sábado, 31 de outubro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, seis meses e vinte e nove dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Destino humano nas asas das abelhas?

Coluna Direto do Arquivo – Marcos Alves, conto, “É certo mas não é justo, e vice-versa”.

Coluna Clássicos – Hipólito da Costa, ensaio, “Narrativa da perseguição”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, poema, “A barbárie”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema, “Hoje preciso de um poema...”.

Coluna Porta Aberta – Adélia Prado, poema, “Orfandade”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Destino humano nas asas das abelhas?


As abelhas estão desaparecendo. Não me refiro ao seu desaparecimento do meu quintal, nem da minha cidade, do meu Estado, do Brasil enfim. Estão morrendo, minguando, se extinguindo. Estão desaparecendo do mundo todo. A continuar esse ritmo de extinção, em no máximo uma década, esse inseto tão útil, produtivo e até exemplar, no que diz respeito à sua “organização social” não passará de lembrança. Aliás, nem disso. Seu desaparecimento implicará, fatalmente, quase que de imediato, num intervalo estimado em quatro anos, também no nosso. Não haverá, pois, quem possa lembrar que as abelhas um dia existiram. Creiam-me, não é nenhum exagero, como pode parecer. Não se trata de delírio de algum tresloucado catastrofista (o que não sou), longe disso. O destino da humanidade, por estranho que pareça, está diretamente vinculado a esse frágil, laborioso e útil (na verdade, indispensável) inseto. Está em suas asas.

Pelo menos 80% das verduras e das frutas que nos alimentam – e aos demais animais herbívoros, destaque-se – dependem exclusivamente da ação polinizadora das abelhas. Sem sua atuação, não conseguem se reproduzir. Em resumo, sua extinção implicará no fim de importantes fontes de alimentos para o homem. E, sem comida... Há uns dez anos (pouco mais ou pouco menos), eu havia lido matéria a esse propósito, em determinado site da internet. Na ocasião, preocupei-me, sim, com a notícia, mas não muito. A reportagem estava incompleta. Carecia de dados que comprovassem a extinção em marcha e entrevistas com especialistas no assunto. Em suma, era o tipo de matéria que se passa por cima, por ser mal escrita e mal apurada.

Voltei a pensar no tema, todavia, neste 31 de outubro de 2015, ao ouvir o programa “Você é curioso”, na Rádio Bandeirantes de São Paulo, comandado pela dupla Marcelo Duarte e Silvânia Alves. Claro que a informação deles não veio detalhada. Mas foi apresentada corretamente, de forma tal a despertar-me a atenção. Resolvi conferir o quanto havia de verdade nisso tudo e pesquisar a respeito. E... encontrei uma infinidade de dados, detalhados e convincentes, a propósito. Minha conclusão é que a coisa está muito mais feia do que se possa imaginar!!! Feíssima!!!

Por exemplo, nos Estados Unidos – que são a segunda maior potência em termos de apicultura, abaixo, apenas, da China – cerca de 70% das populações de abelhas (de todas as espécies, incluindo marimbondos e assemelhados) já se extinguiram. Essa extinção em massa é tão séria, que o Congresso norte-americano teve de aprovar um plano de emergência, como faz em tempos de guerra ou de crise econômica. A situação na Europa não é nada melhor. Na Itália, Bélgica, Alemanha, França etc.etc.etc. metade das abelhas já desapareceu! Na Espanha, de acordo com boletim do Ministério da Agricultura, só entre 2004 e 2007, 3,5 bilhões de insetos morreram.

No Brasil, a coisa não é melhor. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está investigando as causas da extinção e formas de combatê-las. O fato é que nossas abelhas, inclusive as que foram “africanizadas”, estão se extinguindo. Só no Estado de São Paulo, estima-se que em torno de 5 mil colméias do tipo ser extinguiram só neste ano.  As causas da extinção são as mais diversas, mas todas (ou quase todas) têm a ver com a ação do homem. O aquecimento global, por exemplo, é tido como um dos maiores vilões (posto que não o único). Sabe-se que as altas temperaturas afetam, entre outras coisas, o senso de direção das abelhas, impedindo-as de retornem às suas colméias. Os agrotóxicos são outra das causas. Além disso, a “varroose”, doença considerada a “Aids” desses insetos, causada por um ácaro (o “varrooa”), vem dizimando milhões e milhões de espécimes mundo afora.

Acresça-se a isso tudo a ação de um pequeno e voraz escarvelho, proveniente da África do Sul, que tem causado estragos imensos nas colméias. Originalmente, em seu habitat natural, ele se alimentava, preferencialmente, de frutas muito maduras. Não ameaçava, pois, as abelhas. Ao ser levado aos Estados Unidos, acidentalmente, em móveis e artefatos de madeira, no entanto, tornou-se um desastre para a apicultura. O presidente da União Nacional de Apicultores da Rússia, Arnold Butov, alertou: “Este escaravelho come não só as abelhas, mas também todo o conteúdo da colmeia – as células, os favos de mel, o mel e tudo mais. O pior é que ele pode ser transportado não só com produtos de apicultura ou as próprias abelhas, mas também com móveis e artigos de madeira”.

