Pesadelo
*
Por Edmundo Pacheco
Leocádio acordou suando naquela madrugada nebulosa e fria, como todas, aliás. Acordara pela primeira vez, na verdade, por volta de 2 horas da madrugada, com a sensação de estar sendo sufocado por dezenas de mãos invisíveis.
Foi um pesadelo terrível. Primeiro, uma bela mulher, de cabelos de fogo e um sorriso diabólico, o agarrara pelo escroto e, apertando-o bem, mas sem que doesse, o trouxera até junto dela. Leocádio suou, primeiro no sonho e depois fisicamente, molhando o travesseiro de pena de papo de ganso que ganhara de presente de aniversário da esposa,
Wilfrida.
Depois, enroscando-se a seu corpo, a mulher estranha passou a
acariciá-lo, como se mil mãos tivesse. Ou como se fosse uma
serpente, ou um polvo. E cada uma das mãos foram lhe apertando
alguma parte importante do corpo, apertando, e o suor escorrendo e
Leo se contorcendo, entre o terror das mil mãos lhe sugando a vida e
a vontade desesperada de acordar.
E então, num salto, Leocádio conseguiu se desvencilhar de algumas mãos e pôde olhar ao redor. Estava numa sala ampla, com milhares de seres estranhos, contorcidos, alquebrados, rasgados, com pedaços faltantes, demônios, duendes, ogros. Todos se aproximavam dele, numa onda de mãos pegajosas a segurar seu corpo. Agora, a mulher de cabelos de fogo estava no alto de um altar, comandando a invasão, e as mãos foram se fechando sobre Leo, engolindo-o, invadindo sua boca, seu ânus, seu nariz, todos seus espaços, mais íntimos. E então, com um grito estridente, Leo sentou-se na cama. Por sorte "Frida" não acordara. Talvez o grito tivesse ficado no sonho afinal.
Talvez o grito apenas ecoara pelas paredes pegajosas da sala, onde as milhares de mãos o haviam levado ao terror extremo de ser engolido vivo como milhares de seres grotescos. “Chega, não vou maias pensar nisso!”, disse, de si pra si, chacoalhando a cabeça negativamente.
Levantou-se, meio trôpego, no escuro, olhou a luz da lua atravessando a porta de vidro jateado que separava seu quarto da sacada e a sacada do jardim e o jardim do muro e o muro... O muro o separava de um cemitério. Não que Leo tivesse qualquer cisma com isto. Claro que não. Comprara o terreno e construíra a sua bela casa exatamente como imaginara e onde imaginara e nunca, jamais, o incomodara o fato de ser ao lado do cemitério municipal da cidade, o maior e mais populoso.
Mas agora... Nessa madrugada
de lua cheia, depois de sentir vivamente aquelas milhares de mãos o
segurando e invadindo, sentiu um arrepio a lhe percorrer a espinha,
ao se imaginar tão perto daquele cemitério. Jamais diria isso a
Frida. Ela riria dele. Mas a sensação de estar sendo observado
através da vidraça...
”Meus Deus, devo estar ficando louco! Foi um simples pesadelo!”, tentou enganar-se, para voltar a dormir. Deitou-se novamente. Frida roncava ruidosamente. A vidraça fazia a luz da lua iluminar o quarto com cinza-fosco-negro apavorante. Apavorante como nunca fora.
Da cama, podia ver a sombra dos galhos balouçando lá fora e os recantos do quarto, enegrecidos. Virou-se para o lado da esposa e tentou acalmar-se. Havia sido apenas um pesadelo idiota. Por certo comera demais antes de ir para cama e isso, depois dos 60 anos, era, fatalmente, chamar pesadelo. Mas ele jamais tivera pesadelos. Jamais.
Sempre dormira como uma pedra, como se dizia em sua terra. “Uma pedra”, sussurrou para o travesseiro, quase ao ouvido de Wilfrida. “Quem teria forjado uma frase assim, dormir como uma pedra”l, imaginou, sem sucesso. E então, um barulho o fez novamente saltar da cama. Parecia ter sido um som alto, algo que caíra. Como se fosse... Como se fosse... “Uma parede de tijolos”, concluiu.
