quarta-feira, 30 de junho de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Mudança de status

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica “A briga entre a verdade e o mito”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, conto “A primeira causa”

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Eu nunca me lembro do nome das coisas”

Coluna Suave Inspiração – José Geraldo Mendonça Junior (Penninha), poema “Baseado”.

Coluna Porta Aberta – Patrick Raymundo de Moraes, conto “Você vale algo?”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Mudança de status

C
aríssimos leitores, boa tarde.

A Copa do Mundo de 1962, disputada entre 30 de maio e 17 de junho daquele ano, no Chile, representou um período de transição tanto para a Seleção Brasileira, cuja base foi a mesma da vitoriosa campanha de 1958, quanto para o País e para a minha vida. Começo pelo fim. Pelas mudanças que aconteceram em minha realidade vital.
Eu estava, então, com dezenove anos e meio de idade. Sentia-me um adulto, pois até votar já votara (no plebiscito de janeiro de 1962, que restabeleceu o regime presidencialista no Brasil, acabando com nosso incipiente parlamentarismo). E mais, trabalhara na eleição, como mesário, o que me fez sentir “importante”. E então eu já era profissional do rádio, ou seja, do mesmo veículo de comunicação de que me valera para acompanhar os três mundiais anteriores.
A natureza privilegiou-me com uma boa voz, grave, modulada, suave (“aveludada”, como garantiram minhas fãs), que dispensava, até, impostação. Casava-se com naturalidade com qualquer microfone. Ainda é assim, posto que mais “cansada”.
Um ano antes da Copa, em 1961, atuando numa pequena emissora de Santo André, a Rádio Emissora ABC, existente até hoje, eu havia conquistado o troféu de “locutor revelação”. Fiquei cheio de marra por isso e os amigos garantem, ainda hoje, que fiquei um tanto “mascarado” na ocasião, fruto, claro, da juventude e conseqüente inexperiência.
Está bem, admito. Mascarei um pouco. Mas isso não durou muito tempo. Em contato com radialistas experientes, raposas velhas dos microfones, baixei a crista e fui posto no meu devido lugar. Ou seja, entendi que era apenas mais um entre muitos.
Como novato, e ávido por aprender todos os macetes da profissão, fiz um pouco de tudo. Fui discotecário, programador, locutor comercial, disk-jockey, apresentador de programa de auditório, repórter e... comentarista esportivo. Era o que mais gostava de fazer. Foi quando comecei a formar meu arquivo, que só “engordou” no correr dos anos (lembrem-se que na época não tínhamos computador e, portanto, não tínhamos o Google).
Os ouvintes nem desconfiavam da minha juventude, quase adolescência. Não fazia muito que eu passara a fazer a barba, de início duas vezes por semana e depois todos os dias. Tratavam-me como veterano. E os colegas de serviço agiam da mesma forma.
Em 1962, eu dera um bom salto na minha curtíssima carreira. Fora contratado por uma grande emissora de São Paulo (diria, uma gigante, cujo nome prefiro omitir, por haver saído brigado dela para outra rádio de igual porte), de alcance não somente nacional, mas mundial.
E observem como o rádio é “perverso” com aqueles que lhe dão vida. Atuei nesse meio por muitos anos – ora exclusivamente, ora fazendo “dobradinha” com jornal – à frente de poderosos microfones. Milhões ouviram não somente minha voz, mas minhas reportagens e meus comentários, ora concordando e ora discordando deles. Todavia, hoje sou reconhecido, somente, como jornalista (o que, claro, não é pouca coisa).
Meus textos, mesmo os escritos há décadas, circulam, até hoje na internet. Mas... quantos se lembram de mim como radialista? Seu pai se lembra, amável leitor (você, certamente, sequer era nascido)? Ou seu tio? Ou, quem sabe, seu avô? Creio que não.
Poucos, pouquíssimos lembram de mim como radialista. Apenas os amigos mais chegados, e olhem lá. Até mesmo alguns parentes se esqueceram do locutor Pedro Bondaczuk, aquele do vozeirão. E olhem que sempre trabalhei com meu nome de batismo, nunca adotei algum pseudônimo como a maioria dos meus companheiros e, convenhamos, meu sobrenome nem é comum, portanto, não tive homônimos.
Ainda assim, tive orgulho de haver trabalho em rádio, de ter conhecido e convivido com tanta gente ilustre e talentosa e de ter informado e entretido milhões e milhões de ouvintes. É rigorosamente impossível contabilizar o número dos que me ouviram algum dia. Só posso assegurar que foi enorme!
Como jornalista e escritor estou certo que jamais atingirei um por cento se tanto do público que atingi à frente de algum microfone.
Apresentei esse retrospecto (ligeiro) da minha carreira de radialista apenas para que você, meu leitor, tenha uma remota idéia de qual era a minha “cabeça” na época. Até porque, acompanhei a partida final da Copa do Mundo de 1962 no estúdio da emissora em que trabalhava, porquanto, na sequência da transmissão do jogo, participaria de mesa-redonda em que debateríamos (e de fato debatemos) a performance brasileira naquele mundial.
Em todos os jogos anteriores, todavia, segui uma espécie de ritual. Ouvi-os no meu então já velho rádio de cabeceira, à válvula, o mesmíssimo que me proporcionou a alegria, quatro anos antes, de constatar que o Brasil era detentor do melhor futebol do mundo. Acompanhei-os trancado em meu quarto, sozinho e na penumbra. Igualzinho havia feito na final de 1958.

Boa leitura.

O Editor.



A briga entre a verdade e o mito

* Por Mara Narciso

Uma moça brasileira esteve nos Estados Unidos participando de um intercâmbio. Na casa onde se hospedou, havia quatro moradores, e não tinha chuveiro, apenas uma banheira. As pessoas usavam toalhinhas para fazer a higiene corporal. Ao final do dia molhavam as tais e as passavam nas axilas e nas partes íntimas. A moça, mal chegou, recebeu o codinome de Miss Clean, em alusão aos dois banhos de imersão que tomava diariamente.

Um ginecologista reclamava da falta de banho de algumas mulheres, e ainda, que nem todos os humanos se utilizavam de papel higiênico, assim, durante o exame local, exalavam um odor (para usar uma palavra suave), tão asqueroso, que desencadeava ânsia de vômito no examinador. A cena dantesca vista e sentida parece ter saído de um pesadelo. No século XXI é difícil imaginar que isso ainda possa existir.

Os índios brasileiros, no seu ambiente natural, pulam na água diversas vezes, tomando uma série de banhos diários, e desse hábito resultou um povo limpo. Dizem vir deles o costume de os brasileiros tomarem banho todos os dias.

Um homem foi expulso da cama do casal devido ao rastro de gordura deixado sobre os lençóis no lado onde dormia. A mulher não suportou a crescente falta de banhos, deixando os cabelos fedendo e pregados de gordura. O quarto exalava um mau-cheiro nauseabundo. Melhor nem mencionar as cuecas que ela lavava.

Alguém gasta duas horas ao dia em dois banhos, no começo e no fim do dia, se utilizando de um sabonete inteiro de cada vez. O resultado de tanta limpeza é alguém inodoro, insípido e colorido, pois a cor da pele não sai na água. Apenas que o planeta reclama de tamanho desperdício de água.

O rapaz bonito, não trabalhava. No começo de um dia frio, já recendia um horrível cheiro de corpo. Pelo fedor que exalava, não via água há muitos dias. Não há odor humano que não desapareça com água e sabão.

Algumas compulsões podem escravizar o corpo e a alma das pessoas. Uma mulher tomava banho, trocava de roupa, descia as escadas do prédio e, chegando à rua, voltava para outro banho e outra troca de roupa, até a total exaustão física.

Uma reportagem gravada na porta do banheiro dos aviões mostrou que boa parte daqueles que viajam voando não lavam as mãos após usar o sanitário. Nessa linha, olhar dentro dos sapatos de algumas pessoas expõe uma cena inesperada: muita terra molhada pelo suor e seca ao vento, pelo fato de pisar no chão e depois calçar os sapatos sem lavar os pés. Inacreditável!

Os japoneses, que têm fama de ser o povo mais limpo do planeta, desenvolveram a arte do banho, e quando podem, mergulham no ofurô. Por outro lado, a fama de pouco afeitos ao banho persegue os franceses. Estrangeiros reclamam do cheiro desagradável nos locais públicos, como o metrô, por exemplo, e dizem vir da falta de banho a inspiração para a imbatível indústria de perfumes.
Nas localidades de clima quente, o problema da fuga ao banho cresce quando chega o inverno. O gasto com água se reduz pelo abandono desse saudável hábito. Há quem fique um mês sem lavar a cabeça. Troca de roupa, mas não toma banho.