Os polinizadores são tão importantes que 80% da alimentação humana dependem, direta ou indiretamente, de plantas polinizadas ou beneficiadas pela polinização. Sem eles, os vegetais dependentes não se reproduzem. Por conseqüência, as populações que deles necessitam declinam. E a abelha produtora de mel (Apismellifera) é, disparado, o polinizador de importância agrícola mais utilizado no mundo. É imprescindível para a Agricultura e produção de alimentos! Como se vê, a humanidade tem, diante de si, outro imenso perigo, outro indigesto pepino a descascar, mas... a maioria esmagadora das pessoas sequer se dá conta. Alguns, quando informados, não só não acreditam, como ainda ironizam, como se fosse mera anedota, o que, óbvio, não é. Antes fosse!

Hoje de manhã, por exemplo, ao ouvir a informação, no programa “Você é curioso”, comentei o fato com alguém, que prefiro não identificar. Sabem o que ele me disse? “E eu com isso! Detesto mel!!!”. Maldita ignorância!!! Albert Einstein, questionado a respeito, no início da década de 50 do século passado, quando a extinção desses utilíssimos insetos não passava de remotíssima e improvável hipótese, alertou: "Quando as abelhas desaparecerem da face da Terra, o homem tem apenas quatro anos de vida". Exagero? Tomara que sim!! Eu, todavia, não apostaria nisso. Quem diria que nosso destino, e mais, nossa sobrevivência podem estar nas asas da frágil e operosa abelhinha!!!! Sim, quem diria!!!

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk   


É certo mas não é justo, ou vice-versa


* Por Marcos Alves


Raul estava em casa quando, de repente, toca a campainha. Ele olha pelo olho mágico e vê Lídia, a mulata escultural que havia conhecido na praia junto com Dimas.

Abriu, apressadamente, a porta se atrapalhando com a fechadura. O batom vermelho realçava o sorriso da morena e tornava aquela boca ainda mais voluptuosa. Por um momento ele ficou paralisado. Recompôs-se, e falou enquanto trocavam beijinhos.

-"Que surpresa!"
-"Estava olhando umas vitrines e resolvi passar para dar um alô".
-"É? Que bom, mas o Dimas hoje não passa por aqui...".
Silêncio. Dimas era amigo de Raul – na verdade colega de trabalho, e estavam juntos quando conheceram a moça na Praça do Lido.

Foi Dimas quem primeiro se aproximou de Lídia e ela correspondeu. Os dois começaram um caso, e por duas ou três vezes depois desse encontro estiveram juntos no apartamento de Raul. Sozinha, ela nunca tinha ido. A visita naquela manhã era, de fato, uma surpresa.

Ela repetiu que estava de bobeira, olhando umas vitrines e resolveu dar um alô. Ah, bom. "Como sou distraído", pensou Raul. Ofereceu um copo de refrigerante, ela aceitou. Começaram a conversar sobre amenidades.

Na verdade não tinham muito assunto, se conheceram há semanas. Pouco sabiam sobre gostos pessoais, preferências e posicionamentos, enfim. Naquele momento ainda estavam se conhecendo melhor.

Ela pediu para olhar a vista "lá fora". Ele riu baixinho, porque a janela dava para as janelas de outros prédios, parte de uma pedra vazava por uma fresta entre duas construções, só isso. Ela esticou-se toda e apoiou o tórax no encosto do sofá para poder colocar o pescoço para fora. Ele aproveitou para apreciar o corpo da gata de 17 anos.

Quando virou-se, Raul não escondia no olhar o desejo que sentia. Além do mais, ele sabia que Dimas era casado. Ela sentou-se no sofá, ele no carpete e recomeçaram a conversa sem tocar no nome de Dimas. Raul estava interessado e fazia questão de demonstrar isso.

A mulher não ofereceu resistência. Em pouco tempo os dois se beijavam e trocavam carícias cada vez mais íntimas e intensas. A coisa não parava mais e ia parar onde todos sabemos, mas, no instante em que Raul preparava o golpe final, ela gritou: "Pára!"

Como um artilheiro deixa de fazer o gol porque o bandeirinha anula a jogada, ele olha incrédulo para o rosto da morena descabelada que agora tem nos braços e pergunta:
-"Mas o que houve?”
Ela se desvencilha do cerco a que foi, voluntariamente, submetida.
-"Nada", respondeu, enquanto catava as peças de roupa espalhadas pelo quarto-e-sala.

-"Não podemos fazer isso com Dimas", emendou.
Raul no fundo acha graça daquela repentina crise de fidelidade, mas respeita, mesmo de pau duro. Ela vai embora, e mal se despede do rapaz.

