sábado, 31 de outubro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Qual sucesso?

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “A corja da Uniban”.

Coluna Direto do Arquivo – Euclides Farias, crônica “Desculpe, foi engano!”.

Coluna Clássicos – José de Alencar, Capítulo VII de O Guarani “A prece”.

Coluna Porta Aberta – Adélia Prado, poema, “Moça na cama”

Coluna Porta Aberta – Zacarias Martins, poema, “Ta certo, ta certo...”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Qual sucesso?

Caríssimos leitores, boa tarde.
Espero que vocês aproveitem bem este dia de Primavera e se divirtam, descansem, renovem as energias para esta reta final de 2009, que promete muitas alegrias e boas surpresas. Mas que não se esqueçam de dar uma passada no nosso Literário e “saborear” o cardápio que lhes elaborei, que tem um pouco de tudo. Estou certo que apreciarão.
Todas as pessoas, não importa quais as atividades que exerçam, buscam o sucesso em seus empreendimentos. O diabo é que essa palavrinha é bastante ambígua. Cada qual a interpreta de determinada maneira e quase nunca há consenso a propósito.
O que você classifica de “sucesso”? Ganhar bastante dinheiro com o que faz? Conquistar prestígio, fama, glória? Ser tido como o “melhor” na sua atividade? Tudo isso pode ser considerado sucesso para uns, mas nem tanto, para outros.
E em literatura, o que é ser bem-sucedido? Produzir best-sellers após best-sellers e se habilitar ao Prêmio Nobel? Ser badalado pela imprensa e conquistar títulos e mais títulos? Ser admitido na Academia Brasileira de Letras e receber “n” convites para palestras e conferências, no Brasil e no Exterior? Ou se superar, em qualidade, de um livro para outro, produzindo, em conjunto, uma obra consistente, preciosa e imortal?
Depende de cada escritor. Uns almejam, claro, fazer muito dinheiro com o seu talento. A imensa maioria – a menos que se trate de um Paulo Coelho ou de um, Jorge Amado, campeoníssimos de vendas – se frustra neste aspecto. Quanto ao Nobel... Quantos brasileiros já o conquistaram? Nenhum! Absolutamente nenhum!
A badalação pela imprensa, por seu turno, é efêmera e passageira. Em três tempos, o escritor da moda é substituído por outro, que talvez nem seja tão bom e este por um terceiro e assim sucessivamente. Logo, cai-se no ostracismo e não raro não se é mencionado jamais por jornais e revistas.
Esse tipo de sucesso é como fumaça. Você não consegue retê-la e, mesmo que conseguisse, logo ela se perderia irremediavelmente no ar. Eu, da minha parte, não escrevo para ser bem-sucedido. Se o for, estarei no lucro. Caso contrário... não me frustrarei.
O português João Tordo tem uma opinião bastante peculiar a respeito, com a qual compartilho plenamente. Extraí este trecho, de um texto dele, do excelente sítio “O Citador”, de Portugal: “O sucesso é para os políticos. Os escritores vivem sempre na medida exata do seu fracasso que, romance após romance, se torna mais notório e cada vez mais difícil, cada vez é mais pessoal. O sucesso completo significaria que era inútil escrever mais livros”.
Está vendo a encrenca em que você se meteu escolhendo esta estafante (mas fascinante) atividade? Você acha que, quando Machado de Assis (ou Balzac, Dostoievski, Tolstoi etc.) escrevia estava pensando em quantos livros venderia, quais prêmios conquistaria, ou a qual academia seria guindado (e ele não poderia ser a nenhuma do País, pois a primeira, por aqui, foi fundada justamente por ele)?
Claro que não! A cada novo livro, buscava superar, em qualidade o anterior. Por isso foi bem-sucedido. Por não se preocupar com o sucesso. Mas rico, o nosso querido Machadão não ficou. Por isso, esqueça essa história de dinheiro.
Temos que nos considerar, sempre, fracassados (mesmo que de fato não o sejamos, sem desanimar, contudo, em decorrência desse fracasso. Em vez disso, é preciso tentar, tentar e tentar produzir a obra perfeita, cada vez melhor, cada vez mais correta, precisa, clara e elegante, sem tréguas, sem descanso, sem lero-lero, até o dia da nossa morte.
O verdadeiro sucesso (caso o obtenhamos) só virá com a posteridade. Nunca saberemos se o obtivemos ou não. É algo a ser deixado para os herdeiros (caso aconteça), como nosso grande legado, que justifique todo nosso esforço e a própria opção que fizemos na vida.

Boa leitura.

O Editor.



A corja da Uniban

* Por Daniel Santos

Há homens que, diante de uma bela mulher, lhe dirigem galanteios. Outros, no entanto, se enfurecem sem poder de abordagem, pois se sentem (e se sabem) insuficientes para o que mais desejam: tê-la em seus braços.

Uns se apressam a confortá-la, se fraqueja, e podem, ao menos por minutos, segurar-lhe a mão.

Outros, sem capacidade de estender a mão a qualquer e raivosos da própria impotência, aproveitam para execrá-la.

Diante de uma bela mulher, há homens que perdem o poder de comando, assustam-se com a súbita sujeição e se enfurecem, sem entender aqueles que se abandonam preguiçosos ao toque acetinado das mãos dela.

Muitos acreditam que a sedução consiste em ostentar bíceps: endurecem nos braços a ereção que não se empertiga entre as pernas. Mas muitos se sentem plenamente viris apenas por abrir portas a essa mulher.

Há homens que abrem portas no murro, mas, felizmente, tantos outros já entenderam que, muitas vezes, basta um jeitinho adequado de intrometer a chave e forçar de leve, bem devagar. Só isso. É o suficiente.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Desculpe, foi engano!

* Euclides Farias

Não costumo abrir e-mails comerciais escritos em inglês, por serem estatisticamente os mais letais condutores de vírus, mas também por ver abuso no ato de se tentar vender da agulha ao avião sem ao menos conhecer a língua falada pelo suposto comprador. Também não atendo, pela mesma aversão aos enigmas cibernéticos, a telefonema em que o visor exibe “sem número” ou “número confidencial”. É engraçado: configura-se o celular em tão sinistro recurso e espera-se que haja interlocutor suficientemente curioso ou bobo para atender à chamada.

Quando percebo telefonema do tipo, vem de pronto à memória de leitor um tempo em que o celular engatinhava no primeiro mundo, com a primeira ligação feita, em 1973, por Martin Cooper, pesquisador da Motorola, de uma esquina do centro de Nova Iorque, nos Estados Unidos, para um telefone fixo. No Brasil, à época, nem sinal da revolução. Sob a ditadura Médici, a única revolução que se via por aqui era a dos arapongas bisbilhotando e infernizando, na base do disse-me-disse, como comadres, a vida alheia.

Foi só em 1990 que o espanto experimentado por Cooper chegou ao Brasil, onde os 667 aparelhos de então saltaram para os atuais 50 milhões de aparelhos, sofisticados, multiusos, capazes de fotografar, receber e enviar e-mail, recepcionar filmes e programas de TV, postar, gravar e, com alguma sorte, no caso de algumas operadoras, falar.

De lá pra cá, o ritmo da vida moderna impôs os celulares como imprescindíveis, eu no meio, sem, no entanto, por natural impossibilidade tecnológica, eliminar os riscos de aborrecimento causado pela chatice que é ouvir “desculpe, foi engano” ou “esse telefone é do fulano?”. Quem liga, deveria certificar-se de que está fazendo a coisa certa e não ficar jogando dinheiro fora.

Há quem chegue ao cúmulo de ligar repetidas vezes para, por fim, diante do insucesso, porque a vida não se resume a atender telefonemas, mandar uma mensagem pedindo retorno à ligação. Ora, se você não atendeu é porque não quis ou não pôde naquele instante. Se quiser, pode fazê-lo mais tarde, lógica que dispensaria a tal mensagem.

Pode acreditar. Neste exato momento em que escrevo a crônica, o telefone, programado no perfil silencioso, ao lado do computador, está tocando. Não atenderei. Não é “número confidencial” nem “sem número”. Por um desses mistérios indecifráveis que envolvem os celulares, a brava Legião da Boa Vontade (LBV) descobriu há algum tempo meu número. Registrei-a na agenda. Eu, hein?!

* Jornalista, 50 anos de idade e 27 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.





A prece

Por José de Alencar

A tarde ia morrendo.

O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.

A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando para verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.

Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada, enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.

Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde.

Era Ave-Maria.

Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!
Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebras da montanha; esses raios perdidos, que esvasando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.

O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do angelus.
A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.

Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.

De repente os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava Ave-Maria.
Todos se descobriram.

D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.

Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distância.

O sol com o seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele busto de antigo cavalheiro.

Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.

Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.

Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.

Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.

Era noite.

Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e pouco.

Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe, e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro.

Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio, e curvou-se em face de D. Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade.

Depois a família, chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia.

Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família, o que havia recebido como um favor imenso.

O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite era o regime caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.

Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família; durante o dia corriam os matos e ocupavam-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.

Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinham também fazer a sua oração da tarde.
Quanto à família, essa conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a semana. O domingo era consagrado ao repouso, à distração e à alegria; então dava-se às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.

Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sábado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a ventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra.

Formado o grupo da família, a conversa travou-se entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas, o que rara vez sucedia.

Álvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília, da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse à conversa.
- Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antonio, - disse ele aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.
- Qual? Vejamos - respondeu o fidalgo.
- A coisa de quatro léguas daqui, encontramos Peri.
- Inda bem! - disse Cecília; - há dois dias que não sabemos notícias dele.
- Nada mais simples,- replicou o fidalgo; - ele corre todo este sertão.
- Sim! - tornou Álvaro, - mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples.
- O que fazia então?
- Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecília.
- Meu Deus! - exclamou a moça soltando um grito.
- Que tens, menina? - perguntou D. Lauriana.
- É que ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.
- Não se perde grande coisa, - respondeu a senhora.
- Mas eu serei a causa de sua morte!
- Como assim, minha filha? disse D. Antônio.
- Vede vós, meu pai, - respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; - conversava quinta-feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...
- E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo,- replicou o fidalgo rindo. - Não há de admirar. Outras tem ele feito.
- Porém, meu pai, isto é coisa que se faça! A onça deve tê-lo morto.
- Não vos assusteis, D. Cecília; ele saberá defender-se.
- E vós, Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a defender-se? -disse a moça sentida.
- Oh! Se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal!

E o moço contou parte da cena passada na floresta.
- Não há dúvida, - disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de sua vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!

A conversa continuou; mas Cecília tinha ficado triste, e não tomou mais parte nela.

D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço conversavam até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia.

Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação, Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília.
- Não me perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecília?- disse ele a meia voz.
- Ah! Sim! Trouxestes todas as cousas que vos pedi?
- Todas e mais... - disse o moço balbuciando.
- E mais o quê? - perguntou Cecília.
- E mais uma cousa que não pedistes.
- Essa não quero! - respondeu a moça com um ligeiro enfado.
- Nem por vos pertencer já? replicou ele timidamente.
- Não entendo. É uma coisa que já me pertence, dizeis?
- Sim; porque é uma lembrança vossa.
- Nesse caso guardai-a, Sr. Álvaro, - disse ela sorrindo, - e guardai-a bem.

E fugindo foi ter com seu pai, que chegava à varanda, e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas encomendas. Estas consistiam em jóias, sedas, espiguilhas de linho, fitas, galacês, holandas, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.

Vendo essas armas, a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo:
- Meu pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para te defenderes.

A ceia foi longa e pausada, como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação séria, e a mesa um altar que se respeitava.

Durante a colação, Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.

Logo que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu quarto, e ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e estava deserta e solitária.
Sentia apertar-se o coração com a idéia de que, por um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida, e arriscava todos os dias a sua, somente para fazê-la sorrir.

Tudo nesta recâmara lhe falava dele: suas aves, seus dois amiguinhos que dormiam, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as penas que serviam de ornato ao aposento, as peles dos animais que seus pés roçavam, o perfume suave de beijoim que ela respirava; tudo tinha vindo do índio que, como um poeta ou um artista, parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira.

Ficou assim a olhar pela janela muito tempo; nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro, o jovem cavalheiro elegante, tão delicado, tão tímido, que corava diante dela, como ela diante dele.

De repente a moça estremeceu.

Tinha visto à luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexíveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor dúvida.

Era Peri.

Sentiu-se aliviada de um grande peso; e pôde então entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a atenção, os lindos objetos que recebera, e que lhe causavam um vivo prazer.

Nisso gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro, e pensando na mágoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.

Trecho do romance “O Guarani”, Volume 1 – Capítulo VII



Moça na cama

* Por Adélia Prado

Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça sem ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros têm seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe, quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

(Os versos acima, publicados inicialmente no livro "O Coração Disparado", foram extraídos de "Adélia Prado - Poesia Reunida", Editora Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 175.)

* Poetisa

Tá certo, tá certo...

* Por Zacarias Martins

É curioso
quando certas pessoas
conseguem a proeza
de terem razão
mesmo quando estão erradas.

* Poeta e jornalista

sexta-feira, 30 de outubro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Linguagem do povo

Coluna Mares interiores – Solange Sólon Borges, crônica “Não há ciência nem luz no amor”

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Histórias para adolescentes pobres”.

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Melancia ninguém come sozinho”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire – texto, “Horas vazias no twitter”.

Coluna Porta Aberta – Yeda Prates Bernis, poema “A pedra”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


A linguagem do povo

Caríssimo leitor, boa tarde.
Hoje, sexta-feira, véspera de feriadão (segunda-feira será o dia de homenagear os que se foram), é ótima oportunidade para reflexão (embora, a rigor, sempre seja). Leia atentamente os textos que lhe trago nesta edição do Literário, reflita sobre eles, comente-os com os parentes e amigos e, caso se sinta motivado, poste um comentário no espaço apropriado daquele que mais o agradou (ou, eventualmente, desagradou). Sinta-se à vontade. A casa é sua.
Dando continuidade a um contato mais íntimo que vimos mantendo periodicamente com os que nos prestigiam, hoje respondo à questão formulada pelo leitor José de Arimatéia Assunção. Ele questiona sobre a validade ou não do escritor se utilizar da “linguagem do povo”, aquela falada no dia a dia – sem preocupações com concordância, regência, conjugação correta de verbos, utilização de pronomes etc. – em textos literários.
Minha resposta é a mesma que dei quando fui questionado sobre o uso de palavrões. Eu, particularmente, não gosto de usar e raramente me utilizo desse expediente. Todavia, em determinadas circunstâncias e ocasiões, isso não somente é válido, como até se impõe.
Todavia, o escritor deve deixar claro que é seu personagem que fala errado e não ele que não conhece português. Afinal, queira ou não, tenha ou não essa consciência, ele é o guardião por excelência do idioma. Tanto que, determinadas expressões que geram dúvidas nos gramáticos quanto à sua correção, são catalogadas pelos dicionaristas como válidas com base, muitas vezes, apenas no seu uso por escritores consagrados. Você pode observar isso, por exemplo, em algumas expressões no dicionário do mestre Aurélio.
Caso você esteja escrevendo um romance, em que algum de seus personagens (ou todos) seja um sujeito iletrado (analfabeto ou não, não importa) não irá convencer ninguém se o puser dialogando num português impecável, perfeito, castiço, de forma que nem mesmo o mais erudito dos eruditos utiliza no cotidiano. A história ficará inverossímil se o fizer.
O necessário, porém, é ter cuidado para não exagerar na dose. É como certas bebidas alcoólicas: tomadas em pequenas doses, servem como aperitivo, mas se você tomar a garrafa toda... E, principalmente, para não misture erros gramaticais seus, pessoais, com os dos personagens. Detecte-os, no processo de revisão, e corrija-os de imediato.
Aliás, se o escritor for relaxado em seu linguajar, sequer encontrará editor que tope embarcar nessa canoa furada com ele (para não partilhar do ridículo). Seu livro nascerá “morto”, ou seja, permanecerá inédito, a menos que o banque do próprio bolso. E se o fizer, por um excesso de vaidade que o cegue ao ponto de perder a noção de autocrítica, certamente irá arcar com monumental prejuízo, por falta de leitores que se habilitem a comprar tamanha baboseira.
Muitos escritores de primeiríssima linha reproduziram a linguagem do povo em diálogos de personagens (quando isso se impunha, claro) em romances de grande sucesso. Mas fizeram-no com bom-senso, elegância e, sobretudo, pertinência. É isso o que lhe recomendo, caríssimo José de Arimatéia.
Por sua pergunta, concluo que você é aspirante a escritor. Mande-me, pois, seus textos, sem nenhum receio de eventuais prejuízos à sua imagem, pois prometo, caso sejam bons, publicá-los (como faço com todos os que me procuram) e, em caso contrário, juro que não o exporei ao ridículo. Se houver erros insanáveis para um editor, comprometo-me a analisá-los exclusivamente com você, em um e-mail particular. Ninguém saberá, a não ser nós dois, ok?
Mas não tenha receio de se expor. Submeta-se à crítica, que é sempre saudável. Ela pode ser muito mais didática do que um montão de aulas teóricas de literatura. Ademais, ninguém é infalível e nem nasceu sabendo das coisas, não é mesmo?