Era isso. Era o som de uma
parede de tijolos desabando. Tinha certeza disso. Leocádio
trabalhara sua vida inteira, desde garoto, com demolições. Não
havia como confundir o som de uma parede caindo inteira e se
arrebentando ao se chocar com o solo. Era um som cheio, seguido de
algo se esparramando. Eram os tijolos. Andou pelo quarto, pensando em
descer para fazer um café. Olhou o mostrador do celular: 3h46.
Era cedo demais para se levantar. Claro, teria um dia cheio, mas era
cedo demais.
Foi até a porta de vidro, fez
menção de abri-la para olhar se estava tudo bem no quintal, mas a
lembrança de que o cemitério estava ali, a pouco mais de 30 metros
de distância, o fez recuar. Não estava pronto. Ainda não.
Deitou-se novamente e, surpreendentemente, agora caiu num sono
profundo, em questão de segundos. Mas então, de novo, as mãos
voltaram a agarrá-lo. Tentou se desvencilhar de todas as maneiras,
contorceu-se, virou-se, mas quanto mais se mexia, mais preso parecia
estar. Eram muitos e o estavam puxando em direção à cama, para
baixo, para o escuro.
Agora, sentia nitidamente que não eram mais apenas mãos. Havia bocas também e línguas, molhadas, pegajosas, ásperas, percorrendo-lhe o corpo, invadindo, enquanto as mãos o agarravam e puxavam através dos lençóis e do colchão, em direção ao chão. Acordou novamente. Imbuiu-se de toda a coragem do mundo e foi até a porta da sacada. Abriu-a apenas uma fresta e espiou em direção ao muro do cemitério. Estava escuro demais. Apenas o luar deixava ver as pontas de algumas cruzes e catacumbas esbranquiçadas.
O muro parecia intacto.
Parecia. Então seu medo se transformou em realidade: uma parte do
muro caíra. Não havia mais os tijolos a separá-lo do... “Bobagem
Tenho que voltar a dormir. Amanhã reconstruo o muro”, disse de si
para si, fechando de novo a fresta da porta. Virou-se e, naquele
lampejo de segundo, com o canto do olho, teve a nítida sensação de
ver um movimento no jardim. Poderia ter sido reflexo da luz da lua, poderia ter sido o movimento da porta se fechando que o traíra.
Poderia ter sido tanta coisa! Mas ele tivera a nítida impressão
de que algo, ou alguém, correra pelo jardim, em direção á
casa.
Havia algo de estranho acontecendo naquela noite. Leocádio jamais se sentira como então. Jamais. Decidiu que não iria mais tentar dormir. Calçou os chinelos que ganhara de presente do filho mais velho e distante e que era seu chodó, e desceu em direção à cozinha, sem nem pensar. No meio da escada, parou, com a atenção chamada para uma mancha escura no teto do corredor que levava ao seu quarto. Uma mancha negra, molhada. Tentou imaginar o que exatamente seria aquilo. Alguma infiltração? Não podia ser, já que não chovia há meses e naquela parede não passava nenhum cano de água.
Leo construíra a casa. Sabia
onde estava cada item, cada cano, cada fio de energia. Voltou,
em direção à mancha. Estava escuro demais. Apenas um réstia de
luz lunar, refletida no espelho do quarto, levava uma
iluminação pardacenta para o corredor, o bastante para ver que
a mancha era enorme, e pegajosa, como se fosse... Como se
fosse... musgo?
Leo usou um banquinho de madeira, que ele mesmo construíra, para se sentar no alto da escada e observar a casa, abaixo, para conseguir alcançar a mancha de musgo negro que estava se enraizando pelo corredor, em direção ao seu quarto. Conseguiu, na ponta dos pés, alcançar a mancha e passou um dedo sobre, entre, dentro dela. Era macia, profunda. “Profunda?”, surpreendeu-se com essa idéia. Mas era real.