No trabalho, Raul passa vários dias sem tocar no assunto com Dimas. Mas um belo dia é o amigo quem pergunta:
-"Raul, lembra da Lídia, aquela morena que a gente conheceu no Lido?
-"Claro, como ela está?"
-"Sumiu, cara. Nunca mais a vi."

Raul disfarça, faz um comentário sobre a roupa do office-boy que passa por eles, mas acaba respondendo:
-"Mas sumiu de repente, sem dar notícia?"
 -"Nos vimos pela última vez há um mês, mais ou menos. Na verdade não sei muito da vida dela não". Raul teve vontade, mas não tocou no assunto da visita-surpresa. Continuou ouvindo.

Dimas parece estar ressentido, e se refere à menina de forma grosseira.
-"Estou pouco me lixando. Era só para dar umazinha mesmo..."
Raul apenas sorri, quer dar corda à conversa. Dimas continua:
-"Cara, agora tô namorando lá na Tijuca. Mas se a mulata aparecer na sua casa, diz que eu tô na área e dá meu telefone para ela".
-"Tá bom, pode deixar", respondeu Raul.

Dimas mudou de emprego, mudou de endereço, nunca mais deu notícias. Mas a moça volta a procurar Raul.
-"O que houve entre você e o Dimas", perguntou.
-"Nada, absolutamente nada, só mentiras. Seu amigo é um babaca."

Raul não discorda e ela continua:
-"Em três meses, ele me procurou sempre em horários estranhos, geralmente durante a semana. Nunca podíamos voltar muito tarde, porque ele sempre tinha que acordar cedo no dia seguinte. Cheio de mistérios, mas vazio quando falava, além de ignorante. Não sei como pude me interessar por ele. Nem para ficar, seu amigo serve. Além de ser ruim de ...."

Raul dá uma risada sonora, quase sarcástica. Nenhuma dívida moral ou sentimento de culpa pode atrapalhar agora, e ela diz:
-"Vamos terminar o que a gente começou".


*Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.


Narrativa da perseguição

* Por Hipólito da Costa


Não obstante tudo quanto eu tinha lido e ouvido sobre a Inquisição, julgava que os procedimentos deste Tribunal não tinham já aquele caráter de crueldade, nascida da ignorância do Direito criminal de seus Ministros, e da insaciável cobiça de se aproveitarem dos bens alheios, a título de confiscação, e esperava eu que o meu processo findaria com brevidade, lisonjeando-me com a esperança de uma sentença que, fosse qual fosse, me seria grata, só por me ver livre do horror de um cárcere solitário, em que jazia sepultado por tantos meses.

Mas devo confessar, para que sirva de escarmento aos mais, a minha credulidade pueril, esta esperança de achar no S. Ofício brandura, clemência, ou brevidade de processo, em nenhum outro fundamento se estribava, senão na voz popular, que apregoa em toda a parte de Portugal, que o S. Ofício está muito mudado, que já se não praticam as crueldades que antes se faziam, porque o Tribunal é composto hoje de ministros iluminados com os novos escritos, que têm melhorado a Jurisprudência criminal, executam com discrição o novo Regimento, que lhe foi dado por El Rei D. José. Mui vergonhoso me é, porém é verdade, haver eu acreditado, contra o testemunho do mundo sábio e literato, um rumor popular, sem refletir ao menos que este rumor podia ser espalhado pelo artifício dos Inquisidores, que tiveram arte para difundir, em todos os tempos, opiniões dirigidas aos seus fins, e interesses, e de as conservar em crédito por mui dilatado tempo; tais são, por exemplo, os ridículos contos que espalharam acerca dos judeus, e que irritaram contra estes homens toda a Nação, ao ponto de que consentia tranqüilamente que os inquisidores se enriquecessem com os bens das suas infelizes vítimas, sem que ninguém atentasse na injustiça dessas transações; adiante terei ocasião de dizer mais alguma coisa sobre este Tribunal, em geral, por ora continuarei o fio da minha narração, que melhor demonstra o estado atual do S. Ofício, do que todos os raciocínios que se podem fazer a este respeito.

O Inquisidor achava-se, na audiência, com outro padre, que servia de escrivão, ou notário, segundo a sua frase; e começou as perguntas, as quais notava ao escrivão, que as escrevia, inquirindo-me o nome, pais, naturalidade; depois, se tinha recebido alguma violência da parte do familiar do S. Ofício que me conduzira à prisão e se sabia por que causa estava ali preso. Advertiu-me que eu estava no Tribunal mais justo e misericordioso que havia sobre a terra, mas que para obter da sua piedade o perdão dos meus crimes, era necessário que confessasse, de moto próprio, todos os crimes que tivesse cometido, sem omitir cúmplices, fautores, ou circunstância alguma; que esta confissão devia ser imediatamente feita; porque era aquele o momento mais favorável que tinham os presos da Inquisição, visto que, se para o diante confessasse o que ao princípio ocultasse, já não experimentaria a mesma benignidade.

