quinta-feira, 31 de dezembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Sonhando alto demais

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Em busca de motivação”.

Coluna Aventuras em Paradoxo – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Um sonho”

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Uma companhia para o Ano Novo”.

Coluna Contradições e Paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica “Feliz 1984”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema “Parceria”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Sonhando alto demais

Caríssimos leitores, bom dia. Espero que neste último dia de 2009, antes mesmo de se disporem a assistir à tradicional Corrida de São Silvestre e muito mais antes de iniciarem seus preparativos para o reveillon, vocês dêem uma passadinha por aqui e se deliciem com o “cardápio” que lhes preparei.
Nesta véspera de 2010, repito, mais uma vez, o que já se tornou hábito (creio que saudável), por aqui, que é o de responder às consultas de leitores e registrar, portanto, com grande satisfação, o e-mail da leitora Maria Inês Gonçalves, que me faz uma espécie de provocação.
Escreve, a referida freqüentadora do nosso espaço: “Se você tivesse uma varinha mágica, que aliás foi o título da sua crônica anterior, que transformasse em realidade tudo o que deseja, o que você mudaria em 2010?”.
São tantas coisas, Maria! Primeiro, recorreria a uma espécie de clichê. Acabaria com todas as guerras e controvérsias e instalaria a paz no mundo. Sou exagerado, não é mesmo? Mas... já que é para sonhar, vamos sonhar superlativo.
Outra coisa que faria seria a de reverter o fracasso da conferência mundial sobre o clima, realizada recentemente em Copenhague, e torná-la um decisivo e inquestionável sucesso. Faria com que todos os estadistas, sem exceção, se comprometessem (e cumprissem, claro) com a preservação do meio ambiente. Essa atitude, queiram ou não, é a única forma de livrar o mundo da catástrofe que se avizinha.
Minha “varinha mágica” reduziria, drasticamente, as desigualdades econômicas e sociais mundo afora, atualmente gritantes e aberrativas e, com isso, a violência em todos os níveis, se não fosse eliminada por completo , seria reduzida a índices muito próximos de zero.
Em termos de Literatura, aliás o assunto de verdade deste espaço, faria com que algum escritor brasileiro (e são tantos os que merecem) finalmente conquistasse o Prêmio Nobel. E por que isso? Porque uma conquista desse porte implicaria na valorização de todos que, como nós, se dedicam às letras. Esse sucesso, certamente, “respingaria” um pouquinho em todos nós, em mim, em você, em fulano, em sicrano e assim por diante.
Como você vê, Maria, sou ousado em meus desejos. Afinal, sou poeta e os poetas enxergam o mundo sob um prisma muito mais grandioso ou, pelo menos, não tão banal quanto a maioria o vê.
Quer saber de mais um dos meus sonhos, que tornaria em realidade? Minha “varinha mágica” faria com que todas as editoras do País publicassem pelo menos um livro de poesias, mas de poetas brasileiros, principalmente dos novos, que batalham tanto por espaço, buscando seu lugar ao sol. Seriam, pois, mais de cem os publicados, o que é muito melhor do que ocorre hoje, quando praticamente não há nenhuma publicação do gênero.
Mas meu sonho é ainda mais ousado. Nele, as editoras não se limitariam, meramente, a publicar esses livros, mas fariam todo empenho possível para que eles chegassem às mãos de milhões de leitores espalhados por este país-continente. Somos 192 milhões de brasileiros. Se desse total, pelo menos vinte milhões tivessem acesso a essas publicações, tudo, certamente, seria muito melhor do que é hoje no Brasil.
Finalmente, Maria, cito somente mais um desejo que transformaria em realidade, embora tenha uma lista enorme deles, tão extensa que não caberia de forma alguma neste espaço. Este último, que quero citar, é o de que as cestas básicas, destinadas às pessoas carentes, incluíssem pelo menos um livro por mês.
Mesmo que quem as recebesse não viesse, num primeiro momento, a ler (ou por serem analfabetos ou por não gostarem de leitura), aos poucos seriam vencidos pela curiosidade. E quando nos déssemos conta, até inconscientemente, acabariam por adquirir esse saudável hábito, principalmente as crianças dessas famílias, o que transformaria para melhor as suas vidas.
Mas o sonho todo especial, que concretizaria num piscar d’olhos (ou num agitar da “varinha mágica”), seria o de ver todos vocês, colunistas, colaboradores, seguidores e visitantes do Literário, prósperos, felizes e realizados, não somente em 2010, mas em todos os anos da vossa vida.

Boa leitura.

O Editor.



Em busca de motivação

* Por Pedro J. Bondaczuk


A passagem de um ano para outro é sempre o momento oportuno para fazermos um balanço dos 365 dias que terminaram e apurar qual foi o saldo, se positivo ou negativo. Caso estejamos com saúde e festejando o instante com a família, os amigos e até com estranhos, em casa, num clube ou na praia, numa dessas tantas festas de reveillon, será um ótimo sinal. Ou seja, será segura indicação que, por mais fracassos e desilusões que tenhamos eventualmente experimentado, o saldo do ano que passou foi positivo.

Em geral, não atentamos para isso e não valorizamos esse aspecto. Queremos, muitas vezes, o que está absolutamente fora do nosso alcance, além das nossas forças e capacidades, e nos frustramos. Consideramo-nos perdedores inveterados, sem atentar para a infinidade de vitórias que obtivemos que, somadas, compõem um êxito imenso, sem tamanho.

Carecemos de motivação para encarar o novo ano, mas torcendo para que seja um de muitos. Afinal, por mais amargos e pessimistas que sejamos, tememos a morte. E com razão. Apegamo-nos a tudo o que possa sugerir, mesmo que de longe, “sorte”. Fazemos simpatias caseiras de toda a espécie, recorremos ao horóscopo na tentativa de antecipar sucessos e alegrias, enfim, trocamos votos e juras de amizade, eufóricos e esperançosos. É errado proceder assim? Claro que não!

Errado é apostar na desgraça e na infelicidade. É começarmos um novo ano com coração e mente repletos de dúvidas e de temores. É não vermos alegrias e nem graça nenhuma na vida. É encararmos o mundo como um vale de lágrimas, de violência, sofrimento e dores, sem sequer atentarmos para o fato de que bilhões de pessoas ao redor do Planeta têm motivos reais para a amargura e o desespero.

Milhões não têm sequer o que comer, nem abrigo seguro, vivendo em acampamentos de refugiados. Milhares e milhares estão encerrados em leitos de hospitais, ou em prisões, ou em asilos e orfanatos e vai por aí afora. Estes sim têm motivos de sobra para lamentar e se desesperar. E, ainda assim, boa parte dessas pessoas, não importa quantas, não abre mão da esperança.

Pense nisso, amigo, antes de desfiar um rosário de lamentações por causa de pequenos fracassos, que sequer são definitivos e ademais têm reversão. Motive-se. Aceite o desafio da vida e transforme esses ínfimos insucessos em grandiosas vitórias. Se for necessário iludir-se, para sentir-se feliz, iluda-se.

Os sisudos pensadores, que põem pose de realistas e que assumem ares de sumamente racionais, também se iludem, embora neguem e se irritem quando alguém lhes faz essa observação. Todos, de uma forma ou de outra, nos iludimos. Afinal, como diz a letra da canção que serve como um dos temas da novela “Viver a vida”, da Rede Globo: “a vida é uma grande ilusão”. E não é? Da minha parte, acho bom que o seja.

Faça planos, muitos e ousados, mas não se esqueça deles tão logo termine este período de festas, já na segunda-feira. Empenhe-se na sua concretização. E, se não conseguir, não se aborreça e nem se diminua. Milhões de pessoas, muitas das quais muito mais bem preparadas do que você, também planejam e pouquíssimas conseguem sucesso no que planejaram.

Se as coisas não deram certo, faça o seguinte: no próximo final de ano, faça um criterioso balanço da sua conduta e busque descobrir em qual (ou quais se for o caso) ponto você falhou. Refaça seu plano para o ano seguinte e volte a empenhar-se por sua concretização. Faça isso quantas vezes, ou quantos anos, isso for necessário.

Mas nunca se desespere com o que você pode interpretar como fracasso. Às vezes nem é. E mesmo que for, você ficará ainda no lucro: terá encontrado motivação para viver bem e por um período muito extenso da sua vida, quiçá por ela inteira. E isso, caro amigo, mesmo que você discorde, ou relute em concordar, significará um ganho imenso. É algo que não tem preço.

Li, recentemente, um texto de Johann Wolfgang von Goethe, que cabe como uma luva para ilustrar o que quero transmitir nesta passagem de ano. O gênio literário alemão observou em determinado trecho: “Se tomardes a vida com excessiva severidade, que atração tem? Se a manhã não vos convidar a novas alegrias e se à noite não esperardes nenhum prazer, valerá a pena vestir-se e despir-se?”. Pois é, amigo, responda com sinceridade: valerá a pena? Claro que não!

