terça-feira, 30 de junho de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos e três meses de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Mulheres como elas são.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica, “De olhos fechados”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, poema, “Só pensamento”.

Coluna Do real ao Surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto, “Perda agridoce”.

Coluna Porta Aberta – Carmo Vasconcelos, poema, “Agora”.

Coluna Porta Aberta – Aleilton Fonseca, poema, “Teoria particular (mas nem tanto) do poema”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Mulheres como elas são


O papel da mulher – quer no lar, quer em sociedade –  “sempre” (ou quase sempre) foi determinado, ao que se sabe, pelo homem. Isso, pelo menos, no período da História (com início em torno do ano 7.000 antes de Cristo), e não do que se convencionou chamar de “Proto-História”. O patriarcado predominou em todas as partes e em todos os tempos, pelo menos dessa época, supostamente desde o fim da pré-história, quando o ser humano ainda habitava as cavernas primitivas e não contava nem com leis (a não ser a “do mais forte”) e nem com tradições (que nasceram, compreensivelmente, com a sucessão de gerações).  Houve (e há) exceções. Mas estas são escassas. São casos isolados, ocorridos aqui e ali.

Os historiadores, porém, com base em descobertas arqueológicas, falam de sociedades matriarcais, em que o papel de liderança e poder era exercido por mulheres. Charles Darwin defendeu essa tese. Justificou com o fato de serem elas as geradoras de novas vidas. A própria lógica sugere que em épocas muito remotas – qualquer coisa em torno de 25.000 antes de Cristo, ou pouco antes – a população humana era bastante escassa, e esparsa. A longevidade das pessoas mal chegava a parcos anos, talvez, no máximo, duas a três décadas, se tanto, dadas as péssimas condições de vida: de alimentação, de higiene, de habitação etc., além da ação predatória das feras mais fortes e mais ágeis que as atacavam com frequência. A maternidade seria encarada, então, como ato de “magia”, já que aqueles seres primitivos não relacionariam a gravidez com o ato sexual. A mulher, portanto, seria vista como a “garantidora” da sobrevivência da espécie. E isso lhe garantiria respeito e poder.

As coisas se passaram, realmente, assim? Como saber?! Só se pode especular. Mas que essa tese faz todo sentido, convenhamos, isso faz mesmo. Todavia, salvo uma ou outra exceção, o que predominou foi sempre o patriarcado. O homem assumiu o poder, governou nações, empreendeu guerras, praticou toda a sorte de disparates e de violência, sem a participação feminina. A partir de quando ele passou a ser prevalecente (admitindo que houve uma época em que o matriarcado seria a regra)? Sabe-se lá! Pode-se especular, mas saber, saber mesmo, sem sombra de dúvidas, com a certeza baseada em provas concretas e inquestionáveis (que ademais não existem) ninguém sabe. Ainda assim... desde que a Literatura (sobretudo a de ficção) nasceu, alguns escritores criativos conseguiram criar personagens femininos inesquecíveis, mesmo tendo um papel social tão restrito e sendo minoria em relação aos masculinos.

Isso não é de se admirar. Afinal, até por instinto, a mulher é, e sempre será, o grande sonho de qualquer homem “normal”. Temos, todos nós, várias delas em nossas vidas e com importância vital (umas mais, outras menos). Sem elas, sequer nasceríamos, óbvio. Nossas mães são, além de nossas geradoras, nossas primeiras nutrizes e principais educadoras, ensinando-nos tudo o que é essencial à nossa sobrevivência. Ademais convivemos com irmãs, tias, primas, avós etc., cada qual com sua importância no nosso desenvolvimento e biografia. Culminamos por eleger determinada mulher para ser, simultaneamente, amante, amiga, cúmplice, parceira, em suma, nosso amor. Alguns, é verdade, sequer sabem amar. E isso ninguém lhes ensinará jamais.  Estes querem mulheres submissas e dóceis, obedientes à sua vontade e aos seus caprichos (ou desmandos?), como se fossem meros objetos para satisfazer seus desejos (físicos e ou afetivos).  Há muitos e muitos e muitos que as querem assim. E, salvo alguma  rara exceção, dão-se mal. Não sabem amar e por isso dificilmente serão amados. Talvez sejam temidos, mas...

Admirável, portanto, é o fato de haver personagens femininas inesquecíveis em tão pouca quantidade, tendo em conta a prevalência de homens no fazer literário. Elas deveriam ser absoluta maioria, diz a mínima das lógicas, Não se trata de “divinizá-las”, mas de compreendê-las. Trata-se de saber como de fato são (e não como as imaginamos). O escritor que se proponha a criar personagens femininas que se tornem inesquecíveis deve tentar detectar (e descrever), antes e acima de tudo, o que elas pensam, o que querem, quais são seus sonhos, ideais, sentimentos e motivações. Precisam retratar seres humanos, de carne e osso, inteligentes e sensíveis, e não se ater a simples estereótipos.