Ninguém em sã consciência vem a público falar desse tema. Melhor fazer de conta que todos seguem os ditames da civilização, que esconde o nosso lado animal com exigência de limpeza total. Vamos abraçando com tal vitalidade essas regras, que os americanos chegaram ao cúmulo de produzir a “pílula de perfume”. Devem ser tomadas duas vezes ao dia, e após duas semanas, a mulher - sim, é para o sexo feminino-, exalaria odor de rosas em sua genitália.

Boa parte da população toma dois banhos ao dia, lava os cabelos quase todos os dias, lava as mãos dezenas de vezes, escova os dentes quando come, usa fio dental, lava as partes pudendas após usar o banheiro, utiliza desodorante, xampu, sabonete íntimo, e perfume, pois a indústria precisa faturar. Então se assusta ao imaginar os reis e rainhas, de outrora. Pessoas muito chiques, vestidas com toda aquela pompa, no meio de ouros e preciosidades, sendo abanadas por plumas, não devido ao calor, mas para disfarçar o mau-cheiro corporal, pois não se utilizavam desses recursos.

A saúde humana melhorou com a higiene dos corpos, das casas e dos alimentos. E antes de colocarmos o corpo de molho, vem a pergunta: afinal, nossa fama de brasileiros asseados é real ou imaginária?


* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



A primeira causa

* Por Marco Albertim

A mãe de Nenzinho aprontara na véspera o paletó de estreia. Ele olhou-se no espelho, achou-se tão elegante quanto no dia da formatura; mais ainda, porque na formatura tivera o brilho do anel, de flashes estampando a simetria da beca; agora teria a admiração submissa de trabalhadores rudes, gente humilde mas ignorante do saber jurídico conferido pelo canudo. Enfim! – disse com a cobiça dos olhos no anel. O anel fora posto no dedo médio da mão esquerda, à noite, antes de ele dormir. Ele desligara a luz do quarto a contragosto, porque não queria pregar os olhos para não parar de apreciar o luzente rubi na coroa do anel. Dormiu, e imaginou-se cercado de duendes, com poderes todos, mas rendidos à magia do centro na mão do causídico.

No café da manhã, não compartilhou com os irmãos o pão de costume; menos ainda o milho cozido com a manteiga escorrendo entre os grãos moles. Não queria submeter-se ao risco de ver uma mancha de gordura sobre a finura branca da camisa, ou da gravata azul com listras brancas. Preferiu comer torradas com mel, por ser de bom-tom; torradas crocantes e mel para entreter a obesidade prematura. Depois, tomou café com cuidados de matrona, não sem antes pôr um guardanapo cobrindo o busto saliente.
- Vai com Deus, meu filho... – disse a mãe, às suas costas, antes que ele cruzasse a porta de saída. Olhou-o de cima a baixo, buscando ciscos, algum fio de cabelo que pudesse comprometer a engomadura do paletó de linho.

Antes de entrar no carro, um Volkswagen de extração temporã, presente que o pai lhe dera, teve o cuidado de segurar um tratado de direito onde se lia Dura lex, sed lex; capa exposta. A autoridade da lei desautorizando suspeitas de ser, Nenzinho, um almofadinha.

Já sentado, lembrou-se do que ouvira do presidente do sindicato: “O homem é duro, tem fama de não obedecer à lei. Mas talvez um advogado falando com ele, o trato seja outro...” Nenzinho desceu do carro, entrou em casa e tirou da gaveta do birô de seu pai um velho revólver, calibre 38; tentou segurá-lo na cintura, mas os trajes e a saliência da barriga não o ajudaram.
- Meu filho!
- O homem é duro!

No sindicato, abancou-se pela primeira vez na sala reservada para o departamento jurídico. Não havia outros advogados, somente “dr. Nenzinho” ocuparia o departamento. O presidente não esperou por ele para fazer as derradeiras advertências, foi ao departamento.
- Vai armado?
- Vou para me prevenir...
- Mas o senhor já tem o diploma de advogado para se prevenir!
- O senhor mesmo me disse que o coronel Chico Heráclio não respeita nem a lei!
- É uma questão pequena. O trabalhador foi expulso de sua terra, dois hectares que cultivava há mais de dez anos, e não foi indenizado. Antes de entrar na Justiça, vamos tentar um acordo com ele. Se entrarmos na Justiça, não sabemos em quanto tempo a questão será resolvida.

Nenzinho quis viajar no próprio carro, mas o presidente ponderou sobre a necessidade de reafirmar a presença do sindicato, e indicou o veículo do sindicato com motorista próprio. Outros trabalhadores veriam...

Na rodovia, o Jipe correu tão veloz quanto a fama de atrabiliário do coronel Chico Heráclio. O veículo silencioso, indiferente à pompa do canavial ocupando terras de um lado e de outro, deu uma trégua à pouca apreensão dos nervos de Nenzinho. O motorista, prosaico, ajudou com histórias sobre os feitos do coronel. Histórias com violências, mas envoltas em traços hilários.

O jipe estacionou na porteira da fazenda. Antes que “dr. Nenzinho” descesse, o motorista pediu-lhe o revólver.
- Daqui pode ser que eu possa defender o senhor... – considerou.

O coronel, avisado pelo porteiro, soube do motivo da visita e só permitiu a entrada do advogado.

“Dr. Nenzinho” não teve tempo de sentar no sofá de couro de boi. O coronel, vindo de sua sala particular, atirou no chão seguidas vezes, nos pés do advogado. Nenzinho correu sem suspeitar da resistência das banhas do ventre. Embrenhou-se nos matos, pegou a carona de um caminhão.

Em casa, a mãe teve que refazer as costuras do terno de linho.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.



Eu nunca me lembro do nome das coisas



* Por Sayonara Lino

Dias para reunir os pedaços, ajustar, formar um mosaico. Um tempo para se permitir. ajeitar a casa, fazer faxina moral, chacoalhar a cabeça, desintoxicar.

Saudades do futuro, lembranças de quem não veio. Qual era mesmo seu nome? Estranho...eu nunca me lembro do nome das coisas.

Parei, faz tempo, na época dos portões sem grade, das brincadeiras no meio da rua, das festas inventadas. Me lembro de uma doce menina. De onde era ela? Faz tanto tempo...eu nunca me lembro do nome das coisas.

Imaginei uma vida vibrante, tons quentes, praças iluminadas, relações com profundidade. Tudo anda tão de diferente, líquido...não importa. Eu nunca me lembro dos nomes e ando me esquecendo até mesmo das coisas.

Levei um susto, alguém surgiu e tentou me levar, foi tão rápido! Nem prestei atenção, só sei que plantou uma semente, ao menos isso deixou. Quando? Não sou boa para datas, que diferença faz. A roda girou. Nasci aos noventa e morro menina.

Estou aqui. É isso o que importa. Melhor assim. Eu nunca me lembro do nome das coisas.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Colunista do portal www.ubaweb.com/revista.



Baseado

* Por José Geraldo Mendonça Junior (Penninha)

Quem se gosta
Não se droga
Quem se gosta
Sabe se fazer gostar...
Pra se gostar
De outra pessoa
Tem que gostar
De si mesmo...
Caso contrário
É confundir fixação
Com paixão
Ou droga com solução.

Do livro “Elo de Palavras – Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Cronicas, lançado na 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo – 2008

* José Geraldo Mendonça Júnior ou Penninha, como é conhecido literariamente, nasceu em Montes Claros (MG). É economista, trabalha na Diretoria do Hospital Universitário Clemente de Faria, da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Participou dos livros “Antologia de Poesia, Contos e Crônicas” – Palavras Escolhidas, No Limite da Palavra, Elo de Palavras e Enigmas de Amor, da Scortecci Editora, em 2003, 2004, 2008 e 2009. Colaborador do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, em Montes Claros, de 1986 a 2009.



Você vale algo?

* Por Patrick Raymundo de Moraes

Ele estava parado em um quarto quase vazio. Uma janela quebrada deixava entrar o vento e a chuva de uma noite infestada de gritos e inquietação. Ele estava inquieto. Um quarto barato, de um cortiço barato. Ele estava sentado em uma cadeira velha e barata. Ele estava rodeado de coisas baratas e baratas. Na mão, ele decidia se a vida era barata, ou se ela valia algo. Ela valia algo?