Estenda essa suavidade em encarar a vida para todos os dias, sem exceção, do ano que se inicia. Vá mais longe. Não tema em ser exagerado. Adote essa conduta não apenas para o novo ano, mas para todos os que vier a viver. Motive-se e seja feliz!!!

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com




Um sonho

* Por Fernando Yanmar Narciso


Aquele dia em nada lembrou o cotidiano. Os carros não saíram da garagem, os ônibus e caminhões não trafegaram pelas avenidas. Ninguém trabalhou, nenhuma engrenagem que move o país se movimentou. Não. Tudo o que ouvíamos eram passos. Uma marcha, a maior talvez da história da humanidade. Em cada cidade, cada estado, cada fazenda, todas as pessoas saíram de suas casas, de seus afazeres e se puseram a caminhar.

O som dos passos era tão alto que ecoava nas montanhas e fazia o chão tremer. Todos nós. Homens e mulheres. Crianças, adolescentes, adultos e idosos. Pedreiros e economistas, mendigos e empresários, religiosos e ateus, pudicos e tarados, acanhados e exibicionistas, policiais e traficantes, corintianos e palmeirenses, flamenguistas e vascaínos, Galo e Raposa. Yin e Yang.

Nesse dia, todas as barreiras que amamos depositar diante de nós caíram por terra. Todos os corações brasileiros tornaram-se um só. Continuávamos marchando e marchando, como se todos tivéssemos ensaiado a vida inteira para esse momento. Marchando e marchando. Nenhum obstáculo ousava se opor a nós. Bolhas nos pés não eram nada. A distância não importava. Fome, sede, frio, calor e mortes no caminho logo eram superados. Cada brasileiro sabia que estava fazendo parte de uma coisa muito especial. Todos andávamos como zumbis, enxergando nosso objetivo cada vez mais adiante.

Céu sem nuvens, esculturas estranhas por toda parte, edifícios futuristas de gosto duvidoso, o ar seco perfurando nossas gargantas. Enfim, todas as pessoas do país haviam atingido seu objetivo: O centro do país. O lugar onde o drinque era misturado. Onde gente da pior espécie brinca com nossos destinos como fichas numa mesa de pôquer. O primeiro berro foi ouvido do fundo da majestosa fila.
- QUEREMOS O QUE É NOSSO!

A comoção foi geral. Ouviu-se a maior vaia já registrada em decibéis na história do mundo. Puderam nos ouvir de pólo a pólo no mundo. Logo, gritos e cantigas ufanistas foram ganhando coro na massa de pessoas. Ergueram os primeiros cartazes reprovadores. FORA! NÃO QUEREMOS MAIS SABER DE VOCÊS! SEU TEMPO JÁ PASSOU!- era o que diziam.

Forcas improvisadas circulavam sobre nossas cabeças como astros de rock pulando na galera. Veio uma lágrima no rosto de cada um de nós quando ergueram a primeira tocha e o primeiro pedaço de pau. Os homens da lei nada podiam fazer contra 140 milhões de pessoas. Todos estavam ao redor do palácio, tremendo de medo de nós, tentando dar cobertura para o mandatário maior da nação. Todos os políticos que arriscavam uma negociação recebiam o que mereciam.

Os seguranças ao redor do palácio nada mais podiam fazer para conter a multidão. A manifestação havia, enfim, se transformado em uma guerra. Todos aplaudimos quando o primeiro de nós conseguiu romper a barreira humana e invadir o palácio.
-Venha, nosso rei! Venha receber um abraço caloroso de seu povo!

Todos arremessaram tijolos e pedras contra as vidraças. Um arremessou a forca sobre o lago para servir de ponte. Não existia mais nada entre o povo e seu país. O homem não podia mais escapar de seu destino. Interditamos todas as escadas e elevadores. Ele se tranca em seu gabinete. Mas o que é uma porta entre milhões e um só homem? Assim que conseguimos arrombar a porta, ele abriu a janela e ameaçou se jogar do vigésimo andar.

Aí eu acordei.

* Fernando Yanmar Narciso, 25 anos, formado em Design, filho de Mara Narciso, escritor do blog “O Blog do Yanmar”, http://fernandoyanmar.wordpress.com




Uma companhia para o Ano Novo

Conto

* Por Gustavo do Carmo

Dez... Nove... Oito...
— Sete... Seis... Cinco...
— Quatro... Três... Dois... Um...
— FELIZ ANO NOVOOOO!!!!!

Gilmar, Lopes e alguns amigos celebram juntos a entrada do ano novo. Estouram uma garrafa de champanhe que bebem no gargalo. Cantam em coro a tradicional música “Adeus Ano velho! Feliz Ano Novo! Que tudo se realize no ano que vai nascer...”. Assistem à queima de fogos feita na praia. Os fogos de artifício fazem os mais diferentes desenhos. E também os tradicionais coqueiros e corações.

Passada a primeira meia hora do novo ano, o espetáculo pirotécnico se encerra. Lopes e seus amigos finalmente terminam o que tinham começado: espancam Gilmar a socos e pontapés como um acerto de contas pela dívida de jogo que o rapaz tinha com o cassino de Parlattore, chefe de Lopes que o mandou seqüestrar o caloteiro e acertar as contas em uma ilha deserta.

Lopes e seus capangas deixam a ilha na lancha do patrão. Gilmar, com o rosto inchado e ensangüentado agoniza feliz, pois teve companhia para receber a chegada do ano novo, o que não acontecia há dez anos, desde que foi expulso de casa.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores



Feliz 84

* Por Marcelo Sguassábia


Quero falar de uma coisa
Adivinha onde ela anda

Voltar ao nunca mais daqueles dias não estava no programa, mas aconteceu e foi bom, mesmo que nunca mais seja. Por obra e graça de um gatilho involuntário, o disparo acidental de um cheiro, uma cor, frase ou trecho de canção.

Quem sonhou, só vale se já sonhou demais
Vertentes de muitas gerações

João Amazonas vem aí, Abaixo a Ditadura. Teotônio Menestrel das Alagoas, MR8. Ontem mesmo o Plínio Marcos esteve no DA da faculdade, vendendo e autografando o livro mais recente. Chinelo de couro, bermuda, a camiseta curta deixando a barriga de fora. “Quatro anos sem Lennon, dois anos sem Elis – Tributo aos nossos ídolos”, anuncia um cartaz pregado num poste próximo ao prédio de Letras da PUC.

It’s time to spread our wings and fly
Don’t let another day go by, my love

Não, nenhum dia há de nascer sem ser vivido avidamente. Ainda é cedo, cedo, cedo. Não me imagino escutando “A bênção, vô” nem respondendo “Deus te abençoe, durma bem”. Quero que guardem de mim essa cara de travesso ainda sem vincos, esse cabelo em desalinho e 100% castanho-escuro.

Ela é só uma menina, e eu pagando pelos erros
Que eu nem sei se cometi


Tantos meninos e meninas que éramos, com aquela libido toda saindo pelo ladrão. Campinas ainda indecisa de virar metrópole, se espichando sem controle, mas com o salto alto de uma quase-capital. O Convívio da 13 com mesinhas, garçons e famílias a passeio. Shopping era só um e não arranhava o glamour do centro a ostentar a Muricy, a Mesbla, a Sears.

Da janela lateral do quarto de dormir

Fiz um sanduíche com o que tinha e fui comer na janela do apartamento, olhando o povo em zigue-zague lá embaixo. São precisamente dez pras cinco no relógio Champion de plástico com pulseiras intercambiáveis, cada uma de uma cor. As migalhas caindo devagarinho. Melhor assim, um prato a menos pra lavar. Além do mais o detergente está no berro. Deito e retomo o “Feliz Ano Velho”, página 96.

Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo
Agora há tanta vida lá fora, aqui dentro

Às vezes, a vontade de sair num fim de tarde. Tomava um banho e ia, caminhando entre as palmeiras imperiais em frente à Praça Carlos Gomes. Um hippie de chapéu de feltro escuro e lugar cativo ali na feira de artesanato, o velho Paulinho Bom-Ar, com seus broches, brincos e colares esticados na flanela, gastava a vida torcendo ferrinhos com alicate bico fino. A originalidade daquela figura era a peça mais rara do mostruário. Era o busto em carne e osso lá da praça.

Quem me levará sou eu, quem regressará sou eu

Que papo estranho o daquele taxista, puxando conversa comigo enquanto me levava do Largo do Rosário pra rodoviária.

- Diz que daqui a uns dois anos vem um tal cometa de Halley. Tá falando aí no jornal de hoje, tem uma matéria boa, se quiser dar uma olhada...

Vai passar, nesta avenida um samba popular

Mas não passaram as Diretas no Congresso. Calma, gente. O João Batista jurou fazer desse país uma democracia, só não disse quando. A noite vem e agora são dois Chicos. O Buarque na vitrola e o Anysio na telinha.