Disse eu ao Inquisidor que, sendo preso pela Polícia por ter ido a Londres sem passaporte, e não se me fazendo sobre isto perguntas algumas, e só sim sobre o haver-me introduzido na Ordem da Framaçonaria, me dava este procedimento lugar de conjecturar que o motivo de me achar preso na Inquisição era o ser eu Framaçom, que se este era o crime de que estava sendo acusado, me achava disposto para o confessar, tanto por ser verdade, como para obter a piedade, e misericórdia, que ele Inquisidor me prometia, mas que se eu me enganava nesta conjectura, e os crimes de que era acusado eram outros, houvesse por bem de os declarar, para eu responder a ele o que fosse justo. Retorquiu o Inquisidor que louvava muito a minha determinação, mas que me tornava a admoestar com muita caridade, que examinasse bem a minha consciência, e não deixasse de me acusar de tudo o que tivesse feito em todos os períodos da minha vida; que eu tinha cometido crimes da competência daquele Tribunal, e que disso estava acusado; que me lembrasse da sua advertência, que o acusar-me eu a mim mesmo era sumamente importante para a salvação da minha alma, desencargo da minha consciência, e bom despacho da minha causa; e que ele Inquisidor, por me fazer mercê, me tornava a remeter para o meu cárcere, para me dar tempo a examinar a consciência. Eu disse-lhe que o maior favor que me podia dever era abreviar a minha causa, porque havendo estado preso de segredo seis meses, estava com a saúde de tal modo arruinada, que nenhuma outra coisa me importava mais, que ter uma sentença, a fim de me ver livre do tormento, de maneira que, por mais rigorosa que a sentença pudesse ser, era na minha opinião preferível ao cárcere solitário em que me achava, e com tais circunstâncias que caminhava para uma destruição inevitável, tanto mais temível, porque acabava definhando-me pouco a pouco, e morrendo lentamente.

Reconduzido ao cárcere, veio o Alcaide dizer-me que a bondade dos senhores Inquisidores tinha concedido que além da ração ordinária se me desse para almoçar o copo de café, e, além disto, em atenção à minha moléstia, se me daria cada dia algum vinho. A ração ordinária, de que me falavam, consta de meio arrátel de carne cozida, que na verdade vem sem osso, como se costuma dizer, mas como o osso que lhe tiram entra no peso do meio arrátel, vem alguns dias a porção a ser limitadíssima; mais algumas colheres de arroz; uma tigela de caldo e pão. Esta ração é cozinhada pelo cozinheiro dos cárceres, lá mesmo dentro, em ordem a poder evitar-se que pela comida se comunique algum escrito aos presos; costumam-na dar ao meio-dia. O despenseiro subministra ao cozinheiro o dinheiro necessário para se comprarem os artigos que hão de servir à mantença dos presos, e estas despesas são feitas pela tesouraria do Tribunal; e, quando se contam aos réus as custas do processo, entram também todas estas despesas do mantimento que se cobram com exação pelos bens dos réus. As únicas pessoas, porém, que têm acesso aos cárceres, e podem ver ou falar aos presos, são o Alcaide e quatro guardas fiéis dos cárceres, que conduzem os presos às audiências, e são ao mesmo tempo os algozes para dar os tormentos; estes servem também aos presos, trazendo-lhes aquilo do que hão mister, como a ração do comer, água, etc.; adiante terei ocasião de lembrar alguma exceção desta regra, mas cumpre observar aqui que estes guardas são propriamente espias que observam tudo o que se passa nos cárceres para o referir aos inquisidores, não só o que podem tirar da conversação dos presos, mas até do que veem e observam por uns pequenos orifícios praticados nos ângulos da abóbada superior dos cárceres.

Depois que me vi recolhido ao meu cárcere, para fazer exame de consciência, meditei bem em todas as palavras que se me tinham dito, e comparando-as com as relações de algumas pessoas que, sendo presas pela Inquisição, publicaram a história dos seus trabalhos, não me restou a menor dúvida sobre o fingimento das expressões que me enunciavam tanta bondade, e o tempo justificou inteiramente a minha suspeita. Conheci claramente o motivo daquele ar misterioso, com que o Inquisidor me recomendava delatar-me de todos os crimes de que me sentisse culpado; esta medida tende a excitar nos réus a desconfiança de que haverá no S. Ofício notícias exatas da sua vida, para que desta maneira amedrontados descubram coisas de que os inquisidores não tivessem conhecimento; este temor, junto às grandes promessas de misericórdia, no caso de acusação voluntária, tem sido sempre um dos mais eficazes meios que os Inquisidores empregam para descobrir da gente simples cousas, que aliás lhes seria impossível saber. Quanto a mim, tinha quase certeza moral de que não podia estar delatado de outros crimes, não era tão ignorante, que me expusesse a fazer a acusação de mim mesmo, sendo manifesto a todas as luzes, que o dever do réu é defender-se, e não acusar-se.

