Volta às origens
* Por Pedro
J. Bondaczuk
O
escritor – qualquer um que se preze – é uma colcha de retalhos
de influências. É influenciado pelas experiências de infância,
pela educação que recebeu, pelo ambiente em que foi criado e em que
vive, pelas pessoas com as quais se relaciona, por sua capacidade de
observação, pelas oportunidades de acesso aos meios de informação
e... sobretudo pelos livros, mais especificamente autores, que lê. É
como uma espécie de calidoscópio. A cada giro do tubo que
caracteriza esse objeto, experimenta uma metamorfose e já é
diferente do que era antes de alguém girar essa engenhoca cheia de
vidros coloridos.
Para
ser mais exato, devo admitir que todas as pessoas, não importa o que
façam, sofrem essas influências. E por elas serem diversas e,
principalmente, aleatórias, ninguém é exatamente igual a ninguém.
Pode haver, até, muitos parecidos. As semelhanças aumentam ainda
mais até ficarem próximas da igualdade (no caso dos gêmeos
univitelino principalmente) mas são insuficientes. Iguais, iguais
mesmo, jamais as pessoas, quaisquer pessoas, serão. Mesmo que sejam
clones uma da outra, ou seja, cópias rigorosamente exatas.
Como
todo mundo, principalmente como todo escritor, sou, também, colcha
de retalhos de influências, notadamente dos autores que tive o
privilégio de ler. Ou, valendo-me da metáfora preferida, sou esse
calidoscópio, permanentemente mutável, que citei. A cada dia sou
diferente do que era na véspera, embora parecendo o mesmo e
guardando muitas das características anteriores que fazem parecer
que não mudei. Mas mudei. De todas as influências que sofri, desde
a tenra infância, uma permanece marcante e segue ditando meus passos
pelos intrincados caminhos da literatura.
Quem me lê há bom tempo
sabe quem foi esse escritor. É ele mesmo, Jorge Luís Borges. Recorro,
amiúde, a ele todas as vezes que as temidas “crises de
criatividade” me atingem subreptícia e covardemente, ou que
simplesmente me ameaçam, e com isso, retomo o caminho que me tracei
neste mundo complexo, frustrante e difícil, que é o da literatura.
Tenho 50% das obsessões de Borges. Quanto à metade faltante, não
se trata de divergir do mestre. Simplesmente, não me interesso por
ela. Afinal, posso um dia, até, quem sabe, tornar-me grosseiramente
semelhante a esse escritor. Igual, por mais que queira essa bênção,
jamais serei. Nunca seria, mesmo que fosse seu clone.
Borges
acentuou, em um de seus textos: “Na verdade, tudo isso corresponde
a obsessões de minha infância. Os espelhos, os labirintos, os
tigres, as armas brancas. E creio que isso é tudo, não tenho outros
temas”. Modéstia dele. Tinha outros, sim. E que temas! Da minha
parte, sou obcecado pelo tempo, simbolizado pelo relógio (qualquer
que ele seja) e pela memória. Não que o escritor argentino não o
fosse. Todavia, não confessou nunca que era. Mas não compartilho e
nunca compartilhei sua obsessão por tigres e por armas brancas. Por
que? Porque nenhum dos dois me diz nada. Ambos não me sensibilizam
por nenhuma razão. Nossa obsessão comum, portanto, é por espelhos
e por labirintos.
Como
Borges, sempre fui (desde tenra infância), sou e provavelmente
serei, enquanto meus olhos tão cansados permitirem, compulsivo
leitor. Daí haver me tornado, sem nem ao menos forçar a barra, num
processo automático e natural, escritor. Bom? Mau? Razoável? Não
sei! Trata-se de julgamento que não me compete, impossível de eu
fazer com a devida e requerida isenção. Deixo essa conclusão para
os que me leem.
Borges
foi, antes que a cegueira o sacaneasse e lhe suprimisse a
possibilidade de fazer o que mais apreciava na vida, ávido e
compulsivo leitor. E justificou: “Sem leitura não se pode
escrever”. Claro que não atribuiu a ela toda a responsabilidade
pela boa escrita. Acrescentou: “Tampouco sem emoção, pois que a
literatura não é, certamente, um jogo de palavras. É muito mais.
Eu diria que a literatura existe através da linguagem, ou melhor,
‘apesar’ da linguagem”.
Borges
abordou, em muitas e muitas ocasiões, questões atinentes à sua (e
à minha) vocação para as letras. Como, por exemplo, esta
declaração a propósito, feita em uma entrevista: “O escritor
vive como escritor. A tarefa de ser poeta não se realiza num horário
fixo: ninguém é poeta das oito ao meio-dia e das duas às seis. O
poeta é poeta sempre e se vê continuamente assaltado pela poesia.
Imagino que isso aconteça também com o pintor, que se sente
assediado pelas cores e formas; ou com o músico, que se sente
envolvido pelo estranho mundo dos sons (o mais estranho mundo das
artes) e assediado por melodias, por dissonâncias”.
Todavia,
meu guru não dava toda essa importância a esse talento criativo de
que era dotado. Modéstia? Não! Realismo. Consciência do que fazia
e porque se dedicava a essa atividade. Escreveu: “Creio que os
escritores somos amanuenses de algo secreto, que se pode chamar,
segundo a tradição homérica, de “musa”; segundo a tradição
hebreia, “ruach”, o “espírito”; ou segundo a fria mitologia
moderna, “inconsciente” ou “subconsciente”; ou segundo a bela
expressão do grande poeta irlandês William Buttler Yeats, a “grande
memória”. Sim, amigos, é isso o que somos. “Amanuenses de algo
secreto”.
Apesar
de nossa aparência não lembrar, sequer remotamente, o planeta que
habitamos – achamo-la bela e harmoniosa; mas será que algum
hipotético ET, inteligente e com aguçado critério estético, que
tivesse o aspecto que para nós fosse monstruoso, mas que, por sua
vez, nos achasse monstros para seus padrões, teriam a mesma opinião?
Certamente que não! – somos uma espécie de representação em
miniatura da Terra que nos acolhe e possibilita viver. Pelo menos
nosso rosto assim o sugere, dado o formato esférico da nossa cabeça.
Borges
observou isso, mas não dessa forma tosca e imperita com que eu fiz.
Escreveu o seguinte, numa espécie de parábola: “Um homem
propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um
espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de
baías, de naus, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de
astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que
este paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto”.
Por
isso, quando me sinto vazio de ideias, com a tal (e temida) “crise
de criatividade” batendo-me à porta, ou então já instalada,
esqueço minhas outras tantas influências e retorno à origem. Volto
às minhas raízes, às motivações que me travestiram em escritor.
Recorro a Borges, e as coisas, subitamente, entram no devido foco.
Volto à normalidade, até que nova crise me ameace desestabilizar.
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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