Chove lá fora e aqui faz tanto frio, me dá vontade de saber
Aonde está você

Tem meia maçã na geladeira. Nem lembrava mais dela, escondida atrás do leite longa vida. Abro a veneziana e espio a cidade acesa. De costas pra televisão, ouço o apresentador do Jornal da Globo chamar o Paulo Francis, de Nova York. Sem me dar conta de que aquilo que passava, na TV e na janela, um dia seria história. A do mundo e a minha.

* Redator publicitário há 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”




Parceria

* Por Flora Figueiredo


Ficamos assim:
você joga as queixas no telhado,
eu ponho as manias de lado,
você lava a escadaria,
eu rego o jardim.

Podemos varrer juntos
as nódoas secas aderentes ao passado.
Se você se habilita, eu me disponho,
num desafio à desdita.

Você acende a luz,
eu desempeno o sonho,
enquanto você ensaia o passo,
eu troco a fita.

Na mesa torta, a toalha colorida.
O resto é fácil: basta mandar flores
ao futuro,
derrubar o muro
e acreditar na vida

* Poetisa

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Momento de fazer um balanço

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Página virada”.

Coluna Jornalista do Sertão – Seu Pedro, crônica “Vi porque as janelas estavam abertas”.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, crônica “Aurinha canta, grita. A vizinhança agradece. É o coco de praia...”

Coluna Da vida e outras mumunhas – Marcos Alves, poema “A lua deitada sobre o Carlos Prates”.

Coluna Porta Aberta – Cândido Rolim, poema “Minúcia”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Momento de fazer um balanço

C
aríssimo leitor, boa tarde.
Este penúltimo dia de 2009 é um momento oportuno para você fazer uma espécie de balanço, uma criteriosa avaliação do que fez, planejou ou deixou de fazer, de janeiro para cá.
Esse procedimento é útil até para você saber em que pé está sua vida. Essa espécie de retrospectiva, esse tipo de revisão, é oportuníssima principalmente para você detectar os possíveis erros cometidos ao longo do ano, mas não para lamentar, porquanto lamentações são mera perda de tempo, mas para prevenir e não tornar a cometê-los em 2010.
Em contrapartida, é mais do que oportuno relacionar os vários sucessos obtidos e comemorá-los de novo. Certamente, você já os celebrou quando aconteceram. O que é bom, porém, deve ser sempre lembrado, até para servir de parâmetro para a busca de novos e crescentes êxitos.
Da minha parte, não farei nenhum balanço, não formal pelo menos, do Literário. Apenas lembrarei alguns fatos que nos servirão de referenciais no ano vindouro. Em março de 2009, quando celebrávamos nosso terceiro aniversário, fomos surpreendidos pela direção do portal que nos cedia espaço para a publicação dos nossos textos, que nos comunicou que, a partir de então, deveríamos nos transformar em um blog, gerenciado por aquela organização.
Não concordei. Encarei aquela atitude como uma espécie de “despejo”. Após consulta aos colunistas, ficou decidido que nos mudaríamos para “casa própria”, com todas as desvantagens e riscos que isso implicava.
Como eu já tinha um espaço no Blogspot, o meu blog “O Escrevinhador” (que provavelmente vocês desconhecem, pois nunca convidei e nem induzi ninguém a acessá-lo por não gostar de misturar as coisas nem de me valer de determinadas circunstâncias para obter algum tipo de vantagem), transferi o Literário para cá.
A transferência ocorreu em 6 de abril. Confesso que estava cético, na oportunidade, a respeito da nossa continuidade. Não acreditava que a mudança daria certo. Já estava com o espírito preparado para um eventual fracasso do nosso empreendimento e vê-lo morto e sepultado. .
Aos poucos, porém, as pessoas foram chegando à nossa nova casa. O número de seguidores foi aumentando. As “visitas” também cresceram de forma exponencial. E chegamos a esta data, a este 30 de dezembro de 2009, com quase 47 mil acessos, o que não deixa de ser façanha digna de comemoração, se levarmos em conta que se trata de um espaço voltado exclusivamente para Literatura.
Fosse um blog político, esse número seria considerado muito pequeno. Mas, para as nossas características, é uma quantidade muito acima das nossas mais otimistas expectativas. E a tendência, sem dúvida, é a de crescimento.
Não tive tempo, ainda, de contatar a maioria dos freqüentadores do Literário quando ele estava no espaço anterior. Como minhas férias estão próximas, pretendo fazê-lo, tão logo entre no seu gozo.
Tenho certeza que a maioria absoluta passará, também, a freqüentar nossa nova casa (já não mais tão nova assim), a partir do momento que for cientificada da nossa mudança. Essas pessoas acham que o Literário se extinguiu. Felizmente, não foi o que aconteceu, não é mesmo?.
Simultaneamente, aproveito para renovar meu apelo a todos vocês, no sentido de trazerem parentes e amigos para o nosso espaço. Como vocês certamente não se arrependeram de se juntar a nós, tenho certeza que seus convidados também não se arrependerão.
Da minha parte, prometo o mesmo empenho que dediquei até aqui ao Literário e redobrar meus esforços para trazer-lhes sempre o que há de mais atual e da melhor qualidade nesse mundo das letras que tanto amamos.
Continuaremos, por outro lado, com nossas portas abertas, ou melhor, escancaradas, para dar oportunidade a excelentes escritores que, por circunstâncias várias, estão escondidos e sem chances de mostrarem suas produções.
Com a ajuda de todos vocês, tenho certeza de que faremos história. Não tenho dúvidas de que nos constituiremos, se não no melhor, pelo menos em um dos melhores espaços, totalmente voltados para a Literatura, da internet.

Boa leitura.

O Editor.



Página virada

* Por Sayonara Lino

Amanhã, a última folha do calendário do ano de 2009 será mais uma página virada e o ideal seria que nos tornássemos folhas em branco que pudessem conter novas histórias, mais interessantes e significativas.

Sempre considerei a virada do ano um grande acontecimento, onde algo transformador pudesse finalmente ser concretizado, mágoas pulverizadas, rancores dissolvidos, fúrias aplacadas, boa-venturança chegando, trazendo novos desafios com uma esperança turbinada e esse menu de sensações que fazem muito bem aos corações, especialmente os das pessoas mais intensas . Já que sonhar é gratuito e fomenta nossas conquistas, ainda não havia desconsiderado a possibilidade de que tudo isso pudesse de fato realizar-se com uma simples mudança de data.

A tal reforma íntima, a mudança que tantos almejam, não pode ser feita assim, em um piscar de olhos, ou como quem troca de roupa para aguardar a virada em contagem regressiva. É construção paulatina, cheia de percalços, avanços e regressos, alegrias, tristezas e muita obstinação. É necessário tapar os ouvidos às más sugestões, aos comentários alheios de que não será possível alcançá-la. Tais pessoas simplesmente não despertaram para isso.

Minhas ilusões de uma transformação a curto prazo não existem faz muito tempo, mas continuo mantendo viva a esperança de que a cada dia, ainda que errando, a transformação nos impulsione para a concretização do que sempre desejamos ser.

“Cortar o tempo
(Carlos Drummond de Andrade)

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.

Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente”.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Colunista do portal www.ubaweb.com/revista.




Vi porque as janelas estavam abertas

* Por Seu Pedro

São seis horas. O céu já claro e, claro, eu acordado. As janelas de minha sala de trabalho abertas e, por elas, aprecio a volta dos que foram até a praça virar o ano. Alguns e algumas, certamente valeram-se da escuridão na celebração desta célebre noite e os olhares estiveram voltados para os céus, onde espocaram fogos pirotécnicos barulhentos e coloridos, acrescentando às suas emoções uma virada a mais. Mas são seis horas e dez minutos; hora de iniciar esta crônica e tomar um café já meio esfriado na garrafa térmica. Já se foram uma década de minutos!

Mas como lhes digo, lá vinha um casal e eu sem nenhum prazer de vê-lo, via! Impulsionado por minha curiosidade, natural em seres normais, os meus olhares testemunharam um quase ato de sexo em plena luz do dia e em via pública. Ficou no quase, pois saído de uma esquina o carro preto, ocupado por um bando de adolescente e certamente dirigido por um deles bêbado, com uma forte buzinada e uma cantada de pneus espantou o casal. Pelo comportamento, pareciam sentir prazer em ser vistos.

O procedimento do homem quase nunca é convencional, ainda mais em fins de festa, quando as imaginações se fertilizam, a vergonha fica menor, o medo parece fugir. Só quando eu me encontrar com ele na morada eterna, o que talvez aconteça em breve, poderei perguntar a Sigmund Freud o que levou aquele casal ter esperado a luz do dia para que pudesse acontecer o que é mais natural à noite.

Tenho lido livros de psicanálise e confesso que em neles consigo explicações. Estimulo ao prazer, falta de outro local, sem dinheiro para recorrer ao motel, sem-vergonhice, ou loucuras de amor? Como popularmente se diz: “Só Freud explica!”.