Passados oito dias, tornaram-me a levar à audiência, e o Inquisidor perguntou-me se havia feito exame da minha consciência, como me tinha ordenado, e se estava deliberado acusar-me sinceramente de todos os crimes de que me sentisse culpado. Respondi que das reflexões que fizera, no tempo dos oito dias, só resultava poder dizer-lhe que suspeitava estar preso por framaçom, que disso já me tinha acusado, e que ele devia saber que era verdadeira a minha acusação, pois ele Inquisidor mui provavelmente teria em seu poder as minhas cartas patentes, que naturalmente lhe seriam enviadas pela Polícia.

Replicou-me o Inquisidor que eu abusava da sua bondade em esperar, pois me mostrava contumaz em não querer fazer a minha confissão voluntária, que o haver eu dito que era framaçom de nada valia; e que assim me tornava a admoestar com muita caridade, que me acusasse de todos os crimes que tivesse cometido, e que fossem da competência daquele Tribunal, onde eu me achava delatado; e que me lembrasse que isso é o que me convinha para desencargo da minha consciência, salvação da minha alma, e bom despacho da minha causa; e que, por me fazer mercê, me tornava a remeter para o meu cárcere, para me dar tempo a fazer melhor exame de consciência, e refletir mais no que tanto me importava.


* Jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.
A barbárie

* Por Clóvis Campêlo


Quando fugiu a barbárie
das ruas estreitas do gueto,
expondo da vida a cárie,
cantando a morte em dueto,

com a fúria de cão sem dono
quando descobre o abandono,

qual sinistra procissão
sem benção ou extrema-unção,
sem chance de algum perdão,

devolveu ao mundo fausto
as dores do holocausto!


* Poeta, jornalista e radialista, blogs:
HTTP://imagenstextosecontextos.blogspot.com.br
Hoje preciso de um poema...

* Por Flora Figueiredo


Hoje preciso de um poema,
mais do que nunca.
Que ele seja vitaminado,
tufão e ventania,
clarão e meio-dia,
açúcar e flor-de-maçã.

Que ele traga o cheiro
de manhã molhada,
as virilhas úmidas,
o sangue em brasa.

Que lambuze com rimas minha casa,
as veias, a pele,
este coração inoperante.

Hoje, preciso mais do que nunca
de um poema
de boca molhada e
verso latejante.
  

* Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida.


Orfandade


* Por Adélia Prado


Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.


In "Bagagem".

* Uma das mais consagradas poetisas brasileiras


sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, seis meses e vinte e oito dias de criação.

Leia nesta edição:

Editorial – Sucesso e fracasso.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, artigo, “A tortura no Brasil de todos os dias”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto, “O monstro do armário”.

Coluna No Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “O cerinho”.

Coluna Clássicos – Osório Duque Estrada, poema, “Paisagem”.

Coluna Porta Aberta – Luís Augusto Cassas, poema, “45 graus Farenheit”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


  
Sucesso e fracasso


O sucesso e o fracasso são, salvo uma ou outra exceção, apenas parciais e com prazo determinado de validade. E não importa a natureza do empreendimento em que nos envolvermos: se relacionamentos interpessoais (amorosos, de amizade ou de sociedade), uma carreira profissional ou acadêmica, uma competição esportiva e vai por aí afora. Evitaríamos “uma tonelada” de frustrações, de mágoas e de decepções, quando não de traumas irreversíveis, se atentássemos para isso. Quase nunca atentamos. Empolgamo-nos, além da conta, com o sucesso, achando que será duradouro. Acomodamo-nos e... zás! Quando menos esperamos, percebemos que não fomos tão bem sucedidos assim. Ou então, nos deprimimos ao extremo com insucessos, entendendo-os definitivos e perdemos até o que poderia nos redimir: o amor próprio.

É verdade que, num e noutro caso, é facílimo e cômodo ditar regra, quando não somos os envolvidos. No caso de sucesso, recomendamos o óbvio dos óbvios: que o “vitorioso” não se acomode, que imponha novos objetivos (que sejam factíveis e ao alcance da capacidade) etc.etc,etc. Pregar isso a terceiros é fácil. Porém, quando somos os bem-sucedidos, agimos assim? Dificilmente. As fórmulas “mágicas” para situações de fracasso, quando, reitero, não somos os fracassados, são ainda em maior número. A recomendação básica, recorrente, infalível, aquela que nenhum conselheiro de plantão deixa de dar quando se mete a aconselhar quem fracassou (e que não pediu conselhos), é, invariavelmente, esta: “não desista! Tente de novo! Persista! Aprenda as lições de onde errou e torne a tentar!” E bla-bla-blá, bla-bla-blá, bla-bla-blá. Quando fracassamos, porém... Agimos assim? Seguimos recomendações do tipo? Raramente.