— Você vale algo? — ele pergunta para a moça deitada no chão, enquanto ela sangra, semiconsciente. Ela foi infeliz nesta noite. Um lance do destino. Era fim de turno no restaurante chinês, ela poderia ter ido embora para casa, mas resolveu atender uma última ligação. Ele pedira um “pato a shangai”. Ela queria mostrar serviço e responsabilidade. Ela queria valer algo aos olhos do chefe.

Além de anotar o pedido, ela se fez de entregadora. O motoqueiro que faz as entregas já havia ido embora. Um caso atípico de comportamento. Em uma cidade grande, o endereço não significa muita coisa. Pode-se ter um prédio luxuoso ao lado de um cortiço, por isso ela não prestou atenção ao endereço. Ela chegou de lambreta. Ela comprou há dois meses a pequena condução e estava feliz por causa de seu primeiro bem adquirido. Temeu ao olhar o prédio velho. Não podia voltar atrás.

Achou o apartamento. O homem parecia tranqüilo e pediu para ela entrar. Ela disse que não. Uma jovem pequena, cabelos longos, lisos e pretos. A jovem chinesa entregou o pedido. Para seu susto, o homem a agarrou pelo pulso e a puxou para dentro. Ela sacou de um pequeno estilete que estava no bolso da calça. Não teve tempo de usar. Ele usou a coronha da arma para nocautear a pequena. Com ela desmaiada, ele sentou-se na mesa e começou a comer o pato a shangai.

— Você vale algo? — a pergunta repetida faz com que a moça recobre os sentidos e volte ao presente. Ela não estava amarrada. Ele tinha deixado o dinheiro do pedido no chão, ao lado dela. Ela estava assustada.
— Sim, todos valemos algo! — ela diz com uma bravura em voz que não consegue refletir no coração. Ele a olha com profunda tristeza.

— O que você vale? — ele pergunta. No braço direito há uma Eagle semi-automática de uso do exército. Ele a engatilha e trava. Ela pensa, enquanto ele a observa.

— Eu vali sete meses de gravidez de minha mãe e dois meses de oração de minha família. Fui precoce e tive problemas de saúde. Quando fui atropelada, enquanto andava de bicicleta, eu vali as lágrimas de minha mãe e o tremor das mãos de meu falecido pai. Eu vali o desejo do primeiro beijo de meu namorado. Eu tenho o valor das preocupações deles e do amor que eles carregam por mim. — ela diz com as lágrimas nos olhos que escorriam. “Como?” Ela pensa, sem saber como surgiram essas palavras.

— Você vai me matar? — ela pergunta de forma tímida e medrosa.

— O quanto você vale para você? — ele volta a perguntar.

Ela fica muda por um instante. Ele levanta da cadeira e pega um copo de café. De súbito, aconteceu de novo.

— Eu poderia dizer que me meço pelo valor que os outros dão à mim! Mas isso é errado! O meu valor é que sou um indivíduo único e eu aprendi a me amar. O meu valor é o valor do amor que eu tenho por mim mesmo.

Novamente, ela não sabe da onde tais palavras saem. Elas saem de seu interior, com entusiasmo e força que ela nunca demonstrou antes. A força de um “eu” que ela não sabia que existia até então.

— Qual o meu valor? — ele aponta a arma para ela. Essa é a pergunta decisiva! Um erro seria a morte! Ela olha ao lado, procurando por inspiração que parece não vir. Repentinamente, um tiro. Um raio corta o céu de uma cidade turbulenta. Gritos ecoam por toda a parte. Animais vasculham o lixo e o lixo se confunde com pessoas. A chuva parece não cessar.

— Eu não vou errar o próximo tiro! — ele diz. Ela não teve tempo de gritar. O tiro atravessou a parede ao lado da cabeça. — Qual o meu valor? É tão difícil responder?

— É lógico que é, seu maníaco! — ela grita! — Eu não te conheço!

Ele aponta a arma para a cabeça dela. Puxa o gatilho. A misteriosa força de vontade voltou com rapidez e dominou a garota novamente.

— Valor? Não sou eu quem vai te dar um valor! O valor é o que você sente por si mesmo. No momento está baixo! Daria para passar debaixo da porta!

Ele tenta atirar contra ela, mas a arma engasga.

— A arma engasgou? Tenta entender que não é gerando expectativas, mas aceitando quem você é, é que vão fazer com que as coisas melhorem! — ela tenta continuar falando, mas ele avança contra ela. Ela se encolhe no canto, colocando as mãos na frente do rosto, esperando o impacto do soco, entretanto, o impacto não acontece.
Ela abre os olhos e vê, com a ajuda de um raio, seu falecido pai a segurar o agressor pelo peito. O agressor não consegue se mover. A imagem rapidamente some. Ela chora.
— Você vale a preocupação de meu pai que desceu só para isso! Que está te impedindo de mover! Você vale a batida de seu coração! Você vale muito e se a vida não está sendo como você queria, siga as palavras que estão no Hagakure: “enxergar o mundo como se fosse um sonho é um bom ponto de vista. Quando tem um pesadelo, você acorda e diz a si mesmo que era apenas um sonho. Dizem que o mundo em que vivemos não é muito diferente disso”. Amanhã, eu vou acordar e dizer que o dia de hoje foi apenas um pesadelo. Faça o mesmo e recomece!

A garota imediatamente pega o dinheiro do pedido e se lança para fora do quarto. O rapaz chora e se põe de joelhos. A arma se desfaz e ele consegue enxergar, através de outro raio, a figura de um ser paterno que protegeu a filha e que, agora, o sorri e lhe diz ao coração: “A vida está diante de ti, como a morte. Viva e sonhe novamente!”A garota, no dia seguinte, agradece aos seus ancestrais pela proteção e pelo amor.

(Publicado na antologia “Palavras que falam”, Editora Scorcesi)

• Colaborador do Literário

terça-feira, 29 de junho de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – “Happy end”, e com chave de ouro

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, crônica “O número 40 e seus mistérios”

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “É paixão sim”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, poema “Não”

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Constatação”

Coluna Porta Aberta – Adélia Prado, poema “Direitos humanos”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