É fácil estereotipar personagens. Qualquer rabiscador de textos é capaz de fazer. Contudo, só os muito talentosos – os observadores, os que fazem literatura com paixão e inteligência – criam protagonistas verossímeis, como as que encontramos nas ruas, no trabalho, na faculdade e principalmente em nossa casa. E o que se nota nos romances, contos, novelas e peças teatrais da maioria dos escritores (de ontem, de hoje e de sempre)?    Nota-se que criam estereótipos, em vez de pessoas do sexo feminino. Afinal, queiram ou não, grande parte das mulheres da Literatura é sofredora. Mas... na vida real, convenhamos, nem todas são assim. Voltarei certamente ao tema.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk          
De olhos fechados


* Por Evelyne Furtado


Ela hoje tem contato com seus recantos mais sombrios e sente o desconforto de quem pisa em seus próprios porões. Pela janela do apartamento, ela olha a noite, mas nada vê lá fora. Naquele momento sua vida mostra-se como é, sem os retoques que ela usa para disfarçar pequenas imperfeições em sua aparência. Naquela noite não há brilho.

Acende um cigarro. Voltou a fumar, mas só se permite desfrutar desse prazer quando se encontra só. Não fuma na frente do marido, nem dos filhos, pois a família condena seu pequeno vício. Ela também não come o que tem vontade, pois todos a sua volta fazem dieta e cobram dela o mesmo rigor à mesa.

Ela comporta-se como um modelo de mulher de sua geração. Malha religiosamente todos os dias e seu corpo responde a esse esforço. Tem uma carreira que não é lá essas coisas, mas lhe garante a condição de mulher que trabalha.O marido garante o padrão de vida que desfruta, afinal como poderia morar bem, ter carros do ano na garagem e viajar freqüentemente sem o dinheiro dele? Dinheiro, por sinal, que nem ela, nem ninguém, sabem de onde vem com exatidão.

Ela está só nesta noite e após o banho demorado, usou os cremes que a dermatologista receitou. Naquela manhã, submeteu-se ao último recurso da ciência para manter a expressão jovem no rosto e apesar de ter estranhado o resultado, vai terminar acostumando com o novo contorno dos lábios. Essas novidades vêm com tal força, que logo as pessoas vão achar que todas as mulheres nascem com a boca de Angelina Jolie e os seios de Pamela Anderson.

Seu armário guarda peças que traduzem as últimas tendências da moda. Tudo dividido em um closet com lugar certo para sapatos, bolsas, lingerie, jeans, vestidos, blusas, camisas etc. Seu interior é que se encontra bagunçado. Ela não sabe mais o que sente ou o que deseja. É uma mulher sensível, porém se deixou seduzir pelas tentações do glamour.

Em alguns momentos, como agora, sua alma dói e ela nem sabe onde dói. Ás vezes o que há é um vazio tão ou mais incômodo que a dor.

Em ocasiões como esta, a solidão faz-se presente com muita força. Ela sente falta de si mesma. Sente saudade da mulher idealizadora, sensível e romântica. Ressente-se das emoções que deixou para trás, das alegrias mais sinceras, dos momentos de afeto e prazer verdadeiros.

Muitos projetos foram executados, todavia os sonhos mais profundos perderam-se no quotidiano. O homem apaixonado com quem se casou, transformou-se em alguém que tudo faz para satisfazer sua vaidade, inclusive oferecendo-lhe presentes para que ela os ostente em reuniões sociais. Por vezes ela sente-se como mais um símbolo que sinaliza a sua posição social e sabe que contribuiu para isso.

Por um breve instante lembra-se de um momento de amor e chega a sentir a magia vivida há tanto tempo. De repente não há tristeza, o sentimento de desprazer se esvai com a recordação, seu rosto é iluminado por um sorriso. No peito, a sensação é de enlevo.

Mas o efeito daquela lembrança é interrompido pela realidade. Ela ouve o barulho da chave na porta, indicando que seu marido chegou em casa, de onde saiu pela manhã. Ele volta cada vez mais tarde e o que antes a fazia sofrer, passou a ser um alívio.

Imediatamente ela corre para a cama e finge dormir. Fecha os olhos para não ver a expressão de prazer e culpa que ele traz no rosto e que tanto a magoou em outras ocasiões. Não suportaria ter que falar com ele e sair da fantasia que alivia sua dor.

De olhos fechados ela vai continuar seu roteiro romântico de mulher feliz e da vida que poderia ter e não tem.


