domingo, 31 de outubro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Metáforas e outros recursos

Coluna Ladeira da Memória –Pedro J. Bondaczuk, crônica “Amor à poesia”

Coluna Direto do Arquivo – Marcos Alves, crônica “O bem que faz a incerteza”

Coluna Clássicos – Leonardo Boff, artigo “Dilma: a importância de uma mulher na Presidência”

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica “Eu sou Dilma!”.

Coluna Porta Aberta – Emanuel Medeiros Vieira, poema “Exílio”. ..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Metáforas e outros recursos

O
ser humano, incrível animal que ama, odeia, chora, ri e... pensa, gerou (e continua gerando) tamanha quantidade de idéias, que as palavras, em todos os idiomas que existem, se tornaram insuficientes para que fossem (e sejam) expressadas com pureza e com clareza. Teve, pois, (e ainda tem) que recorrer a outros recursos, quer gráficos, quer sonoros, quer audiovisuais ou quer, até mesmo, semânticos. Neste último caso, vale-se de metáforas. As línguas, dinâmicas como são, estão em perpétua metamorfose. Gestam, a todo o momento, novas palavras, assim como abortam sucessivamente outras, que caíram em desuso, num processo que não tem fim. Há quem abuse, todavia, da criação de neologismos, por absoluta ignorância, por desconhecer palavras que dizem exatamente o que quer dizer e que, por isso, cria novas, e se sente “genial” por isso.

Sou contrário, no entanto, a esse procedimento. Não se deve criar neologismos, quando forem desnecessários. Boa parte dos que são criados é dispensável se atentarmos bem. Defendo, por outro lado, a utilização correta das palavras que já existem no nosso idioma, e de forma clara, objetiva e oportuna. Vou mais longe: sou a favor que sejam utilizadas, sempre, aquelas mais conhecidas pela população (diria que são umas duas mil, se tanto).

Tenho sempre em vista que escrever é um ato de comunicação, e mais complexo do que pode parecer aos desavisados. Mas para nos comunicarmos bem, temos, sobretudo, que ser entendidos por “todos”. Se alguém não entender alguma coisa que escrevermos, por causa de uma eventual mania de esbanjar erudição, fracassaremos rotundamente em nosso texto, por mais sonoro e bem-arranjado que nos pareça. A boa comunicação dispensa pirotecnia verbal. Tem, como condição essencial, o entendimento por parte de quem lê.

Roman Jakobson, um dos maiores comunicadores do século passado, se vivo, concordaria comigo. Afinal, foi ele que declarou, certa feita: “ Prefiro evitar hoje termos novos em excesso. Por acaso, eu que já criei inúmeros neologismos, livrei-me dessa doença terminológica”. Da minha parte, estou tentando, também, me livrar dessa mania.

Mas há ocasiões em que as idéias que se quer expressar são tão complexas, que não há palavras em nosso dicionário que as definam com exatidão. O que fazer então em nome da clareza? Deixar para lá e fazer de conta que não se pensou aquilo? Recorrer a expressões emprestadas de outras línguas, como o francês e o inglês? Age-se muito dessa maneira e os galicismos e anglicismos, mesmo encarados pelos puristas como erros de estilo, com o tempo e o uso findam por se incorporar ao nosso léxico.

E quando a idéia é tão complexa que nem em outros idiomas existe expressão que a expresse com precisão e clareza? Nessas circunstâncias, “empreste-se” um recurso característico da poesia, que muitos utilizam em prosa, sem nenhuma necessidade: a metáfora. O filósofo alemão, de etnia judia, Ernst Cassirer, criador de uma “teoria dos símbolos” para definir cultura, justifica assim o uso desse recurso, notadamente poético (embora não exclusivo): “O homem, quisesse ou não, foi forçado a falar metaforicamente, e isto não porque não lhe fosse possível frear sua fantasia poética, mas antes porque devia esforçar-se ao máximo para dar expressão adequada às necessidades sempre crescentes de seu espírito. Portanto, por metáfora não mais se deve entender simplesmente a atividade deliberada de um poeta, a transposição consciente de uma palavra que passa de um objeto a outro”. Concordo com Cassirer.

Aliás, há tempos isso vem ocorrendo. Por exemplo, afirmar que o coração é a sede e a origem dos sentimentos e emoções é, até certo ponto, metafórico. Ainda se fosse o fígado... haveria alguma lógica, embora literalmente se trate de equívoco. Até uma criança razoavelmente informada sabe que quem comanda nossos sentimentos e pensamentos é o cérebro. Nele está a sede do amor, do ódio, da esperança, da fé, da amizade e vai por aí afora.

O coração é importante, sim, (como ademais qualquer outro órgão do nosso corpo), pois tem a tarefa de bombear sangue, ininterruptamente, para todo o organismo, levando oxigênio e nutrientes para toda a parte e conduzindo gás carbônico para os pulmões, de onde é eliminado, como no processo (falando metaforicamente) de um escapamento de automóvel. Mas sempre que se quer expressar atração irresistível por uma pessoa, por exemplo, costuma-se dizer que o “coração tem amor por ela”. Óbvio que não tem. Quem tem é o cérebro. Quando se sofre uma frustração amorosa qualquer, dizemos estamos com “o coração partido”. Mas se alguém estiver nessa condição (literalmente)... é bom já ir providenciando o seu enterro.

Sobre a preponderância do fígado sobre o coração, encontrei este delicioso texto do poeta Pablo Neruda (que também não deixa de ser, por seu turno, metafórico) : “Enquanto o coração bate e atrai a partitura da mandolina, lá dentro filtras e repartes, separas e divides, multiplicas e engraxas, sobes e recolhes os fios e as gramas da vida, os últimos licores, as íntimas essências. Víscera submarina, medidor de sangue, vives cheio de mãos e olhos, medindo e transvasando em tua escondida câmara de alquimista. Amarelo é o teu sistema de hidrografia rubra, feiticeiro da mais perigosa profundidade do homem, ali escondido, sempre sempiterno, na usina, silencioso. E todo sentimento ou estímulo cresceu em tua maquinaria, recebeu alguma gota de tua elaboração infatigável, ao amor acrescentaste fogo ou melancolia; uma pequena célula equivocada ou uma fibra em teu trabalho, e o aviador se equivoca de céu, o tenor se precipita num silvo, ao astrônomo escapa um planeta”.

Na verdade, para ser honesto com você, paciente leitor, devo confessar que cheguei a esse texto por tabela. Não o encontrei diretamente em nenhum livro de Neruda como possa ter ficado implícito , mas transcrito por outro grande poeta (este, brasileiro, aliás mineiro), Paulo Mendes Campos, que fez essa citação na crônica intitulada “Bom-humor”, publicada na coluna que assinou por muitos anos na Revista Manchete, da Editora Bloch, neste caso uma de 1966. Ficou claro? Espero ter dado com competência meu recado de hoje.

Boa leitura.

O Editor.