Boa leitura.

O Editor.



Não há ciência nem luz no amor

* Por Solange Sólon Borges


É preciso algo de ordem ou de sonhos quando as luzes dos meus amores iluminam mil varandas e canteiros. É preciso ofertar esta rosa vermelha para girar a chama lenta do seu peito a exalar o perfume deste meu travo de alegria.

Minhas dores são cacto. Meus amores, cravo. E meu olho arde e vigia sua boca nua. Quero água e ervas, a língua repleta de palavras fáceis como a dos meninos inocentes que não temem a violência da sombra do meio-dia.

Veja esta rosa vermelha que lhe oferto, raízes expostas com seu repertório de pequenos espasmos de anjos que cantam noite adentro, saudando cada pétala com suas asas recolhidas.

Não há ciência nem luz no amor. Só esta rosa vermelha que tenta deter as liras da minha loucura que foge aos bandos levando minhas febres oceânicas e o meu silêncio.


* Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.




Histórias para adolescentes pobres

* Por Urariano Mota

Duas vezes por semana tenho a sorte de ensinar Português a adolescentes de bairros populares. Diria melhor, de tentar ensinar o muito pouco que sei. Diria melhor, de me aventurar a ensinar, mui afoitamente, conhecimentos sobre os quais eu não tenho nenhuma certeza. Diria melhor, direi melhor: quem me lê não pense, por favor, que esta confissão de ignorância é uma exibição de puro farisaísmo. Ela é, antes, um pedido de desculpa aos professores que conhecem bem a língua portuguesa. E depois, um pedido de clemência aos que pensam que a conhecem, cheios de certezas. “Saibam”, digo aos sabedores convictos, “sou tão burro em português quanto os companheiros. Portanto, piedade. Pelo esforço que tenho feito, mereço, ou mereço-a, a piedade! A piedade!”.

Os alunos, tenho notado, aqui e ali se mostram menos ignorantes que este mestre. São mais sábios, apesar da idade, dos 15 aos 17. Assim tenho notado porque, aqui e ali, em lugar das lições de minha ignorância em advérbios, substantivos, orações (e todas as vezes em que sobre isto lhes falo, ou em que insensatamente me arrisco, sinto os olhos virados para o teto, à procura de uma interjeição, ou à procura do vôo substantivo da mosca, que sempre pousa no melhor gênero de adolescente, sobre a coxa da mocinha ao lado)... como eu dizia, não houvesse a interrupção dos parênteses, aqui e ali, em lugar das grandes lições da norma culta, que sempre repito como um papagaio, eles me pedem que lhes conte uma história. Como são sábios!, reconheço, aliviado. Uma história, sim, uma história boa, verdadeira, de preferência acontecida com o mestre, que não possui o talento precioso de contá-las, mas possui a vantagem de ser o seu personagem, o que vale dizer, o personagem do mestre é um sujeitinho ridículo que já vem pronto. Mas antes do começo, uma vez que são um desvio do programa, é preciso um gancho. Como nesta semana.

- Professor, pois assim me chamam, professor, eu não consigo entender poesia.

Quem assim me fala é um rapazinho de cabelos louros, descendente de índios. Não estranhem, é o caldeirão do Brasil. Então lhe respondo eu, descendente de negra com branco e de índio também, mas não se espantem, sou o português do Brasil, então respondo, para todos os adolescentes pobres da sala, iguaizinhos a um ser que fui um dia.

- Na idade de vocês, a gente sempre procura a poesia quando tem uma desilusão amorosa. Então a gente lê, e entende tudo. Vocês já tiveram alguma? Não?! Nunca receberam um fora, nunca foram rejeitados por quem vocês amavam? Hem? (Silêncio em palavras, mas seus olhos tristes confirmam. E por isso desarmo a sua tristeza, insinuando-lhes a minha.) Pois eu já. Isto já me aconteceu. Mas isto é uma história, nosso tempo é pouco.... vamos ao programa.

- A história, a história, professor! , pedem-me, os rapazes porque desejam rir, as mocinhas porque desejam chorar e rir: - A história, por favor...

E por isso começo. Foi assim.

A moça que me revelou a poesia era a filha de um professor. Ela me revelou a poesia de um modo indireto, ou muito direto, vocês vão ver. Ela era bonita a partir do nome, que não vou dizer. O seu nome era um daqueles que são o feminino de um nome de homem, que ficam belíssimos quando se traduzem para a mulher. (“Antonia, Amarilda”, os gaiatos me gritam.) Não, estes não, não adianta, não vou dizer. Pois bem. Ela possuía um moreno hindu, uma pele morena de uma paquistanesa, que até hoje não esqueço. (Sinto que vou me perder.) Pois bem. No começo, eu ia à casa do professor pelo professor. E aqui e ali, para pegar o almoço também, em dias de domingo. O professor, como era um grande humanista, sabia que a melhor humanidade era alimentar um estudante com fome. No começo. Depois, quando a vi, passei a ir, todos os fins de semana, à casa do professor pela filha também. Mas eu não podia amá-la ainda. Eu ali chegava em estado de necessidade, sem dinheiro, somente com a passagem de volta, às vezes nem isso. Acho que foi a partir daí que nasceram as minhas qualidades de andarilho. Pois bem. Naquele estágio eu não podia amá-la. Vocês sabem o que é isso: é não ter dinheiro para convidá-la para um cinema, é não ter com quê comprar um chocolate, uma pastilha boa, daquelas que refrescam o hálito com um perfume e um frescor que se sentem a distância... Vocês entendem. É muito difícil ter direito ao amor quando a gente não tem nada. Vocês me entendem. (Os olhos deles ficam mais tristes. Por isto, dou-lhes um tapa com um desvio rápido.) Mas aí eu arrumei um emprego. Sim, comecei a trabalhar. Mas me faltava a coragem. Vejam vocês. A sala de estar da casa do professor era uma biblioteca. Sentem o que é isto? Em nossas casas a sala de visitas é onde se exibe o nível financeiro do dono – bons móveis, boa televisão, excelente som, sofás... um bando de quinquilharia. Na casa do professor, não, e agora digo o nome dele, o dele deve ser dito: Arlindo Albuquerque, humanista professor de francês e português do Colégio Alfredo Freyre em Água Fria. Na casa dele, não: os livros se ostentavam em toda a sala de entrada da casa. Pois bem. Ca... quase eu digo o nome dela, a minha namorada, a minha enamorada... enquanto o professor não vinha, me recebia com um shortinho, com as suas pernas morenas de enlouquecer, a estudar livros de medicina. (Os olhos dos adolescentes brilham.)

- Medicina? Ela era mais velha que o senhor?

– Sim, acho que um ano, mas nesta fase em que eu trabalhava, eu já estava com 20 anos... Mas eu não tinha coragem. Quanto mais a queria, mais me fechava. É claro que ela percebia isto. A mulher, ainda na adolescência, percebe quando alguém está interessado nela. Não sei aonde vai buscar essa ciência, sem que ninguém lhe diga.... (As adolescentes concordam, os meninos protestam.) É uma coisa animal! (E perco o apoio feminino, que por sobejas razões não se quer nivelar à fêmea das selvas.)

Pois bem. Acontece que nesta ocasião um amigo nosso arruma o seu primeiro emprego. E por essa felicidade todos deveríamos comemorar, e comemorar era beber, beber, e cantar. O que fizemos. O certo é que na volta, os que vinham em cima da caminhonete, eu e outros, numa curva maldita fomos arremessados ao chão. No que recuperamos de imediato a lucidez. Ficamos bons, do susto. Pois bem. Esse incidente, com absoluta impropriedade, foi contado a ela, ou melhor, com absoluta propriedade, porque ocupava o lugar do que não se podia dizer: que eu era e estava louco por ela. .(E nesta altura eu não lhes conto o quanto havia de loucura, em razão da existência de castas numa sociedade de mestiços, o quanto era impossível esse amor.) Pois bem, foi contar o incidente e ela rir, sorrir, gargalhar, gargalhar como as vilãs de novela de televisão, aquelas vilãs bonitas que desprezam os mocinhos virtuosos, que não têm no cu o que periquito roa.