A experiência (não os livros) me diz que pouco, pouquíssimo empenho depende de nós tanto para conservar (e mais, para replicar) o sucesso quanto para reverter o fracasso. Dependemos em grande parte, das circunstâncias e da ação de terceiros. Fernando Pessoa, por exemplo, deixou registrada sua “fórmula” para sermos bem-sucedidos: “Para vencer - material ou imaterialmente - três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte”. A recomendação (sobretudo quando é para os outros, enfatizo) não deixa de ser sensata e até mesmo sábia.

Todavia, se o poeta dos heterônimos sabia disso, por que não aplicou à própria vida? É verdade que não se pode classificá-lo de “fracassado”. Todavia, se considerarmos o talento que tinha, seu sucesso foi muito aquém do que poderia (e deveria) ter sido. Sabe-se que nos últimos anos de vida ele foi tomado pela melancolia e caiu muitas vezes em depressão. Não, minha gente, Fernando Pessoa não foi, em vida, reconhecido devidamente. É incontestável sucesso hoje, posto que apenas póstumo. Certamente não aplicou sua sensata fórmula em sua vida e na carreira de escritor. Dependeu demais das circunstâncias, do acaso ou do que chamou de “sorte”. E esta... lhe foi madrasta. Saber trabalhar, não tenho dúvidas, sabia. No entanto, presumo, nem sempre aproveitou as oportunidades que teve. E muito menos criou relações adequadas para satisfazer plenamente seus objetivos.    .

O dramaturgo irlandês, Samuel Becket (falecido em 1989), também apresentou a sua “fórmula”, contudo  não para se obter sucesso, mas para encarar e reagir ao fracasso. “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor”. Como se vê, foi uma “recomendação” irônica, jocosa, posto que realista, mesmo que eivada de inegável pessimismo. Pergunto aos meus botões: “Será que ele teria coragem de dar esse conselho cara a cara, a quem tivesse acabado de fracassar?” Duvido! Era falar isso e sair correndo, para não levar uns bons sopapos.

Estas considerações podem parecer pessimistas e causar estranheza aos meus leitores habituais, mas creiam, não são. Admito que sejam, digamos, “politicamente incorretas”. Prefiro, porém, o realismo de Millôr Fernandes que, em uma de suas colunas humorísticas na extinta revista “O Cruzeiro”, escreveu: “Há duas coisas que ninguém perdoa: nossas vitórias e nossos fracassos”. E essa conduta implacável é tanto dos vencedores de ocasião, quanto (e principalmente) dos fracassados de carteirinha. Onde quero chegar com essa conversa toda? À conclusão que não devemos fazer do sucesso e do fracasso obsessões. Temos que nos empenhar, sim, para sermos bem-sucedidos. Mas tendo em mente que podemos fracassar a qualquer momento ou, se obtivermos êxito, que manda a prudência termos consciência de que este provavelmente não será duradouro. O que temos é que viver, da melhor forma possível, um dia por vez e vermos no que isso vai dar.    

Para “adoçar” um pouquinho estas considerações, partilho o pequeno, grande poema de Cecília Meirelles, intitulado “Discurso”:

“E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram”.

Boa leitura.


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A tortura no Brasil de todos os dias


* Por Urariano Mota


Nos últimos dias, ou com mais precisão, nos mais recentes oito dias, fomos agitados por duas notícias referentes à tortura. Ela, esse aviltamento da pessoa, do torturador e do torturado, que deveria ser no máximo uma exceção intolerável, entre nós é rotina. Mas vamos. Na notícia mais próxima de hoje, lá no dia 20 de outubro, lemos e vimos:

“Um sargento da Polícia Militar foi preso na terça-feira (20) ao apresentar em uma delegacia de Itaquera, na Zona Leste da capital, um suspeito de roubo. O homem detido afirmou que foi torturado antes de ser levado à delegacia e que chegou a levar choques no pescoço, na região das costelas e no pênis. O delegado prendeu então tanto o suspeito de roubo como o policial militar”.

No idioma técnico da degradação da imprensa, já aprendemos que a notícia ocorre quando um homem morde o cachorro, nunca o contrário. Assim foi com essa última. O espanto não veio de mais um ladrão ser torturado, não. Isso é costume nacional, tolerado e recomendado em todas as categorias sociais, desde que vimos o mundo pela primeira vez. Lá em Água Fria, no subúrbio da minha formação, cansamos de ver presos sendo pisados, sangrando aos chutes e na palmatória para “entregar o serviço”, quando subíamos no muro da delegacia, que dava pro quintal da casa onde morávamos. A tortura, para os desclassificados, vale dizer, para os pobres, negros e marginais, ou seja, para os que não recebem a condição de humanos, é rotina, desde que o mundo é Brasil.

Mas o espanto vinha da prisão do torturador, feita por um delegado que honra a nova civilização, que teima em nascer e brotar no mundo da barbárie brasileira. Esse delegado tem nome, é o digno senhor Raphael Zanon, um homem, que pela façanha de cumprir a lei escrita, teve que sair escoltado, porque cumprira o seu dever, ao prender um sargento da PM torturador.