E pensar que eu, que acordo de madrugada para respirar o ar da manhã, buscando inspirações para meus textos, fortuitamente fui plenamente inspirado nesta primeira crônica do ano. O casal ia de encontro à lei, a lei foi criada pelo homem, se os “homens” flagram aquele momento?

O casal iria conhecer a lei ou os “homens” iriam conhecer a carteira de dinheiro do homem? Diante de um recheio de dúvidas, já passam das sete horas, parei para passar manteiga no pão dormido, afinal o padeiro também merece revellion. E conclui que o melhor é não abrir as janelas.

* Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.












Aurinha canta, grita. A vizinhança agradece. É o coco de praia...

* Por Marco Albertim

E
la é negra, tem os cabelos esvoaçantes como convém a toda coquista; a voz é rascante, convincente. Não se queixa de virar a noite puxando sambadas. No batismo, puseram-lhe Áurea da Conceição de Assis, mas é conhecida como Aurinha do Coco; do coco de raízes, de Xambá, de praia, de roda, de embolada, de umbigada. Ainda menina, no Amaro Branco, em Olinda, aprendeu a dar as boas-vindas aos mestres pescadores nas rodas de coco. Quando a pesca era farta, então... Logo lhe descobriram o dote da voz. Aos 15 anos, integrou os corais São Pedro Mártir, de Olinda; e o Madrigais, de Recife. Não se conformou no diapasão clerical, inda que no abrigo de uma imagem barroca de santo. Foi para o Largo do Amparo, encontrou-se com Selma Ferreira da Silva, a Selma do Coco. Apaixonou-se por Zezinho, filho de Selma. Viveu treze anos com ele, teve duas filhas. Lembrou-se das primeiras coquistas que lhe ensinaram os ritmos: Ana Lúcia, Margarida; mas a que mais povoa seu imaginário popular é a negra Jovelina, cuja profissão não se lembra mais. Aurinha largou Selma aos 35 anos, para formar sua própria banda, a Quebra-Coco. Durou seis meses, mudou os integrantes e o nome. Aurinha tem 58 anos com forças suficientes para fazer sobreviver, como mestra, o grupo Rala-Coco.

“Quando resolvi criar minha banda, Selma não gostou. Disse que era inveja... Eu fiquei com tanta raiva que pensei em me vingar. Fui dormir e tive uma ideia: Eu vou fazer um coco pra Selma, vou dar a resposta a ela cantando!

“Sua mãezinha fez
Tanta maldade comigo
Será... será
Que eu mereço esse castigo?
Dancei muita gafieira
Dancei o regae
E o baião
Até dancei ciranda
Com o copo na mão
Não tenho inveja de nada
Gosto mesmo é de cantar
Cantando coco de roda
Até o dia clarear

“Mas ela não entendeu. Ela só veio entender numa entrevista que eu dei na televisão. Continuo gostando dela, porque ela é minha mestra, minha rainha. Eu venho dela! Hoje ela dá a maior força ao meu trabalho.”

Aurinha tem dois cedês gravados com o patrocínio da Chesf. Considera o percussionista Naná Vasconcelos seu padrinho. Tanto Naná quanto Alceu Valença participaram da gravação dos dois. “Naná faz percussão até com a boca!” – ela reforça, como se o artista estivesse de seu lado, seguindo-a no ritmo.”Aurinha roda a saia em todos os sotaques do coco”, depõe o próprio Naná, enumerando os vários gêneros do ritmo. Ela mora num beco estreito que tem o nome de um coronel desconhecido. A distância paralela das casas é de apenas três metros. Quando tem apresentação, ensaia no fim da tarde. Sem abdicar do ofício de mestre, junta-se a Valéria, 40 anos, vocalista que faz o ganzá chorar; Daina, 25, vocalista; Jaene, 26, também do coral; Andreza, 28, coral e percussionista; Kauã, 19, caixa; Bala, 28, congas; Denis, 20, alfaia; Diego, 21, percussão e produção; Wellington, 33, ganzá. Cantando, Aurinha dirige-se a Valéria, “porque ela é a que tem mais experiência e canta na Orquestra Popular da Bomba do Hemetério!” Ninguém conheceu o coronel cujo nome está na placa da rua, mas todos sabem que ali é o beco do coco de roda. A artista não se preocupa nem com o bêbado que se equilibra mal descendo a ladeira, junta-se ao coral e dança num passo trôpego. Ela ri, pede que ele se sente no batente da casa, enquanto a vizinhança, esquecida do aparelho de rádio num canto de cada sala, ouve-a cantando o coco de raiz, a variação da preferência de Aurinha. Escolhida entre os 24 artistas selecionados para se apresentar na Feira de Música, mal esconde a vaidade para dizer que o figurino de toda a banda foi desenhado pela estilista Sara Paixão, que a acompanha “há um ano e meio.”

O segundo cedê tem o título de Seu grito, e critica a violência sobre as mulheres:

Seu grito silenciou
Lá no alto em Olinda
Era uma mulher tão linda
Que a natureza criou

A dois quarteirões de sua casa, mora Selma do coco. Com 79 anos, Selma não conversou com a reportagem porque se deitara após dilatar as pupilas com o médico oftalmologista. O filho, Zezinho, ex-marido de Aurinha, diz que a mãe “é comendadora da cultura”, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, e sobrevive com os 750 reais mensais “porque consta como patrimônio vivo da cultura.” O benefício é concedido pela Fundarpe. Zezinho tem 51 anos, segue a mãe nas poucas apresentações do grupo. Queixa-se de que a banda é pouco chamada para shows. “Qualquer dia eu vou criar a minha própria banda”, desabafa. Selma teve 14 filhos; Zezinho é o único vivo.
Enquanto isso, do beco de Aurinha, ouve-se...

“Sua mãezinha fez
Tanta maldade comigo...”

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.




A lua deitada sobre o Carlos Prates

* Por Marcos Alves

Pela janela vejo a lua deitada sobre o Carlos Prates.
onde jovens movidos a ansiedade e hormönios
produziram noites insones e falas aceleradas,
saraus, loucuras pós-juvenis...

Já com 20 anos passados,
independentes e com um Belo Horizonte ao redor,
a lua deitada sobre o Carlos Prates
tem essa aura de nostalgia sem saudade
nem remorso.
Apenas memória, registro subjetivo
de acontecimentos certos e inusitados,
causa e efeito, ação e movimento
a que estávamos fadados a fazer acontecer.

Sem motivo aparente, a não ser pelo fato
de estarmos vivos,
repletos de sentimentos e expectativa,
coisas da idade.
Mover a roda enquanto o mundo girava
nos levando sei lá para onde.

O mundo deu voltas. Hoje estou a ver
o Carlos Prates pela janela,
quando já nem sonhava voltar.
Amores fugazes, não mais.
Um só, mais ao compasso do coração.
Tantas caminhadas, tropeços,
decepções, recomeços
e, de repente,
a vida torna a surpreender. Essa lua...

A lua se foi. O tempo é inexorável, nós não..
Não sei se a lua é abstrata ou concreta.
A lua é bela.
Efêmera e inigualavelmente
bela
deitada sobre o Carlos Prates

*Jornalista, www.marcos-alves.blogspot.com
.



Minúcia

* Por Cândido Rolim

o vento
arranca sussurros da erva

livre de sombra
e ritmo
a gota
cárcere de luz
parte-se ao meio

* Poeta

terça-feira, 29 de dezembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Ainda é privilégio

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, crônica “Cem anos do primeiro vôo da América do Sul - I”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “O progresso”.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Esperança”.

Coluna Imitação da vida – Laís de Castro, poema “Ainda é tempo”.

Coluna Porta aberta – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema “Das coisas simples da vida”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Ainda é privilégio

