já melhorei vambora Ferreira, toca pro trabalho. No carro, sentada atrás, ruminei meu susto com farinha, engoli seco meu pavor. Com o que pude reunir de coragem, fiz a reportagem, cumpri a tarefa, a cabeça viajando ao Rio e voltando, as lágrimas galopando no meu sonho, querendo inundar o mundo e presas à minha responsabilidade. Resiliente, diriam os físicos, resiliente.

Vesti luto íntimo e corroí meu cérebro de dor e desolação nos dois meses seguintes, como se baratas o roessem e também roessem minha travessa de alcachofras. Nunca mais pisei no Barbudinho.

Antes e além disso, na noite daquele dia fatídico, não atendi o telefone que tocou madrugada adentro, sem trégua.

* Jornalista. Trabalhou no grupo Abril (3 prêmios Abril). na Editora Três (sob Luís Carta), na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.



O apanhador de desperdícios

* Por Manoel de Barros

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


* Um dos mais importantes poetas do século XX.
Bueiro e o impeachment da presidenta Dilma

* Por Clóvis Campêlo

Em tempos idos, Bueiro já foi cabra respeitado no bairro do Cordeiro e adjacências. Hoje, asmático e negro velho, vive pacífica e pacatamente no seu barraco.

Chama-se na verdade, José Carneiro. O apelido surgiu no tempo em que ainda era malandro atuante. Uma noite, perseguido pela polícia, para escapar, escondeu-se em um bueiro de esgoto, onde, durante algumas horas, conviveu com baratas e ratos. Escapou da polícia, porém.

No entanto, uma outra versão diz que o apelido advém da grande quantidade de marijuana que fumava nos tempos da malandragem e da juventude. Pode ser. Não o conheci nessa época.

Sabedor de que era torcedor fanático do Santa Cruz, há algum tempo atrás, presentei-o com uma camisa do Mais Querido. Não uma camisa oficial, confesso, daquelas que custam os olhos da cara. Comprei uma “similar”, na Rua do Rangel, no centro histórico do Recife, a qual foi recebida por ele com muita alegria. Sua alegria, porém durou muito pouco. Na primeira lavagem, a camisa foi roubada da janela do seu barraco, onde ele improvisa um varal em dias de sol quente. Um outro sujeito mais esperto, também torcedor do Santa Cruz, suponho, levou-a sem constrangimentos. A vida é mesmo assim: tanto nos dá quanto nos retira coisas preciosas.

Jardineiro de mão cheia, depois que deixou a malandragem, Bueiro sempre se virou cuidando dos jardins e das plantas da vizinhança. No entorno do seu barraco, sempre há mudas de hortelã (miúda e graúda), alfavacas, babosa, jasmins de cheiro, capim-santo e outras coisas mais. Mas, na medida que a idade foi avançando e as crises de asma tornando-se mais assíduas, Bueiro foi declinando dessa atividade. Chegou ao ponto de, muitas vezes, precisar da ajuda dos amigos e vizinhos para garantir o fubá e a sardinha do café da manhã. Sem lenço e sem documentos, nem ao menos podia recorrer aos recursos da seguridade social e da previdência pública.

No entanto, na eleição municipal passada, foi ajudado e salvo por um candidato a vereador local, que lhe conseguiu a segunda via da carteira de identidade e a concessão de um benefício de prestação contínua do INSS, também conhecido como loas, direito garantido para quem é pobre na forma da lei e não tem nenhuma outra fonte de renda, além de nunca ter contribuído para a previdência social. Ou seja, renda distribuída com justiça pelo governo federal.

De pobre de marré-bê-cê, Bueiro passou a ser beneficiário do INSS. Ajeitou o barraco, trocando as paredes de madeira por alvenaria; comprou uma bicicleta nova para lhe garantir a locomoção e o transporte; passou a comer e a se vestir melhor. Logo lhe apareceu uma candidata a companheira, disposta a dividir com ele o barraco novo e os minguados. Sua vida se transformou de maneira positiva e decente.