- Conhecem a expressão “não ter no cu o que periquito roa”? Essa expressão (sinto o ar de desalento para qualquer exegese)... Pois bem. O seu riso me chocou, e por isso tentei um poema em prosa. Dizia...”Uma mulher distante, de moreno hindu, com os olhos amendoados passeia sobre a minha vida. Januária distante, Januária sem janela, ela sorri e zomba de pretendentes que caem bêbados de caminhonetes... Que não sorria tanto, que não posso ficar assim, indefinidamente à espera dessa mulher que me tomou a vida.”. Então que fiz eu? Saibam, a insensatez é uma marca da sua idade. Que fiz? Numa bela tarde, vou à sua casa, e na saída, ao portão, entrego-lhe esse escrito, e corro, e saio correndo, acreditam?, corri para bem longe dela, sumi, fui. E assim se passarem três meses, três vezes longos 30 dias suportei, até uma certa manhã em que volto. E entre nós se passa esse breve diálogo:

- Você leu?

- O quê?

- A poesia ... (“a inocência é uma arte!”, me digo.)

- Ah, aquilo?

- Sim, engulo, “aquilo”.

- Ah, eu não sei ler poesia.

Então ela me ensinou ali o que era e o que não era poesia, então ela me disse ali que a poesia não atravessa a pele de quem é imune ao sofrimento de outros. Vocês não imaginam o quanto me atirei à leitura dos poetas. Vocês percebem?

Eles percebem, entendem, ficam sérios, sorriem. Não sei se isto é pedagógico, não sei se isto vem a ser uma boa aula de português, nem mesmo sei se isto é longinquamente educativo. Não sei. Mas estas minhas histórias para adolescentes pobres têm tido um grande sucesso. Eles sempre me pedem outra.

* Jornalista e escritor



Melancia ninguém come sozinho

* Por Rodrigo Ramazzini

Quatro amigos em uma mesa de bar. Conversam sobre o óbvio: mulher e futebol. Não necessariamente nesta ordem. Discutiam a próxima rodada do Campeonato Brasileiro, quando, depois de uma breve pausa, o Nico exclamou:
- Olha lá!

O “lá” que se referia o Nico era o casal formado por Rômulo e Camila, que caminhavam em direção à mesa. Camila era uma morena de longos cabelos lisos, de sorriso largo e fácil. Um percebível sinal de nascença próximo a orelha direita dava-lhe um charme especial. Estava vestida com um par de botas pretas e com uma calça jeans azul clara de “cintura baixa”, colada nas torneadas coxas e que mostrava a forma arredondada, avantajada e firme dos glúteos. A cada passo um suspiro do pessoal da mesa, que assistia a um bailar sincronizado de cada nádega, associado aos fartos peitos e uma pequena “tira” exposta, entre a calça e a justa blusa, que deixava a mostra uma parte da barriguinha emoldurada por horas de academia, que a tornava ainda mais sexy.

Enquanto o casal de aproxima da mesa, apenas pequenas palavras são ditas:
- Nooosa!
- Perfeita, meu!
- Muito gata essa mulher!

A poucos metros da mesa, Rômulo percebendo que a turma apreciava a chegada do casal ao bar, e lógico, exclusivamente, a sua namorada, estufou o musculoso peito, que ficou visível devido à camisa colada ao corpo. Olhou para a turma e configurou o rosto com a felicidade de um campeão, de quem levava pela mão não uma mulher, mas um troféu. Passou pela mesa, que mantinha um abismal silêncio, olhou para os rapazes, e apenas baixou levemente a cabeça e soergueu as sobrancelhas, como se dissesse – “Ela é linda, eu sei! Podem olhar. Mas é minha!” – Passaram e sentaram-se a três mesas de distância.

Quem quebrou o silêncio na mesa foi o Jader, com um simples:
- Que bunda!
- Eu não sei o que essa mina quer com esse otário! - filosofou o Pedro, pegando o copo de cerveja.

O Nico dizia – “Bah! Demais! Demais!”- parecendo estar meio tonto, não acreditando na paisagem que acabara de ver.

Fora então que, o trio notara que o Betinho permanecera o tempo todo em silêncio, sem emitir nenhum som.
- O que foi, Betinho? Indagou o Pedro.

E inesperadamente, após uma breve pausa, o Betinho, com um ar sério no rosto, confidenciou:
- Há dois ou três anos... Eu fui namorado desta mulher. Ela me deixou para ficar com esse cara... Me traiu com ele!

Silêncio na mesa. Em um primeiro momento, ninguém acreditou na história – “O Betinho com um mulherão destes? - pensaram” - Mas antes que alguém discordasse da narrativa, um leve aceno emitido pela mão direita de Camila em direção ao Betinho, trouxe veracidade ao fato. Silêncio na mesa. O pessoal não sabia se o elogiava ou o consolava. O Nico foi iniciar dizer alguma coisa, mas foi interrompido por Betinho.
- Não vamos ficar assim, gente! É passado! Passou, passou... E foi enchendo com cerveja os copos.

Mas sentindo-se na obrigação em falar uma palavra de consolo, o Nico não hesitou e proferiu as sábias palavras:
- Não adianta! Mulher gostosa é quem nem melancia: ninguém como sozinho mesmo!

E diante de tamanha bobagem, todos gargalharam, inclusive o Betinho, e seguiram falando de mulheres e futebol, não necessariamente nesta ordem.

* Jornalista



Horas vazias no twitter

* Por Eduardo Oliveira Freire


Hoje, a chuva estava estão molhadas que conseguiu molhar a minha alma.

***
Ouvindo- Paciência de Lenine.

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Manhã ensolarada. Acordei com a luz do sol nos meus olhos.

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Outro dia ouvi falar que o sábio oriental tem uma vantagem em relação ao ocidental. Diferente do segundo, que prefere e aprecia o silêncio.

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É tão difícil domar os pensamentos...

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Sempre tem gente que deseja salvar os outros. Cada um tem sua força para se salvar. Não há necessidade de heróis, donos da verdade.

***
De repente tudo muda.

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Sorte de hoje do orkut: Aprenda algo hoje.

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Overdose de mim/ Quem nunca passou por isso, jogue a primeira pedra.

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AMADURECER É... não se importar com o que outros dizem ao seu respeito e não ficar mais com medo de se expor.

***
Para eu não errar nunca mais: discriminação= separação, tanto no sentido + ou -. Descriminação= inocentar/ retirar o crime.

***
Eu sou uma anta. Achava que alienígena era sinônimo de extraterrestre, mas, na realidade, tem o mesmo significado de estrangeiro.

***
Quando me sinto perdido, olho para o céu. Fico mais calmo.

***
Se tiver medo, deixa uma luz acesa. Realmente a escuridão total assusta.

***
Escrevo como terapia, independente de ter ou não o dom da palavra.

***
Hoje, você não vai mais me torturar. Procure outro, Insônia.

***
Daqui a pouco vou me diluir na cama.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor.




A pedra

* Por Yeda Prates Bernis

Paira a pedra
Sobre um templo
de esquecimento.
Pulsam-lhe artérias
de lavas e destemor,
isentas do diálogo
com homens e coisas.
Pássaro sem asas,
disfarça ânsias.
Na prístina carne
Engravida os séculos.
Fito-a.
Soberana,
me contempla
com olhos porosos
de eternidade.

(Livro O Rosto do Silêncio, Edições Cutiara, 1992).


* Poetisa

quinta-feira, 29 de outubro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – A importância da pesquisa

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “A poesia sai dos livros”.

Coluna Contradições e Paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto “Deletador de saudade – manual do usuário”.

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Grávidos – Segunda parte”.

Coluna Porta Aberta – Cacá Mendes, crônica “As mãos da música”.