Caríssimos leitores, boa tarde.
A leitura sempre se constituiu, na maior parte da História – tanto a mais remota, quanto a moderna e até a recentíssima, que classifico de contemporânea – em privilégio a que pouquíssimas pessoas tinham (e em alguns casos ainda têm) acesso. Durante milênios, por exemplo, era algo impossível, já que sequer havia sido inventada a escrita.
Após essa revolucionária invenção, continuou sendo restrita a um número incipiente de indivíduos, os raros que entendiam os símbolos convencionados (no caso as letras) criados para expressar pensamentos e sentimentos e registrar fatos e informações e que sabiam, portanto, como interpretá-los e utilizá-los.
Ademais, os meios físicos existentes para receber os textos (em princípio rochas talhadas, depois tabuinhas de barro e na sequência papiros, peles de animais etc. até se chegar ao papel como o conhecemos hoje) eram raros. E, portanto, caros.
Mais escassos ainda, por sua vez, eram redatores. E os meios de difusão de textos, muito mais ainda. O livro, tal como o conhecemos, passou a ser difundido em relativamente larga escala apenas a partir de 1442, quando Johannes Guttenberg deflagrou a maior revolução de todos os tempos, com a invenção dos tipos móveis. Só a partir daí, seria “universalizado”.
Isso, todavia, não queria dizer que os escritores, a partir de então, haviam recebido, de bandeja, de mão beijada, vasta clientela a quem destinar suas obras. Havia, ainda, um obstáculo imenso a ser transposto: a alfabetização.
Até meados do século XIX, eram pouquíssimos os que sabiam ler e escrever, e isso em centros bastante avançados cultural e materialmente, como a Europa e os Estados Unidos. No Brasil... a taxa de analfabetismo beirava, então, os 100%.
Hoje, há países em que, virtualmente, já não há mais nenhum analfabeto. Todavia, nem todo alfabetizado é “consumidor” desse produto de tamanha importância. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, onde a leitura é razoavelmente difundida, seu “consumo” está aquém, muito aquém do verdadeiro potencial. Nem todos os que “sabem” ler gostam de fazê-lo.
No Brasil, então, o número de leitores habituais, mesmo que apenas de jornais e revistas (e até os de histórias em quadrinhos), não chega a 10% dos verdadeiramente alfabetizados, que nem mesmo são muitos, porquanto temos que levar em conta os “analfabetos funcionais” (muitos dos quais, até, com diplomas de segundo grau).
A leitura, portanto, foi, por 12 mil anos e continua sendo atualmente (agora por razões diferentes), privilégio para poucos, diria, pouquíssimos. Daí eu não me preocupar muito com quantidade de freqüentadores do Literário, mas com qualidade de frequência.
Quero que haja muitos leitores, sim, e quantos mais, melhor. Porém que sejam conscientes, críticos e que verdadeiramente amem essa aventura do espírito, que tende a melhorar, em todos os sentidos, quem é contaminado por esse bendito “vírus”.
Defendo a necessidade das pessoas lerem todos os tipos de textos que lhes caiam em mãos, mesmo os considerados nocivos por alguns (como os livros do Marquês de Sade, por exemplo, escabrosos e frutos de mente doentia, que chegam a dar engulhos nos mais sensíveis), mas com espírito crítico aguçado, para distinguir valores de vícios; beleza de horror e o sublime do horrendo etc.
O filósofo e político inglês, Francis Bacon, escreveu, a esse propósito: “Há livros de que apenas é preciso provar, outros que têm de se devorar, outros, enfim, mas são poucos, que se tornam indispensáveis e que, por assim dizer, se deve mastigar e digerir”.
Para fazer essa distinção, contudo, faz-se necessário, reitero, ler de tudo. Mas, insisto, essa leitura tem que ser feita com o senso crítico devidamente aguçado, para não se confundir o “manjar dos deuses” com simples excremento e não se “devorar” este último, achando que se está comendo o primeiro.
Tanto quanto ler, é necessário desenvolver a escrita.. Se a leitura continua sendo privilégio para poucos (e a Unesco informa que um quinto da humanidade ainda é constituído de analfabetos), imagine contar com essa habilidade rara e nobre!
É uma bênção, é um talento que não tem preço, mas que deve ser melhorado sempre e sempre e sempre, até se aproximar da perfeição (embora esta seja interdita a nós, humanos). Porquanto o já citado Francis Bacon também observou, com propriedade, sabedoria e lucidez: “A leitura traz ao homem plenitude; o discurso, segurança e a escrita, exatidão”.

Boa leitura.

O Editor.



Cem anos do 1° voo da América do Sul - I

* Por Risomar Fasanaro

O primeiro vôo da América do Sul vai fazer 100 anos no próximo dia 7. E poucos sabem, mas foi em Osasco, município da grande SP, que Dimitri Sensaud de Lavaud, um espanhol nascido em Valadolid, então um jovem e belo rapaz, realizou aquela proeza. O casarão de cujo quintal partiu o avião São Paulo, e que hoje abriga o museu municipal, foi restaurado e deverá receber a visita de pessoas interessadas naquele feito histórico.

Influenciado pelas notícias que chegavam de Santos Dumont em Paris, aquele jovem curioso e inquieto resolveu criar um avião.

Dimitri era filho do francês Evaristhe Sensaud de Lavaud e de Alexandrine Bogdanoff, russa de nascimento que além de tocar piano, violino e mandolina, falava russo, alemão, inglês, francês, espanhol, grego, italiano e português. Dimitri tinha quinze anos, e veio com a família de Paris para o Brasil, e instalou-se em Osasco, no chalé que hoje abriga o museu que recebeu seu nome.

Muito curioso, ele pesquisava tudo sobre aviação. É provável que tenha mantido algum contato com Santos Dumont, pois Victor Brecheret tinha uma casa no bairro de São Francisco, que faz divisa com Osasco, e dizem que Santos Dumont visitava o amigo nessa chácara que hoje é uma escola infantil. É possível que Dimitri tenha se encontrado com o pioneiro da aviação, e decidido que também iria voar.

Em Osasco naquela época havia muitas chácaras. Os modernistas Oswald e Mario de Andrade e Tarsila do Amaral frequentemente passavam os finais de semana no bairro paulistano. Moradores antigos contavam que quando a bailarina russa Isadora Duncan esteve no Brasil, Oswald de Andrade a trouxe e, aqui, ela dançou seminua para ele. Em seu livro “Um Homem sem Profissão” o escritor escreveu sobre esta passagem de sua vida.

Dimitri já era casado quando em 1909, carregando seus rascunhos, se dirigiu à oficina Graiy Martins, que se localizava em frente à estação Júlio Prestes, em São Paulo. Procurava um mecânico habilidoso, capaz de transportar para o metal o seu projeto do motor. Indicaram-lhe Augusto Fonseca, um mecânico experiente, mas como este cobrou muito caro pelo trabalho, ele acertou com Lourenço Pellegatti um jovem de dezessete anos que, apesar da pouca idade, já se destacava como um bom profissional.

No domingo seguinte Pellegatti, que morava na Lapa, foi de bicicleta ao chalé onde moravam os pais do amigo. E já naquele domingo os dois se entregaram de corpo e alma à construção do avião. Era tanto o entusiasmo de ambos, que o jovem mecânico não voltou para casa, deixando seus pais apreensivos. Dias depois seu irmão mais velho o localizava em Osasco, tão preocupado com os rumos da construção do avião, que não se dera conta da apreensão que seu desaparecimento provocaria nos familiares.

O inventor continuava seus estudos e, muitas vezes, contou-nos Pellegatti, nos anos 70, acordava-o em plena madrugada, para mostrar-lhe alguma nova descoberta no projeto em andamento e, se Pellegatti discordava dele em alguma coisa, ele o chamava de burro, com o carregado sotaque francês que adquirira durante a convivência com a família e os vários anos que residira na França. Mas logo depois lhe pedia desculpas ao reconhecer que o amigo mecânico estava com a razão.

O comendador Evaristhe Sensaud De Lavaud, pai de Dimitri, possuía uma oficina mecânica muito bem montada na Cerâmica Osasco, de sua propriedade. No entanto as peças requeriam a utilização de tornos muito delicados que não existiam em sua oficina. Para isso, o inventor recorreu à oficina de reparos de papelão Sturlini – Matarazzo (Adamas do Brasil), localizada na Rua da Carteira, em Osasco, assim denominada porque na época ali se fabricavam carteiras. Atualmente essa rua se chama Narciso Sturlini.

Naquela oficina realizou-se a maior parte do trabalho, mas depois os dois se transferiram para a “Garagens Reunidas”, na Rua Florêncio de Abreu, centro de São Paulo, onde concluíram a construção do aparelho.A montagem final aconteceu em Osasco.

Dimitri e Pellegatti realizaram algumas experiências com o motor, mas foram todas frustradas. Desiludidos, eles abandonaram o projeto por mais de um mês. Algumas peças dos cilindros eram muito delicadas e precisaram ser substituídas para que o motor funcionasse de forma satisfatória. Durante vários dias eles realizaram novos testes e, depois de um trabalho exaustivo tanto na colocação como na regulagem dessas peças, conseguiram alguns resultados positivos.

No dia três de janeiro de 1910, Sensaud de Lavaud, Lourenço Pellegatti e outros auxiliares que, entusiasmados, haviam se associado aos dois naquela tarefa, viram finalmente o motor funcionar ininterruptamente por duas horas.

O Avião

Semelhante a uma libélula, o avião era algo parecido com o “Bleriot”, criado por Santos Dumont. As asas da frente móveis servindo de leme de profundidade mudavam o ângulo de ataque sendo que as asas de trás eram fixas.

Para movimentar o aparelho, o piloto apoiava as mãos sobre as duas alavancas ligadas uma de cada lado do centro de direção, formando eixo como o sarrafo superior do esqueleto, dando às asas movimento independente ou simultâneo.

O piloto acompanhava todos os movimentos do aeroplano. Se este se inclinava para a direita, ele tombava automaticamente para este lado, levantava o braço esquerdo e pressionando a alavanca correspondente, aumentava o ângulo desta asa que passava a ser leme de profundidade, estabilizando o aeroplano. Se pendia para a esquerda o movimento era contrário a este, portanto, o corpo do piloto- era importantíssimo no manejo do aparelho.