* Poetisa e cronista de Natal/RN

Só pensamento*

**Por José Calvino

A igreja convenceu milhões de pessoas
a acreditarem que Jesus ressuscitou.
Mas, como acreditar se estamos
chegando ao clímax da decadência?
Antigamente os descrentes
eram queimados na fogueira.
Será que toda unanimidade é inteligente?
E há os livres pensadores.
Pois que sejam iluminados!

*Extraído do livro “Jesus”, edição 2015.

**Escritor, poeta e teatrólogo. Vejam e sigam Fiteiro Cultural: Um blog cheio de observações e reminiscências – http://josecalvino.blogspot.com/



Perda agridoce

* Por Eduardo Oliveira Freire


Rodrigo era o craque do time do bairro. Ele e seu time venciam a maioria das competições de pelada dos finais de semana. Era o mais assediado do time pelas mulheres. Saía com todas elas. Porém, uma moça não se encantara por ele. O nome dela era Lúcia. Rodrigo ficou surpreso e como tentativa para conquistá-la, gritava por seu nome quando fazia gol. Ela nem dava atenção. Rodrigo não compreendia a sua atitude.

Um dia, uma surpresa triste e agradável lhe aconteceu. Quando perdeu um pênalti que era importante para vencer a partida, a moça veio consolá-lo. Foi até ao campo esburacado e lhe deu dois trechos da crônica DERROTA, escritas por Khali Gibran : “... Derrota, minha derrota, conhecimento de mim e meu desafio, Através de você sei que ainda sou jovem e de pés velozes, E que não me deixarei prender por louros murchos. Em você encontrei a solidão e o prazer de ser evitado e desprezado... ... Derrota, minhas derrotas, minha coragem imortal, Você e eu vamos rir com a tempestade, E juntos abriremos covas para tudo o que morre em nós. E vamos ficar de pé ao sol, com vontade, E seremos perigosos.”
    
Rodrigo ficou surpreso. Lúcia se sentou ao seu lado e lhe deu um beijo. Namoraram por algum tempo. Ele nunca se esqueceu daquela perda agridoce. Até hoje, guarda aqueles trechos da crônica que Lúcia lhe deu.

*Eduardo Oliveira Freire formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Está cursando Pós-Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e está aspirante a escritor.



Agora


* Por Carmo Vasconcelos


Agora fez-se luz no meu caminho
Imerso em nebulosa inquietação
Sem prosas proseou o teu carinho
Sem versos versejou tua paixão

Fluiu de nossos corpos a atracção
Ardente o desejo desesperado
Ao rubro como lava de vulcão
Ou chama de braseiro atiçado

E a luz brotou das fúlgidas estrelas
Do céu da tua boca presa à minha
Da força dos teus braços me enlaçando

Inseguranças para que retê-las?
Retido esse momento nos amando
Jamais ficarei só… mesmo sozinha!


* Poetisa portuguesa
Teoria particular (mas nem tanto) do poema

* Por Aleilton Fonseca


1

ovídio: escrever 200 versos
para, dentre, recolher 20 linhas
que contivessem a poesia
de todo o processo:
mas o caudal imenso
não se investe só dos vestidos
da forma nem se conforma

2

mas, há o tempo: é preciso,
por humana deficiência,
o instante grafado:
embora o fluxo da essência,
contínuo, jamais se desfaça
na mão: o poema acabado,
tal como lemos,
é somente convenção

3

pois
o que acaba de se compor,
já desmorona,
se desdiz, se rediz, mildiz,
novas palavras no invento,
novo inventário
em dez dobras vezes n
desdobra-se
no princípio
e agora e sempre

4

a ilíada são muitas ilíadas,
quão homeros a escrevê-la
e talvez por concluí-la ainda:
as estrofes que agora lemos
à falta da mão de homero
damos então por findas

5

mas no poema: cada verso,
é reverso do verso, diverso
no próximo segundo;
cada palavra cede
seu lugar, chama
a outra, que logo apaga,
outra chama, reacende sílabas,
rimas, sentidos,
rios incontidos

6

os lusíadas de camões,
o que lhe sobrou de naufrágios,
para sempre incompletos
daquilo que virou água,
ou que ficou disperso,
dos versos tornados mares,
onde camões? (oh, finitude!)
para prosseguir o que não deu tempo:
com engenho e virtude
e arte

7

o poema muda
de cor e de nome a cada piscar
de olhos,
se alonga, se encurta,
cada rima some
no som que emite
e transmite a centelha
à outra rima, parelha:
corrida de som infinda
poemando-se

8

baudelaire reescreveu as flores
até o fim de sua vida
e as flores ali contidas
não estão terminadas,
a não ser por convenção
e favor à comodidade:
baudelaire houvesse vivo,
as flores contínuas, mudadas

9

cada versão, tal rima a esmo,
reinscritos versos,
os ex-certos, nem mais
nem menos certos,
o mesmo intérmino texto,
em eterno palimpsesto

10

os calligrammes de apollinaire
necessitam de revisão:
pena que o poeta
não esteja aqui a fazê-la
e que assim seja
"para o bem da convenção"

11

pois o poeta e o poema,
entre si adotados, convivem
diários, instantâneos, côngruos,
mesmo se esquecidos um do outro
cada um é outro e o mesmo;
que a cada golpe de ar
novos sensos se acumulam
nos joelhos das palavras

12

quantas pe(r)sso(n)as e vozes
no baú de inéditos do pessoa
à espera de nome e signo
e profissão e biografia:
e não fosse a vã cirrose
quantas mensagens ele a refaria?