“Happy end” e com chave de ouro

Caríssimos leitores, boa tarde.
Foi há exatos 52 anos, em 29 de junho de 1958. Apesar de haver passado mais de meio século, lembro-me com nitidez e riqueza de detalhes de tudo o que aconteceu nesse memorável dia. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece. E eu não esqueci.
Aquele era meu primeiro dia de férias do meio de ano. Voltara para casa, do que colégio interno em que estudava, na véspera, bem à noitinha. Ainda não havia saído à rua para reencontrar os amigos de infância, dos quais estava longe desde fins de fevereiro.
Meus pais não tinham do que reclamar de mim, pois meu boletim registrava, de novo, nota dez em todas as matérias. Mais uma vez eu vencera a competição com meus colegas de escola, com desempenho impecável nos estudos.
Claro que meus pais não sabiam – e ninguém no colégio sabia ou sequer desconfiava – das minhas escapadas furtivas para Jacuba, para acompanhar, pelo rádio, as transmissões dos jogos do Brasil na Copas do Mundo da Suécia.
Neste dia decisivo, no entanto, eu não precisaria me preocupar com isso. Estava em casa, com o dever devidamente cumprido, com carta branca para fazer tudo o que quisesse, ou quase tudo. Afinal, meus pais, também, eram eméritos disciplinadores.
Resolvi acompanhar a transmissão do jogo em meu quarto que só ocupava três meses por ano, de porta fechada e no escuro, ou melhor, na penumbra. Achava que, com isso, poderia enviar “fluidos positivos”, telepaticamente, à nossa Seleção em Estocolmo. Nesse tempo, eu acreditava nessas bobagens.
Nesse dia eu tinha tudo para estar feliz. Mas... não me sentia assim. Estava separado da minha amada até 1º de agosto, tempo que me parecia uma eternidade. Acordei, nesse domingo, com uma saudade enorme, opressiva, insuportável. Parecia que eu estava distante da amada não só por uma noite, mas por anos, décadas, séculos.
Estava quieto, angustiado e pensando numa forma de comunicar-me com ela. Mas como? Não tinha telefone. Naquela época, tratava-se de um objeto precioso, raro e caro. Decidi que escreveria uma carta – escrevi, na verdade, cerca de vinte nesse pouco mais de um mês de separação – assim que terminasse o jogo do Brasil. Estava triste, saudoso, inquieto, como se me estivesse faltando um pedaço. E faltava mesmo. Quem está amando, ou já amou, entende o que quero dizer.
Liguei meu rádio de cabeceira, da marca RCA Victor (do tamanho pouca coisa maior do que os atuais rádios-relógios), à válvula, com caixa de plástico azul. Essa era outra grande raridade, que poucas pessoas tinham acesso, grande novidade do comércio naqueles idos de 1958. Sintonizei na Bandeirantes, a tempo de ouvir os comentários pré-jogo se não me engano de Mauro Pinheiro.
Eu estava confiante de que a maldição de 1950 seria exorcizada nesse 29 de junho. Era a segunda final de Copa do Mundo a que o Brasil chegava em sua história, mas a primeira no exterior. Se a Seleção Canarinho vencesse, seria o primeiro selecionado nacional a conquistar a Jules Rimet fora do seu continente. Não havia quem não se lembrasse com apreensão, mesmo que apenas de passagem, da hecatombe de oito anos antes.
O jogo foi disputado no Estádio Solna Rasunda, de Estocolmo, com a presença de um público relativamente pequeno para confronto de tanta importância: 49.737 pessoas. O árbitro escalado pela Fifa foi, mais uma vez, o francês Maurice Guiguê.
O Brasil jogaria, pela primeira vez, de camisas azuis e calções brancos, porque os anfitriões tinham uniformes exatamente como os nossos. Dizem que o novo fardamento fora comprado às pressas numa lojinha de Estocolmo, dois dias antes, com os números e distintivos sendo costurados na véspera da partida.
Testemunhas garantem que os jogadores não queriam usar as novas camisas, achando que dariam “azar”. Asseguram, porém, que, mais uma vez, o chefe da delegação, Dr. Paulo Machado de Carvalho, entrou em cena. Ele teria reunido todo o mundo e convencido a equipe de que aquele era um bom augúrio. Teria afirmado que a exigência de usar as novas camisas era, na verdade, um fator de “sorte” à Seleção, pois o azul era “a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida”, a padroeira do Brasil.
A superstição bem que poderia aflorar e inibir nossos jogadores pois, logo aos 4 minutos, pouco depois da saída, os suecos abriram o placar, com gol do seu capitão Liedholm. Se azar havia, no entanto, Garrincha e Vavá se encarregaram de exorcizá-lo.
Em dois lances curiosamente iguaizinhos, um aos 8 e outro aos 32 minutos, o Mané da perna torta fez o escandinavo Bergmark de João, foi à linha de fundo e cruzou a bola rasteira para o “peito de aço” tocar para o gol, primeiro empatando e depois virando o jogo.
Os dois times foram para os vestiários com 2 a 1 para o Brasil. No segundo tempo, foi a vez de Pelé dizer a que veio e dar o seu show particular. O menino franzino de Três Corações faria outro gol antológico, uma espécie de “clone” do que havia feito contra País de Gales, logo aos 11 minutos. O garoto, na risca da pequena área, matou a bola no peito, deu um chapéu no central Axbon e, sem deixar a “gorduchinha” cair, mandou-a de sem-pulo para as redes da Suécia. Aí... foi um passeio. Nem o segundo gol sueco abalou a confiança da equipe e da torcida, marcado aos 35 minutos por Simonsen. Isso porque Zagallo, antes, aos 23, havia feito o nosso quarto.
E a Copa terminou em grande estilo e de maneira perfeita. O último lance desse Mundial foi o gol de cabeça sabem de quem? Isso mesmo, do menino que a imprensa não queria que fosse para aquele mundial, o mágico, fenomenal e incomparável (muitos desconfiavam que se tratasse de um ET) Pelé. Compará-lo, pois, com Maradona é demonstração de ignorância e de desinformação (isso para ser polido e não usar um palavrão).
Tão logo Guiguê apitou o final, saí em disparada, eufórico e andando nas nuvens, para a rua, gritando a plenos pulmões o grito que havia tido que sufocar, que mastigar, que engolir oito anos antes: É campeão!!! Fui até o Bar do Baixinho, ao encontro da minha turma, para festejar com tudo o que tinha direito (e até do que não tinha). O Brasil inteirinho, do Oiapoque ao Chuí, era um festa só. E os brasileiros começaram, nesse dia 29 de junho de 1958 a se livrar de seu secular complexo de vira-latas, designação criada pelo saudoso jornalista Nelson Rodrigues (vejo entristecido, porém, que nem todos se curaram desse mal).

Boa leitura.

O Editor
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O número 40 e seus mistérios

* Por Risomar Fasanaro



Madrugada de sexta-feira, dia 18, insistentemente uma pergunta me persegue: qual o significado do número 40?


Embora confesse que fui má aluna de Matemática, sou profundamente curiosa a respeito dos números


E por que naquele dia a curiosidade estava dirigida ao número 40? É que minha amiga Alfredina Nery reuniria os amigos naquela noite, para comemorar seus 40 anos de trabalho na Educação.
Alfredina, ou Dina, como nós seus amigos a chamamos, percorreu este caminho na rede oficial de ensino do Estado de São Paulo, transmitindo seus conhecimentos de Língua portuguesa e Literaturas brasileira e portuguesa a várias gerações de alunos. Muitas vezes em classes superlotadas com 45 alunos.


E naquela madrugada me perguntava por que alguém comemoraria esses 40 anos? Por que justamente agora quando o ensino na rede oficial desse Estado deixa tanto a desejar, e quando tantos professores se queixam das formas de avaliações e de bônus que lhes são atribuídos, e que nem todos recebem?


Trabalhamos juntas muitos anos, por isso lhes asseguro, vi com que dedicação e sabedoria desenvolveu sua carreira. Mais do que professora, é uma educadora, daquelas que hoje já não existem. Incansável. Quando todos perdiam a esperança. Ela estava lá: entusiasmada, sempre nos trazendo alguma novidade.


Mas, mesmo assim, por que comemorar 40 anos de carreira quando tantos desistiram no início, ou no meio ou não querem, depois de aposentados, nem ouvir falar em aula, em escola, em Educação? Uns porque o salário é baixíssimo, outros por terem sido vítimas de violência, outros porque...


Confesso que não encontrei resposta.


Comecei a me lembrar de algumas passagens bíblicas ligadas ao povo judeu e ao povo cristão: Noé construiu uma arca onde abrigou o povo do dilúvio durante 40 dias e 40 noites; Moisés jejuou 40 dias antes de receber o 1º texto escrito: os 10 andamentos; e foi esse o número de anos de sua peregrinação pelo deserto liderando seu povo, em busca da Terra Prometida.


E está lá, na Bíblia, que Jesus jejuou 40 dias antes de iniciar seu ministério, e esse também foi o número de dias que esteve com seus discípulos após sua ressurreição.


Passei o dia todo pensando: que relação teriam esses fatos com a carreira de minha amiga?


Teria ela construído alguma arca onde nos abrigasse para nos salvar do dilúvio em que nos colocaram? Teria ela jejuado durante esses 40 anos e somente agora viesse a nos revelar o verdadeiro sentido do ministério?


Teria ela peregrinado pelo deserto de nossas escolas e somente agora pudesse nos contar que em uma noite estrelada um beduíno lhe revelara a beleza e os mistérios que há nos poemas, contos e romances, e que antes só aos seus alunos revelara? E que aquele era o segredo que guardara durante esses 40 anos?


Ou teria ela adquirido o poder de fazer ressurgir a Educação que sempre desejamos proporcionar a todas as crianças desta terra de Vera Cruz?


Não sei. Hoje só tenho perguntas.



* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.



É paixão sim

* Por Evelyne Furtado



Sem dúvida nenhuma é paixão o sentimento que nos veste de verde e amarelo em tempos de Copa do Mundo. Temos uma relação intensa com a seleção brasileira que envolve amor, ira, prazer, alegria, medo e orgulho.

Não posso falar sobre futebol, pois não conheço bem o assunto. Mas posso falar sobre essa fuga da razão que nos governa de quatro em quatro anos: Paixão que já nos feriu de morte algumas vezes, mas que nos deu muitas alegrias.