Mas, o que teria isso tudo a ver com o impeachment da presidenta Dilma? Nada, se o nosso personagem não recebesse o falado e, geralmente, tão criticado benefício de prestação contínua.

Segundo a Wikipédia, fonte que tanto me apraz consultar, o benefício de prestação contínua, prestado pelo INSS, consiste em uma renda de um salário-mínimo para idosos e deficientes que não possam se manter e não possam ser mantidos por suas famílias. Considera-se idoso quem tem mais de 65 anos e deficiente quem não possui capacidade para a vida independente e para inserção/reinserção social e no mercado de trabalho. A família deve ter renda per capita menor que um quarto de salário-mínimo, mas recentes decisões judiciais aceitaram critérios mais elásticos para cumprir o espírito da lei, que é beneficiar famílias em condição de miséria. Se já houver um idoso da família recebendo o BPC, isso não será considerado no cálculo da renda familiar para concessão de um segundo benefício. O BPC não pode ser acumulado com outros benefícios previdenciários.

Esse benefício valioso para os excluídos e que põe em prática a distribuição de renda sistemática e justa por parte do governo federal, está na mira da reforma previdenciária prevista pelo novo governo. Isso é de se temer!

* Poeta, jornalista e radialista.


Rotação

* Por Flora Figueiredo

Roda mundo, roda vida, roda vento.
Passa tudo, passa tanto, passa tempo.
Rodopiam as cores
na eterna reticência do momento.
Entre uma volta e outra do destino,
continuo apenas um menino
a soprar meu gira-sonho como um catavento. 

In O Trem Que Traz a Noite, 2000 

* Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida. 


Palavras que ferem

* Por Glória Salles

Daqueles cujo domínio próprio não controla
São como bisturi, ferem a aorta contundente.
Provocam grandes terremotos, vítimas fatais
Corações destroem, intrinsecamente.

Armas potentes, machucam, ferem
Envenenadas de puro rancor, deixam feridas.
Golpes premeditados duramente
Fazem sangrar, quando friamente proferidas. 
Quem as usa, tem consciência do mal feito.
Geralmente das regras e limites é conhecedor
Porem um prazer mórbido é sentido
Vendo no alvo do ódio, do sangue o sabor.
Ironicamente, não se dão conta os desatentos.
Os mesmos lábios que profetizam mansidão
Pregam o amor, falam de paz e harmonia.
Deixam marcas indeléveis, destroem coração. 
Ousam citar de Deus o nome, fria realidade.
E incapazes de perceber espontaneamente
O tronco que lhes atravessa o olho, e os cega.
Apontam o cisco, no olhar do semelhante.
Talvez, em nome de uma vingança infundada.
Quem sabe o coração ferido, seja o argumento.
E para pisar, esmagar e ferir brutalmente.
Só esperam por uma brecha, um momento. 
Quantos defeitos soterrados veríamos.
Pudéssemos a alma, em estado bruto sondar,
E remexendo escombros reconheceríamos.
Que apenas Deus tem poder para julgar.
Talvez , com nossos defeitos aparentes.
Pegaríamos à mão a esperar estendida.
E mesmo quando feridos e machucados
Entoaríamos apenas palavras de vida. 



* Poetisa

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Literário: Um blog que pensa


(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Onze anos, seis meses e dois dias de criação.


Leia nesta edição:

Editorial – Arrogância e inconsciência.

Coluna Contrastes e Confrontos – Urariano Mota, crônica, “Para uma nova idade”.

Coluna Do real ao surrealEduardo Oliveira Freire, conto, “Tia Maria”.

Coluna ClássicosNikolai Gogol, trecho de conto,As paixões humanas”.

Coluna Porta AbertaWanderlino Arruda, poema, “Circo, mundo de fantasias”.

Coluna Porta Aberta – Francisco Simões, crônica, “A bomba nuclear ou um asteroide”.