Realmente, a mancha era
profunda. Incrivelmente, podia-se enfiar a mão dentro dela e ir
além, se o banquinho fosse maior. Ou se tivesse uma escada. E
então, pensou que, se alguém lhe "desse uma mão",
poderia entrar por aquele buraco negro e investigar o que
estava acontecendo na casa. E foi o bastante. Ao pensar na mão,
uma mão surgiu, num relance, num lampejo, milagrosamente,
através da parede e o puxou, com força, com
violência, de encontro ao canto.
violência, de encontro ao canto.
Leo mergulhou, inacreditavelmente, em direção ao concreto e teve metade de seu corpo engolido. Suas pernas ficaram se debatendo, enquanto ele tentava gritar, desesperadamente. Do outro lado do buraco, além da mão que o puxara, milhares de outras vieram se juntar e, de novo, passar a invadi-lo. Agora Leo queria acordar, mais que nunca, queria acordar. Sabia que deveria estar sonhando e que tinha que sair daquele pesadelo de mãos, dedos, línguas, bocas, rostos grotescos e nenhum som.
Wilfrida acordou, num
sobressalto, sentindo o corpo suado. Tivera a nítida sensação de
que uma mão a acariciava. Poderia ter sido um sonho. Poderia
ter sido Leocádio.
-Léo?! - ninguém respondeu.
-Léo?! - ninguém respondeu.
-Léo!! Cadê você? Tá aí
embaixo? - nada.
Wilfrida sentou-se na cama, com os pés procurando os chinelos que deveriam estar ali, mas não estavam, e sentiu roçar em algo frio e úmido, logo abaixo da cama. Teve um sobressalto. Imaginou que a empregada houvesse deixado o cachorro dentro de casa e este fizera xixi debaixo da cama.
Levantou-se, descalça mesmo. Olhou pelo quarto. Notou a fresta da porta de vidro ainda aberta. Esticou o olho lá fora, em direção ao quintal, e nada viu de estranho. Voltou-se e seguiu em direção à cozinha. Quando estava no meio da escada, um movimento lhe chamou atenção. Era uma mancha escura, estranha, no alto, no canto do corredor. E ali, ali parecia que havia um par de pernas penduradas, se mexendo. Frida firmou os olhos, para ter certeza do que vira, mas nada. Era apenas um jogo de luz e sombras, reflexo da luz da lua, contra o espelho do quarto, se projetando pelo corredor.
- Léo! Você está aí
embaixo? Léo!! Cadê você! - Nada. Silêncio.
Leocádio havia se ido. Frida
ficou alguns segundo ali, olhando ao redor, tentando entender, o que
acontecera. Onde estaria? Do outro lado da mancha, Leo ainda pôde
ouvi-la. Tentou responder, mas as milhares de mãos taparam sua
boca, até fazê-lo perder a respiração. Um olho ainda
insistiu em ficar aberto, entre os vãos das dezenas de
dedos por onde pôde ver as últimas réstias de luz se esvaindo,
enquanto era arrastando pela escuridão adentro, sem fim.
* Escritor por devoção,
poeta por impulso, jornalista por profissão. Três ou quatro livros
escritos, nenhum publicado (procura editora, séria,
desesperadamente). Perfil? Bom, já foi bóia-fria, catador de
batatas, lavador de banheiros, pasteleiro, feirante, churrasqueiro de
restaurante beira de estrada, pacoteiro, vendedor de tecidos,
derrissador de café, repórter de impresso, pauteiro de TV, assessor
de imprensa, revisor, diagramador, editor de texto de TV,
funcionário público estadual e municipal, dono de lanchonete,
confeccionista, balconista, corretor de imóveis, editor-chefe de
telejornal, entre outros... Atualmente vende sanduíche natural na
praia de Inajá, onde mora.
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