Gosto de ver o país parar para assistir aos jogos da seleção brasileira. Gosto da expectativa alegre vencendo o temor e nos unindo em torno da TV globalizada para torcer. Não vejo problema nenhum nessa mobilização espontânea. Vejo beleza. Não há nada de errado em torcer a favor do talento dos nossos meninos. Vejo e torço por eles que representam nossas cores.

Acho estranho, mas procuro compreender o que leva um brasileiro a começar uma copa torcendo pela Argentina ou pela Espanha. Raiva de Dunga? Medo de uma decepção? Não identificação com o próprio país?

Não sei, mas desconfio que seja uma dessas situações e se assim for, não deixa de ser a paixão se revelando ao avesso.

Visto verde e amarelo a despeito do mau-humor do nosso técnico. A briga parece-me ser entre ele e a imprensa e a meu ver ninguém ganha com ela. Ao contrário, é bem desagradável.

Quero mais é que Dunga faça a parte dele direitinho e que não nos deixemos envolver por esse mal-estar que joga contra nossa festa.

Já aprendi a me distanciar, mas na hora do jogo não tem jeito sempre estou junto à família e aos amigos me emocionando no começo, torcendo pelo gol, sofrendo a cada ameaça e até rindo dessa paixão.

• Poetisa e cronista de Natal/RN



Não

*Por José Calvino de Andrade Lima

Dizer não
com gestos e palavras.
Meneio de cabeça,
vaivém do dedo indicador...
Mais das vezes,
o não é o sim,
e o sim é o não.
O não pode ser:
pacífico ou revolucionário.
Há uma análise bem comum:
Uma reação à violência,
à supressão das liberdades,
ao desrespeito à cidadania...
Enfim,
Não à esmola,
é o sim ao emprego digno.
Não à violência,
é o sim da paz.
Não à ignorância,
é o sim da educação.

* Escritor, poeta e teatrólogo



Constatação
(De um caçador de andróides)

* Por Talis Andrade

Sopro da vida
a palavra

Robôs
não se comunicam

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Direitos humanos

* Por Adélia Prado

Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.

(Oráculos de Maio, p.73.)



* Adélia Prado é uma das principais poetisas brasileiras da atualidade, autora de vários livros de sucesso. .

segunda-feira, 28 de junho de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Rumo à consagração

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, conto “No mundo da lua”

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Um aboio aveludou a noite do sertão”.

Coluna Planeta Manjaterra – Renato Manjaterra, crônica “Antes de parar para pensar eu pensava assim”.

Coluna Porta Aberta – Alex Polari de Alverga, poema “Zoológico humano”.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema “Corpo como Dante”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Rumo à consagração

Caros leitores, boa tarde.

A Seleção Brasileira, classificada em primeiro lugar no seu grupo para a fase das quartas-de-final da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, cheia de confiança, teria pela frente um adversário teoricamente mais fraco do que a União Soviética, que enfrentaria ninguém menos do que os donos da casa. Já o Brasil mediria forças com País de Gales.
Cabe aqui uma explicação aos que desconhecem determinadas posturas do organismo mundial que controla e regulamenta o futebol. A Grã-Bretanha, não se sabe bem porque, é o único país filiado à Fifa que entra nas eliminatórias não com uma, mas com quatro seleções: a da própria Inglaterra, além de Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, que não passam de províncias britânicas. Pode ocorrer, por exemplo, das quatro se classificarem para as fases decisivas de alguma Copa. Acho isso estranhíssimo!
Por que não há o mesmo comportamento, por exemplo, com relação à Espanha, abrindo vagas para as seleções do País Basco, Catalunha e Andaluzia? Ou com o Brasil, que na época, se o critério fosse o mesmo, disputaria as eliminatórias com 22 equipes, ou seja, a oficial e as dos Estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco etc.? Coisas da Fifa, óbvio.
O jogo contra o País de Gales ocorreu em 19 de junho de 1958, no Estádio Nya Ullevi, de Gotemburgo. Vinte e três mil pessoas assistiram a uma exibição apenas discreta da nossa seleção. O árbitro foi o austríaco Erich Scripelt. Os galeses montaram uma retranca medonha para parar nosso ataque. Quando não podiam conter nossas investidas na bola, apelavam para a violência, sob o olhar complacente do homem de preto com o apito na boca.
Esse jogo entrou para a história por causa de um dos gols mais fenomenais de todas as Copas, que deu a vitória ao Brasil e o passaporte para as semi-finais. Seu autor? Um menino de 17 anos, que a imprensa brasileira julgava uma temeridade estar presente no Mundial. Ocorreu aos 26 minutos do segundo tempo e deixou todo o mundo boquiaberto.
Pelé recebeu uma bola na risca da pequena área de País de Gales, num espaço mínimo para se movimentar e cercado por três zagueiros. Qualquer outro jogador seria simplesmente desarmado e pronto. O lance morreria ali. Nosso meia adolescente, todavia, matou a bola com imensa facilidade, deu um chapéu em Williams, capitão galês e, sem deixar a pelota cair, arrematou de forma certeira e inapelável para a meta adversária. Um golaço! Todos no estádio aplaudiram a rara jogada de pé.
Houve quem dissesse que o nosso genial camisa 10 levou sorte no lance. Que nunca mais faria outro gol igual ou sequer parecido. Bastaram, porém, dez dias para que queimassem a língua. Pelé fez, como veremos na sequência destas reminiscências, outra jogada, com o mesmo desfecho, rigorosamente igual a esta e exatamente numa final de Copa do Mundo. Quem sabe, sabe. Só quem tem técnica excepcional é capaz de uma obra-prima como aquela e com direito a reprise.
Na semi-final o Brasil teria seu teste decisivo. Enfrentaria o bicho-papão daquela Copa, dona de um ataque arrasador, que vinha humilhando todas as defesas: a França. A dupla francesa Just Fontaine e Raymond Koppa estava desequilibrando. O primeiro deles, inclusive, se tornaria o maior artilheiro de uma só Copa de todos os tempos, com 13 gols. Até hoje seu feito não foi sequer igualado, quanto mais superado.
O jogo aconteceu em 24 de junho de 1958, no Estádio Solna, de Estocolmo, arbitrado pelo galês Mervyn Griffith, para um público de 27.100 espectadores. Foi um dá cá, toma lá incessante, com as duas equipes partindo para o ataque, “sem medo de ser feliz”.
Pelé, nesse dia, estava endiabrado. Quem foi ao estádio para ver Just Fontaine (e muitos foram) acabou vendo, assombrado, mal acreditando em seus olhos, um menino franzino, negro, fazendo coisas mágicas com a bola. Contudo, não se tratava de malabarismo, mas de jogadas objetivas, sempre buscando o gol (e tendo sucesso). Nosso genial camisa 10 arrebentou com o esquema defensivo francês.
É verdade que Fontaine deixou a sua marca. Mas Pelé fez três, para não deixar a menor dúvida sobre quem, ali, era o melhor. Os outros gols do Brasil foram marcados por Vavá (sempre ele!) e Didi, enquanto que Piantoni, aos 40 minutos do segundo tempo, deu números finais ao placar. Resultado? Foi um 5 a 2 histórico, insofismável, categórico para a assombrosa Seleção Canarinho.
Era a volta por cima de um grupo que havia saído do País desacreditado, ridicularizado, quase enxotado e que chegava com talento e com coragem à segunda final de Copa da história. E disposta (e apta) a fazer desta vez um novo enredo; não permitir a repetição de uma tragédia, mas compor, com os pés, uma epopéia notável e vitoriosa. Faltava um, um único e solitário jogo para a glória e a consagração. Que, afinal, viriam.

Boa leitura.

O Editor.



No mundo da lua

* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral

- Bento! Bento! Pega a câmera, pega o gravador! Vamos registrar esse momento!
Bento calmamente continuou a mastigar o palito no canto da boca:
- O que descobriu dessa vez Derbal?
- O buraco negro! Olha! Olha! Tá vendo?
- Tsc..tira a tampa da lente imbecil.
- Ah é...

Todo sem graça e com os ombros caídos, ele voltava às suas pesquisas. Derbal era o irmão mais velho de Bento e vivia no mundo da lua.

Na volta de uma pescaria, enquanto caminhavam descalços, Derbal observou a queda de uma fruta.
- E pensar que foi assim que Newton descobriu a lei da gravidade.
- Derbal! Você acabou de pisar num monte de merda!
- Putz!

De outra feita quase matou Bento do coração quando lá de baixo ouviu-o gritar:
-Eureka! Eureka!