Amor à poesia

* Por Pedro J. Bondaczuk

A beleza nem sempre é sinônimo de bondade ou de excelência. Não se pode esquecer, por exemplo, que na liturgia cristã, Lúcifer era o anjo mais belo junto ao trono de Deus e, no entanto... constituiu-se no paradigma (e fonte) de toda a maldade no universo.
Uma bela flor encanta e alegra, mas sua beleza é efêmera: não tarda a murchar, secar, fenecer e morrer. Uma pessoa bela envelhece e perde o viço que a caracterizou na juventude. Há, porém, um tipo de beleza que não é passageiro e que tende a se acentuar à medida em que o tempo passa: é a interior, ditada por um coração compreensivo, por atos de bondade e amor e por irrestrita solidariedade. Este tipo é insuperável. Desperta irresistível paixão.
Neste mundo de aparências, a beleza exterior tem sido supervalorizada, sublimada, perseguida, colocada por muitos como uma espécie de ideal, mesmo sendo transitória. Diríamos até que ela é "virtual", para usar expressão tão em voga, uma espécie de ilusão, de fantasia da mente, de delírio. Afinal, restringe-se a um determinado tempo, curtíssimo por sinal.
Uma pessoa bonita, por mais que tente, nunca se livra dos efeitos transformadores dos anos. E estes, salvo na passagem da infância para a adolescência e às vezes desta para a maturidade, jamais são para melhor. Representam desgaste, decadência, envelhecimento. E, por conseqüência, sofrimento. Quanto mais bela é uma pessoa quando jovem, maior será sua frustração quando envelhecer, murchar, fenecer.
Uma das minhas maiores satisfações, físicas e espirituais, é o contato com a natureza. É, por exemplo, um passeio despreocupado por um bosque, com todos os sentidos alertas, usufruindo do aroma das flores, do canto dos pássaros, do frescor da sombra e do sabor exótico dos frutos silvestres. Ou é a caminhada preguiçosa e sem rumo por um jardim florido, com a explosão de cores, em cada canteiro, ao meu redor.
Essa é a minha fonte de inspiração. Claro que aquilo que tenho para expressar está em mim, adormecido, pronto para ser despertado. Reitero que, para usufruirmos da beleza contida (nem sempre de forma ostensiva) em todos os momentos de nossas vidas, temos que estar predispostos para o que é bom e belo. Precisamos adotar atitudes positivas, por piores que sejam as circunstâncias e as pessoas que nos rodeiem.
Quando nos limitamos a temer as coisas más, sem coragem para enfrentá-las e tentar modificá-las, na verdade as potencializamos em nossa imaginação, e as tornamos maiores e piores do que de fato são. E elas acabam por envenenar as nossas vidas.
Todos somos, quando amamos, um pouco poetas, mesmo que não tenhamos escrito um único verso em nossa vida. Passamos a ver o mundo por um filtro encantado de magia e de beleza. Alguém chegou a escrever (não me lembro quem), jocosamente, que quando está amando, até um cachorro late em versos. Exagero! Mas o amor tem mesmo essa característica de nos tornar receptivos ao que é bom, positivo, belo e transcendente. Até sofrer por amar vale a pena.
Por outro lado, quando alimentamos pensamentos mórbidos, sombrios e fatais, questionamos a vida, sua origem, finalidade e significado. Ou seja, mesmo que não venhamos a nos dar conta, filosofamos. Há riqueza que compre a emoção despertada por um poema bem-composto, por uma melodia harmoniosa, por uma escultura perfeita, por uma tela de onde explode a vida em cores, luzes e sombras?
Há recurso material capaz de compensar a sabedoria que existe na renovação da natureza? Há maneira de pagar a sensação de plenitude que nos dão a sucessão de gerações, a inocência de uma criança, os ideais dos moços, o desenvolvimento dos filhos, a chegada dos netos e o resultado que vemos da educação que demos àqueles que nos competia dar? Essas são as substâncias da vida.
Amo a poesia, que tem o dom de transformar o cenário mais horrendo, num painel de beleza que nos encanta. Só através dela é possível vislumbrar, em um pântano cinzento e apodrecido, a brancura de um solitário lírio, de pureza absoluta, que transforma, num passe de mágica, a sombria paisagem.
Por suas lentes mágicas e positivas, podemos vislumbrar, numa suja poça de água, o reflexo da lua e das estrelas, numa noite clara de verão. A poesia não só trata das “dores do mundo”, como as atenua e nos conforta. Embora profissional do texto, com décadas de exercício e incursão por praticamente todos os gêneros (literários ou não) e tipos de redação (inclusive peças publicitárias, documentos oficiais os mais variados etc. etc.etc.), considero-me, sobretudo, poeta. Bom? Não sei! Presumo que regular.
Afinal, creio que não foi por acaso que venci vários concursos – locais, regionais e nacionais – de poesia, nos quais era a “zebra”. Ou seja, era o desconhecido dos jurados e, a priori, não estava, em absoluto, entre os favoritos, pelo contrário. Algum mérito, portanto, a minha maneira de “poetar” deve ter.
Amo a poesia. Escrevo com emoção, paixão e, mais do que isso, com devoção. Não faço dela mero expediente para ganhar dinheiro. Para isso, para assegurar o meu sustento, valho-me de outros tipos de textos, para os quais fui treinado por anos – e, convenhamos, muito melhor cotados no mercado editorial – que escrevi, em profusão, por décadas e décadas de exercício profissional.
A poesia é a maneira que conheço de orar. É a forma que utilizo para agradecer a Deus pela vida, pelo mundo maravilhoso que habito (com seus misteriosos prodígios); pelos encantos que a natureza me prodigaliza; pelo conjunto de valores e de princípios que me foram incutidos por pessoas nobres, generosas e idealistas. Só nela me realizo! Só nela me identifico! Só nela me sinto humano e, portanto, capaz de tratar, com compreensão e ternura, das “dores do mundo”. É a minha vez, a minha voz e o meu passaporte para a felicidade!


*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

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O que comprar:

Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). –
Preço: R$ 23,90.

Lance fatal
(contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. –
Preço: R$ 20,90.

Como comprar:

Pela internet
WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.






O bem que faz a incerteza

* Por Marcos Alves

Nada mais falso que pretender passar ileso pelas situações. Por mais que saibamos lidar com o inesperado, nada sabemos do que nos aguarda. A incerteza angustia, engana, parece antecipar o precipício. Até que o tempo permita que as coisas aconteçam. A rigor, não temos certeza de nada. Acordamos sem saber se vamos dormir de novo.

Outro dia esperava o ônibus e dividi o banco com uma jovem mãe. Estava com o filho, já não bebê mas ainda pequenino, no colo. Era negra, bonita, trajava jeans e usava um penteado afro, uma espécie de aplique com tranças. O moleque deitado, preguiçosamente, nas pernas dela. Escutava o garoto e a mãe, no banco ao lado à sombra de arvores de copa larga, distraidamente.

Ativo, ele pergunta sobre tudo. Dócil, ela responde sempre. Uma mãe clássica. Boa companhia numa manhã amena de sol em uma pracinha íngreme do bairro.

Os dois no banco em pura demonstração de interdependência, completude. Um afeto sincero, bonito de ver. Tive a impressão de que não seriam capazes de viver um sem o outro nesse mundo..

As certezas acabam ao nascermos. Somos lançados num ambiente totalmente novo. Privados do útero manso e quente para, em pouco tempo, aprender a lidar com esse mundo barulhento. Aos poucos domá-lo, descobri-lo, decifrá-lo, enfrentá-lo. Aprender com a caminhada é mais importante que chegar.