Sigamos. Na outra notícia, mais afastada, soubemos em 15 de outubro:

“O coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra morreu na madrugada da quinta-feira (15) aos 83 anos no hospital Santa Helena, em Brasília.

O coronel chefiou, entre 1970 e 1974, o DOI-Codi de São Paulo, um dos principais centros de repressão do Exército durante a ditadura, e era acusado de ter comandado torturas a presos políticos”.

Morreu de morte morrida, vale dizer. Com todos os cuidados médicos, tranquilo, sereno e impune, depois de um longo prontuário de torturas e assassinatos. Essa notícia mais longe, acredito, é a mais pedagógica, porque dá corpo e fundamento à impunidade da tortura no Brasil dos últimos tempos. Tento explicar por quê.

Num artigo escrito há três anos, flagrei um momento inesquecível da boa-vida e vida boa que levam os assassinos da ditadura no Brasil. Nele pude registrar um acontecimento que, bem explorado, poderia aparecer nas páginas dos melhores ficcionistas. Ou numa imagem que, se fosse levada para o cinema, exigiria o talento de Marlon Brando e Francis Ford Coppola em O Poderoso Chefão. Aquela cena do velho mafioso brincando com o netinho no jardim, ao final do filme, lembram?       

Vocês não vão acreditar, como falaria o poeta Miró no Recife. Foi assim, acreditem. Uma ilustre descendente de Francisco Julião, o intelectual e agitador das Ligas Camponesas, possuía a sorte de morar no mesmo edifício do coronel Vilocq, quando ele estava velhinho, em 2012. Naquele ano, o bárbaro militar não era mais uma fortaleza de abuso e violência. Os mais jovens não sabem, mas Vilocq foi quem arrastou Gregório Bezerra por uma corda, que espancou o bravo comunista sob cano de ferro, e esteve a ponto de enforcá-lo em praça pública, no Recife, em 1964. Quanta força ele possuía contra um homem rendido e desarmado. Pois bem, assim me contou a privilegiada.

Muitas vezes, a ilustre que descendia de Julião viu conversando, em voz amena e agradável, lado a lado, em suas  cadeiras de rodas, quem? Que triste ironia. Lado a lado, batiam papo Darcy Vilocq e Wandenkolk Wanderley. Eles moravam no mesmo edifício e destino. Olhem que feliz coincidência, lado a lado, a ferocidade e o terror. Um, Wandenkolk, ex-delegado da polícia civil em Pernambuco, era especialista em usar alicate para arrancar  unhas de comunistas no Recife O outro, Vilocq, um lendário fascista que Gregório denunciou nas memórias. Pois ficavam os dois companheiros a cavaquear, pelas tardes, na paz do bucólico bairro de Casa Forte. Quanto sangue impune há nas tardes de paz burguesa.

De Vilocq, a minha privilegiada amiga informou um pouco mais, neste brilho de ironia involuntária da cena brasileira. Acompanhem, pois seria nessa altura onde poderia entrar a câmera de Francis Ford Coppola : uma empregada doméstica, no prédio em que Vilocq morava,  dizia que ele parecia um bebê, de tão inofensivo  e pacífico na velhice. Mas era tão gracioso –atenção, ficcionistas, atentem para as perdas dos dentes e garras das feras na velhice – ele era tão convidativo para o coração bondoso da moça, que ela brincava, muitas vezes com Vilocq, dizendo: “eu vou te pegar, eu vou te pegar”. E o  bebêzinho, o velhinho sorria diante do terror de brincadeirinha, sorria simpático já sem a força de espancar com ferro e obrigar um homem a pisar em pedrinhas descalço, depois de lhe arrancar a pele  dos pés a maçarico.

Mas para infelicidade geral, já em 2012 os dois bons velhinhos já não mais existiam. O que gostava de unhas com pedaços de carne foi para o céu aos 90 anos, em 2002. O que tentou enfiar um cano de ferro no ânus de Gregório Bezerra seguiu para Deus aos 93 anos, em março de 2012. E deixou um vazio nas tardes da história onde morava a minha amiga, que descende de Francisco Julião, o humanista das Ligas Camponesas. Como poderá a justiça humana agora alcançar os velhinhos do verde bairro de Casa Forte? Com quem brincará mais a boa moça, empregada doméstica, que de nada sabia?

Eu então concluía naquele artigo há três anos: pensemos nos torturadores envelhecidos, pensemos neles, por eles e para a justiça que não lhes chegou, quando olharmos os idosos e respeitáveis Carlos Alberto Brilhante Ustra, David dos Santos Araujo, Ariovaldo da Hora e Silva, Maurício Lopes Lima, Carlos Alberto Ponzi, Adriano Bessa Ferreira, José Armando Costa, Paulo Avelino Reis, Dulene Aleixo Garcez dos Reis. E outros velhos, muitos outros de Norte a Sul do país, que no tempo de poder foram o terror do Estado no Brasil. E terminava o artigo: eles ficaram apenas mais velhos, os bons velhinhos assassinos.