A princípio não ligou, até que os gritos viraram urros de dor, Derbal havia ficado com o "pinto" preso no ralo da banheira. Bento não tinha sossego com o irmão sonhador, mas era incapaz de lhe dizer não, e, assim acompanhava-o em suas desventuras.

Um dia Derbal inventou uma pequena bomba no porão, Bento só soube disso quando sentado na privada voou pelos ares caindo no canteiro de rosas vermelhas de sua finada avó. O enterro de Derbal foi concorridíssimo, muitos queriam ter certeza de que o louco havia morrido e outros foram apenas para dar adeus ao doce sonhador.

Sentado na varanda e suspirando de saudades, Bento olhava fixo para o céu, imaginando o que o irmão poderia estar aprontando por lá. Foi quando percebeu na imensidão o choque entre duas minúsculas estrelas.

Bento abriu um largo sorriso:
- Eita véio...até aí tu faz merda!

• Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário



Um aboio aveludou a noite do sertão

* Por Eduardo Murta

Ponteiros paquidérmicos, aqueles. Faziam só incendiar ansiedade em Juventina. Ela unhas roídas, suor denunciando ânsias. E nada de o relógio cruzar o meio-dia. Era assim toda terça, em que consumia as tardes em segredos de sacristia. Se embonecava em peruca, laquê, revezava os modelos de anágua. E caprichava no perfume. Padre Euzébio a esperava. Duas taças de vinho à mesa, bombons de cereja. Viúva de aliança, lá amainava calores de amar. As coxas se encontrando num silêncio sacrossanto.

Como discreta entrava, discreta saía. A se desvencilhar de línguas ferinas. Retocava a maquiagem aos moldes clássicos que haviam ficado lá para trás: pó compacto, talquinho-bebê ao pescoço. O rímel invariavelmente refazendo o contorno dos cílios. Porque na glória do prazer, chorara. Como repetisse um ritual, direcionava o ritmo a que o fogaréu varrendo o baixo ventre coincidisse com as badaladas das cinco. Gemia baixinho, cravava o esmalte nas costas do parceiro. E se vigiava para jamais gritar.

O gozo recatado talvez guardasse familiaridade com a atmosfera cerimoniosa do lugar. Conhecera aqueles domínios, se recorda, para lá de seis décadas. Tempo de primeira comunhão. Ela em flor infantil, descobrindo o mundo. E o menino Zizu lhe despertando tantos braseiros, que cultivaria esse querer até que entrassem pela porta principal da igreja, véu e grinalda, casaco emprestado, a que trocassem anéis de compromisso.

Vaqueiro, foi laçá-la entre um e outro lamento de aboio. O sol já derivando à serra, guiando o gado na volta dos pastos. Nem traço de pêlos tinha ao rosto. Passava pela casinha, meio do nada, paredes em tons palha, contornos em azul, e em instantes lá estava a menina. Laços de fita incondicionalmente amarelas, dentição se desenhando à boca. Sorria em espontaneidade brejeira. Ele desassentava o chapéu, trazendo ao peito, numa doce reverência.

Ficavam naquilo. Resumidos a boa tarde, até amanhã, faz calor, vem chuva por aí... Até os encontros de catecismo emprestarem nova carpintaria aos olhares. Veio namorico de praça, veio casamento, vieram filhos de fazer fila – treze. E veio um boi dos bravos. Desgarrado. O chifre trespassando Zizu de costela a costela. Daí emergiria um meio-homem. Babento, desmemoriado. Numa madrugada dessas, beijou mulher e crianças e partiu. Tomou a imensidão da mata, prometendo que encontraria o animal a qualquer custo. Completou anos sem dar notícia.

Foi dado por morto. E no acender de velas no santuário, as chamas iam revelando luto cerrado ao rosto de Juventina, embora renovassem e fortalecessem a esperança de reencontrar Zizu. Lá também conheceu as mãos de Padre Euzébio, novato na paróquia. Nos primeiros anos, toques reconfortantes. Depois, sugestivos. Por fim, sedutores, candidamente acolhidos.

Dali para a penumbra da sacristia foram meses de convencimento. As resistências se quebrando passo a passo. Atravessariam janeiros naqueles sabores de alcova. A ponto de incorporarem rotinas de casal. A implicância sobre o excesso de rapé, a reprimenda pela roupa pouco recatada para a ocasião de missa... Bonito era que tudo desaguava em entrega ainda mais ardente. Num frescor de carinhos e entrecoxas endiabrando as tardes do vilarejo.

Aquela terça-feira, sabe-se lá por quê, soava ímpar a Juventina. Escolhera anágua vermelha. Padre Euzébio inaugurava ceroulões. E ornara as bordas do colchão em ramos de alecrim. O relógio se aproximando das cinco, ela vislumbrou poeirão ao longe. Lembrava estouros de boiada. O volume crescendo, se agigantando em direção ao santuário, sob um barulho avassalador de tropel. Pelo vidro, anônima, conferiu. E um tremor varou-lhe até a alma.

Era Zizu, empunhando sobre a cabeça a carapaça com os chifres do boi que o vazara. Exibia como a um troféu. Juventina, desejos embaralhados, agora sem saber se ia à janela ou se deixava que aqueles acontecimentos ecoassem por todo o sempre em seu coração como um aboio longo, doído. Um lamento triste aveludando as noites de sertão.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.



Antes de parar para pensar eu pensava assim

* Por Renato Manjaterra

Alguns axiomas: Pontepretano bom é o presente. O que vai no campo.



Porque o que nos faz diferentes, digo, melhores pessoas do que os torcedores de outros times senão isso de que nós somos feitos no Majestoso, nunca através de um meio de comunicação, por mais privilegiado, online, 3d e com até cheiro?!

Eu me acho muito infinitamente mais torcedor do que absolutamente todos os sãopaulinos que conheço à exceção do meu primo Mirinho, que acho que até trabalhou no Morumbi e conhece aquilo como o Rogério Ceni. O resto deles? Nem discuto! Todos eles escolheram o São Paulo! Dois deles antes do Raí.

Não muda nada escolher um time do povão porque isso só legitima os povão. Se você torce para um time que leva cem mil ao estádio, bom para os cem mil. Pra mim se você não vai ao estádio para se fazer ouvir pelos seus adversários, a federação e seu próprio time, você é tão torcedor quanto qualquer saopaulino. Na minha época isso se chamava “radinho”. Hoje que você vai no estádio e pelo telefone assiste a outro jogo da rodada não sei como se chama. Acho que hoje, com toda a tecnologia, esse torcedor que acha que um milhão de loucos compensam a sua ausência se chama “torcedor-dublagem-da-Rede-Globo-louco-por-ti-juca-kfuri”.
..
Tenho contato profissional com um palmeirense nascido em São Roque e que trabalha em Campinas. Tem, chutando alto, cem horas de estádio, somando as do São Bento – média de um pontepretano de seis anos. Quando eu falo que é um ´radinho` ele se morde e diz que já gritou é campeão no estádio. Deve ser verdade.

Se eu tivesse escolhido um time para torcer eu também teria.


Quem é pontepretano sabe muito bem que se um dia o futebol moderno relegar a Ponte Preta ao amadorismo, e a gente combinar de torcer todo mundo pro Barça, a gente vai assistir mais decisão e festa de caneco do que ele jamais sonhou.

* Jornalista e escritor, webdesigner, colunista esportivo, pontepretano de quatro costados, autor do livro “Colinas, Pará” com prefácio do Senador Eduardo Suplicy, bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCAMP, blog http://manjaterra.blogspot.com



Zoológico humano

* Por Alex Polari de Alverga

o que somos
é algo distante
do que fomos

ou pensamos ser.
Veja o mundo:
ele se move
sem nossa interferência
veja a vida:
ela prossegue
sem nossa licença
veja sua amiga:
ela se comove
por outros corpos
que não o seu.

Somos simplesmente
o que é mais fácil ser:
lembrança
sentimento fóssil
referência ética
apenas um belo ornamento
para a consciência dos outros.

A quem interessar possa:
Estamos abertos à visitação pública
sábados e domingos
das 8 às 17 horas.

Favor não jogar amendoim.


• Poeta de João Pessoa (PB), autor dos livros de poesias “Inventário de cicatrizes” e “Camarim de prisioneiro” e do romance “A quadratura do ó”.

Corpo como Dante

* Por João Alexandre Sartorelli

Corpo como Dante,
Como queda,
Como corpo cai,
Como caiu diante,
Corpo alerta
Diante da fresta.