É por causa da incerteza que valorizamos o conhecimento. Nos tornamos pessoas melhores toda vez que, incomodados pela incerteza, procuramos a verdade.

A incerteza é o motor da vida. O importante não é aprender rápido, mas no tempo certo. Estamos fadados a viver, disse Sartre, e há nisso uma esperança de liberdade.

Não é propriamente felicidade, mas livre-arbítrio. Erramos e acertamos, satisfeitos ou não, bem ou mal, queiramos ou não. Os caminhos se cruzam, as intersecções ditam as mudanças de rota. Os encontros são inevitáveis e quase sempre imprevisíveis. Como diz Paulinho Moska: o que era impossível acaba de acontecer.

* Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos. Textos para Impressos, eletrônicos e também para acordar, dar voz à alma. Gerente de Jornalismo, editor e repórter da EPTV Sul de Minas. Também foi repórter do impresso “O Tempo”, em Belo Horizonte. Em 2003, uma pausa das redações, vieram os trabalhos independentes, a maioria em vídeo. Bom para abrir o leque. De volta ao trecho, Editor de texto na TV Riosul em Resende/RJ. Atualmente é editor-chefe do Jornal Minas 1ª Edição, da Rede Minas de Televisão, emissora da Rede Cultura. Formado em Jornalismo pela Fafi-BH, atual UNI-BH, em Belo Horizonte.





Dilma: a importância de uma mulher na Presidência



* Por Leonardo Boff

Há duas formas principais de estarmos presentes no mundo: pelo trabalho e pelo cuidado. Como somos seres sem nenhum órgão especializado, à diferença dos animais, temos que trabalhar para sobreviver. Vale dizer, precisamos tirar da natureza tudo o que precisamos. Nessa diligência usamos a razão prática, a criatividade e a tecnologia. Aqui precisamos ser objetivos e efetivos, caso contrário sucumbimos às necessidades. Na história humana, pelo menos no Ocidente, instaurou-se a ditadura do trabalho. Este mais do que obra foi transformado num meio de produção, vendido na forma de salário, implicando concorrência e devastação atroz da natureza e perversa injustiça social. Representantes principais, mas não exclusivos, do modo de ser do trabalho são os homens.
A segunda forma é o cuidado. Ele tem como centralidade a vida e as relações interpessoais e sociais. Todos somos filhos e filhas do cuidado, porque se nossas mães não tivessem tido infinito cuidado quando nascemos, algumas horas depois teríamos morrido e não estaríamos aqui para escrever sobre estas coisas. O cuidado tem a ver mais com sujeitos que interagem entre si do que com objetos a serem gestionados. O cuidado é um gesto amoroso para com a realidade.
O cuidado não se opõe ao trabalho. Dá-lhe uma característica própria que é ser feito de tal forma que respeita as coisas e permite que se refaçam. Cuidar significa estar junto das coisas protegendo-as e não sobre elas, dominando-as. Elas nunca são meros meios. Representam valores e símbolos que nos evocam sentimentos de beleza, complexidade e força. Obviamente ocorrem resistências e perplexidades. Mas elas são superadas pela paciência perseverante. A mulher no lugar da agressividade, tende a colocar a convivência amorosa. Em vez da dominação, a companhia afetuosa. A cooperação substitui a concorrência. Portadoras privilegiadas, mas não exclusivas, do cuidado são as mulheres.
Desde a mais remota antiguidade, assistimos a um drama de consequêncas funestas: a ruptura entre o trabalho e o cuidado. Desde o neolítico se impôs o trabalho como busca frenética de eficácia e de riqueza. Esse modo de ser submete a mulher, mata o cuidado, liquida a ternura e tensiona as relações humanas. É o império do androcentrismo, do predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Chegamos agora a um impasse fundamental: ou impomos limites à voracidade produtivista e resgatamos o cuidado ou a Terra não aguentará mais.
Sentimos a urgência de feminilizar as relações, quer dizer, reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado especialmente com referência às pessoas mais massacradas (dois terços da humanidade), à natureza devastada e ao mundo da política. A porta de entrada ao universo do cuidado é a razão cordial e sensível que nos permite sentir as feridas da natureza e das pessoas, deixar-se envolver e se mobilizar para a humanização das relações entre todos, sem descurar da colaboração fundamental da razão instrumental-analítica que nos permite sermos eficazes.
É aqui que vejo a importância de podermos ter providencialmente à frente do governo do Brasil uma mulher como Dilma Rousseff. Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: “política é um gesto amoroso para com o povo”.
Neste momento dramático da história do Brasil e do mundo é importante que uma mulher exerça o poder como cuidado e serviço. Ela, Dilma, imbuída desta consciência, poderá impor limites ao trabalho devastador e poderá fazer com que o desenvolvimento ansiado se faça com a natureza e não contra ela, com sentido de justiça social, de solidariedade a partir de baixo e de uma fraternidade aberta que inclui todos os povos e a inteira a comunidade de vida.

• Teólogo, escreveu, entre tantos livros, com Rose Marie Muraro, “Feminino e masculino.Uma nova consciência para o encontro das diferenças (2002)”.



Eu sou Dilma!

* Por Clóvis Campêlo

Em 1998, quando na disputa pelo Governo de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos derrotou Miguel Arraes de Alencar por uma diferença superior a 1 milhão de votos, estabeleceu com as forças mais reacionárias da política pernambucana um acordo visando dominar o Estado pelos próximos 20 anos. Esse projeto encampava a reeleição do prefeito Roberto Magalhães, em 2000, e a anulação das forças políticas de esquerda no Estado.
No entanto, naquela mesma eleição, o projeto começou a dar água e afundou de vez por conta das desavenças internas entre o personalista Jarbas e os seus aliados de última hora e da empáfia e arrogância do prefeito Roberto Magalhães, que tentava a reeleição contra o famélico João Paulo de Lima e Silva, negro, filho de um cobrador de ônibus, ex-metalúrgico, fundador da CUT e do PT no Estado de Pernambuco, e candidato heróico das oposições esquerdistas à cobiçada prefeitura.
Entre outras coisas, apoiando-se nas pesquisas que garantiam a sua vitória ainda no primeiro turno da eleição municipal, Roberto Magalhães chegou ao desplante de dar uma banana às pessoas que o vaiavam no calçadão de Boa Viagem. Foi mais longe, porém: em um debate na televisão pernambucana, no alto da sua prepotência, chegou a afirmar aos telespectadores que não mudaria o seu jeito de ser e quem quisesse que votasse nele assim mesmo. Resultado: deixou de ganhar a eleição no primeiro turno e a perdeu definitivamente no segundo.
Com todo o seu perfil "negativo", João Paulo foi eleito prefeito do Recife, aniquilando o sonho reacionário da direita e abrindo caminho para a eleição de Eduardo Campos, neto de Miguel Arraes, ao Governo do Estado, em 2006.
Com dois mandatos conquistados pelo voto direto e com duas grandes administrações, João Paulo ainda se deu ao luxo de eleger o seu sucessor, João da Costa, um ilustre desconhecido do eleitorado recifense.
Hoje, a cidade do Recife e o Estado de Pernambuco vivem momentos de grande afirmação política e econômica, deixando para trás o que havia de mais retrógado.
Foi esse pessoal derrotado que José Serra escolheu para aliado. É esse pessoal derrotado que nós, recifenses e pernambucanos, não queremos mais ver de volta ao poder.
Foi esse pessoal derrotado que sofreu novo revés nas urnas, esse ano, quando Eduardo Campos devolveu com sobras, a Jarbas Vasconcelos, a derrota sofrida pelo seu avô, em 1998.
É por isso tudo e muito mais, e pensando no Novo Brasil que se consolida no presente como o país do futuro, que neste dia 31 de outubro votarei em Dilma Roussef para a Presidência da República.
Atraso, nunca mais,

• Poeta, jornalista e radialista do Recife/PE

Exílio*

** Por Emanuel Medeiros Vieira

Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.

Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.

Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.

*Poema premiado no Concurso Nacional de Poesias, cujo tema foi “O Mundo do Trabalho”, promovido pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná.

**Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros.

sábado, 30 de outubro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Quando o erro pode ser didático

Coluna Direto do Arquivo – Marco Antonio Araújo, conto “Inês”.

Coluna Clássicos – Edla Van Steen, conto “Intimidade”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “O ônibus para Trancoso”

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “Um poema de Cida Pedrosa”.

Coluna Porta Aberta – Cida Pedrosa, poema “Milena”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Quando o erro pode ser didático

O
sonho das pessoas ativas, dos sujeitos dinâmicos, criadores e que se dedicam, de corpo e alma, à produção (material e/ou artística e intelectual) é o da perfeição de suas obras. Há quem seja perfeccionista por natureza e que sofra face à mínima imperfeição no que faz, mesmo que não notada por ninguém. Esse fazer, refazer, tornar a fazer, emendar, burilar, melhorar etc. chega, em casos extremos, às raias da obsessão. E é errado esse comportamento? Claro que não. Só que não se recomenda que se descambe para tal exagero. Afinal, como já diziam sábios no passado, “a virtude está sempre no meio”.

Convivemos, no dia a dia, com erros de todos os tipos e tamanhos, nossos e dos outros, e nos afligimos com os que cometemos e nos irritamos com os alheios. Há casos em que achamos que essas falhas são irreparáveis. Nunca são! Alguns, porém, negam que erraram, mesmo quando é para lá de evidente que cometeram algum equívoco. Pagam um preço por essa irresponsabilidade: caem em ridículo. Outros admitem, mas se esquecem dos erros, como se não os houvessem cometido. Com isso, só os multiplicam. Há, porém, os que são sábios: extraem ensinamentos das suas falhas e as corrigem. Tiram preciosas lições, que lhes permitem não errar novamente e fazer o que lhes cabe cada vez melhor. Nossos erros, porém, não devem nos afligir. Até porque, tendem a ser sumamente didáticos se soubermos lidar com eles. E, ademais, só erra que faz alguma coisa, quem arrisca, atua, constrói e não é omisso.

Podemos (e devemos) ser sábios para transformar pequenos erros em maiúsculos acertos. A atitude correta, nesses casos, é o que John Maxwell observou, com pertinência: “Um homem deve ser grande o suficiente para admitir seus erros, esperto demais para tirar proveito deles e forte o bastante para corrigi-los”. Não é fácil? Claro que não! Mas é eficaz. Por mais que a busquemos (e devemos, de fato, buscar), a nós, humanos, frágeis e falíveis, é vedada a perfeição. Por mais completo que nos pareça um trabalho, manual ou intelectual, sempre haverá alguma coisa a ser burilada, revisada, corrigida e melhorada.

Esse exercício de correção de obras, de idéias e até mesmo de rumos, deve se transformar em hábito, para que jamais o que fizermos ou pensarmos se torne envelhecido, defasado ou ultrapassado. Principalmente nos relacionamentos, mesmo que pareçam perfeitos, convém fazer periódicos reparos. Isaac Bashevis Singer, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1978, confessou: “Corrigir é tudo o que faço o tempo todo. Sem isso não haveria literatura ou civilização. Mesmo o amor às vezes precisa disso”. Eu diria, de minha parte, que “principalmente o amor” requer constante correção. Afinal, é como uma bela, porém, frágil flor: só manterá seu viço, sua beleza e sua vida, se for constantemente regada, adubada e podada.

Reitero, trilhões de vezes se for preciso, que só não erra nunca quem não faz nada e passa a vida como parasita, explorando o esforço de quem tenta melhorar o mundo, sem contribuir em nada para o bem-estar próprio e da comunidade. A vida não comporta expectadores, mas requer agentes, tanto para praticar os atos mais simples, quanto para as obras mais complexas, que exigem preparo e esforço. Nada é mais condenável do que a preguiça, o comodismo e, principalmente, a omissão. É preferível errar uma, duas, dez, cem, mil vezes, do que nunca cometer erros, por jamais tentar fazer o que quer que seja. Só que é necessário corrigir o mesmo tanto de vezes aquilo em que se falhou.

Nenhuma obra verdadeiramente valiosa, que sobreviva ao tempo e ao esquecimento, pode ser produzida se não colocarmos nela alma, talento e paixão. As grandes realizações são frutos de crença, empenho, vontade, persistência e de tamanha convicção, a ponto de deitarmos “chispas pelos olhos”. Nesse intenso empenho, todavia, sempre estaremos sujeitos a errar, por maiores que sejam nosso treinamento, perícia e conhecimento de causa. Devemos estar preparados para isso e para efetuar, claro, a devida correção. Mas precisamos encarar a empreitada sem excessivos temores. Um certo medinho todos temos (aquele clássico friozinho na barriga), principalmente face aos grandes desafios. Ele, porém, não pode e nem deve nos deter e paralisar.

Quem teme se expor, por medo de fracasso, frustra-se, invariavelmente, e dessa frustração resulta intenso sofrimento, mental, que tende a se transformar em físico. Da minha parte, prefiro pecar por excesso a me omitir. Estou disposto, na busca dos meus ideais, a tentar, tentar e tentar, insistente e incansavelmente, até alcançar o objetivo. Mesmo que errando a cada passo, mas disposto a sempre consertar o que errar. Boa parte das pessoas talentosas, todavia, não age assim.

Como editor, trabalho em uma função em que o erro é meu maior inimigo. Sempre que cometo algum (e por mais que tente, erro bastante, porque executo grande volume de trabalho), sofro muito. Sinto-me humilhado, abatido, envergonhado e tenho que administrar (e me livrar de) uma sensação de impotência e de desânimo. Confesso, no entanto, que as coisas que mais sei e que executo com maior perfeição, aprendi a fazer e a acertar errando. Estou consciente que, por maior que seja meu empenho (e creiam, é imenso), cometerei ainda muitos erros, não apenas ao longo da carreira profissional, mas da vida. Vou errar no amor, nos relacionamentos sociais e profissionais, nas escolhas, nas decisões, na avaliação das amizades etc.etc.etc. E sofrerei com isso. Pudera, sou humano.