E concluo agora, depois da morte de Ustra: morrem na cama, de velhinhos, todos os torturadores brasileiros. Tudo tão Brasil, não é? Por isso, retifico ao fim: os torturadores brasileiros não fazem um filme de Francis Ford Coppola. Essa é uma história de horror, real, muito real e verdadeira, digna da união de todas as artes, do cinema, do teatro e da literatura. Possível título da obra múltipla: os bons velhinhos assassinos. Os bons, pelo menos até o dia em que a justiça os alcance. Chegará esse dia?

*Publicado originalmente na Rádio Vermelho

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

O monstro do armário


* Por Eduardo Oliveira Freire


Evandro sempre teve medo de abrir armários, achava que encontraria um monstro, o qual sempre o perseguira desde a infância.

Anos de tratamento e nunca descobriu a razão de seu trauma. Um dia, a mãe lhe revelou que no passado tinha um amante imaginário no armário e quando o pai saía para trabalhar, ele ficava com ela.

O amante não gostava de Evandro, beliscava-o e dava cascudo nele. A mãe ao descobrir, mandou-o embora do armário e que nunca mais voltasse.

Bem, depois da revelação, Evandro encontrou um bilhete no seu armário: “ Mané!!”

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/



O certinho


* Por Rodrigo Ramazzini


- Eu quero terminar! Não quero mais...
- Como assim?
- Como assim, Bruno Otávio? Acabou!
- Por quê?
- Nosso namoro caiu em uma rotina. Não agüento mais!
- É?
- É sim! E a culpa é tua.
- O que foi que eu fiz?
- O problema não é o que fazes, e sim, o que não fazes... É sempre tudo igual!
- Como assim?
- Ah! Sei lá, Bruno Otávio! Tua roupa mesmo: sempre de camisa preta bem passada. Tudo certinho!
- Eu gosto de preto... Tu também gostavas.
- Gostava! Falaste bem. Agora, me irrita.
- Mas é que eu achava...
- Achava nada. Os teus assuntos também... Sempre os mesmos, sempre girando em torno das mesmas coisas. Estou de saco cheio!
- Mas nós nem conversamos muito.
- Este é o problema. Quando conversarmos é sempre a mesma coisa. Sempre politicamente correto. Nem me contar uma piada com final indecente, para variar, tu fazes...
- Eu posso comprar um livro do Ari Toledo, se esse é o problema...
- Não é só isso!
- Tem mais?
- Tem! Os lugares que tu me levas... Eu quero às vezes pular de bunge jump, fazer um rapel, andar de kart, fazer uma trilha... Sei lá! Algo diferente.  E não ficar com a bunda quadrada por causa das cadeiras dos restaurantes... 
- Eu pensava...
- Nem tomar um porre nestes lugares tu tomas!
- Eu posso começar a beber, se quiseres...
- Nem para protagonizar uma história tu serves... Quando que eu tive que te carregar de um lugar destes? Nunca!
- Eu...
- Tu nada! Nada mesmo. Nem o jeito que me beijas tu mudas. É sempre do mesmo jeito! Desde que nos conhecemos é com a cabeça virada para o lado direito e só!
- Eu posso tentar trocar...
- Devia ter tentado trocar antes.
- Mas Lúcia...
- E o sexo então? Não vou nem comentar...
- O que tem o sexo?
- Ai Bruno Otávio... Na hora do sexo, eu quero ser pega com força, jogada de um lado para outro... Transar na garagem, no banheiro, na sala... Aí!
- Ah!
- Cansei de transar na cama e na mesma posição.
- Se era esse...
- Ser era esse o quê?
- Se era esse o problema... Se era assim que queria... Era só ter pedido! Ora...
- Ai, ai... Meu Deus! Ele não entende mesmo... Sabe o qual é o teu problema, Bruno Otávio?
- Ah qual?
- Não sabes?
- Não, né!
- Então eu vou te falar: tu és muito certinho! É isso... Esse é o problema!
- Mas tu preferes o que: um certinho que te ame ou um desorientado sem-vergonha?
- Eu prefiro um desorientado que me ame.
- Então! Eu te amo e não sou tão certinho que nem tu imaginas.
- Ah, não é? Então prova!
- Se eu provar, tu prometes que não termina o namoro?
- Prometo!

Bruno Otávio pega o telefone.

- Para quem estás ligando?
- Para a Sandra.
- Que Sandra?
- A sua amiga Sandra...
- O quê? Para a minha amiga Sandra?
- É... Espera... Alô Sandrinha! É o Bruninho, tudo bem? Vamos sair hoje de novo? Eu sei que pode! Naquele mesmo motel? Combinado. Às 22h. Beijão...


* Jornalista e contista gaúcho