Coluna Porta Aberta – José Luiz Grando, poema “Saudosa África”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

A importância da pesquisa

Caríssimos leitores, boa tarde.
O escritor, além de precisar ser criativo e sempre exato em seu linguajar, necessita da mesma precisão quando se refere a lugares, fatos, pessoas etc. que menciona em seus textos. Para isso, todavia, tem que cultivar o saudabilíssimo hábito da pesquisa. Quem confia só na memória, quase sempre resvala para o irremediável ridículo.
Muitas vezes, o escritor arruína um bom livro por falta de capricho, apenas por causa de mero detalhe que deixou escapar e que estava ao seu alcance corrigir. Mas os críticos, e principalmente os leitores, detectam esses senões, que poderiam ser evitados com um tiquinho, um pouquinho a mais de cuidado.
Fontes de pesquisa é que não faltam. O ideal é contar com boa e variada biblioteca, que tenha um pouco (se possível muitíssimo) de todos os assuntos. Uma hemeroteca bem organizada tende, igualmente, a ser providencial “pronto-socorro” nos momentos mais inesperados. Reitero, não confie cegamente na memória. Não é preciso. Hoje há fartura de informações e você não pode ser preguiçoso e deixar de acessá-las.
Se você não tiver biblioteca nem hemeroteca, não será por isso que ficará na mão. Há inúmeras alternativas para suprir essa deficiência. Mas você terá que se deslocar, que andar um pouquinho. Vá, por exemplo, à biblioteca pública da sua cidade. Ali encontrará auxílio nas horas de necessidade. Algumas (as melhores, obviamente) contam com coleções dos principais jornais do País para consulta. Consulte-as, sobretudo as mais antigas. Faça anotações. Se possível, tire cópias do que estava procurando.
Ah, você não tem biblioteca e nem hemeroteca e em sua cidade não há biblioteca pública? Não é motivo para desespero. Você tem seu computador que, se bem utilizado, lhe traz toda e qualquer informação que lhe der na veneta. Há uma infinidade de sítios de consulta. Da minha parte, prefiro o “Google”, que nunca me deixou na mão.
Apenas a título de exemplificação, peço licença para narrar outro caso pessoal que, creio, irá servir para muitas pessoas que enfrentem as mesmas circunstâncias que enfrentei. Estou concluindo meu primeiro romance (até aqui, minhas “especialidades” tinham sido o conto, a crônica, a poesia e o ensaio), já em fase de revisão, mas ainda sem título.
A história se passa na Holanda dos anos 90. Quando comecei a empreitada, confrontava-me com um obstáculo gigantesco, que me parecia intransponível: nunca estive, nem em sonhos, nesse país. Como dar, pois, cor local aos cenários, personagens e costumes se não os conhecia? E o enredo, da maneira que o concebi, só poderia se passar ali, em solo holandês, mais especificamente na cidade de Roterdã.
Quanto aos personagens e costumes, a dificuldade não era tão grande. Afinal, moro em Campinas, praticamente vizinha de Holambra, município de colonização holandesa. Passei a freqüentar, pois, essa cidade, enturmei-me com o pessoal de lá, perguntei tudo o que me veio na veneta (e muito mais) sobre esse país e sua gente e anotei, louca, compulsiva e furiosamente tudo o que me diziam.
Tive sorte. Consegui, em Holambra, um bom vídeo promocional de Roterdã. Fui a diversas agências de turismo e trouxe tudo quanto era folheto de viagem que se referisse à Holanda. Minha sorte foi maior ainda: deram-me um guia completo da cidade de Roterdã, com tudo quanto era mapa de ruas, praças, avenidas, canais etc.dali. Estudei todo esse material com o máximo cuidado antes de começar a elaborar o texto final de cada capítulo. Previamente, havia feito, claro, um “copião”, resumindo toda a história, como se faz com roteiros de cinema (que há um bom tempo havia aprendido a fazer).
Quando pensava que não precisaria de mais nada para escrever, afinal, meu romance, percebi que não era bem assim. Recorri, pois, ao “Google”. Não uma e nem duas vezes, mas dezenas, centenas, milhares de vezes. Não fiquei na mão uma única ocasião.
Em resumo, dei os originais não-revisados (muita coisa será evidentemente cortada, pois o romance previsto para 250 páginas, ficou com 500) para um amigo holandês ler e este caiu de costas. Não acreditou que nunca fui à Holanda e que não tenha nenhuma ascendência holandesa (não tenho mesmo, pois meu pai e minha mãe são russos).
Por que o livro saiu tão bom? Por causa do meu eventual talento? De jeito nenhum!! Foi por causa da pesquisa. Vá por mim, portanto, amigo escritor: pesquisar o que quer que seja para seu novo livro não é, em absoluto, nenhum luxo e muito menos perda de tempo. Dá um trabalhão dos diabos, não tenha dúvidas, mas compensa. Creia-me, é uma providência de primeiríssima necessidade que você terá que tomar. E, ao longo da pesquisa, tenho certeza de que você ficará fascinado e irá gostar demais dessa trabalhosa, mas fascinante e compensadora aventura.

Boa leitura.

O Editor.



A poesia sai dos livros

* Por Pedro J. Bondaczuk

O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu, em certa ocasião, que “a poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”. “Mas como?”, pergunto aos meus botões, conhecendo, como poucos, o teor do noticiário diário (afinal, sou e sempre fui editor), com seu desfile de taras, velhacarias, aberrações, violências e tensões.

Seria mesmo assim ou o poeta estaria forçando a barra? Onde a beleza, por exemplo, dos ataques terroristas no metrô de Madri, ou no centro de Bagdá, ou em alguma rua de Beirute? Onde a beleza dos massacres, principalmente de crianças, mulheres e velhos, no Iraque, na Faixa de Gaza ou no Afeganistão?

Como vislumbrar poesia na fome, no abandono, na depredação da natureza etc.etc.etc? Ocorre que, mesmo nessas distorções, há vida. Certamente Drummond quis referir-se a ela, quando fez essa espécie de desabafo.

Talvez o escritor de Itabira tenha pretendido fazer uma critica a muitos que posam como poetas e que, no entanto, escrevem um monte de besteiras, linhas e mais linhas eivadas de pornografia barata e de palavras desconexas, muitas, inclusive, grafadas erradas, que entendem por poesia.

E há tolos que aplaudem, babando, essas garatujas, feitas para enganar trouxas, e consideram seus autores como gênios, talvez reencarnações de Camões, de Fernando Pessoa, de Manuel Bandeira ou de Vinícius de Moraes. Questão de gosto! Ou, para sermos mais precisos, de falta dele. O que fazer?

Mas os jornais não têm somente notícias, mas também opiniões e crônicas. Nestas últimas, sim, há poesia, principalmente se o cronista é bom. Textos de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Lourenço Diaféria, do próprio Drummond, de Henrique Pongetti, Rachel de Queiroz etc.etc.etc. nunca cansavam (e nem cansam, quando relidos). Não ferem o senso crítico e, simultaneamente, agradam à sensibilidade.

Suas crônicas, imortalizadas em livros e antologias (e hoje, na internet), que muitas vezes abordam temas pungentes e dramáticos, não irritam, não agridem e não chateiam. Pena que desapareceram dos jornais, com a morte desses sublimes cronistas.

Já não temos mais, por exemplo, além dos mencionados, um Vinicius de Moraes. Há anos estamos privados do humor inteligente de Sérgio Porto, que assinava seus textos com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta.

Guilherme de Almeida, e seus deliciosos “Ecos ao longo dos Meus Passos”, desapareceram com o poeta. Rubem Braga e Fernando Sabino deixaram de nos deliciar com suas historietas saborosas e às vezes hilariantes. Quem não se lembra de “O Homem Nu”, transformado em livro e até em filme? Qualquer pessoa está sujeita a ser flagrada em situação ridícula como a do personagem. Por isso, ela é engraçada!

Hoje os cronistas estão cada vez mais sisudos, mais mal-humorados, mais amargos e por isso chatos. Poucos têm coragem de escrever na primeira pessoa. Suas crônicas só nos trazem mais tensões (claro que há exceções. Sempre há!), mais preocupações, mais aborrecimentos, rivalizando com os articulistas.

Estão deixando de lado aspectos aparentemente banais do cotidiano que, na verdade, são muito mais importantes do que muitos podem supor. Ninguém está defendendo, obviamente, a alienação. Mas para quem deseja estar em dia com a realidade, basta ler o noticiário. A principal característica da crônica é, exatamente, o bom-humor, a leveza, o descomprometimento.

Drummond constatou, a esse respeito, em um texto que publicou em outubro de 1979, no Jornal da Tarde: “Pobre cronista urbano, teus assuntos cheiram a reclamação e protesto, e acabas ao lado da coluna de cartas de consumidores, aborrecidos com a má qualidade dos eletrodomésticos, que pifam uma semana depois de instalados, ou nem chegam a funcionar”. Não é o que está acontecendo?!

O engraçado é que os editores, sob a argumentação de que, em virtude de se tratar de um espaço precioso, o jornal deve abordar assuntos que eles consideram sérios, dão prioridade a artigos sobre temas políticos, econômicos e sociais (estes, mais raramente), em detrimento da leveza da crônica.