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Livros que recomendo:

Poestiagem – Poesia e metafísica em Wilbett Oliveira” (Fortuna crítica) – Organizado por Abrahão Costa Andrade, com ensaios de Ester Abreu Vieira de Oliveira, Geyme Lechmer Manes, Joel Cardoso, Joelson Souza, Levinélia Barbosa, Karina de Rezende T. Fleury, Pedro J. Bondaczuk e Rodrigo da Costa Araújo – Contato: opcaoeditora@gmail.com

Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com

A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Boneca de pano” - Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Águas de presságio”Sarah de Oliveira Passarella – Contato: contato@hortograph.com.br

Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.

A sétima caverna”Harry Wiese – Contato: wiese@ibnet.com.br

Rosa Amarela”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Acariciando esperanças”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br

Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br




Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Arrogância e inconsciência


Os verdadeiros “descobridores” das coisas que realmente importam são todos anônimos. Nenhum deles “patenteou” sua “invenção”, para explorá-la comercialmente. Contudo, há inúmeros indivíduos alardeando, aos quatro ventos, terem “descoberto a pólvora”, ou seja, inventado o que acham que antes não existia, sem que de fato o tenham feito. O que lhes falta é conhecimento, é consciência, é humildade, é informação.

Quem inventou a roda? Ninguém sabe! Quem foi o primeiro a obter o fogo mediante o atrito de duas pedras, ou por outro meio qualquer? Quem teve, pela primeira vez, a ideia de criar as letras do mais primitivo dos primitivos alfabetos? Quem inventou os números? Quem teve a genialidade de criar o símbolo que representa o nada, a ausência, o “zero”, que deu tamanho impulso à matemática e a todas as demais ciências que têm nela instrumento essencial? Estão vendo? Ninguém sabe!

E o questionamento poderia seguir, linha após linha, preenchendo páginas e mais páginas e sabe-se lá onde poderia parar.. Por que os “inventores” desses objetos e processos, que deflagraram o progresso e a civilização dos povos, nunca os patentearam? “Bem, porque não havia, na ocasião, nenhum órgão de registros e patentes”, dirá o cidadão que adora obviedades. Não havia mesmo, é evidente.

Mas por que o nome desses anônimos “descobridores” não se fixaram na memória de seus descendentes, até chegar a nós? Porque sua intenção, certamente, não era a busca de notoriedade, mas de proporcionar conforto e segurança para eles mesmos e para as comunidades em que viviam. A fama, certamente, nunca os seduziu. E muito menos a intenção de enriquecer com ela. Esta, pelo menos, é a ilação mais lógica que se pode extrair do seu anonimato.

Afinal de contas, o que é a “descoberta”? Esta é uma pergunta que não tem absolutamente nada de original, não é apenas minha, mas que, certamente, já vem sendo feita, com miríades de variações, e repetida, repetida e repetida desde os tempos mais remotos, geração após geração.

Um dos que a fizeram, por exemplo, foi o gênio da Literatura universal, o poeta alemão Johann Wolfgang Goethe, que lhe acrescentou o seguinte: “E quem pode dizer que descobriu isto ou aquilo? Que grande loucura é afinal alardear a prioridade nesta matéria. Porque não querer confessar abertamente o plágio é arrogância e inconsciência”.

Ou seja, por mais criativos que nos achemos, salvo raríssimas exceções (se é que elas existam), somos, na verdade, eminentes plagiadores. Tomamos determinada ideia, que achamos que seja original (mas não é, pois a colhemos alhures), acrescentamos um ou outro detalhe, algum ingrediente provavelmente até supérfluo e pronto. Julgamo-nos um poço de sabedoria e inventividade. Isso, no entender de Goethe (e no meu, evidentemente) é arrogância. E mais: é inconsciência.

Claro que sou tentado a achar que estas minhas reflexões estão revestidas, se não por completo, pelo menos parcialmente, de absoluta originalidade. Mas estariam? O que conheço eu de literatura universal? Qual o escritor uzbeque que já li? Ou bengali? Ou paquistanês? Ou hutu? Ou dos milhares de povos que há, espalhados mundo afora? Como me achar original e inventivo depois de 13 milênios de civilização, com um número incontável de pessoas que já passaram pelo Planeta, que refletiram, estudaram e escreveram páginas que nunca chegaram e nem chegarão ao meu conhecimento?