Saberei, no entanto (e espero saber mesmo), pedir perdão quando ofender alguém, perdoar quando ofendido, reconciliar-me com quem brigar, evitar celeumas desnecessárias, mas aprender, e aprender muito, se e quando cometer esses erros. Há, todavia, um equívoco que considero bastante grave, embora comum, e que certamente não cometerei: o de achar que os amigos têm que se entender, sempre, e em tudo, sem nenhuma divergência. Não é bem assim. Amigos também divergem, discutem e brigam, sem que a amizade seja abalada, comprometida, ou sequer arranhada. A esse respeito, George Eliot observou: “Talvez as melhores amizades sejam aquelas em que haja muita discussão, muita disputa e, mesmo assim, muito afeto”. Comprovei, inúmeras vezes, isso na prática. Amizade que não resiste a um simples desentendimento? Estou fora! Sequer merece esse nome.

Boa leitura.

O Editor.



Inês

* Por Marco Antonio Araújo

A morte. Que vem depois dela sem você? Como pode¬rei entrar em nosso quarto sempre tão arrumado se nenhum objeto terá outro significado além daquele associado à dor de não mais haver desculpas para a minha infelicidade? Como poderei sofrer sem você? A partir da sua ausência todo sofrimento terá origem apenas em mim isso é horrível eu enlouqueço. Eu a amo? Oh meu deus eu não sei.

Quantas vezes pude usar você como álibi, atenuante para minha absoluta mediocridade? Quantas perguntas deixei de me fazer só porque suas respostas eram insatisfatórias? Você dizendo “eu o amo eu o adoro não posso viver sem você me beija me aperta nunca me abandone eu vou morrer eu preciso eu quero eu o amo eu o adoro”. E eu pensando ai que tédio essa mulher aí que será dela sem mim. E agora, o que será de mim sem você? Eu a amo eu a adoro?

Se eu chorar agora, resolve? Devo beijar seus lábios frios, roxos, inefáveis? Mas eles não vão me murmurar elogios soltos, generosos, inconseqüentes, como aqueles todos que ouvi minha vida inteira ao seu lado sem dar valor. Então eu choro, eu não consigo. O que é que eu faço agora? Onde está minha blusa cinza que só você sabe onde está o sabonete a agenda a lista de compras, o meu futuro? Onde está?

Que foi que eu fiz, me diz rápido antes que eu tenha certeza que você não responderá nunca. Jamais. Ai, ai, e amanhã e depois de amanhã, o ano que vem, quando chegar minha hora, o que será de mim assim tão sem você? Eu não vou mais ter uma casa pra voltar com você lá me esperando, aquele sorriso tolo que eu achava cretino só pra poder me irritar com você, mesmo que fosse um sorriso lindo que estivesse lá guardado só pra mim desde o início da tarde quando você já começava a me esperar. Você não vai mais me esperar, responde, eu não vou mais me irritar com você, me diz, abre a boca, me beija, aquele beijo bobo sempre apaixonado, eu me irritava eu não gostava, eu queria que você me mordesse me xingasse me desafiasse, só pra eu poder xingá-la chamá-la de burra com muita raiva eu queria lhe bater, passar a raiva sentir remorso me arrepender, eu queria que você me desafiasse me chamasse de burro me xingasse, ameaçasse ir embora eu ia rir duvidar, você nunca terá coragem de me deixar eu ia dizer, vai, vai, tenta, eu duvido, o que será de você sem mim eu ia gritar, você está aqui nas minhas mãos, você faz tudo que eu quero, eu odeio isso eu detesto eu desprezo, eu a amo eu a adoro não posso viver sem você, me beija me aperta não me abandone eu vou morrer eu preciso eu quero eu a amo eu a adoro, volta pra mim, volta pra mim, volta pra mim.

— Como você consegue ficar tão frio? Nem parece que sua mu¬lher morreu.

Volta pra mim. Não me deixe aqui nesse mundo. Acorda e me diga aquelas coisas todas que eu nunca dei valor, me dê mais uma chance agora que já é tarde e eu não posso mais sem você eu nunca pude eu sempre quis, eu não consigo. Você jurou que nunca ia me abandonar, que sem mim você morria, você mentiu me enganou é vingança, eu não mereço eu não sabia, você nunca me disse que ia doer tanto tanto. Por que você não avisou que eu ia ficar desse jeito, tão assim sem você? Como é que eu faço agora que não há nada a fazer e tudo ficou por ser feito? Ainda é cedo, há muita dor por vir e eu tenho medo de tudo estar apenas começando, a solidão, a noite imensa, o sono impossível, a cama inútil, a manhã terrível, o dia interminável.

E eu não tirei nenhum retrato seu, ninguém tirou nenhuma foto nossa além do casamento a minha cara séria, o seu sorriso tolo, eu não sorri na hora, eu não sorri depois, posso sorrir agora como se fosse antes, como se estivéssemos juntos naquelas viagens todas que só não fizemos porque eu não quis, mas eu não sabia que era importante ter fotografias, colecionar lembranças, emoldurar sorrisos, me dê a última chance, eu compro as passagens, faço as reservas, contrato um fotógrafo, fico rindo à toa.
— Está ficando louco? Isso é hora de dar risada? Por favor, controle-se.

Então será desse jeito, você vai ficar aí completamente imóvel? Nenhum movimento? Porque senão eu também vou ficar aqui completamente imóvel, nenhum movimento. Não adianta nada essa dor absurda, inédita, insana, desproporcional? Você não se move, suas mãos que eu quase não beijei não se movem, suas pernas que tantas vezes ignorei não se movem, sua boca que eu sempre emudeci não se move, seu corpo meu corpo não se movem, eu não me movo você não se move. Vamos ficar aqui parados, desproporcionais? Levanta, vem, me diz novamente tudo que foi dito sem que eu quisesse ouvir, agora eu ouço, escuta, agora eu ouço, a sua voz seus pedidos suas palavras simples seu português ruim, agora entendo tudo, está ouvindo? Eu tenho coisas pra dizer e nunca disse, pedidos pra fazer e não sabia, conselhos pra pedir e vou cumpri-los, até propostas pra você que eu não devia. Levanta, deixa de besteira, não seja estúpida, foi tão cruel aquilo que eu não fiz? Se você não me disser, eu não vou embora, eu fico aqui, nem imagino que passo dar, que caminho seguir, que sapato escolher, qual camisa combina, a que horas jantar, que lençol está limpo, o que eu compro pra mim, o que falta fazer, se eu posso parar.
— Por favor, pegue pelo menos uma alça do caixão. Está todo mundo olhando.

É o seu rosto isso que eu não vejo mais? Esse vulto é você que eu tanto desprezei? Essas sombras que se afastam são o que eu desperdicei? Será assim, silêncio, escuridão, minha memória é sua, nada ficará, que chance eu tenho se não há do que lembrar, se você me amou sozinha, se eu ficarei aqui e só você pode voltar, agora sou eu que espero me diz o que, só eu aguardo me explica como, sou eu que fico nem sei onde, você se vai por que por que, o que é que eu faço, o que é que fiz, o que falta do meu passado, o que sobrou do futuro, que presente é esse o meu, o que vem da morte depois de você?
— Senhor, todos já se foram e eu preciso fechar.
O que vem depois da morte sem você?
— Senhor...
A morte, o que vem depois de você?
— Me desculpe, senhor, mas eu tenho que limpar o salão.
— Como?
— Todos já se foram.
Sem você, a morte, depois, o que vem?
— Só ficou o senhor.
— Eu sei.
Agora eu sei.