Os articulistas colocam-se como donos da verdade, criticando tudo e todos, em postura, na maioria das vezes, carregada de arrogância. Quantos conseguem, de fato, o beneplácito do leitor e são lidos? Poucos! Pouquíssimos! Ademais, seus textos são tão efêmeros, tão perecíveis, tão passageiros, quanto o próprio noticiário, que os enseja.

O leitor se lembra, assim de estalo, de memória, de algum articulista do século XIX? Claro que não! É possível que nem se lembre de alguém que tenha publicado pomposo e panfletário comentário sobre a crise política (não fosse o Brasil o país das crises) há 30 dias, quando não há uma semana. Mas não se preocupe. Não é a sua memória que é falha.

Se o texto não durou, foi porque não tinha importância. Cronistas, porém, há aos montes, inclusive o sublime Machado de Assis, para citar um dos melhores, se não o melhor deles. A fragilidade da crônica, portanto, é ilusória. Há enorme sabedoria por trás da sua aparente banalidade. É ela que capta a alma do povo, seus costumes, suas reações, seus gostos e desgostos, que variam de tempos em tempos e de pessoa para pessoa, mas conservam uma inegável identidade.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com




Deletador de saudade – manual do usuário
*
Por Marcelo Sguassábia

N
o Menu Principal do programa, escolha “Definir Saudoso”. Aparecerão na tela os modos: amigo(a), namorado(a), noivo(a), cônjuge, pai, mãe, filho(a), amante, caso, rolo e ficante. Escolha e dê Ok.

Em seguida, maximize o box “Características Físicas”. Preencha os campos Idade, Altura, Peso, Cor de pele e de cabelo, Estilo de roupa, Classe Social, Escolaridade, Convicções Ideológicas e nº do Pis/Pasep.

Vá até a janela “Sinais particulares”. Se houver algum, marque e indique a parte do corpo onde se situa: Cicatriz, Pinta, Tatuagem, Piercing, Botox e Silicone.

Escreva no editor de textos frases que a pessoa falaria com mais freqüência para você. Para que as falas tenham sotaques e inflexões personalizadas, vá até Opções, selecione Definir Modulação de Voz, escolha a mais conveniente e clique em Aplicar. De quinze em quinze minutos as frases soarão no alto-falante do computador, em ordem aleatória ou mediante programação específica. Exemplo: mãe falando “Tá na mesa!!!” ao meio-dia e às sete da noite.

Inserir final de frase. Recurso interessante, não disponível na versão 6.2 do programa. Você pode escolher entre: “Né?”, “Entendeu?” “Certo?” “Ok?”.

Ainda no editor de textos, liste uma agenda básica com os compromissos do seu dia-a-dia. Esses dados serão automaticamente transferidos aos nossos servidores. Para que fique realmente próximo em todos os seus momentos, o ente distante saltará na tela como uma janela pop-up, lembrando cada um dos afazeres programados.

A área de trabalho do computador – ícones, papel de parede e descanso de tela, também pode ficar com a cara do sumido. Além disso, o programa permite a instalação de “Oi” e “Tchau” da pessoa, quando da inicialização e do fechamento do sistema operacional.

Nosso programa enviará a você e-mails em nome do saudoso. Para que não falte assunto, é preciso preencher o menu “Áreas de Interesse”. Selecione as mais adequadas. Você pode responder aos e-mails. Só não conte com a resposta da resposta, porque aí também já é demais.
O Menu Privé é acessado mediante senha, e deve ser utilizado por usuários que mantenham ou mantinham relações carnais com o ausente. As opções vão desde “Não, hoje estou com dor de cabeça” até “Foi bom pra você?”, passando pelo indefectível “Caramba, isso nunca aconteceu comigo antes”.

Lembramos que o nosso revolucionário produto deleta a saudade através de três níveis de operação: Ar da Graça, Presença Marcante e Repulsa, sendo que o modo Repulsa possui a função de transformar a saudade em reação alérgica ao saudoso, pela superexposição de sua figura no computador do cliente.

No menu Opcionais, você encontrará as alternativas “Sachet Chulé” e “Kit Hálito”, que serão entregues em sua casa no prazo máximo de três dias úteis. O sachet é um simulador de chulé do dito cujo. Clique em Suave, Médio, Forte, Extra-Forte ou Deus-me-livre. O Kit Hálito disponibiliza as modalidades Vinagrete com alho, Vinagrete sem alho e com bastante cebola, Cachaça, Uísque 12 anos, Uísque 8 anos engarrafado aqui, Cerveja, Cigarro, Pasta de Dente, Café, Mexerica e Amendoim Japonês.

Você pode desativar temporariamente o programa ou cancelar a assinatura do serviço a qualquer tempo. Para maior segurança, mesmo que o usuário mova o saudoso para a lixeira, um clone do mesmo permanecerá oculto no HD. Para habilitá-lo, clique em “Ajuda” e selecione “Volta, vem viver outra vez ao meu lado”.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”




Grávidos - Segunda Parte

* Por Gustavo do Carmo

Reencontro: Queria muito engravidar. Fez até tratamento. Acabou reencontrando a mãe que não via desde que ela tinha cinco anos.



Padrasto: Queria muito ter um filho. Contentou-se em ser um paizão para o filho de sua namorada, mesmo ele odiando crianças dos outros.



Etapas: Vai à boate. Conversa com um rapaz. Beija na boca. Vai ao motel. Tira a roupa. Fazem sexo. Engravida. Se casa. Põe aliança no dedo. Exibe ela e o filho como troféus. Os paqueradores ingênuos que se danem.



Plágio: Orgulhava-se da sua melhor obra. Mas foi acusado de plágio: a sua obra era uma linda menina que achava ter tido com a sua esposa e que registrara como sua.



Vírus: Queriam muito ter um filho. Depois de muitas tentativas, o marido perguntou: -E aí, amor: engravidou? -Não! Contraí um HPV de você!


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores



As mãos da música

* Por Cacá Mendes


Nos meus tempos de produtor de espetáculos de terceiros, de teatro, dança, música e outros quês, entre corres e agitos de um profissional que precisa ter olhos esbugalhados pra tudo, num desses dias de temporadas, antes do xis horário do ensaio do balé Forró for all (coreografia de Ana Mondini), com passagem de som, porque havia música de vivo pra vivos - no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, fui recepcionar na portaria do Teatro, na entrada dos artistas, nada mais nada menos do que Oswaldinho do Acordeon. A cria legítima de Pedro Sertanejo (o homem que trouxe o forró e seus pé-de-serra pra São Paulo dançar e curtir à vontade em casas do ramo, fundadas por ele – para que os irmãos nordestinos ficassem em casa, nos finalmentes, mesmo longe dela).

Mas voltando no voltando, que é o importante disso, lá naquele ido, como acima escrevia... fui buscar o artista e músico, e pra ir ao palco, ter acesso àquele pódio, não havia e não há (acho) outro acesso a não ser por longas escadarias. Entre tapinhas nas costas e coisa e coisa, oba, oba e comos vais, quanto tempo, oh, poxa, puxa, ah, uh, oh... E assim foi que solicitei, pedi-lhe com bastante recato, que me desse a honra de levar o seu instrumento, assim o descansaria um pouco. O que o fez prontamente e agradecido. E lembro-me bem do seu dizer de pronto, de rápido e sincero num saber:
- Cacá, todo artista que necessita tanto das mãos, nunca deveria fazer qualquer esforço com elas, sob risco de colocá-las em perigo, por isso essa sua ajuda é bem-vinda. Pode levar, leva.

Oh, eu não me lembro o exato do meu concorde em dizeres, mas não foi de espanto mesmo, compreendi a astúcia do pleno, pois o seu instrumento é uma ferramenta pesada pra carregar no assim, no vão do transportar, sem o seu uso de ser que é, o em função do seu juízo estético.

(E pensando depois, em debate comigo, imaginado, com o bem das coisas no exato para o êxito, o simbolizado aqui haverá, pra quem quiser, claro, de servir, em vida profissional ou não, a todos os viventes, pois).

Até tento neste reproduzir, traduzir em gotas, que sejam, um pouco também daquele exemplo de pessoa tremendamente humana, gentil e com uma educação dos raros, dos poucos. Coisa que só os bons, na sua totalidade de alma, na sua plenitude de profissional e gente, podem ser. Ah, coitados dos tolos que andam no empinado do nariz, no alto das grosserias, no cume, no cimo das prepotências! Ah, não sabem, não vão saber nunca o que estão perdendo da vida, não vão saber. É uma pena? Será?