O corpo se adapta
E se arrasta,
Depois da queda
O corpo seca
Na fria aresta
E segue avante.

* Analista de Sistemas por profissão e poeta por vocação

domingo, 27 de junho de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – O “mágico” terno marrom

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Idade de ouro”.

Coluna Direto do Arquivo – José Paulo Lanyi, poema “O louco e as formigas”.

Coluna Clássicos – Max Gehringer, crônica, “Importância do ‘Não Sei’”.

Coluna Porta Aberta – Alex Brasil, poema “Razões do coração”.

Coluna Porta Aberta – Ademir Antonio Bacca, poema “Daquilo que cabe no poema”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

O “mágico” terno marrom

Caríssimos leitores, boa tarde.
Abro um parêntese nessa série de textos reminiscentes acerca das quinze Copas do Mundo que pude acompanhar (a deste ano é a 16ª), para tratar de um assunto que na verdade tem estreita relação com esse tema, mas que trago à baila não só por se manifestar ao longo dos mundiais, mas porque ele se faz presente sempre que o assunto é futebol: superstições.
Nem sei se tenho alguma. Acredito que não. Não carrego, por exemplo, amuletos ou patuás, achando que vão dar sorte ao meu time ou à nossa Seleção. E ademais, nem sigo qualquer ritual, tipo me persignar ou me benzer ou coisas assim, antes de jogos.
É certo que gosto de assistir às partidas (ou de ouvi-las no rádio, na ausência de uma televisão) rigorosamente sozinho. Não sou insociável, não é isso. As observações alheias sobre o andamento dos jogos é que me irritam, mesmo que pertinentes. Imaginem quando não são. O pitoresco é que já fui comentarista de rádio. Ou seja, fiz o que não gosto de ouvir.
Nem sempre pude gozar de privacidade para acompanhar a Seleção Brasileira. É possível que a decisão de 1950 tenha deixado alguma impressão ruim no subconsciente que o consciente não se lembra. Mas não posso garantir que isso tenha ocorrido. Pode ser que essa parte “trancada” do meu cérebro atribua o insucesso do Brasil, no Maracanazzo, à algazarra que todos faziam na casa do Zé Gordo, onde ouvi aquela decisão na companhia de um montão de gente, enviando “fluidos negativos” aos nossos craques. Sabe-se lá...
Supersticioso, mesmo, parece que era o Dr. Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira nas Copas do Mundo da Suécia e do Chile. E, recorde-se, nas duas o Brasil foi campeão. Creio que a sua fé tinha efeitos altamente positivos sobre o ânimo dos jogadores. Era contagiante. Mas as conquistas foram exclusivamente dos nossos craques, conseqüências da sua habilidade, da sua ousadia e do seu talento, e não de qualquer eventual influência mágica ou sobrenatural.
O Dr. Paulo Machado de Carvalho, para quem não sabe ou não se lembra, era um bem-sucedido empresário do ramo de comunicações, proprietário, na ocasião, da rádio e televisão Record e da Rádio Panamericana (atual Jovem Pan). Era uma pessoa que aliava à inegável competência, extrema simpatia.
Conhecendo-o pessoalmente, era impossível não gostar dele e não ser seu amigo. Fui dos tantos que tiveram o privilégio e a honra de conhecê-lo e de me tornar seu irrestrito admirador. Pois bem, o Dr. Paulo tinha lá suas superstições como, aliás, dez entre dez brasileiros as têm também (embora muitos jurem por todas as juras que não). A que ficou mais ostensiva, e por isso mais marcante e comentada por muito tempo (até hoje, há quem fale disso), foi a que se referia ao seu traje.
Explico. O chefe da nossa delegação assistiu o jogo de estréia do Brasil, na Copa da Suécia, vestindo um elegante e bem cortado terno marrom. Como nossa Seleção sapecou um 3 a 0 nos austríacos, resolveu manter, nos jogos seguintes, tudo exatamente como nesse dia, para atrai9r bons fluidos.
Em todos os outros cinco compromissos brasileiros, o Dr. Paulo trajou a mesmíssima vestimenta. E fomos campeões. O tal terno marrom teve algo a ver com isso? Não sei! Afinal, como dizem os filósofos, há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. Intimamente, porém, estou mais do que convicto que a vestimenta do ilustre empresário não teve nada, absoluta e rigorosamente nada a ver com a conquista nos gramados suecos. Ele, contudo, tinha certeza que sim.
Tanto que na Copa seguinte, a de 1962, essa afável (e saudosa) figura foi escolhida, de novo, para chefiar nossa delegação no Chile. E repetiu o mesmíssimo ritual. Ou seja, assistiu todos os seis jogos brasileiros vestindo o inseparável terno marrom. E era o mesmo de 1958, e não outro semelhante. E o que aconteceu? Todos estão carecas de saber: o Brasil foi bicampeão!
O quê? Se eu acredito em superstição?! Eu não! Estou fora! Afinal, isso dá um azar danado!! A propósito, o Dr. Paulo Machado de Carvalho foi justamente homenageado pela Prefeitura de São Paulo, que batizou o Estádio Municipal do Pacaembu com o seu nome. Cá pra nós, êta terninho marrom poderoso!!!!

Boa leitura.

O Editor.



Idade de ouro

*Por Pedro J. Bondaczuk

A humanidade, ao longo de tempo, geração após geração, sonha com o retorno de uma hipotética e suposta Idade de Ouro, que teria existido no início da aventura humana, que teria sido caracterizada pela inocência e felicidade. Claro que me refiro àquela parcela que pensa e não à imensa massa cuja única preocupação sempre foi, é (e temo que continuará sendo) a de meramente sobreviver, enquanto lhe for possível, e se reproduzir freneticamente, para que sua descendência aja exatamente da mesma forma, enquanto a espécie existir.

Tenho, comigo, que esse período de bonança e paz de fato existiu. Caso contrário, o inconsciente coletivo não traria, gravada, essa aspiração, que independe de povo, cultura ou crença. Nossa civilização, a judaico-cristã, nos fala, por exemplo, de um “Jardim do Éden”, em que o casal primitivo, Adão e Eva, teria vivido por um período que não se sabe de quantos anos (talvez séculos, quiçá milênios), antes de perder a inocência, ao pretender conhecer os segredos que o Criador lhes havia interditado. Esta, para nós, seria a decantada Idade de Ouro que seria repetida no final dos tempos.

A Mitologia Grega também fala dessa tão sonhada era. Situa-a, inclusive, no reinado de Cronos, a segunda dinastia dos seus deuses. Teria sido sob o seu comando que a humanidade haveria experimentado a felicidade plena, sem malícias e sem cobiça. Tratar-se-ia de uma época perfeita, sem violência e injustiças e, sobretudo, com fartura de alimentos, abundantes não somente para pequena parcela de privilegiados (como ocorre hoje), mas para todos, indiscriminadamente, sem nenhuma distinção.

Esta, aliás, foi a razão de eu ter adotado, simbolicamente, este personagem mitológico como uma espécie de metáfora do tempo (como outros tantos já fizeram, há milênios e ainda fazem mundo afora, não havendo, portanto, nenhuma originalidade da minha parte), em meu livro “Cronos & Narciso”. Para quem não conhece esse mito, peço licença para reproduzi-lo, posto que resumidamente. E, para quem tem conhecimento dele, por favor, não me leve a mal por buscar lhe refrescar a memória.

Cronos (conhecido como Saturno, entre os romanos) era o mais novo dos seis grandes titãs. Era filho de Urano (o céu) e de Gaia ou Geia (a terra). Para assumir o comando do universo, como o primeiro rei dos deuses, precisou destronar o pai. E fez um reinado tão hábil e competente, que foi ao longo dele que a humanidade conheceu a tão desejável Idade de Ouro.

Cronos, a rigor, assumiu o trono não por nutrir eventual ambição de poder. Foi por instâncias da mãe. Não tomou, pois, sozinho, nenhuma iniciativa nesse sentido. É verdade que mais tarde tomou gosto pelo mando. Mas esta já é uma outra história...

Aborrecida com o fato de que, cada vez que tinha um filho, Urano o devolvia ao seu ventre, Gaia tramou com Cronos contra o marido para evitar que ele continuasse agindo dessa maneira. Incitado pela mãe e ajudado pelos outros cinco titãs, seus irmãos, esperou, determinado dia, que o pai dormisse. E quando isso aconteceu, castrou-o, com uma foice. Essa castração resultou na separação do céu e da terra.