* Jornalista, ex-professor e coordenador de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou nos jornais A Voz da Unidade, do PCB; A Gazeta Esportiva, onde foi diretor de redação e criou as revistas Educação, Língua Portuguesa, Fera! e Ensino Superior.



Intimidade



* Por Edla van Steen

Para mim esta é a melhor hora do dia — Ema disse, voltando do quarto dos meninos. — Com as crianças na cama, a casa fica tão sossegada.
— Só que já é noite — a amiga corrigiu, sem tirar os olhos da revista.
Ema agachou-se para recolher o quebra-cabeça esparramado pelo chão.
— É força de expressão, sua boba. O dia acaba quando eu vou dormir,
isto é, o dia tem vinte e quatro horas e a semana tem sete dias, não está certo? — descobriu um sapato sob a poltrona. Pegou-o e, quase deitada no tapete, procurou o par embaixo dos outros móveis. — Não sei por que a empregada não reúne essas coisas antes de ir se deitar — empilhou os objetos no degrau da escada. — Afinal, é paga para isso, não acha?
— Às vezes é útil a gente fechar os olhos e fingir que não está notando os defeitos. Ela é boa babá, o que é mais importante.
Ema concordou. Era bom ter uma amiga tão experiente. Nem precisa ser da mesma idade — deixou-se cair no sofá — Bárbara, muito mais sábia. Examinou-a a ler: uma linha de luz dourada valorizava o perfil privilegiado. As duas eram tão inseparáveis quanto seus maridos, colegas de escritório. Até ter filhos juntas conseguiram, acreditasse quem quisesse. Tão gostoso, ambas no hospital. A semelhança física teria contribuído para o perfeito entendimento? "Imaginava que fossem irmãs", muitos diziam, o que sempre causava satisfação.
— O que está se passando nessa cabecinha? — Bárbara estranhou a amiga, só doente pararia quieta. Admirou-a: os cabelos soltos, caídos no rosto, escondiam os olhos cinza, azuis ou verdes, conforme o reflexo da roupa. De que cor estariam hoje? — inclinou-se — estão cinza.
Ema aprumou o corpo.
— Pensava que se nós morássemos numa casa grande, vocês e nós... Bárbara sorriu. Também ela uma vez tivera a idéia — pegou o isqueiro e acendeu dois cigarros, dando um a Ema, que agradeceu com o gesto habitual: aproximou o dedo indicador dos lábios e soltou um beijo no ar.
— As crianças brigariam o tempo todo.
Novamente a amiga tinha razão. Os filhos não se suportavam, discutiam por qualquer motivo, ciúme doentio de tudo. O que sombreava o relacionamento dos casais.
— Pelo menos podíamos morar mais perto, então.
Ema terminava o cigarro, que preguiça. Se o marido estivesse em casa seria obrigada a assistir à televisão, porque ele mal chegava, ia ligando o aparelho, ainda que soubesse que ela detestava sentar que nem múmia diante do aparelho — levantou-se, repelindo a lembrança. Preparou uma jarra de limonada. Por que todo aquele interesse de Bárbara na revista? Reformulou a pergunta em voz alta.
— Nada em especial. Uma pesquisa sobre o comportamento das crianças na escola, de como se modificam as personalidades longe dos pais.
No momento em que Ema depositava o refresco na mesa, ouviu-se um estalo.
— Porcaria, meu sutiã arrebentou.
— A alça?
— Deve ter sido o fecho — ergueu a blusa — veja.
Bárbara fez várias tentativas para fechá-lo.
— Não dá, quebrou pra valer.
Ema serviu a limonada. Depois, passou a mão pelo busto.
— Você acha que eu tenho seio demais?
— Claro que não. Os meus são maiores...
— Está brincando — Ema sorriu e bebeu o suco em goles curtos, ininterruptos.
— Duvida? Pode medir...
— De sutiã não vale — argumentou. — Vamos lá em cima. A gente se despe e compara — aproveitou a subida para recolher a desordem empilhada. Fazia questão de manter a casa impecável. Bárbara pensou que a amiga talvez tivesse um pouco de neurose com arrumação.
Ema acendeu a luz do quarto.
— Comprou lençóis novos?
— Mamãe mandou de presente. Chegaram ontem. Esqueci de contar. Não são lindos?
— São.
— A velha tem gosto — Ema disse, enquanto se despia em frente ao espelho. Bárbara imitou-a.
É muito bonita — Ema reconheceu. Cintura fina, pele sedosa, busto rosado e um dorso infantil. Porém, ela não perdia em atributos, igualmente favorecida pela sorte. Louras e esguias, seriam modelos fotográficos, o que entendessem, em se tratando de usar o corpo — não é, Bárbara?
— Decididamente perdi o campeonato. Em matéria de tamanho os seus seios são maiores do que os meus — a outra admitiu, confrontando.
Carinhosa, Ema acariciou as costas da amiga, que sentiu um arrepio.
— O que não significa nada, de acordo? — deu-lhe um beijo.
— Credo, Ema, suas mãos estão geladas e com este calor...
— É má circulação.
— Coitadinha — Bárbara esfregou-as vigorosamente. — Você precisa fazer massagens e exercícios, assim — abria e fechava os dedos, esticando e contraindo na palma. — Experimente.
Eram tão raros os instantes de intimidade e tão bons. Conversaram sobre as crianças, os maridos, os filmes da semana. Davam-se maravilhosamente — Bárbara suspirou e se dirigiu à janela: viu telhados escuros e misteriosos. Ela adoraria ser invisível para entrar em todas as casas e devassar aquelas vidas estranhas. Costumava diminuir a marcha do carro nos pontos de ônibus e tentar adivinhar segredos nos rostos vagos das filas. Isso acontecia nos seus dias de tristeza. Alguma coisa em algum lugar, que ela nem suspeitava o que fosse, provocava nela uma sensação de tristeza inexplicável. Igual à que sente agora. Uma tristeza delicada, de quem está de luto. Por quê?
— Que horas são? — Ema escovava o cabelo.
— Imagine, onze horas. Tenho que sair correndo.
— Que pena. Não sei por que fui pensar em hora. Fique mais um pouco.
— É tarde, Ema. Tchau. Não precisa descer.
— Ora, Bárbara... deixa disso — levou a amiga até o portão.
— Boa noite, querida. Durma bem.
— Até amanhã.
Ema examinou atentamente a sala, a conferir, pela última vez, a arrumação geral. Reparou na bandeja esquecida sobre a mesa, mas não se incomodou. Queria um minutinho de... ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer — apagou as luzes. A noite estava clara, cor de madrugada pensou, sentando no sofá. Um sentimento de liberdade interior brotava naquele silêncio. Um sentimento místico, meio alvoroçado, de alguém que, de repente, descobrisse que sabe voar. Por quê?

* Edla van Steen nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 1936. Seu pai era belga e cônsul-honorário naquela cidade. Tem 25 livros publicados, entre contos, romances, entrevistas, peças de teatro, livros de arte. A escritora é casada com o historiador e crítico teatral Sábato Magaldi.



O ônibus para Trancoso

* Por Urda Alice Klueger


Em 1500 Cabral descobriu o Brasil, no lugar privilegiado chamado Porto Seguro – trinta e poucos anos depois vieram para aquele lugar uns poucos portugueses, e fundaram lá quatro arraiais: Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Arraial D’Ajuda e Trancoso.
Quase nada aconteceu nesses arraiais de 1530 a 1972 – sem estradas, com um navio passando lá uma vez por mês, as populações locais puderam manter um estilo de vida à moda de 1500, sem se darem conta de quanto mudava o mundo.
Em 1972, porém, construiu-se uma estrada asfaltada, ligando a BR 101 a Porto Seguro, e chegaram lá os hippies, e depois os turistas, cada vez mais turistas, e faz uns quatro anos que fez-se lá um grande aeroporto, e os turistas tomaram conta daquele paraíso de vez. Eu fui uma assídua freqüentadora da região até que o turismo em massa tirou a maior atração dela: uma atmosfera única, um dos últimos santuários do mundo onde sobrevivia a filosofia hippie. Isso acabou, Porto Seguro e seus arraiais são, agora, apenas mais algumas praias.
Mas vamos falar dos velhos tempos, do Arraial de Trancoso. Trancoso dista 24 km de Porto Seguro, e a estrada para se chegar lá é tão ruim, mas tão ruim, que se levava bem umas duas horas de ônibus para cobrir aqueles escassos 24 km. Falo no passado porque já faz alguns anos que não vou lá, e podem ter construído novas estradas.
Trancoso era o meu lugar preferido no mundo. O arraial ainda conserva a sua forma de quadrado, demarcado em 1530 e pouco, e a vida, lá, corria com uma beatitude e uma paz que a ente não acreditava que ainda pudesse existir. Ir passar o dia em Trancoso, esperar a luz da tarde em Trancoso ao pôr-do-sol, deitar na mesma grama, perto dos cavalos, e ficar sem fazer nada, era o programa mais maravilhoso de todos, para mim.
Para se chegar a Trancoso, tinha-se que pegar o ônibus de Trancoso, e é dele que quero falar. Lata velha é um elogio para o ônibus de Trancoso – velhíssimos ônibus caindo aos pedaços cobriam os 24 km que nos levavam ao paraíso, e tudo acontecia neles. Um deles, mesmo, só tinha bancos na frente – na parte detrás, no chão, tinha um pneu de trator, onde os turistas do mundo inteiro sentavam-se e ficam se segurando pela estrada péssima, e viajar sentado naquele pneu de trator já descongelava as pessoas, já criava uma cumplicidade que fatalmente acabava em amizade – era ótimo aquele desconforto.
Tudo acontecia no ônibus de Trancoso. Lembro de uma vez, em que uma mulher nativa, bêbada que não se agüentava em pé, pegou o ônibus de volta de Trancoso já noite fechada. Ela sabia que teria que saltar no caminho, mas não lembrava mais onde era a sua casa. O que fez o motorista?Ficou parando a cada das esparsas casas que havia no caminho, buzinando e perguntando:
– Esta mulher é daqui? – até que achou a casa certa e entregou a bebum.
Na outra volta de Trancoso, também noite fechada, um anativado loiro (anativado era toda uma classe de pessoas que viviam lá – eram os turistas que tinham vindo para as férias e não tinha mais ido embora) começou a pedir ao motorista que parasse. Havia urgência na sua voz que pedia alto, e o motorista parou. Que fez o anativado? Desceu os degraus do ônibus, parou no último e, com todo o mundo a observá-lo, na maior tranqüilidade, fez xixi na noite lá de fora e, na maior naturalidade, voltou ao seu lugar e a viagem prosseguiu.
A minha história preferida do ônibus de Trancoso é a de uma mulher chique, diretora de um hospital em São Paulo, que fora para Porto Seguro a mando médico, com stress. Estávamos na mesma pousada e ficamos amigas, mas o stress dela era brabo e estava custando a melhorar. Um dia, fomos juntas a Trancoso, e ela curtiu lá, mas não curtiu muito – o stress continuava. No ônibus de volta, porém, ele passou. A senhora chique, cheia de anéis caros, estava sentada, e no corredor, de pé, havia um pescador bêbado. Ele tinha uma cesta cheia de peixes, e numa das curvas do caminho, ele desequilibrou-se e acabou derramando toda a cesta de peixes sobre a diretora do hospital de São Paulo. Era para chorar, mas rimos tanto, mas tanto, que, quando saiu do ônibus, a senhora tinha deixado o stress para trás. Com certeza, em São Paulo, não teria conseguido terapia tão rápida e eficiente.
Estas são só algumas historias do ônibus de Trancoso. Quantas mais teria para contar!


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um poema de Cida Pedrosa

* Por Luiz Carlos Monteiro

Cida Pedrosa é poetisa de Bodocó (PE), mas radicou-se no Recife há um bom tempo. Sua poesia reflete, em termos éticos, a condição da mulher brasileira e a busca incessante por cidadania. Sem, no entanto, escamotear um necessário sentido estético para as estruturas vérsicas em constante mutação e inovação. Seu livro mais recente, As filhas de Lilith, traz ilustrações de Tereza Costa Rego e design de Jaíne Cintra, para o acompanhamento de versos fortes, transparentes e arrojados. Todos os poemas têm como títulos nomes de mulheres, de A a Z. A mulher é vista em situações cotidianas e inusitadas, na rua e no quarto, na solidão e no seio da família, no salão de beleza e nas nuances da vida pública. O poema “cecília” (em caixa baixa mesmo), expõe o afã da mulher que lava rotineiramente uma calçada pela manhã, pondo nisso toda a sua concentração. Enquanto varre e enxuga, pensa pequenos sonhos e exorciza a agonia noturna. Como se pudesse consumar solitariamente a limpeza, enerva-se e se apressa quando olhos indiscretos a observam:

ela lava a calçada
como quem lava o mundo

do balde a cachoeira
molha pés dançarinos
alojador de sapatos
andante de procissões

na tirania da água
o barquinho de papel
escorre pelo sonho da menina
e o burburinho assusta o velho da janela

cecília lava a calçada
e a espuma em pedra
é breve morada em seus pés

portas se abrem
olhos espiam
a vassoura se apressa
e varre a agonia
vivida durante a noite


* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

Milena

* Por Cida Pedrosa

Gosto quando milena fala
dos homens
que comeu durante a noite
é a única voz soante
nesta cantina da repartição
onde todos contam:
do filho drogado
do preço do pão
do sapato carmin, exposto na vitrine
da rua sicrano de tal do bairro
de casa amarela
onde você pode comprar
e começar a pagar apenas em abril
sem a voz de milena
o café desce amargo


* Poetisa cearense radicada no Recife

sexta-feira, 29 de outubro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Quando a mente se desarranja.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “Dilma depois do debate da Globo”.

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Sábado de futebol?”