* Jornalista – blog: www.cronicaseg.blogspot.com


Saudosa África

* Por José Luiz Grando

Saudosa e majestosa mãe África.
Com suas relvas e selvas...
Atravessa a imensidão da criação.
Saudosa e majestosa...

Criadora de culturas tribais recebe teus filhos
Em um desfile infinito de alegria.
Saudosa nação em cores e tambores!

Se ouvem teus clamores.
Saudosa criação de centenas de anos.
Tribos e gritos ecoam na imensidão da savana.

Mãe África sofreu, com a escravidão!
E no mesmo chão renasceu...
Povo criador cultura que não morre...
Contemporânea, moderna, querida e nunca esquecida...
...mãe África.

* Poeta de Itajaí/SC

quarta-feira, 28 de outubro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Não tenha medo de se expor.

Coluna Da vida e outras mumunhas – Marcos Alves, crônica “Reminiscências”.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, crônica “Ainda o visionário Carrero”

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Deixem-na”.

Coluna Jornalista do Sertão – Seu Pedro, crônica “A defunta de minha vizinha”.

Coluna Porta Aberta – Tião Martins, crônica “O fechado coração do homem”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Não tenha medo de se expor

Prezados leitores, boa tarde. O jovem Pedro Pereira, que se confessa “aspirante a escritor”, pede-me conselhos sobre o que deve fazer para ser bem-sucedido nessa atividade. Puxa, xará, mais?!! Não bastam os cerca de 240 textos que já escrevi a propósito, neste espaço?! Mas vamos lá.
Em princípio, digo-lhe, sem nenhum constrangimento e sem medo de errar, que não existe nenhuma fórmula mágica que nos garanta o sucesso sem possibilidades de erro. Não há nem nesta e em nenhuma outra profissão. Há uma série de circunstâncias individuais que favorecem ou atrapalham as pessoas de serem bem-sucedidas. Cada qual tem as suas.
E não basta apenas o talento para se conseguir êxito no que se faz (como muitos teóricos e arrogantes “donos da verdade” apregoam), embora sem ele não se vá a lugar algum. Você tem que gostar do que faz como condição preliminar para dar, pelo menos, os primeiros passos em direção ao sucesso. E esse “gostar” tem que ser profundo, apaixonante, definitivo e absoluto. Implica em aprender tudo o que diga respeito à atividade escolhida e muito além.
Não me sinto, pois, habilitado a aconselhar quem quer que seja no que, como e quando fazer. Mas já que você me pede um conselho, reproduzo o de alguém muito mais habilitado, famoso e bem-sucedido do que eu, o escritor João Ubaldo Ribeiro.
Confrontado por um jovem, como você, a lhe dar algumas indicações sobre como caminhar com segurança pelos meandros da literatura, escreveu: “Em primeiro lugar desaconselharia o jovem candidato a escritor a continuar; sugeriria que desistisse enquanto é tempo. Mas se isso for mesmo impossível, eu diria então está bem, persista, vá em frente, leia muito, todas essas coisas que são lugares-comuns. E principalmente, seja humilde, mas combine essa humildade com certa obstinação. O resto, não é com você, amigo. É um mistério”. E é mesmo.
Uns fazem tudo de errado, passam a vida escrevendo, e fracassando, e subitamente... Zás! Acertam na mosca! Produzem uma obra que cai no gosto do público e, dessa forma, conquistam não só o sucesso, como a glória.
Outros, por seu turno, seguem todos os “cânones” conhecidos, lêem muito, pesquisam além da conta, são observadores, apuram seus textos, treinam, treinam, treinam; persistem, persistem e persistem.... e nada! Não conseguem conquistar o leitor e, sem este, em literatura, nada feito. É, pois, como Ubaldo destaca: “um mistério”.
Há claro algumas coisinhas básicas, que ajudam muito (e se não ajudarem, também não atrapalham), mas estas, com certeza, você já está careca de conhecer. Não serei, pois redundante e não cometerei a indelicadeza de tratá-lo como completo ignorante no assunto, reproduzindo-as aqui.
Só posso recomendar-lhe que comece pelo princípio. Ou seja, tente cativar leitores. Para isso, todavia, você não pode ter medo de se expor. Mostre seus textos para todos os que se disponham a lê-los, parentes, amigos, namoradas, amantes, o diabo a quatro. Faça um blog, escreva para jornais, divulgue sua produção fartamente. Claro, antes de tudo, terá que produzir muito, e bem, e cada vez melhor. Se não mostrar aos outros o que você escreve, como eles irão julgar se é bom ou ruim? Por telepatia? Creia, isso não existe.
Faça o seguinte, comece por se juntar a nós. Em vez de ser meramente leitor eventual do Literário, como você mesmo confessa que é, torne-se nosso “seguidor”. Já é um começo.
A seguir, envie-me seus textos. Não tenha receio, não dói. Ninguém irá espancá-lo por isso. E prometo publicá-los. Ninguém que já nos procurou ficou na mão. Tenha coragem. Exponha-se. E não fique melindrado (como eu fico) quando (ou se) ninguém comentar o que escreveu. Ou se o comentário lhe for desfavorável.
É o máximo que lhe posso recomendar. O mais, com certeza, direi, mesmo que de passagem, nos próximos editoriais. Ou não, pois não posso garantir o que vai me ocorrer nem mesmo no próximo minuto, quanto mais nos próximos dias, semanas, meses e anos.

Boa leitura.

O Editor.



Reminiscências

* Por Marcos Alves

Wish you were here. O som faz a imaginação viajar no passado... A música foi gravada na década de 70 pelo Pink Floyd, mas a lembrança que tenho é dos anos 80. Vivia cercado de amigos que tinham certeza de que tudo era para sempre: a amizade, o gosto pelas mesmas coisas, o tempo que tínhamos para viver.

Não importava o dia: segunda ou sábado, o estado de ânimo era sempre o mesmo, uma sensação boa de quem não quer perder um só minuto da vida. Nesse instante, senti algo parecido com autopiedade. Estou apressado a caminho do trabalho, a bolsa e a cabeça cheias de compromissos, preocupações, prazos e metas a cumprir.

Os acordes da música me consolam. “So, so you think can tell...” A cidade ao redor em nada se parece com os lugares onde perambulávamos com passos decididos, o riso largo, cabelos longos, a mente tranqüila e o corpo esbanjando vigor.

Muda o som e ainda estou na metade do caminho. “Todo dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito”. O Barão Vermelho de Cazuza agora é o centro das atenções em minha cabeça preguiçosa.

Engraçado pensar que 20 anos depois de Wish you were here, “Pro dia nascer feliz”, de Frejat e Cazuza, estourava nas rádios e nos fazia sentir que sim, haveria rock brasileiro para ouvir depois de Raul Seixas e Rita Lee.

A novidade foi recebida com entusiasmo, mas passou. Tudo passa. Muitos amigos sumiram, assim como minha gana de acompanhar tudo o que sai na mídia sobre música. Perdeu um pouco a graça. Outro dia li uma matéria que tinha o Jota Quest e o Babado Novo falando de “pop-axé”.

Não dá.

Não no meu ouvido. Estou atrasado, os ponteiros do relógio avançam sem dar trégua. Uma moça se levanta para descer do ônibus. É morena e tem os cabelos longos. O corpo bem feito, uns 18, 19 anos, talvez. Um instante de atração física se passou até que lembrei da minha filha. Não que tenha ficado com remorso ou constrangido, afinal olhar não tira pedaço.

Lembrei de minha filhota de 12 anos porque em pouco tempo ela vai ter a idade que eu tinha quando curtia Pink Floyd e Barão Vermelho, entre outros tantos sons. E vai ter sentimentos parecidos, claro, à maneira dela. E depois dela virá meu filho, que hoje tem 7 anos.

A garota gosta de música para dançar – inclusive axé, para leve desgosto do pai. E o garoto eu ainda não sei. Por enquanto, diz que torce para o Fluminense (não sei se para me agradar).

Quando chegar o dia deles lamentarem as novidades que substituem coisas muito melhores (como é o caso das bandas de rock de hoje em relação às de ontem) talvez eu seja apenas uma lembrança. Mas isso ainda vai demorar, espero.