Nas curvas para a esquerda abaixava a asa deste lado e levantava a da direita, ao mesmo tempo dando ao leme (cauda do aparelho) um movimento rotativo no sentido da curva a ser realizada. O leme, como os de hoje em dia, era acionado a pedais.

A superfície total do aparelho era de 22 metros quadrados, sendo dezoito m2 das asas dianteiras (móveis) e 4m2 de plano horizontal. (asas dianteiras fixas). A velocidade de sustentação era de quinze metros por segundo, equivalente a 54 km por hora.

(Continua na próxima semana)


* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.





O progresso

* Por Talis Andrade

Vejo a noite e seu cortejo de fantasmas
destruindo os jardins
das casas salvaguardadas da febre imobiliária.

Os jardins transformados
em estacionamentos de carro.

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Esperança

* Por Evelyne Furtado


Em uma tarde em que o calor paralisa o vento e a alma, assim como o corpo, sente saudade, ela contempla lembranças de um ano febril.

Fiel aos sentidos, acentua ou minimiza fatos, conforme as atuais sensações. Também separa a vida da imaginação.

Em gestos que lhe exigem certo esforço ela rasga, guarda, apaga, ressalta, esquece e lembra o que é para ser lembrado.

Já é quase noite, quando aliviando o cansaço, ela prepara um banho com arruda, sal grosso e esperança.

* Poetisa e cronista de Natal/RN



Ainda é tempo

* Por Laís de Castro

Ressaca,
As costas tortas, encurvadas
A vista turva, enevoada
Ressalta
O olhar contínuo sobre os ombros
A flor azul semeada em assombro
O dissabor cantado em displasia

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.



Das coisas simples da vida

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral


Abrir os olhos,
despertar
para um novo
dia abraçar.
Escancarar a porta,
agradecer.
Tocar na chuva,
emudecer.
No silêncio dessa manhã
com o coração puro
e livre do rancor,
conceber uma prece
e enxergar nas pequenas
coisas
o traço do Criador.

* Poetisa e colaboradora do Literário

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Tarde de poesia

Coluna A vida como ela é – Celamar Maione, conto “Almoço de domingo”.

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, crônica “De sua xícara de poesia eu me sirvo”

Coluna Sensibilidade e sutilezas – Aliene Coutinho, conto “Ano novo, vida nova”

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “Sem vaias”.

Coluna Porta Aberta – Mara Narciso, crônica, “Direito à informação”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Tarde de poesia

Caros amigos do Literário, boa tarde.
Ontem, após o tradicional almoço domingueiro com a família, sem nenhuma partida de futebol para acompanhar, neste período de férias dos atletas, e com a maioria (diria a totalidade) dos amigos fora da cidade, no litoral, para aproveitar essa época de festas, resolvi adiantar algumas tarefas.
Umas, são enfadonhas e tomam-me muito tempo, posto que sejam necessárias. Outras, porém, são prazerosas e, em vez de merecerem a designação de “trabalho”, se constituem, na verdade, em lazer. E com a vantagem sobressalente de serem gratuitas. Ataquei as primeiras, das quais me livrei, felizmente, sem muita tardança.
Destinei, porém, a maior parte do domingo ao que sempre me deu prazer. É o caso da programação do que será publicado no Literário nos próximos dias. Faço questão de ler com atenção todos os textos que recebo, em respeito aos que nos privilegiam com sua confiança.
Via de regra, não faço essa seleção aos domingos, dia que reservo para passeio, para ir, vez ou outra, ao estádio para acompanhar jogos do meu time do coração, a Ponte Preta, ou para participar de algum churrasco na casa de amigos. Ontem, porém, por causa das circunstâncias já mencionadas, resolvi abrir exceção. E me dei bem.
Salvei, em pastas apropriadas para esse fim, mais de uma centena de textos, vindos, por e-mail, de várias partes do Brasil, a maioria poesias. São contribuições de pessoas interessadas em participar do nosso Literário às quais acolho democraticamente, sem privilegiar e nem desprezar ninguém.
O volume de textos não foi o que me surpreendeu, embora farto, em se tratando de um período de festas, em que muita gente deixa sua cidade e passa longe de qualquer computador. A surpresa ficou por conta do conteúdo.
Recebi dezenas de poesias, que nos próximos meses terei a satisfação de compartilhar com todos vocês, de qualidade muito acima da média. É nessas horas que sinto a força, a criatividade e o talento do povo deste País que, por si só, é magnífico poema, continuamente reescrito. Senti o vigor da nossa cultura, a perenidade das nossas letras e como é bela a nossa língua portuguesa (quando bem-escrita, logicamente).
Foi uma tarde de poesia que, se tiver juízo, irei repetir por muitos e muitos e muitos outros domingos no correr de 2010. E pensar que há quem diga que a poesia, se ainda não “morreu”, estaria moribunda. Bobagem. Está viva, vivíssima, dinâmica e mais atrativa do que nunca. O que falta é a devida divulgação dessa farta produção poética.
Só pensa que a poesia está “morrendo” quem não tem o privilégio (que eu tenho) de ter acesso a tanta coisa bela, inteligente e inspirada, produzida ininterrupta e prolificamente neste imenso país de dimensões continentais.
Em princípio, o que era para ser trabalho, se transformou em deleite. E para aproveitar melhor esse momento, criei todo um clima favorável. Li, poema por poema recebido, em voz alta, tendo por fundo musical composições de Johann Sebastian Bach. Uma delícia!
A poesia é, de fato, a “mãe” das artes. Diz a tradição que, quando não havia sido inventada, ainda, a escrita, as pessoas utilizavam-na para memorizar todo conhecimento adquirido desse tempo, que queriam transmitir de geração a geração. Foi, portanto, o “jornalismo” daqueles tempos selvagens e primitivos em toscas sociedades ágrafas.
Ao mesmo tempo, exerceu o papel de “análise”, pelo tom confessional que os poetas ancestrais adotavam para expressar sentimentos, emoções, venturas e desventuras. Infeliz daquele que não é condicionado, desde criança, a gostar dessa soberba manifestação literária. Pode-se dizer que são infelizes de mau-gosto. Conheço muita gente que não gosta. E em que mundo opaco e descolorido esse tipo de pessoa vegeta!

Boa leitura.

O Editor.



Almoço de domingo

* Por Celamar Maione

Maria José arrumou a mesa da sala, ajeitou pratos, talheres, refrigerantes e chamou o marido, o filho e a vizinha Solange para o almoço. Enquanto sentavam-se à mesa, ela entrou na cozinha para pegar as travessas. Solange gritou:
- Quer uma ajuda?
- Não. Fica sentadinha aí que faço tudo. Eu gosto.

Primeiro chegou com a travessa de macarrão, depois com o frango, sentou-se e quando ia se servir, Tavares reclamou:
- De novo?
- De novo o quê?
- Frango com macarrão? Todo domingo a mesma coisa?
- Você tem ideia melhor? – desafiou Maria José.
- Tenho. Empadão de frango. Lasanha. Feijoada. Você sabe que eu adoro empadão.
- Macarrão com frango dá menos trabalho e você sempre gostou.
- Mas todo domingo? Enjoa.

Alheio ao bate-boca que se formou entre os pais, Juninho se serviu:
- Eu tô morrendo de fome. Vou pegar, tá mãe?
- Pega sim, meu filho. Pega o quanto quiser, tem mais na cozinha.

Silenciosamente, a vizinha, serviu-se de macarrão e pegou dois pedaços de frango. Maria José também botou a comida no prato, enquanto Tavares continuava reclamando:
- Me recuso a comer frango com macarrão. Não quero!
- Tavares, olha o vexame, primeira vez que eu convido a Solange para vir almoçar aqui e você arruma confusão?
- Dane-se.Eu não agüento mais comer macarrão com frango todo domingo. Tortura.
- Então fica com fome, seu grosso.
- Não vou ficar com fome, não.
- Ah não? E vai fazer o quê?
- Vou comer no boteco da esquina. Pelo menos lá eu sou bem tratado.
- Você pensa que me engana, Tavares? Tá é arrumando desculpa para ir almoçar na casa da vagabunda do segundo andar.
- Que vagabunda?
- Você pensa que eu não sei que você e ela estão de coisinha? Pensa que a sua cara de pau me engana? Quando você ia, eu vinha.
- Quê isso? Olha o menino na mesa. Isso não é assunto para a hora do almoço, nem na frente da Solange.
- E é assunto pra quando? Você vive criando briguinhas e picuinhas, tenho certeza que você quer uma desculpa pra ir para a casa da vagaba.
- Quê isso, Maria José! Você nem conhece a moça!
- Como não conheço? A vagaba adora dar show nas reuniões de condomínio com aquela saia micro e as pernas cheias de celulite!

A discussão cresceu. Com medo que voassem as travessas do frango e do macarrão, Solange disfarçou e levou-as de volta pra cozinha.
- Vocês desculpem, eu estou tirando porque acho que todo mundo já acabou.