Nada disso, porém, invalida a filosofia, nem a incessante busca por conhecimentos, nem a pesquisa científica e nem, sobretudo, a Literatura (que, no meu caso, é a minha grande paixão). O que não podemos é ser arrogantes e presunçosos e nos acharmos “geniais”, por contarmos com um “tantinho” de inteligência.

Temos que deixar de lado nossa propalada autossuficiência e admitir que não passamos de anões e que nos parecemos gigantes, aos que nos observam, apenas por estarmos de pé nos ombros dos que na verdade o foram. Ou seja, dos nossos verdadeiramente inventivos, no entanto anônimos, antepassados.

Se Goethe, reconhecidamente um gênio da Literatura mundial de todos os tempos, negava a mais remota possibilidade de ser “descobridor”, e, portanto, original, quem sou eu, que não conto com o mínimo resquício da sua genialidade, para me sentir minimamente inventivo?! Definitivamente, não sou!

Boa leitura!


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk 
Para uma nova idade


* Por Urariano Mota

Há 10 anos escrevi:


“O que toda a gente lê em Manuel Bandeira, no livro Itinerário de Pasárgada, longe está de ser uma verdade íntima, única e exclusiva do poeta, neste luminoso parágrafo:


‘Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante’.


 Mas é preciso experiência, é preciso tempo para ver e sentir o paradoxo da infância mais rica que a maturidade. E, a esta altura da idade e do parágrafo, veio uma lembrança da passagem dos anos.

Então lembrei a bunda de Kim Novak, que descobri na infância em uma escondida revista Playboy. Parece que foi ontem, que digo?, parece que foi hoje, agora mesmo, nesta manhã. Depois, enquanto escovava os dentes (é sempre bom fazer essas coisas mecânicas com o próprio ser em outro lugar), eu me perguntava, sim, que mais?

O cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: "quando voltar, me traga o boneco que fala". O cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras, que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos mais dignos de serem vividos, revividos, estão na primeira infância”.

Assim foi há 10 anos. Mas foi preciso alcançar esta sexta-feira para conhecer uma outra felicidade tão digna quanto a da primeira infância. Eu me refiro aos amigos e companheiros que nos fizeram ser o que somos, que só pude conhecer e reconhecer quando concluí o romance “A mais longa duração da juventude”. Então hoje, quando sei o que antes não sabia, me pergunto: o que eu seria sem esses amigos? O quanto deles incorporamos à nossa consciência? O quanto deles fizemos espelho para o nosso próprio rosto? Então descobri esta revelação no romance:

“A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz. Nós só vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu. A paixão é isto, o trompete de Louis Armstrong, a voz de Ella Fitzgerald, aquela pergunta de Luiz do Carmo em frente ao Cine São Luiz, ‘como vais escutar Ella se não tens vitrola?’. E eu apenas olhava o Capibaribe, e apertava o disco de Ella contra o peito, e me falava ‘eu a tenho perto de mim, não importa onde irei escutá-la. Ela é a minha negra de peixe-de-coco. Vai ser a senhora da noite, das horas malditas’. Aquilo que num poema Goethe gravou:


Deve mover-se, obrar criando
Tomar sua forma, ir-se alterando
Momento imóvel é aparência.
Na eternidade em disparada
Que tudo arruína
Que tudo arruína e leva ao nada
Somente o ser tem permanência’ ”

O quanto demoramos ser o que deveríamos. Quantos caminhos tortos, até descaminhos, passamos. Então, aos amigos, às amigas, à companheira, às mulheres, a todas as riquezas que os bravos nos legaram, agradeço muito. Sei agora que sou devedor, assim como sei também que jamais conseguirei pagar tão imensa dívida.



* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros