sábado, 30 de junho de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Problemas correlatos.

Coluna Direto do Arquivo – Ruth Barros, crônica, “Os feios não envelhecem”.

Coluna Clássicos – Salvatore Quasimodo, poema, “Uma ânfora de cobre”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica,“Assunción nas garras do condor”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, poema “Mistério”.

Coluna Porta Aberta – Suzana Vargas, poema “Vibrações”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Problemas correlatos

A fome grassa por todo o Planeta (embora muitos neguem e outros tantos busquem justificar a ocorrência, culpando os famintos por sua “inércia” e falta de iniciativa), enquanto a agricultura dos países desenvolvidos e com acesso à alta tecnologia segue batendo recordes e mais recordes de produção. O que os deserdados, os miseráveis e subnutridos, que hoje se contam aos bilhões, querem não é caridade, em especial a do mundo capitalista, que dá com uma mão e tira com as duas. Esse contingente de famintos, de ofendidos e de humilhados deseja, apenas, a oportunidade de acesso a melhores técnicas de produção, para que possa arrancar o sustento dignamente, com o próprio trabalho.

Pretende, tão somente, que alguém o ajude a ultrapassar o fosso, hoje intransponível, entre dois mundos díspares. Quer não que os (cada vez mais raros) indivíduos e instituições generosos, solidários e conscientes lhe dê o peixe (às vezes estragado), mas que o ensine a pescar. Deseja o acesso à água potável – crescentemente escassa – e às técnicas de irrigação, mesmo que as mais primárias, para garantir colheitas se não fartas, pelo menos suficientes para o sustento, em suas pífias lavouras.

A distância existente entre os povos desenvolvidos e os chamados (eufemisticamente) de “em vias de desenvolvimento” é escandalosa, tão grande, que até parece que estes últimos constituem uma “subespécie”. O professor de Biologia do Instituto de Tecnologia da Califórnia, James Bonner, disse a propósito: “Se não se tomar cuidado, chegará o dia em que os habitantes dos países ricos começarão a encarar os habitantes dos países pobres como representantes de outra espécie, encontrando uma racionalização qualquer para se livrarem deles”.

E parece que esse tempo já está chegando. E isso em pleno século XXI, a era da comunicação total, sob as vistas complacentes (covardes?) da grande imprensa, que ignora, olimpicamente, essa realidade e opta por centrar seu foco em briguinhas paroquiais de políticos cínicos e corruptos e em fofocas de comadres, em detrimento da realidade nua e crua. Todos esses fatos dramáticos e dolorosos, de miséria e de exclusão, com os quais nos deparamos diariamente, são sintomas de um grande conflito, que fatalmente vai acontecer algum dia (e nem é necessário ser futurólogo para prever sua ocorrência) e que nada terá a ver com questões nacionais ou ideológicas. Esse confronto poderá ser decisivo para a própria continuidade de existência da espécie.

Há, sim, quem se preocupe com o próximo e dedique a vida às pesquisas, objetivando (utopicamente) acabar com a fome e com as injustiças sociais. E existem, também, os que não têm consciência do que os cerca, como bichos que defendem, instintivamente, suas presas, sem quaisquer considerações quanto à quantidade ou à necessidade que têm. O historiador britânico, Arnold Toynbee, analisou muito bem essa contradição.

Entrevistado em um programa Globo Repórter Especial, levado ao ar em 1º de janeiro de 1974, sentenciou: “O homem poderá descobrir uma saída desta armadilha de violência em que caiu com uma mudança no seu coração, mas só através do que eu chamaria de uma revolução religiosa, no verdadeiro sentido da palavra. Só desistindo dos objetivos da revolução industrial, que começou na Grã-Bretanha, e trocando-os pelos de São Francisco de Assis, que foram estabelecidos, há setecentos anos, na Itália”.

E o ilustre historiador – autor, entre outros livros, de “Um Estudo da História”, em 12 volumes, em que tratou da ascensão e queda da civilização ocidental – explicou, na sequência: “Há uma coisa, hoje, na América, chamada de boa vida, o que significa uma existência material luxuosa, comodista, opulenta. Isto é o que São Francisco recusou, porque ele temia pelo Ocidente com grande antevisão. Este era um dos ideais do seu pai, que foi um dos primeiros atacadistas de roupas e fez uma fortuna. Nós precisamos voltar a São Francisco. E isso será extremamente difícil para o mundo ocidental contemporâneo e para os ocidentalizados, como os soviéticos (ainda existia a URSS) e japoneses, porque nós estamos no extremo oposto. É por isso que imagino que a transição será extremamente dolorosa. E nós nem sabemos se seremos capazes de conseguir isto, sem que haja um desastre completo”.

Temo, fundamentado exclusivamente na realidade e no comportamento cada vez mais alienado dos que têm acesso a essa “boa vida”, citada por Arnold Toynbee, que não seremos competentes para evitar essa catástrofe anunciada. Qual é o maior problema atual nos países desenvolvidos, que se constitui até mesmo em questão quase prioritária de saúde pública? É a obesidade. Trocando em miúdos – e abstraindo causas, digamos, genéticas ou desequilíbrios hormonais – pode-se afirmar que é o excesso de comida.

Esse quê a mais (e que é “muito mais”) que essas pessoas consomem, a ponto de comprometerem, seriamente, sua saúde, é justamente a parte que falta aos famintos. Diz a mais elementar das lógicas que uma partilha equânime, generosa e inteligente desses alimentos seria altamente benéfica às duas partes. Não haveria mais famintos (e quem passou fome alguma vez na vida sabe o quanto isso é terrível) e nem pessoas carregando excesso de peso que não deveriam e não precisariam carregar. Em suma, o problema do Primeiro Mundo é o egoísmo, é a ganância, é a gula, é a glutonaria, é o que a minha avó chamaria de “esganamento”. É de tudo isso o que essa faixa da população mundial pode (e deve) ser chamada, sem que haja qualquer exagero ou hostilidade na denominação: de egoísta, gananciosa, gulosa, glutã e esganada. É isso e muito mais!!!

Da minha parte, nutro, ainda, frágil e remota esperança de que, um dia, poderei confiar no homem. Gerações, certamente, vão se suceder, até que se promova essa “revolução de consciência” que se impõe e que me parece ainda muito distante e, por enquanto, utópica. Injustiças, violências, contradições e mortes inúteis e desnecessárias deverão ocorrer ainda em grande profusão, infelizmente. E não se trata de catastrofismo, mas de puríssima realidade.

Tudo o que o ser humano aprendeu, em termos de comportamento, foi mediante processos traumáticos. Dos traumas, erros e acertos, porém, é que nasceram as civilizações. Mas há quem pense como Horace Mann, que dizia: “Tenho vergonha de morrer enquanto não tiver conquistado alguma vitória para a humanidade”. Portanto, ainda há esperanças... Isto, claro, desde que milhões e milhões de pessoas venham a pensar dessa maneira e, sobretudo, a agir positivamente.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Os feios não envelhecem

* Por Ruth Barros

Não faz muito tempo, conversando com amigas, aquele papo entre garotas onde não sai muita coisa que presta, tirando homens, dinheiro, roupas, como emagrecer e outras coisinhas sim que prestam muito, fundamentais para vida de qualquer uma, descobri que os homens feios têm alguma coisa em comum com os sonhos. No caso, estou falando dos sonhos que não envelhecem, aqueles cantados pelo nosso Milton Nascimento, o Bituca – que aliás não posso chamá-lo assim, de Bituca, nunca privei de grande intimidade com nosso cantor maior.

Mas isso é muita digressão até pra cabeça tonta dessa escriba. O assunto começou quando fomos passando em revista os bonitões de nossa adolescência e primeira juventude. Com raríssimas e honrosíssimas exceções os símbolos sexuais da vida real de outrora estão medonhos, caidaços, barrigudos, enfim, lembram pouco as figuras por quem suspirávamos, apesar de serem os mesmos apenas alguns anos passados (e olha que não contamos nem o quesito careca, que independe da vontade de cada um, já demos um desconto de cara).

Primeira e óbvia observação – o homem brasileiro deve ser o maior cultivador de barriga do planeta. É impressionante, é quase uma unanimidade, todos praticamente ficaram barrigudos, e muito barrigudos. A barriga tornou-se uma espécie de apêndice, que parece ser cultivada com carinho e para muitos virou uma espécie de passaporte que dá direito a uma namorada ninfeta e bem sequinha. Deve ser prêmio de consolação (mas isso já é outro assunto e eu jurei que vou segurar a franga no primeiro).

Em compensação, os feios chocam menos quando envelhecem. Primeiro nunca chamaram muita atenção no quesito físico, justamente por serem feios, então não dão tanto susto quando a gente vai revê-los tantos anos passados, ao contrário dos bonitões, triste ruína do que foram a confrontar o presente. E a maioria realmente está melhor. Uma amiga minha foi casada com um cara muito feio de rosto, desses carecas que sempre rasparam a cabeça mesmo antes do Ronaldinho e com um corpo enxuto, além de ser medico nota 10, super legal. A constatação é dela:

- De cara ele não piorou, mesmo porque não tinha muito por onde. O cabelo, ou a falta de, continua o mesmo, agora até melhor porque virou moda, mesmo os cabeludos bonitões raspam a cabeça. E como ele não engordou e sempre teve um corpo bárbaro, continua mais ou menos a mesma coisa.

E tomando fôlego: - Em compensação vários de meus namorados que eram lindos de morrer hoje são de morrer mesmo, ou melhor, de matar, de tanto susto que tomo quando trombo com um deles na rua. Teve um que encontrei outro dia em uma festa e perguntou se eu lembrava dele, respondi que sim, claro, e fiquei fazendo força escarafunchando a memória, no que a bebedeira de festa não ajudava muito. Quando finalmente bateu quem era, um dos caras mais bonitos com quem já sassariquei quase caí dura, o cara virou uma jamanta – e olha que nem careca ficou.

Depois desse e outros casos mais ou menos do mesmo teor, chegamos à conclusão de que os feios não envelhecem, assim como os sonhos, ou pelo menos se nota bem menos em relação aos bonitos. Além de serem mais simpáticos em sua grande maioria e boa parte bem melhor na horizontal que os galãs, mesmo porque eles têm que ter algum diferencial e um bom desempenho entre quatro paredes é uma belíssima recomendação.

Anabel Serranegra dedica essa coluna a Bussunda, inesquecível com sua barriga e seu bom humor.

* Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra.

Uma ânfora de cobre

* Por Salvatore Quasimodo

Os espinhos dos figos d'índia
sobre a sebe o teu corpete novo
e azul num átimo destacado,
uma dor o que escava
no fundo do coração
quem sabe em Lentini
perto do charco do mestre
Iacopo das enguias e dos enlaces.
Que coisa reconta a terra,
celebrando o pio dos melros
no oco do meio-dia esfomeado
de frutas fundas de sementes
violetas e ocres? Teus cabelos
em desordem sobre as orelhas
que nada mais escutam,
cabelos de aquarela de cores
desmaiadas. Uma ânfora de cobre
numa porta estremece
de gotas d'água
e fios rubros de erva.


• Poeta italiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1959
Assunción nas garras do condor


* Por Urda Alice Klueger


Lembro perfeitamente daquele dia em que Fátima Bernardes olhou soturnamente para a câmara e disse, na sua melhor voz de velório: “Hoje faz quatro meses que começou o escândalo do mensalão!” Penso que em seguida ela deve ter tido um orgasmo, depois daqueles quatro meses conseguindo levar o povo de cabresto, quase todo o país de olhos, narizes e emoções concentrados em Brasília e no Jornal Nacional, sem a menor chance de conseguir olhar para nada que se passasse um pouco além das nossas fronteiras.

Este é um dos grandes males de nosostros, brasileños: para a esmagadora maioria da nossa população, o mundo começa e acaba em Brasília, e o que acontecer além de Brasília não existe, o que quer dizer que coisas assim também não existam em outros países – vi um livro didático do Canadá que dava vontade de chorar: as crianças das escolas canadenses descobrem que há o Canadá – ao redor existem animais selvagens e alguns poucos homens ”selvagens” – portanto, para elas, nosostros sequer existimos. Portanto, lá no começo do milênio ficamos quatro meses tão fascinados pelo escândalo do mensalão que sequer nos demos conta do que ele queria esconder: no nosso vizinho tão próximo, encostadinho, o Paraguai, naqueles quatro meses foram aprovadas leis que permitiam a instalação de uma base estadunidense naquele país, que concordavam que os soldados estadunidenses podiam roubar, matar, estuprar, torturar, em território paraguaio, sem sofrer sanções – e naqueles quatro meses a tal base foi devidamente instalada em Mariscal Estigarribia, norte do Paraguai - pertinho pertinho do Brasil.

Tem lá um aeroporto IMENSO (4.000 m de pista – 3,85 m de espessura, em concreto), capaz de receber todo o tipo de aeronave e eu fui lá vi tudo isso com estes olhos que a terra há de comer, e meu amigo que estava junto até tirou fotos de tudo! Portanto, a qualquer momento qualquer aeronave pode subir, lá, e encher de bombas lugares como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília ou Porto Alegre, sem contar que fica facilzinho facilzinho bombardear, também, lugares como La Paz, Caracas ou Buenos Aires. E nós, aqui, bobos, a gemer de raiva orquestrados pela voz melíflua e fúnebre de Fátima Bernandes, sem dar a mínima para o que acontecia do lado de lá da fronteira.

Alguém importante deve ter dado os parabéns à Fátima Bernardes, elogiado sua atuação ao fazer um país inteiro ficar surdo e mudo para o mundo por conta do fascínio dela, enquanto se armava a grande arapuca para a nossa área! (Em tempo: acabo de consultar São Google, e lá tem de tudo sobre a tal base e o aeroporto – embora também tenha gente lá dizendo que é tudo mentira. Mas que vi, vi, e, inclusive, junto com outros passageiros de um ônibus, fui bastante humilhada pelos tais soldados estadunidenses numa estrada ao norte do Paraguai, ali por perto). Então, agora, andava me coçando: o que é que estava acontecendo, DE VERDADE, por detrás do caso Cachoeira, que há meses mantém, de novo, os brasileiros de cabresto, a olhar para Brasília? Algo havia que ter, e coisa séria – cheguei a comentar tal coisa com algumas pessoas. Procurava ver, mas não clareava – mas para o público do Jornal Nacional estar tão fascinado pelo Cachoeira que acho que já nem se importa mais com futebol, coisa grossa estava à vista, mas eu ainda não conseguia enxergar.

Ontem, então, a coisa ficou clara, claríssima: num sórdido golpe de estado que eu assisti passo a passo via Telesur (facilzinho de pegar via Internet: clicar señal en vivo), o presidente Lugo, do Paraguai, foi deposto pelo Congresso daquele país, e um títere foi colocado no seu lugar. Lugo acatou, saiu – não quis ver sangue inocente derramado nas praças de Assunción, aquela cidade tão linda e tão querida, que é um bálsamo para o meu coração e um tesouro na minha vida, impedindo, assim, o massacre de milhares de pessoas que já lá estavam para defender a legalidade da democracia e que já estavam levando bala de borracha e gás lacrimogêneo.

O Condor volta a voar nas Américas. Faz três anos devorou Honduras; agora, foi a vez do Paraguai – amanhã ou depois será a nossa vez. Se você ainda não sabe o que é a Operação Condor, sugiro que se informe, pois muito sangue e muita lágrima já correu aqui na nossa Terra de Santa Cruz e em outros lugares por causa dela, e parece que tudo se repete. Com São Google, hoje, não há como se manter ignorante de coisas assim, das quais depende o nosso futuro. E quando o Jornal Nacional começar a falar demais no mesmo assunto, ligue as antenas: alguma maldade MUUUUITO maior está para acontecer.

Aqui, choro, como chorei tanto ontem, pelo nosso irmão Paraguai que está tão dentro do meu coração. Assunción, a linda e a doce, onde estão as flores das árvores pejadas de História das tuas praças? Ainda haverá primavera para ti, minha querida Assunción, ou só te restará ser o ninho podre daquele Condor de voos baixos e rasantes, ao contrário dos livres voos dos condores das altas montanhas? Ah! Assunción, minha querida, fico aqui torcendo pela tua primavera. Ao se despedir, ontem, Lugo disse que o povo era forte, forte, forte... Quem sabe possa voltar a primavera? Por enquanto, é tempo de chorar, e choro.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Mistério


* Por Clóvis Campêlo


Meus males os atribui à chuva
quando interessava-me ter respostas,
e minha nudez sobre a mesa posta
era mão aflita a procurar a luva.

Meus medos os atribui ao vento
quando em busca de um porto mais seguro
mantinha a vida como o meu futuro,
singrando mares de puro tormento.

Porém, se foi a chuva com o medo,
o vento dissipou o mal bem cedo,
hoje navego em outro hemisfério,

levado pela força da paixão,
movido pelo instinto da razão
e perseguindo também o mistério.

• Poeta, jornalista e radialista
Vibrações

* Por Suzana Vargas

Teu tato suave
a dormideira insone
desconhece
Foge ligeira
Peixe – água

Águia - ar
São meus espaços
que procuro em teu corpo
Acordo em

Clara luz aquática
que se despe e
te sucede.

* Poetisa gaúcha, radicada no Rio de Janeiro, autora de literatura infantil e ensaísta. Tem 16 livros publicados, entre os quais “Sombras chinesas” , “Caderno de Outono” (indicado ao Prêmio Jabuti) e “O amor é vermelho”.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Leia nesta edição:


Editorial – Potencial Caixa de Pandora.Coluna

Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “Miró, o poeta que não aparece em Febre do Rato”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, microcontos “Pílulas literárias 126”.

Coluna No Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “Amor, valores e limites”.

Coluna Porta Aberta – Edir Araújo, poema “Jejum de amor”

Coluna Porta Aberta – Jair Lopes, crônica, “Sujando os mares”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Potencial Caixa de Pandora

A Engenharia Genética, ou seja, a tentativa humana de interferir nos genes de seres vivos para “corrigir” o que a natureza levou milhões, quiçá bilhões de anos para fazer e torná-los, dessa forma, supostamente mais úteis ao homem, por sua produtividade, é um campo relativamente novo. Mas... não tão novo assim. Muito antes dos cientistas da Universidade do México terem desenvolvido suas “microvacas”, já existiam, por exemplo, há tempos, os minipôneis da Argentina. Estas e outras tantas experiências, com animais ou com plantas, geraram, geram e certamente ainda irão gerar muitas polêmicas, se não sobressaltos. Há defensores, há os que as combatem e há, principalmente, os indiferentes e desinformados a propósito (a imensa maioria).

Em 1971, a revista “Enciclopédia”, editada pela Editora Bloch, estampou reportagem a respeito das mudanças genéticas em animais para a produção ora de cavalos e vacas “anões”, ora de “gigantes”, ambos fora, portanto, dos padrões naturais. A matéria foi publicada no número de julho da referida publicação. Foi feita na fazenda El Peludo, de propriedade de Júlio César Falabella, que guardava o segredo dos minipôneis a sete chaves. Dezesseis anos após, em setembro de 1987, a revista Cláudia, da Editora Abril, trouxe matéria parecida, desta vez abordando um produtor desse minúsculo animal no Brasil, na estância “Morada dos Pôneis” em Viamão, a pouco mais de 20 quilômetros de Porto Alegre, região metropolitana da capital gaúcha. O criador brasileiro era o fazendeiro Sérgio Feolli.

No caso argentino, os minipôneis foram desenvolvidos pelo veterinário Domingos Canter, ex-professor da Faculdade de Veterinária de Buenos Aires e engenheiro-agrônomo. Pelo valor comercial dos animais, o pesquisador preferiu guardar segredo quanto ao método empregado. Assegurou, todavia, que o processo envolveu muita paciência e grande dose de acaso. Não implicou, por outro lado, como garantiu, na utilização de drogas de quaisquer espécie.

Conclui-se, das afirmações de Canter, que o início de tudo foi espontâneo. Ou seja, ocorreu o nascimento, na fazenda, de alguns cavalos de pequeno porte, por causa de uma mutação genética não induzida. A partir daí, o veterinário começou a manipular os genes desses potros protótipos, tentando tornar seus descendentes cada vez menores. Na Inglaterra, há tempos, pesquisadores vinham trabalhando no desenvolvimento de cavalos de pequeno porte. Após várias tentativas frustradas, conseguiram produzir “monstrinhos”, ou seja, animais com cabeça e corpo normais, mas com as extremidades (patas) mais curtas. Chamaram-nos de “anões condrodistróficos”.

Com os minipôneis de Canter, porém, não aconteceu assim. Foram gerados cavalos perfeitamente proporcionais, posto que muito pequenos. Os maiores, pesavam entre 40 e 50 quilos e mediam de 60 centímetros a um metro. O menor conseguido tinha o peso de sete quilos e 18 centímetros de altura. Mas todos eram miniaturas absolutamente perfeitas. Para os que argumentam que as experiências são uma crueldade, que trazem sofrimentos aos animais, o veterinário rebateu, citando sua longevidade. Os minipôneis vivem, em média, 50 anos, quase o tanto que um homem (no Terceiro Mundo há pessoas cuja expectativa de vida não chega sequer aos 40 anos). Os cavalos normais, por seu turno, vivem, em geral, metade desse tempo ou um pouco menos, de 20 a 25 anos, e isso quando são muito bem tratados.

No outro extremo das experiências estavam animais gigantes, também desenvolvidos por Canter, excelentes para tração, com excepcional rendimento de trabalho. Mediam 2,8 metros e pesavam mais de uma tonelada, ou um mil e duzentos quilos, em média. Mas os minipôneis, de acordo com seus “criadores”, não valem apenas como atrações, para saciar a curiosidade. Há alguns, segundo eles, de muita utilidade para o trabalho. São tão bons para trabalhar, argumentam, como os gigantescos “percherões” (da região francesa de Perchere). Mas têm a vantagem de comer menos e de viver mais. Pesam somente 40 quilos, contra os 800 da raça criada na França. Por isso, os minipôneis têm sido disputados para trabalhar em minas, especialmente no Chile e no Peru.

Nos Estados Unidos, a equipe do doutor Dale Bauman, da Universidade de Cornel, pesquisou, desde o início da década de 70, um hormônio para acelerar o crescimento das vacas e aumentar sua produtividade em 40%. Trata-se de uma proteína conhecida como somatropina, réplica exata de uma substância que o animal produz naturalmente em seu processo de desenvolvimento. Todavia, esse gigantismo não implica no aumento de peso. Não se está produzindo um espécime bovino de cinco toneladas, por exemplo. Como ocorre no caso dos minipôneis, a supervaca não é monstruosa ou aberrativa. Guarda absoluta proporcionalidade em todo o corpo.

Baume tomou, como ponto de partida para seu trabalho, pesquisas feitas na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. Na oportunidade, os pesquisadores buscavam aumentar a produção de leite mediante injeções de extrato de pituitária. Entretanto, esbarraram em um grave problema, de caráter econômico, que inviabilizava todo o projeto. Para se obter a substância a ser injetada, era preciso sacrificar até cem cabeças de gado, das quais o hormônio era extraído.

Baume, porém, adotou outro método com a somatropina. Em entrevista que concedeu à agência de notícias norte-americana The Associated Press, na oportunidade, o professor de Cornel assinalou: “Na realidade, a substância permite às vacas usar proteínas que de outra maneira produziriam graxa, para ter leite”. Em outras palavras, o hormônio injetado faz com que o animal ganhe em eficiência. As pesquisas no campo da Engenharia Genética, no entanto, têm despertado reações negativas nos mais diversos círculos. Alguns cientistas entendem que essas experiências com animais vivos são prematuras. Os defensores dos animais, por seu turno, acham que os estudos são uma forma de crueldade contra seres irracionais sem condições de reclamar ou de reagir, com o que concordo plenamente.

Amedronta-me, sobretudo, o fato de pessoas quererem brincar de deuses para interferir na obra da natureza. Sempre que isso acontece, salvo raríssimas exceções, os resultados tendem a ser desastrosos, quando não catastróficos. Um dos meus maiores temores atuais, por exemplo, refere-se aos chamados “transgênicos”, ou seja, plantas geneticamente modificadas para resistirem às várias pragas, poupando aos agricultores a utilização de vários defensivos agrícolas, como herbicidas e germicidas. Boa parte dos grãos plantados mundo afora (soja, milho, feijão etc.) já tem essa característica.

Aparentemente, os transgênicos não são nocivos ao homem. Mas não são mesmo? E se, a longo prazo, eles se revelarem indutores (ou aceleradores) de doenças? A tendência, pelo que se observa, é de em algumas décadas não existirem mais sementes originais, mas apenas as geneticamente modificadas. Caso estas se mostrem nocivas – não raro essa nocividade demanda tempo para se manifestar, ou para ser devidamente detectada e identificada – corre-se o risco da humanidade ficar privada, e para sempre, dessas tradicionais fontes de alimento que a alimentaram por séculos, por milênios, por sabe-se lá desde quando. Seria uma catástrofe de conseqüências terríveis.

Os pesquisadores asseguram que não há esse risco. Será que não há?!! Na qualidade de leigo, mas que tem a faculdade de pensar e que a exerce plenamente, não tenho tanta certeza assim. Aliás, não tenho nenhuma!!! Você tem, amável leitor? Se tiver, ela se baseia no quê? Na mera palavra de quem (e não importa o motivo) resolveu “brincar de Deus”, se arrogando em reformador da natureza? Ora, ora, ora.

Não é sequer necessário que se lembre os números trágicos da miséria que campeia no Planeta, em especial no chamado Terceiro Mundo. A utilização de técnicas de Engenharia Genética, para produzir melhores e mais alimentos e, sobretudo mais baratos, se funcionar, não deve ser questão meramente econômica, mas humanitária e, portanto, moral. Mas... e se não funcionar? Em vez de se resolver um problema, será criado outro infinitamente maior. Vale a pena correr o risco ou é preferível “conservar o pássaro que se tem nas mãos a tentar capturar o bando que está voando”? O que você acha?

O ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, em histórico discurso que fez no Saint Andrew’s Hall, em Glasgow, na Escócia, observou: “Tenho esperanças no estabelecimento universal de padrões mínimos de vida e de trabalho. Devemos traçar uma linha abaixo da qual não consentiremos que as pessoas vivam e trabalhem, mas acima da qual possam competir com toda a força da sua virilidade”.

Mas cerca de três quintos da humanidade estão na parte inferior dessa escala. Como corrigir isso? É uma questão sobre a qual vale a pena não somente pensar, mas, sobretudo, agir, para corrigir tamanha distorção, se é que ainda tem correção. Temo, todavia, quando o homem, inadvertidamente, em nome da ciência, da solidariedade, ou seja lá do que for, tenta abrir esta que pode ser insidiosa “Caixa de Pandora”, que contenha males muito maiores e piores do que os que grassam há tanto tempo pela Terra.

Boa leitura.

O Editor.

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Miró, o poeta que não aparece em Febre do Rato

* Por Urariano Mota

"Eu fiquei bastante triste por Cláudio Assis não o ter colocado no filme Febre do Rato. Eu disse a ele que era uma injustiça", falou Zizo, citando Miró, poeta marginal, que inspirou o filme mas não aparece na tela. (Dos jornais de 22 de junho de 2012)

Senhores e senhoras, temos a grata satisfação de falar sobre Miró. Sobre ele é quase inútil procurar informações no Google, porque entre os 47.000.000 resultados no máximo 4 se referem ao particular Miró que lhes apresento agora. De nome de batismo João Flávio Cordeiro da Silva, o poeta Miró nasceu no Recife há 52 anos. Mas nada do seu nome artístico vem do mais conhecido, o grande, um certo criador Joan, da convivência de João Cabral de Melo Neto. Não. Esse Miró, esse nome nobre... - e já sinto no ventre a cutilada do poeta – “todo nome é nobre” – essa denominação vem de outras plagas nobres. Vem de lá dos subúrbios do Recife. João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube. No tempo em que o maior talento de João Flávio era o futebol, os seus amigos o apelidaram de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal “o” aberta na fala nordestina. Depois, na fase em que assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, ele achou por bem continuar assim, Miró, para melhor sorrir no íntimo com os dentes claros, diante de quem o confunde com o pintor catalão.

Em um mundo globalizado conforme a ótica WASP, Miró é um acúmulo de surpresas. Pois imaginem as senhoras ladies e os senhores gentlemen que ele é um poeta que jamais entrou na universidade. Pelo menos, para assistir a lições como estudante universitário, nunca. E, continuem a imaginar, isso lhe faz nenhuma falta, devíamos mesmo dizer, para a sua poesia é um bem, porque lê e se educa em obediência a uma ordem que não está no currículo de uma tradição estéril. A quem não o conhece, a sua pessoa, física, guarda uma grata e grada graça: Miró tem a pele escura, e, ladies and gentlemen, não finjam por favor naturalidade. Mesmo em um povo mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma estranha gradação na cor da pele da sua sensibilidade. Quanto mais claros, mais poetas. Quanto mais escuros, mais trabalhadores braçais, ou, se forem artistas, mais jogadores de futebol. Daí que faz sentido o poeta Miró vir de Mirobaldo, o craque do Santa Cruz Futebol Clube. Pero a melhor surpresa de Miró vem da sua poesia. Acompanhem-nos, por favor, assim como já o acompanhamos em um auditório de teatro.

Todos nós aprendemos, ou fomos como bons estúpidos para isso educados, que o poema realiza a poesia nas suas linhas. Ou, se quiserem, o poema não precisa da pessoa do poeta – a certeza única e exclusiva do seu valor está no que escreve. Certo? Senhores e senhoras, ladies and gentlemen, senõres y señoras: - Errado. Quem não viu Miró declamar os seus poemas não sabe o quanto esse conceito, preconceito, esta burrice ancestral está errada. Aquela justa observação feita por Manuel Bandeira à poesia de Ascenso Ferreira, no trecho

"Não me lembro se antes de me avistar pela primeira vez com Ascenso Ferreira eu já tinha conhecimento dos seus versos. Como quer que fosse, eles foram para mim, na voz do poeta, uma revelação. Pois quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor" aplica-se também à poesia de Miró. Com alguns câmbios. Mirem. Onde Ascenso Ferreira realizava no recitar um uso extraordinário da voz, da modulação ao acento, do corte da sílaba à ênfase, como dizê-lo?, uma utilização da voz como um ator de rádio, (“Ascenso tinha a voz de Deus”, na lembrança do escritor Talis Andrade), Miró usa a imagem, física, melhor dizendo, ele usa o próprio corpo, ele faz evoluções pelo auditório, como um cantor de rap, quase diríamos. Mas sem microfone. E não só. Ele acrescenta caretas, esbugalha os olhos, fecha-os, e aponta os seus versos com um dedo contra a assistência. Como um Tio Sam invertido, que em vez de conclamar um alistamento, nos enfiasse a realidade cara a dentro:

- Tomem poesia, seus filhos da puta!

A plateia, divertida, sorri, gargalha, diante de versos que não chegam a ser bem cômicos. Como aqui:

“Tinha lido num livro de autoajuda, de um
desses psicólogos
De araque, que aparecem nesses
programas matinais que dão
Receitas pra tudo, inclusive de bolo,
Que na hora que a vida vira uma merda
O melhor é sair da fossa”

Ou nestes versos

“Acho que foi a primeira vez que conheci a dor
Um domingo de 1971
Naquele tempo o domingo era o dia mais
feliz,
Minha mãe fazia um macarrão com carne de
lata e Q-suco
Ficávamos brincando de mostrar a língua
vermelha
Pra provar que éramos felizes....

Norma era tão linda com seus cabelos
negros,
Que me deu um branco aos 11 anos
Quando me pediu um biscoito maizena e um
gole de fratele vita ....

Domingo era o dia mais feliz
Antes de Norma beijar um outro na boca”

A plateia, o distinto público, vai ao delírio. De rir, de gargalhar. Miró fala de um mundo abaixo do nível social do auditório. O primeiro elemento cômico é que a miséria é cômica. A maior comicidade é a desgraça que não sentimos na própria pele. A dor que não é a nossa, a dor pela qual não temos empatia, ah, ladies and gentlemen, como é cômica. Não iremos consultar nada agora, mas em algum lugar deve estar observado que o riso é manifestação pela desgraça alheia. O riso atesta a nossa superioridade ante o ridículo que não nos alcança. Quem jamais bebeu “sucos” em pacotinhos de pó, de “morango”, de “uva”, com açúcar e gelo, como bebem os que não podem comprar frutas em um país tropical, acha isso irresistivelmente cômico.Quem jamais saboreou carne enlatada no país de maior rebanho bovino do mundo, quem jamais pôde sentir o sabor, o gosto e a maravilha da carne Swift, da carne da Wilson, com macarrão rubro de colorau aos domingos, porra, que piada genial é esse macarrão se transformar no dia da felicidade. E aquela prova de amor, da cumplicidade que tem o amor, quando a musa pede refrigerante, guaraná da frattelli vita, com o biscoito miserável de maisena. Caralho, esse cara é do peru! E Norma beija um outro, mirem o detalhe, na boca! na boca! Menos, por favor, você é demais, cara!

O poeta gira em torno da assistência. A sua arma, a sua graça e cômico é a verdade. Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si. Mais do que escrever por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o inobservável.

“Já perceberam como tem pontas de
cigarro em pontos de ônibus?
Tem uma tese de um amigo que diz:
Que as empresas de ônibus são
responsáveis por 5% dos cânceres de
pulmão.
Curioso perguntei, como assim?
É que os ônibus demoram”.

Ou mesmo, vejam que engraçado:

“O amor passou na tarde
Com a mão direita sobre o ombro de um
filho com síndrome de Down ...

Aldeota, um jumento espera inquieto a
volta do seu dono que foi tomar uma
sopinha com pão, com o dinheiro das
migalhas que catou.
E eu fiquei tão emocionado,
Que não consegui escrever mais nada”.

A recepção da plateia a essas coisas é vê-las apenas como o lado sujo, trash, de uma estética suja e trash, de um maluco que escreve e não tem nenhuma vergonha de escrever sobre essa miséria como um bárbaro sem educação. (Nós, os cultos. Nós, os que, se algum dia fomos dessa desgraça, bem que a superamos. Nós, os de outro mundo. Nós, os limpos, cleans e educados.) O poeta gira, e deixa a aparência, como um bom gira, de fazer também uma rotação. Então ele declama, recita, pula, contorce-se, cospe e pragueja uns versos que a expectativa do distinto e cultíssimo público não percebe. O clima em torno da sua performance não permite a degustação, a permanência que tem a beleza, a que sempre por necessidade voltamos. Então ele fala, enquanto o público espera dar mais uma risada, então ele faz uma prece, um poema que somente hoje pela manhã pude sentir, ao ler e mastigar e ruminar como as cabras mastigam e ruminam uma erva muito amarga. Este poema não precisa do poeta. Da sua pessoa. Basta uma sensibilidade.

“Deus, Tu que agora carregas um homem,
Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns
sacos de cimento
De cada lado um sol insuportável ...
Deus,
Choves agora no meu coração
Para que eu não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas
E fazer justiça com as próprias mãos.”

Esses versos preencheram toda esta manhã de hoje. Dormiram e não saíram do peito todo este dia. Talvez porque nos tenham recordado de outro João, de Os corações futuristas, que pleno de álcool em 1973 também se sentiu impotente e louco por justiça.

Deus, choves agora no meu coração
Para que eu não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas


Senhoras e senhores, assim é Miró, o poeta que não apareceu no filme Febre do Rato.

Olhem http://www.youtube.com/watch?v=S_dnyNXNG1w

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Pílulas literárias 126


* Por Eduardo Oliveira Freire

ETERNAMENTE GRÁVIDA

Quando chegou a hora de dar à luz, sentiu um medo terrível por seu filho. "O mundo é tão hostil". Fugiu do hospital e da família. O tempo foi passando e o bebê continuava satisfeito no ventre. Os dois eram um.



***

MANIPULAÇÃO DA HISTÓRIA

Durante anos lhe disseram que sua mãe era uma prostituta. Anos depois, descobriu que ela foi uma espiã que revelou informações valiosas para a destruição de um governo tirano.



***

TEMPESTADES

Chuva forte por fora e por dentro. Será que sobreviverei aos dilúvios? Já preparei minha jangada



***

NO CAMPO DE REFUGIADOS DE GUERRA

Um homem sentado no chão percebia de repente um braço de criança preenchendo o lugar de seu braço arrancado. Olhava para sua filha Consuelo, que sempre sorria quando fazia isso.


* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, com Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

Amor, valores e limites

* Por Rodrigo Ramazzini

O festejo na despedida do Major Porfírio, pela primeira vez o emocionara dentro do exército. Os anos que passara servindo a corporação tinham-lhe dado os valores e a ética para, segundo a sua crença, tornar-se um grande sujeito. Saía com o sentimento de dever cumprido, pois tinha disciplinado centenas de recrutas, com a melhor ordem e conduta que um homem carece ter. Era viúvo há quase 15 anos. Aposentar-se-ia para se dedicar à sua outra paixão, o piano. Até já tinha se matriculado em um curso para aperfeiçoar-se.

Viveu uma vida íntegra, correta, sem nenhum deslize moral. A carreira militar ensinou-lhe a ser duro e extremamente disciplinado, a ponto de separar suas cuecas pela cor. Dificilmente sorria. Mantinha um bigode bem aparado, que passava a impressão de ser uma pessoa extremamente ranzinza. Exigia da rua onde morava a disciplina que conduzia a sua vida, isso lhe gerou inúmeras brigas com os vizinhos.

Como vivia sozinho, o piano sempre lhe fora a melhor companhia. Já tinha iniciado o curso três vezes, nunca o acabara, sempre alegava falta de tempo. Tempo esse que terá de sobra agora, com a sua aposentadoria. Não gostou, inicialmente, da idéia de dividir a professora com outro aluno, mas como era a aluna, o major preferiu não polemizar. O entrosamento com essa aluna, chamada Berenice, foi aumentando com o decorrer das aulas, de forma muito inesperada, ambos tinham a sensação que se conheciam há anos.

Os mesmo interesses musicais, literários, televisivos... Etc. Reacendeu no major a flâmula da paixão, não falhava uma aula, e não resistindo aos encantos de Berenice, mesmo muito sem jeito, afinal, há anos não se relacionava com uma mulher, convidou-a para um jantar.

O namoro já estava completando um mês quando o major mencionou a Berenice que não conhecia a sua casa, e que iria visitá-la no sábado. Uma apreensão apoderou-se de Berenice. Replicou um não nervosamente. E chamou-o para uma conversa no sofá.

“O que é certo ou errado nesta vida?”, indagou-se o major. Ficou a pensar nesta questão, incomunicável, trancado em casa, por dois dias ninguém o viu. Saber que Berenice era casada, tinha um filho de dois anos e meio, mexera demais com o ser Porfírio. Ela dissera que estava separada do marido, e que só permanecia em casa a pedido dele, pois queria ver o filho criado até os quatro anos com os pais, e que depois disso, apesar de amá-la, Berenice poderia ir viver sozinha.

Nestes dois dias em que o major estivera fechado em casa, Berenice ligara centenas de vezes, não fora atendida em nenhuma, queria explicar-se melhor, pois Porfírio a expulsara de sua casa no meio da conversa. Apesar dos insultos que recebera do major, Berenice não se magoou, entendia-lhe a raiva, por isso o procurou ao terceiro dia.

Ao chegar à casa do major, estranhara o gramado cheio de folhas e as janelas fechadas. Chamou-o pelo nome, sem resposta. Forçou o trinque da porta da frente, estava chaveada. Fez a volta na casa, repetiu a ação, a porta abriu-se. A casa estava com cheiro de mofo, tudo jogado ao chão, parecia que um furação por ali passara. Gritara: - Porfírio! Porfírio! Dirigiu-se ao quarto, a porta encontrava-se encostada, abriu-a. Um não ecoou pela casa. Encontrara o corpo do major jogado ao chão, com um tiro na cabeça. Lágrimas rolaram, abraçou o corpo, olhou para cima indagando Deus, então, notou na parede pichada, os últimos escritos de Porfírio:

Suicido-me por amor! Meus valores não nos deixariam vivermos em paz...

• Jornalista e contista gaúcho

Jejum de amor


* Por Edir Araujo


Desiludido, do amor enojou-se
e ao jejum entregou-se

Também, pudera!
Sua consorte o abandonou..
Oh! Quê falta de sorte!

Trocou-lhe por outro
Bem apanhado de bolso
E o coitado chorou...
Chorou todo o seu pranto

O desejo, nele não mais se achou
E o infeliz amargou toda a dor...
Os carinhos, não tem mais nenhum
Está feito dor, renúncia e desprezo...

Vive em completo jejum
Não por amor à bandida
Que lhe é falecida...

Ah! Quê triste jejuar!
Jejuar de amor é morte renhida,
A vida perde todo o sentido

Mas enfim;

a vida tornou-lhe triste
E triste ficou...
tornou-lhe avesso
E do avesso ficou...



* Edir Araujo é poeta e escritor, autor dos livros GRITOS E GEMIDOS E A PASSAGEM DOS COMETAS.

Sujando os mares


* Por Jair Lopes

O terror que os oceanos representavam para os nossos ancestrais que supunham a Terra plana e com borda onde os navegantes poderiam cair foi, há muito, aplacado; também a formalidade quase acadêmica como eram descritos pelos grandes navegadores dos descobrimentos, foi deixada para trás; modernamente, os oceanos tornaram-se “entidade” representada em todos seus estados de ânimo pela sua dramaticidade, sua beleza cantada em verso e prosa pelos poetas e outros sonhadores, e sua violência quando tsunamis medonhos ceifam vidas aos milhares. Mas, além disso, essa entidade passou a ter relações muito mais próximas e cordiais com a humanidade dos tempos atuais – e isso, parece, tem muito a ver com o fato de seres humanos serem “terrestres”, em contraposição a seres aquáticos dos oceanos. Mar é a antítese de terra, daí o fascínio. A maioria dos bípedes falantes pensa no oceano com admiração, como um lugar de abrigo da mente, um local mágico onde se navega por pensamentos sem preocupações do dia-a-dia, um lugar cujas praias convidam ao dolce far niente. Devido às dificuldades da vida moderna, o mar passou a ser visto como um refúgio, um ermo sem multidões buliçosas, sem estresse; um lugar bem diferente da roda viva que é ganhar o pão de cada dia na indústria e nas atividades onde o dinheiro é o objetivo final. A vida a beira mar é um ideal procurado por grande parte do homem moderno.

Obviamente os mares ainda precisam ser cruzados e navegados, por motivos comerciais, por esporte, por curiosidade científica e até por motivo de guerra. No entanto, o oceano é algo a ser invejado, uma entidade merecedora de respeito e admiração. Mas, embora o mar seja para o homem fonte de proteínas, lugar de lazer, “estrada” que liga povos, nações e continentes e responsável pelo início de vida no Planeta, o bicho homem não o trata como deveria. Vejamos o que diz Rachel Carson no seu clássico “O mar que nos cerca” de 1951: “Embora o currículo do homem como guardião dos recursos naturais da terra seja desalentador, sempre houve um certo consolo na convicção de que pelo menos o mar era inviolável, além da capacidade humana de modificar e espoliar. Mas essa crença, infelizmente, mostrou ser ingênua. Ao desvendar os segredos do átomo, viu-se confrontado com um problema atemorizante: o que fazer com os materiais mais perigosos em toda a história do mundo, o subprodutos da fissão atômica... e, com pouquíssima discussão e quase nenhuma atenção pública, o mar tem sido escolhido como um vazadouro “natural” para os detritos contaminados...

É uma situação curiosa que o mar, onde a vida surgiu, seja agora ameaçado pelas atividades de uma forma dessa vida. “Mas o mar, ainda que mudado de maneira sinistra, continuará a existir: a ameaça é antes à própria vida”

No entanto, a poluição marinha, seja ela nuclear ou industrial, não é em si o problema mais grave e duradouro com que se defrontam os mares e oceanos. Porque o mar tem uma capacidade, ainda que limitada, de se limpar e se manter em forma. O pior é que hoje, a demanda sempre crescente de peixes, crustáceos e outros seres marinhos está pressionando um dos recursos mais frágeis dos oceanos e levando-o perto do ponto de ruptura. Para atender o insaciável apetite humano por frutos do mar, o homem está fazendo uma insensata sobrepesca em todos os mares. Em consequência o pescado está se esgotando muito depressa. As projeções mais conservadoras avaliam que daqui a quarenta anos não mais existirá peixes e outras vidas comerciáveis nos oceanos. Urge que nossa sociedade encontre caminhos alternativos como criação em cativeiro para que não caiamos naquilo que Rachel Carson escreveu com grande clarividência: “Mas o mar, ainda que mudado de maneira sinistra, continuará a existir: a ameaça é antes à própria vida”.

Há mudanças e degradação em todos os mares. Só nos resta baixar a cabeça de vergonha e reconhecimento de nossas fraquezas e incúrias: nós poluímos o mar, saqueamos o mar, desprezamos o mar, profanamos o mar que nos parece, o mais das vezes, existir só para nos servir. No entanto, a natureza de modo geral e o oceano em particular, estão nos avisando que haverá consequências se não guinarmos para atitudes mais racionais. E quais serão as consequências? Não sabemos, e talvez o melhor é jamais sabermos, não podemos arriscar numa aposta em que a própria vida está em jogo.

• Escritor, autor dos livros “O Tuaregue” e “A fonte e as galinhas”.