Maria José respondeu irritada:
- Tira sim, que o meu marido traidor não vai mais comer em casa. E ainda conseguiu estragar o almoço de todo mundo.

Acostumado com as discussões entre os pais, Juninho acabou de almoçar, pegou a bola de futebol e desceu para o playground. Maria José e Tavares continuaram discutindo. Irritada com os gritos do marido, a mulher o ofendeu na frente da vizinha:
- E sabe do que mais, Tavares? Você é um merda. Um homem que não presta nem pra trepar, devia mesmo era comer pedra . Da próxima vez eu vou te dar pedra pra comer. PEDRA!

Vermelho e com as bochechas tremendo, o homem decidiu :
- Vou pra rua agora antes que eu tenha um treco!
- Isso. Se manda. Vai comer na casa da vagabunda!

Tavares ainda ficou alguns minutos no corredor, andando de um lado para o outro. Nervoso, pegou o elevador e apertou o botão. Saiu no segundo andar. No corredor olhou desconfiado de um lado para o outro e tocou no 202. Elisa abriu a porta de short e mini-blusa. Ao ver Tavares deu um gritinho de satisfação:
- Que milagre é esse? Tocando aqui em casa domingo? Cuidado, os vizinhos podem ver e vão contar para a Maria José camburão – debochou.
- Fica tranqüila. Arrumei uma briga para poder sair de casa. Tem alguma coisa aí pra comer? Tô morrendo de fome.
- Acabei de colocar o almoço na mesa. Especialidade da casa : Frango com macarrão.

Faminto, Tavares avançou nas travessas. Comeu com satisfação de criança. Enquanto se lambuzava com a comida, Maria José e Solange assistiam a um DVD de comédia romântica. Empolgada com o filme, a vizinha alisou os cabelos de Maria José. Não encontrou resistência e arriscou:
- Você teria coragem de beijar uma mulher na boca?
- Beijo – disse mordendo os lábios - Em troca você vai fazer o almoço de domingo que vem.
- Eu?
- Uma lasanha, especialmente para o Tavares.
- Fala, o que é que você está aprontando?
- Você não reclamou que a sua cozinha está cheia de formigas?

As duas se olharam e caíram na gargalhada.

* Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.



De sua xícara de poesia eu me sirvo

* Por Eduardo Murta

Me lembro como se fosse ontem. Tão viva a imagem do menino – acho que posso chamá-lo de menino – adentrando o bar. A feição que namorava laços de tristeza numa ponta, e noutra, uma candura imitando poetas. Já o avistara por várias vezes e, o juízo não estivesse me traindo, fazia um tipo de gente marcada para morrer. Morrer e ser lembrada. Tinha movimentos meticulosos e dialogava em voz baixa com o casal que soava a tio e tia. Igualmente ritualesco na forma quase sacra ao emborcar a xícara de café com leite servida a ele todas as manhãs. Bebia e, invariavelmente, tossia. O lenço vinha fazendo guarda cerimoniosa à cena.

O mais instigante era vê-lo em seguida encaixar o cigarro ao canto da boca. Tragando como beijasse uma mulher. Num jogo de lábios em que a cumplicidade nem piscava. O bolinho de carne e a cerveja vinham na seqüência, e eu, do banquinho recostado à parede ao fundo, o observava, não sei ao certo por que razão, esperando que num momento qualquer ele se revelasse. Mudo, marchava rumo à saída.

Alguém havia sugerido que o apelidássemos de Esfinge, mas os nós, sagrado fosse, começaram a se dissipar dia seguinte. Ele pisando à porta com violão a tiracolo. Os olhos denunciando um calibre a mais de álcool no sangue. E o que vi instantes depois seria pura atmosfera de arrebatamento: o bar se calando à melodia que abraçava um rio de palavras novas, parecendo roupas de primavera. Se enxergava magia naquilo.

Então, agora éramos eu e um conjunto de hipnotizados naquela alegria de botequim. Logo todos formando uma roda em saudação ao ritmo atrevido do samba. Mais duas, três canções, e arrisquei a pergunta: “De que compositor são essas músicas?”. Ele me mirou ligeiramente atravessado. Uma pausa para tossir. O lenço. O cigarro reposto. “Inteiramente minhas”.

Balbuciou, e emendou pronto com um novo acorde. Dava a senha de que, com ele, essencial não era conversar. Mas tão simplesmente cantar. E como cantou. Varamos a tarde. Atravessamos a noite. Já era madrugada quando o deixei, amparado, à frente da pensão simples na região hospitalar da velha Belo Horizonte. Não falava, não falávamos, coisa com coisa. Ainda assim, protegia o violão como a um diamante nobre.

Fui revê-lo à mesma mesa no domingo. Desta vez com um sorriso discreto, assinalando o desvão em seu queixo. Entre uma e outra xícara de café com leite, contou breve: acidente de parto. Notei pequeno constrangimento e coloquei minha história em campo. Eu, Malaquias, filho de fazendeiro e bordadeira, servidor público, escritor frustrado. Ele riu. E se retraiu. Respeitei, e mesmo me diverti com o sujeito variando do amargor à comédia.

Indaguei por seu nome. “É o que menos importa, porque estou aqui apenas de passagem”, limitou-se. Provoquei: “Pela cidade ou pelo mundo?”. Ele piscou longo, respirou fundo, pisou e rodou o salto sobre o cigarro, como subterfúgio a que não respondesse. Da partida, me recordo de seu abraço terno, do aceno de mão na virada de esquina. Viajou e não mais o vi.

Soube como se chamava tempos depois. Pelos jornais. Tinha 27 anos. Fora batizado de Noel. E, como tradição entre os poetas ainda naquela década de 30, morreria por amor ou tuberculose. No rádio, identifico uma de suas canções. Falam, no noticiário, que o clima na Europa é de guerra. Pouco creio. Prefiro pensar em Noel. Em seus dedos, seu violão. Suas palavras. Belos como uma rosa.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras




Ano Novo, vida nova...

* Por Aliene Coutinho


A roupa branca do réveillon, comprada no início de dezembro, foi o sinal de alerta para a primeira promessa do ano novo: emagrecer! Foi isso que Isabel jurou, sob os fogos que explodiam no Pontão do Lago, ao nascer de 2007. Naquela noite ela resistiu à ceia farta, aos chopes, aos doces que faiscavam diante de seus olhos, só não dispensou as sete uvas, para os sete pedidos, uma simpatia que ela fazia desde que se entendia por gente.

E o Ano amanheceu nublado, aquele friozinho típico das manhãs de verão em Brasília, uma preguiça, uma vontade de tomar um chocolate quente, e Isabel, meio sonolenta, quase inconsciente, correu para a cozinha, e comeu tudo que encontrou, devorou até um pedaço de pernil tirado da geladeira, lambeu os dedos, e só então deu conta do que havia prometido a si mesma.

Sentiu-se mal, chegou a ficar tonta, tomou fôlego e lembrou de quantas outras vezes havia feito a mesma promessa, e quantas outras vezes não conseguira passar do terceiro dia de dieta. Goooorda, gorda, ela não era, mas estava seis quilos acima do peso, as calças apertadas, uma barriguinha teimava em aparecer nas blusas de malha. Passou a usar batas, era moda mesmo, e quando olhava da varanda do apartamento onde morava para o Parque da Cidade, também jurava, que ia dar aquela volta quase olímpica, mas tudo sempre ficava para amanhã...

Ressaca moral é a pior de todas, que o diga Isabel. Ela chorou, de verdade, sentiu medo de não poder cumprir outras promessas, de não avançar, ou crescer em coisas que dependessem exclusivamente dela. Lembrou de anos passados e seguidos, que prometera parar de roer unha, de deixar o cabelo crescer, de fumar, porque era tão complicado mudar de vida, de atitude???

Enxugou as lágrimas, vestiu um moleton folgado, calçou um tênis e lá se foi para o Parque, só agüentou meia hora de caminhada, suou. Na volta passou numa academia e fez a matrícula numa turma de spinning. Ficou sabendo que a cada uma hora pedalando, é possível perder 600 calorias. No finzinho do primeiro mês de 2007, ela ainda persiste e garante: vai resistir ao pecado da gula, e se a felicidade depende de alguns quilos a menos, aquela velha calça jeans 38 do fundo do armário que a aguarde.

* Jornalista, professora de Telejornalismo



Sem vaias

* Por Daniel Santos

Magnífica – ela mesma dizia de si. E ninguém discordava, porque, dia após dia, noite após noite, infatigavelmente, impunha seu pessoal espetáculo, aplaudido em cena aberta por amigos e familiares, seduzidos.

No centro do palco, imersa em luzes do esplendor, ela dominava toda a circunstância. Muito habilidosa, representava e investigava a reação de cada espectador, a um só tempo. Tinha de fasciná-los, sem cessar.