Dos testículos de Urano, atirados ao mar, formou-se uma espuma de esperma da qual emergiu Afrodite, deusa do amor. Cronos, então, ocupou o lugar do pai e casou-se com a irmã, Réia. Vivia, porém, aflito em decorrência de uma profecia que dava conta de que teria destino semelhante ao de Urano. Ou seja, seria destronado por um de seus filhos.

Para evitar que isso ocorresse, resolveu se precaver. Como? Engolindo todos os filhos que Réia lhe gerava imediatamente após o nascimento. Fez isso em cinco oportunidades. Aliás, essa foi a principal razão dele ser associado ao tempo. Afinal, este devora, sem cessar, todos os instantes (seus filhos), fazendo com que praticamente não exista presente. Mal este nasce e, em infinitésimos de segundos, já se transforma em passado.

Cronos, contudo (pelo menos na mitologia) se deu mal com essa tática. Réia conseguiu enganá-lo, assim que lhe nasceu o sexto filho, Zeus. Deu ao marido, para que este engolisse, uma pedra, embrulhada em um pano, que ele engoliu, sem perceber o engodo, achando que se tratava do recém-nascido.

O bebê, por sua vez, foi ocultado em uma caverna da Ilha de Creta. Ali, Zeus cresceu e um dia retornou ao Olimpo. Antes de destronar o pai, fez com que este vomitasse seus cinco irmãos que havia engolido: Deméter, Hera, Hades, Héstia e Poseidon. Depois, desterrou Cronos e os titãs, seus aliados, para a distante e terrível região do Tártaro, de onde nunca mais saíram.

Todos os povos têm lendas e mitos parecidos com este, em que se fala de uma esplêndida e radiosa Idade de Ouro. Nada, porém, sobrevive por tanto tempo, se não tiver um mínimo fundo de verdade. Desconfio que este seja o caso. Só não é possível determinar quando, como e onde isso teria acontecido.

O sociólogo francês, Raoul Girardet, escreveu o seguinte, a respeito, em seu livro “Mitos e Mitologias Políticas” (Editora Companhia das Letras): “A visão da Idade de Ouro confunde-se irredutivelmente com a de um tempo não-datado, não-mensurável, não-contabilizável, do qual se sabe apenas que se situa no começo da aventura humana e que foi o da inocência e da felicidade”. Mas, minha intuição me diz que ela, de fato, existiu. Porém, igualmente me adverte que jamais será reproduzida. A humanidade perdeu, para sempre, a inocência e com ela fechou, em definitivo, as portas da felicidade e da plena justiça. Uma pena...

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” –http://pedrobondaczuk.blogspot.com



O louco e as formigas

* Por José Paulo Lanyi

Certa tarde no Ibirapuera. Eu, o meu cachorro, uma árvore. Dez passos à frente, um sujeito, olhos na terra, para lá e para cá...

I

Louco
Tela cubista no outono do parque
Mendigo de óculos de cordinha
Meu tio, me parece
Louco ou mendigo
Meu tio
De óculos
E cordas
Passos atrás,
Eu
Beira de árvore
Louco ou mendigo?
Cachorro sentado
Silêncio
Cabeça vazia
Estranho
Assim
Não sou
Quietude inquietante
Assim não sou
Louco sem olhos
Observa sem ver
Algo ali mais
À frente
Em pé, curvo
No chão, os seus olhos
Mendigo, talvez
Quem não vê não existe
O chão lhe existe
Ramo nas mãos
Poema na terra
Anchieta na terra de Nóbrega


II

Mendigo
Roupa puída
Calça marrom
Mangas, barba, tudo o mais às cinzas
Eu não existo
O chão é pequeno
Expande-se
Anda com ele
Ramo nas mãos
De lá nada vejo
O louco
A terra
A brincar
Com terra
Louco não enxerga
O homem e o cão
Andar e sorrir
A terra parada
Andar e sorrir
O ramo nas mãos
Os olhos no chão


III

Louco
Mendigo
Existo
Pra mim
Não olha
Pra mim
Os olhos ao longe
O peito a bater
Não olha
Não vê
Estranho
Pra mim
Existe
Pra ele
Eu morto
Pra ele
Não sei
Pra mim
Não serei
Pra ele
Louco, mendigo, meu tio
Preciso saber...


IV

Que fazes?
Formigas
A trilha
As folhas
As costas
Formigas?
As folhas
A trilha
As costas
A trilha?
Formigas
As costas
Que fazes
Das costas
O peso
Da vida
O homem
Do peso
Formiga
Com todas
Sem peso
O ramo
As mãos
Esfolheiam
O chão
Sem peso
Eu vejo
E procuro
Que fazes?
Pedreiro
A vida
Operária
Formiga
E outras
Na vida
Domingo
Aqui mesmo
Lamento
Então
Minha vida
Formiga
Comigo
Sem peso
Formiga
Sem folha
Domingo
Sem viço


V

Louco
De mim
Rico
Das folhas
E flores
De todos
Que vi
E cegos
Me viram
E surdos
Ouviram
Do tronco
O jorro
O sangue
Miséria
Estanque
Dos anos
Sangrios


VI

Nem trilha...
Nem nada...
Formigas
E folhas
Sem cordas
Nem louco
Sem nada
Contudo
Feliz

* Jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe" e da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog), todos da editora O Artífice. Compõe música clássica com o paulistano Flávio Villar Fernandes.



Importância do "Não Sei"



* Por Max Gehringer

Se você ainda não sabe qual é a sua verdadeira vocação, imagine a seguinte cena:
Você está olhando pela janela. Não há nada de especial no céu, somente algumas nuvens aqui e ali...





Aí chega alguém que também não tem nada para fazer e pergunta:
- Será que vai chover hoje???




Se você responder "com certeza". a sua área é Vendas. O pessoal de Vendas é o único que sempre tem certeza de tudo.


Se a resposta for "sei lá", estou pensando em outra coisa então a sua área é Marketing. O pessoal de Marketing está sempre pensando no que os outros não estão pensando.




Se você responder "sim, há uma boa probabilidade de chover" você é da área de Engenharia. O pessoal da Engenharia está sempre disposto a transformar o universo em números.


Se a resposta for "depende" você nasceu para Recursos Humanos. É uma área em que qualquer fato sempre estará na dependência de outros fatos.



Se você responder "ah, a meteorologia disse que não" você é da área de Contabilidade. O pessoal da Contabilidade sempre confia mais nos dados no que nos próprios olhos.




Se a resposta for "sei lá, mas por via das dúvidas eu trouxe um guarda-chuva" seu lugar é na área Financeira. Eles devem estar sempre bem preparados para qualquer virada do tempo.


Agora, se você responder "não sei", há uma boa chance de que você tenha uma carreira de sucesso e acabe chegando à diretoria da empresa.



De cada 100 pessoas, só uma tem a coragem de responder "não sei" quando não sabe. Os outros 99 sempre acham que precisam ter uma resposta pronta, seja ela qual for, para qualquer situação. "Não sei" é sempre uma resposta que economiza o tempo de todo mundo, e predispõe os envolvidos a conseguir dados mais concretos antes de tomar uma decisão.



Parece simples, mas responder "não sei" é uma das coisas mais difíceis de se aprender na vida corporativa.



- Por quê? ... Eu sinceramente "não sei".




• Escritor e administrador de empresa





Razões do coração

* Por Alex Brasil

Meu coração de Adão,
caído diante da serpente.
Meu coração de rei Davi,
por Bate-Seba batendo cegamente,
surrealista como o de Salvador Dali.
Meu coração de Orfeu,
no inferno por Eurídice.
Meu coração de Prometeu,
irmão dos fracos, maldito filho de Zeus.
Meu coração de Camille Claudel,
morrendo enlouquecido de amor
na mesma dor de Julieta e Romeu.
Meu coração de Madame Bovary,
amante, sem juízo,
selvagem como o de Peri,
egoísta como o de Narciso...
Ah, esse coração sem razão,
cheio de suas razões,
suicida feito zangão,
escravo de todas as tentações.
Ah, esse coração de Dom Quixote,
desvairado e insensato,
que vive na morte, que justifica todos os atos...
Ah, aonde me levas, coração –

* Poeta, publicitário e membro da Academia Maranhense de Letras. Tem duas dezenas de livros publicados