13

o poema é o fazer incompleto,
o refazer nunca pronto

14

pois o poema,
já no instante que pronto,
já recomeça,
em processo difuso,
inconcluso,
intransitivo, de re-flexões:

15

que não há o poema particípio,
mas sempre o poema gerúndio
em constante fervura:
é novo e outro, na leitura,
nos reciclos dos segundos

16

o poema que se lê
é tábua de aproximação

17

o poema publicado: trato caduco,
que junto ao poeta já está mudado:
mesmo que não o mude a letra,
mesmo que não o mude a rima,
que não mais o toque,
por respeito ao senhor editor,
por respeito ao senhor leitor,
ao senhor pesquisador
ao senhor louvor:
mesmo que o poeta
assine a convenção do texto
pronto (para o mercado?)
ou mesmo abandone o texto,
a pretexto de acabado,
o poema disporá da hora
de ser outra vez revelado
se outra voz o adota

18

e o poeta, com seu texto pronto,
se já se embebe de elogios eunucos
já saliva manifestações de apreço,
e a poesia paga o preço

19

o poema publicado:
mera marca provisória,
impresso para as provas
de que se faz a história:
é o rastro de um vôo veloz
que poesia é rio que recomeça na foz;
quando se digita o ponto
final, já é hora de apagá-lo
que a corrente segue em frente,
os seus elos sem intervalo

20

contudo, pobres humanos,
só sabemos existir
imprecisos
entre pausas: comer, beber
ir ao banheiro,
ganhar e gastar dinheiro,
dormir, sonhar, sorrir;
as causas para o viver
a pausa para morrer:
a poesia perde por esperar

21

somente em alguns momentos
somos o poeta, em vigília e fé:
em que a poesia, nosso invento,
nos inventa
e nos dá a concessão do poema,
mero quadro, em interrupção,
que ela é onda contínua em nós
mesmo se nos deixa sós

22

então, poetas,
que já me ensinam o sem início
nem fim:
o ponto final, abolido!
o ponto inicial, abolido!
o começo, simples acerto de pares,
o fim o sem-fim inumérico,
infinita água de mares,
o poema dito no instante
que a poesia o dita

23

pois a poesia, estado de ser,
não se captura no humano molde
de letras; ela resiste e insiste
diante dos olhos invisíveis
do poeta que se sabe seu
que a sabe sua,
e sabe: a poesia nua,
companheira e algoz,
toma-lhe o fôlego e a voz,
suspende suas noites,
retira-o da vida, e, num átimo,
se entrega por um instante
entremostra-se, falso-domada
em registro parcial
da luta jamais vã,
mal rompe a manhã

24

a poesia: o rosto na água;
o poema, sua inconstante
aparência, forma mutante,
em recorrência, minúsculas
mudanças em contínua
ação

25

poetas, retomem os seus poemas
despregando-os do papel impresso,
raspando-os da tinta áfona,
em renovada contradança
de metáforas em processo:
o poema, colado no branco da página,
clama por fluir e refluir
em novas sintaxes,
em novas vírgulas,
em novos sentidos;
desdobrar-se em leques vários,
entremostrar, desde as entrelinhas,
seus novos significandos
em poessência

26

que se o poema se esgota,
da poesia abandonado,
torna-se somente corpus,
de pesquisa e enunciados,
em autópsia textual
que lhe decreta o sentido,
em seu mais "último grau",
de seus versos dissecados

27

oh, amém, poema finado

28

mas não há a poesia finita,
mas corrente, em espiral, sem termo
o poema é o instante,
dessa corrente em passagem
re-fulminante,
diante dos olhos atônitos
do poeta, às vezes surpreso,
em agônico gesto

29

o poema re-preso no papel,
em tinta enformado,
sob tratos cosméticos, convencionados,
esconde sua verdade;
o poema é mais que o brilho de letras
para olhos desavisados,
e, como não há parto asséptico,
assim nasce, corpo de palavras,
entre suor e risos e gases e lágrimas

30

sempre o poema-sendo-ando-indo,
em gerundivo estando, em contínuo...


* Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.