Sim, ela controlava a própria adoração, mas, com o tempo, descuidou do repertório, esqueceu de renová-lo. Tornou-se, assim, previsível, sem surpresas nem emoção, e os aplausos diminuíram.

Perceberam que interpretava com técnica pífia, cheia de chavões e de clichês. Já não era propriamente espetáculo, mas a exposição constrangedora de alguém que o talento abandonara: uma caricata.

Perdeu platéia, portanto. A maioria dos assentos sem ninguém, ela se aproximou da beira do palco para se certificar da solidão, da ruína. Caiu no fosso da orquestra para nunca mais reaparecer. Nem vaias houve.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Direito à informação

* Por Mara Narciso

Poucas casas tinham televisor em 1964, mas em minha sala reinava um deles onde víamos o que nos mostrava a TV Tupi no período noturno em que a torre repetidora do Pentáurea nos enviava imagens em preto e branco e muitos ruídos e chuviscos. A programação era de noticiários, musicais, novelas, filmes, programas de auditório e comerciais toscos. Pela telinha vimos o homem chegar à lua, a Copa do Mundo de Futebol de 1970, o progresso brasileiro exibidos pela Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói, e a Usina de Itaipu. Tudo mostrava o progresso ufanista do “Brasil Grande!”.

Na minha casa as pessoas liam as revistas Fatos & Fotos, Cruzeiro e Manchete todas as semanas. Também vi de longe os exemplares da revista Realidade, em sua curta existência, pois a minha mãe, zelosa pelas suas crianças, dizia que a leitura dessa revista era proibida.

No carro do meu pai havia um adesivo plástico com a bandeira do Brasil num dos cantos, ladeando a frase que muito o orgulhava: “Brasil, ame-o, ou deixe-o”. Durante as refeições em família, ele nos dizia que o Brasil estava evoluindo devido ao trabalho dos militares que baniram do Brasil os terroristas. Também falava em tom de zombaria que a Veja, recém-lançada, era ruim, e o tamanho pequeno era indicador da ruindade da revista. Mesmo amordaçada, a revista naquela ocasião defendia a democracia.

Quando foi permitido votar, já que o prefeito era indicado pelo governador, o meu pai escolhia candidatos da ARENA, Aliança da Renovação Nacional, o partido do governo. A minha mãe alinhava-se com o irmão dela, Pedro Narciso, um dos fundadores na nossa cidade do então MDB, Movimento Democrático Brasileiro, o partido de oposição. Os filhos iam junto com a mãe.

No Colégio Imaculada Conceição, e depois, no Colégio São José, havia uma bandeira do Brasil dentro de uma moldura na parede da frente de todas as salas de aula, ao lado do quadro-negro. Antes das atividades escolares, obrigatoriamente cantávamos o Hino Nacional. Muitas vezes todos os alunos iam para o pátio e ficavam perfilados ao sol ouvindo discursos de autoridades que nem sabíamos quem eram.

Eu era ligada em rádio, televisão e revistas. Apaixonada por Roberto Carlos, tão fanática que tinha todos os seus discos, colecionava posters e as letras das músicas e tudo que lhe dissesse respeito, e não perdia o programa Jovem-Guarda nas tardes de domingo. Quando “O Rei” veio em Montes Claros, fomos ao Estádio do Ateneu ver ao show.

Na Faculdade de Medicina, em 1974, tivemos a disciplina Organização Social e Política do Brasil. Nela, o nosso professor, um coronel da Polícia Militar, nos falava as coisas boas que os presidentes marechais faziam pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Após as preleções, certo dia nos mandou fazer um trabalho sobre os quatro presidentes militares, até então, onde eu contei, após pesquisa nas enciclopédias Barsa e Conhecer, que os governos deles foram tudo de melhor para o Brasil.

Em 1977, quando me casei, passei a ler a Veja, mas não compreendia as questões políticas. O meu então marido, filho de um sargento da FAB - Força Aérea Brasileira, contava-me que, em 1969, quando serviu ao Exército, recebeu como serviço vigiar duas mulheres e um homem que estavam presos. O crime deles era subversão, ou seja, eram comunistas. Os militares os deixavam nus para intimidá-los, jogavam água forte sobre eles para torturá-los, e outras maldades, como deixá-los com fome e sede, pois mandavam os recrutas salgarem as suas comidas. Eu repudiava, mas não entendia. Dizem que muitos de nós éramos alienados. Eu era. E não há desculpa.

O que dominava os cinemas eram filmes com imensos cortes feitos pelos censores. As produções nacionais eram em sua maioria pornochanchadas, umas pseudocomédias absurdas. Havia a revista masculina chamada Homem e depois mudada para Playboy, onde apareciam fotos adulteradas de mulheres nuas com borrões em cima das partes pudendas. A censura inominável impedia qualquer tipo de expressão artística, exercendo uma tutela vexatória. Uns poucos censores impediam uma nação inteira de ver coisas que eles julgassem imorais, inadequadas ou inoportunas. Até desenhos animados de Tom e Jerry eram cortados ou vetados por incitarem a violência, segundo vim saber depois. E assim, toda uma população era feita incapaz, pois todos eram guiados.

Sabia que meu tio Petronilho Narciso, que morava em Belo Horizonte, tinha amigos que tinham desaparecido, raptados pelos militares. Não me era possível saber o que acontecia, o que se descortinou quando fui fazer residência médica em Belo Horizonte, em janeiro de 1980. Morei justamente na casa desse meu tio, economista e leitor de “O Capital” e passei a ler o jornal Folha de São Paulo. Fiquei chocada ao descobrir que o Brasil vivia há vários anos sob censura ferrenha dos meios de comunicação, onde a delação era papel moeda, e uma ditadura reprimia todas as manifestações populares, tidas como ilegais e criminosas. Eu já tinha lido a palavra ditadura em pichações nos muros da minha cidade em letras pretas e escritas às presas pelas madrugadas: “Abaixo a Ditadura”), coisa que na época eu não compreendia.

Então eu soube dos desaparecimentos, torturas e mortes. Antes, quem não estava do lado do governo, era inimigo, mas as pessoas comuns não sabiam de nada. Entre a surpresa e a revolta de ter sido enganada por tanto tempo, busquei na memória os pedaços de fatos e de conversas. A minha mãe percebia o que se passava, era contra, mostrava rebeldia em relação ao governo. Como meu pai era ardoroso fã da chamada Revolução de 31 de Março, eu acabava ficando perdida. Havia um mistério no ar.

Na capital tive contato com os fundadores do Partido dos Trabalhadores, e participei durante 37 dias de uma greve de médicos residentes e de uma passeata no centro de Belo Horizonte, vigiados por policiais e cães enormes e não menores cassetetes, em prol de fundação da CUT, Central Única dos Trabalhadores, em setembro de 1981.

Nada entendo da teoria socialista, mas me tornei uma militante de esquerda, emocionada com os efeitos das arbitrariedades do governo militar e a coragem dos que ousaram desafiá-lo. Os generais foram hábeis castradores de toda uma geração que não podia abrir a boca, nem se manifestar e nem mesmo entender os fatos. Todas as versões contavam histórias da carochinha e o povo brasileiro as engolia sorrindo, devido à propaganda oficial.

A ocultação da verdade nos fez sentir ignorantes. Senti-me mal com as revelações, e passei a consumir toda sorte de leituras, e me abastecer nas canções dos meus ídolos Gonzaguinha e Chico Buarque. Também ri das músicas que cantávamos no passado vergonhoso, sejam as de Dom e Ravel – “As praias do Brasil ensolaradas, lá, lá, lá” – ou mesmo as músicas melosas de Roberto Carlos, um dissimulado, segundo fiquei sabendo, embora haja controvérsias. Essas lembranças deixaram-me envergonhada.

Beatriz Kushnir, mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp, nos relata os dois lados da moeda da profissão Jornalista durante os anos de chumbo da ditadura no seu livro “Cães de Guarda” e nos explica a intenção do seu relato:” o objetivo é iluminar um território sombrio e desconfortável: a existência de jornalistas que foram censores federais e que também foram policiais enquanto exerciam a função de jornalistas nas redações” (p. 26). Na página seguinte faz o contraponto: “.não quero dar a entender que a autocensura e o colaboracionismo tenham sido praticados pela maioria dos jornalistas, pois isso está longe da verdade. Muitos dos que combateram nas práticas do Estado pós-1964 e pós-AI5 ficaram desempregados, foram encarcerados e perseguidos. Muitos jornalistas igualmente desempenhavam uma militância de esquerda – de simpatizantes engajados- e padeceram (muitas vezes com marcas na própria pele) por tais atitudes”(p.27).

Toda verdade tem lados, fatos e versões. É um insulto vermos burlado o nosso direito à informação, e a culpa de tudo isso se dissolveu numa abertura ampla geral e irrestrita. A nação escolheu esquecer tudo.

(Referência: “Cães de Guarda”, Beatriz Kushnir, Boitempo Editorial, 2004, São Paulo SP)..

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”