*Jornalista, www.marcos-alves.blogspot.com




Ainda o visionário Carrero

* Por Marco Albertim

Jeremias é irmão de Ísis. Da união dos dois nascera Biba. Mateus, irmão mais novo do casal, é apaixonado por Biba. Mateus, narrador explícito de O amor não tem bons sentimentos, resume: “...na nossa família as coisas se resolvem aqui mesmo, não precisamos de estrangeiros para nada. Nem de outros lábios, nem de outras bocas, nem de outros corpos.” A mãe de todos, Dolores, tem medo de falar e de pensar. Por isso Raimundo Carrero é um autor visionário, tratando com familiaridade o inusitado. Hábil, deu a responsabilidade de narrar a novela – monólogo de Mateus – ao personagem maior, esquivando-se, pois, do ônus de subir as escadas do casarão “para proteger minha mãe, a criminosa.” Não se pode dizer que se trata de um discurso brilhante, mesmo porque a estética de Carrero é marcada pelo coloquial, não raro com passagens ou abstrações banais do personagem. Mas na passagem abaixo, o autor evitou o coloquialismo, mostrando-se maduro, comprometido com o ofício:

“Lembrei-me que saíra de casa já sem camisa e descalço no calor do amanhecer impreciso, furtivas luzes azuladas se mostravam, apresentavam as primeiras sombras, eu olhava o amanhecer, as luzes e as sombras, o corpo que identifiquei depois, o rajado vermelho das nuvens se aproximava. O vento bolinava nas árvores. Não havia peixes dourados nem cobras se arrastando nas margens.”

Toda a novela é um monólogo com delírios de Mateus. O ponto alto está no capítulo três, primeiro parágrafo. “Ali olhando a menina nas águas e sem sentir nada, pensava nessas coisas que só fazem me atormentar. “ No fim, após dez linhas, arremata: “Isso acontece com qualquer homem, com qualquer coisa, com qualquer inutilidade, vagabundo.” É um monólogo desenvolto.

O risco de banalização está em clichês como “a mais pura e cristalina verdade.” No óbvio “Sem um povo revolucionário não pode haver revolução.” Na repetição de que “O povo unido jamais será vencido.” Na paródia do “Fica mal com Deus quem não sabe amar, fica mal comigo quem não sabe dar.” Inda que contrabalance o rasgo de originalidade no “Já que não era possível ser sincero de verdade procurava pelo menos ser sincero no fingimento.” O nível volta a cair no “quem não tem colírio usa óculos escuros.” Depois se recupera em “Pelas três ou quatro horas da manhã a única coisa viva num cabaré é a vontade de morrer...”

Por ser escritor quase longevo, talvez por insistir em mostrar o estilo próprio, abusa, Carrero, de recursos fáceis. No primeiro parágrafo do capítulo cinco, o verbo afundar é usado nove vezes, seis no gerúndio e três no particípio. O verbo piar, seis vezes no gerúndio. Para explicar o tédio do personagem na terapia do saxofone de seu uso. Carrero foi saxofonista, deixou, não afundou...

Mateus é mal-humorado, não tem a raiva de Luiz da Silva, em Angústia. Mas diz que “cada um passa o lenço onde gosta, na bunda, no sovaco ou no rosto, cada qual com suas seboseiras...” É o uso do estilo desabrido, criando escolas. As circunstâncias do personagem não exigem tamanho desabafo, mas...

Se o autor não deve interferir no personagem, em três momentos Carrero dá mostras de intromissão. No primeiro, diz: “Até porque toda felicidade é cínica.” E quando, referindo-se à cidade: “Verão no Recife é delírio de fogo.” O que mais chama a atenção é quando, referindo-se a poetas com versos insurgentes, diz: “Derrubar o golpe com poesia, valente valentia.”

Vale reproduzir a passagem abaixo, pelo tom antológico, sóbrio, sem apelo nem gritos:

“As duas, assim, duelam no silêncio, no mais absoluto silêncio, raramente cortado pelo saxofone que geme no quarto, uma garrafa de cerveja embaixo da cadeira, os olhos perdidos na vastidão do verde que surge na janela, passo de uma música a outra, nem sinto mesmo quando misturo, escalas e melodias se confundindo. Também, à minha maneira, não sinto falta de palavras. Nem de companheiros.”

O título da narrativa é sobretudo coerente. Uma mãe condenada por ter morto o marido, suspeita de ter matado a neta; esta, filha de relação incestuosa. Por último, mãe e filho, um tramando a morte do outro. A dedução no título pode ser atribuída ao narrador.

A revisão do texto é do próprio autor, que cochilou ao acentuar “bogarí”; e craseando “Todas às vezes.”

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.





Deixem-na

* Por Sayonara Lino

O que fazer para se livrar do tédio? Esse vazio que consome, perturba. Talvez seja fruto de uma visão pessimista do mundo: não compreende nem aceita sua estadia nessas paragens para lá de confusas. Seres egoístas que espalham dor, desconstroem, arrasam, amputam a tentativa dos raros bons que tentam avançar.

A esquizofrenia coletiva cria o desejo de procurar um refúgio onde haja um pouco de paz, um alento. Está perturbada, pede socorro, implora, mas nada acontece. À sua volta alguns seguem fingindo alegria, outros parecem anestesiados.

Ela sofre. Por ela mesma, por tantos outros, com que jamais cruzou um olhar e talvez nunca cruze. Sofre pela frieza, pelo descaso.

Olhou-se no espelho. Suas olheiras fundas, os lábios sem cor, a cara amarrotada. Sua alma fatigada pelo tempo, pensamentos de escape, precisa descansar. Ela quer partir. Deixem-na.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Colunista do portal www.ubaweb.com/revista.



A defunta de minha vizinha

* Por Seu Pedro

Mais uma “Dia de Finados” vem aí... Diferente dos dias das mães, dos pais, das crianças, das sogras, enfim cada um dia dos vivos, no de finados não preparamos feijoadas, carnes assadas e nem mesmo macarronadas. Costumamos comer o de costume. Afinal é um dia diferente, em que se reúnem as almas penadas e não penadas de um cemitério com os vivos saudosistas, geralmente à beira de um túmulo ou mausoléu todo enfeitado de flores naturais, que logo irão morrer, ou tão artificiais quanto as visitas de alguns. É o dia dos coveiros terem a paciência torrada por aqueles que de ano em ano lembram que tiveram mãe, pai, marido ou mulher. Alguns aproveitam e vão à visita acompanhadas ou acompanhados com a substituta ou o substituto.

A porta do cemitério se transforma em uma agitada feira, em que se destacam três comércios: floristas, veleiros, e pedintes. Há, ainda, o setor de prestadores de serviços; capinadores, pintores e outros enfeitadores de túmulos, sem falar nos quebra-calor com seus carrinhos de picolé empurrando nossas pernas. Os contratados nem perguntam se os vasos para as flores estão harmônicos com a sepultura, ou se a cor escolhida para a caiação é de agrado do hospede. Em alguns dos campos santos vão tantos pecadores, que a movimentação financeira faz inveja a muitas bolsas de valores neste tempo de crise.

Os mistérios que cercam a morte são tantos que contemplam a qualquer raciocínio. Pense como é um paraíso e ele será como você imaginou. Há quem imagine uma legião de anjos com suas asinhas de penas brancas espargindo bênçãos a eles confiadas por nosso magnífico Deus. Também é o dia, segundo alguns, dos espíritos machos, fêmeas e de terceiras hipóteses, vagarem pelos caminhos floridos, pedindo orações. Alguns tão famintos, que as orações do ano passado já fizeram digestão. Cada um oferece o que tem. O importante é voltar para casa com a sensação de que o dever foi cumprido.

É tudo neste dia de alegria, digo de tristeza, pois, afinal, quem não gosta de ter um defunto para visitar neste dia? E foi assim que Ambrósia, já nos sessenta anos, veio morar na cidade, longe de onde ficaram as sepulturas de seus pais e avós. Sentia-se só nos dias em que a movimentação da rua em direção ao Bairro do Paraíso, mesmo sem endereço certo, engrossava o séqüito. Lá, olhando a cidade dos mortos, viu como se parece com a dos vivos: casas bem cuidadas, outras com fachadas relaxadas, umas de dois ou três andares, outras de terra batida.

Seus olhares percorreram as ruas e vielas, e lá estava uma sepultura de uma viúva pobre, de chão pisado, cujos filhos e outros parentes esqueceram. Daquele dois de novembro à frente, Ambrósia já tem a quem visitar. Virou freguesa dos barraqueiros, compra flores e velas e traz seu terço tradicional. Fizeram grande amizade, ela e a viúva morta. E agora toda cidade sabe que minha vizinha tem a sua própria defunta!

* Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.