Coluna Visões do cotidiano – Silvana Alves, crônica “No que sinto”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, crônica “Madrugada quente”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Bórgia, crônica “Simplificar”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Quando a mente se desarranja

Os desarranjos mentais, tragédia para quem sofre (e para suas famílias também), constituem-se em temas recorrentes, muito explorados em literatura. Há tempos este é um dos meus assuntos preferidos, pelos mistérios que envolve e pelo tanto de preconceito que o cerca. Claro que não estou sozinho nessa fascinação. Embora seja de se deplorar a situação das vítimas desses males, não deixa de ser morbidamente fascinante para quem a observa de fora. Centenas, milhares de poemas, crônicas, ensaios, contos e romances já foram escritos (e certamente outro tanto ainda o será) sobre o que se chama, de forma generalizada, de “loucura”. Esses desarranjos são vários, não um só, e vão desde uma simples neurose, à profunda psicose. Desde uma depressão, que abala a vida de quem a sofre, mas não a alheia da realidade, à esquizofrenia. Mas todos são tratados praticamente da mesma maneira.

O doente mental é, desde eras muito remotas, vítima de incompreensão e de preconceito. Antigamente (mas não tanto assim), passava por terríveis torturas físicas (além das psíquicas inerentes à sua doença). O vulgo entendia que essas pessoas estavam “possuídas por demônios”. O pobre infeliz que “nãqo batia bem da cachola” era acorrentado, levava tremendas surras, pois se acreditava que desta forma os supostos espíritos malignos eram passivos de expulsão e não raro morria nas mãos da turba ignara, vítima desses maus-tratos e agressões. É caso de se perguntar: quem era o louco na história, a vítima ou seus algozes?

Em pleno século XXI, esses doentes mentais continuam sendo tratados, em muitos lugares, de forma tão desumana, indigna e até vil como antigamente. São encerrados em manicômios sombrios, sórdidos e insalubres, dopados com tranqüilizantes que não só os acalmam mas os tornam praticamente “vegetais”, recebem choques na cabeça ou têm partes do cérebro extirpadas (as lobotomias) Etc. e isso mesmo em casos que não comportam internações e que poderiam e deveriam ser tratados ambulatorialmente, e no seio das respectivas famílias. Estas, todavia... os repudiam. Querem se livrar de qualquer jeito deles.

Um dos psiquiatras que mais combateu esses procedimentos absurdos e desumanos para com os doentes mentais – rotulados, todos, genericamente, de “loucos” – foi o escocês Dr. Ronald David Laing, uma das maiores sumidades na matéria do século XX e que morreu em 1989. Ele propugnou, ao longo de toda a carreira médica, que o tratamento mais eficaz para esses pacientes, notadamente para os esquizofrênicos, não deveria ser, jamais, a hospitalização e nem o eletrochoque, mas apenas a comunicação. Mas com uma condição: que essa fosse estabelecida, apenas, quando o doente depositasse plena confiança em seu médico.

Laing escreveu: “Derrubar os muros dos manicômios, lutar contra o feroz isolamento dos doentes, preparar um diálogo possível com os esquizofrênicos, deixá-los ir ao fundo de seus delírios, arriscando-se a que se percam completamente ou voltem curados, recusar soluções efêmeras e opressivas, como os calmantes e os eletrochoques”. Muitos especialistas acataram sua forma de tratamento, advinda de profunda observação, e o índice de cura foi muito alto. Outros... Persistiram (e boa parte persiste), teimosamente, na forma cruel e desumana de tratar os doentes. O médico escocês era, principalmente, especializado em esquizofrenia, doença que definiu assim: “A pessoa que de repente não quer mais corresponder à imagem que sua família ou o meio social lhe impingiu refugia-se no irreal, no imaginário, torna-se um esquizofrênico”.

“Ora”, dirá o leitor, “se o critério for este, então todo o mundo tem um pouco de esquizofrenia”. Quem sabe se não tem, de fato?! O Dr. Laing acrescenta, à guisa de explicação: “Sanidade e loucura são estabelecidos pelo grau de dissintonia existente entre duas ou mais pessoas. O problema está no contexto onde se fazem as coisas: uma mulher que reza fervorosamente no interior de uma igreja pareceria absurda se tivesse comportamento idêntico no meio da rua”.

Sabem o que é mais curioso? É a origem da palavra “louco”. Ela é uma corruptela exatamente do seu oposto, ou seja, de “lógico”. E, de fato, há alguma “lógica” na insanidade mental, posto que distorcida e doentia. Há quem considere, por exemplo, a loucura o antônimo de “racionalidade”. Não é. O Dr. Isaías Pessotti, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, explica porque: “A racionalidade não é a perfeição. Pode ser até a loucura, quando a serviço da violência do instinto”.

Já o filósofo francês, Michel Foucault, no livro “História da loucura”, sustenta a tese que toda pessoa imaginativa tem componentes característicos do desarranjo mental. Exagero, claro. E o Dr. Pessotti explica porque: “Se pessoas rotuladas como loucas foram grandes criadores, trata-se de pessoas muito ativas que, por acidente, ficaram loucas. Ou se trata de pessoas que na situação acrítica de marginalização (como loucas) revelam uma criatividade que a vida ‘normal’ impedia de se ver ou de se manifestar. Mas a loucura não é libertação do espírito. Muito ao contrário. É a escravidão do pensamento”.

Por falar em loucura, um dos livros que mais me impressionaram a respeito é o romance “Onze minutes”, de Paulo Coelho, best-seller mundial, que logo sera transformado em filme. Acho, como Pessotti, uma estupidez a glamurização dos desarranjos mentais, como se se tratasse de alguma virtude, de aptideão ou de cacoete e não de doença. Como acho estúpido, também, decretar a morte em vida de quem passa por esse drama, como se não tivesse cura. Alguns casos não têm mesmo, mas boa parte é caravel com a terapia simples e humana do Dr. Ronald David Laing: a do amor. “Uma palavra pode matar uma pessoa. Uma simples palavra colocada no lugar certo, no momento certo, pode mudar toda uma vida”, observa o ilustre psiquiatra escocês. E pode até curar alguns dos mais sérios desarranjos mentais. O que não podemos, sadios mentalmente ou doentes, é nos isolar e nos trancar dentro de nós mesmos. Porquanto, como o Dr. Laing resume, “pode-se dizer que a loucura é você não ter nenhum amigo”.

Boa leitura.

O Editor.



Dilma depois do debate na Globo

* Por Urariano Mota


Quando o debate entre Dilma e a Rede Globo for passado, estaremos no próximo domingo como se tudo houvesse ocorrido no século que passou. Poderemos então falar desse encontro-cilada com os olhos que miram o espelho retrovisor do carro, como se tivéssemos sido transportados de um ano velho, ou dizendo melhor, como se houvéssemos sido arremessados de um século antes para esse presente tão próximo, depois de longas horas no caminho que vencemos.

O sentimento que no peito imagina o Brasil de 31.10.2010, como se o tempo se iniciasse agora, é de uma alegria que vem depois de uma tormenta. Caímos, levantamos, caímos, caímos, levantamos, e quando não nos levantamos de todo, não aceitamos as imposições da derrota. Ah, parecemo-nos dizer, desgraças?, que venham, só temos uma opção, queremos a felicidade, e se ela não vier, ah, damo-nos de ombros, porque estamos e estaremos trabalhando para que ela um dia venha. E se a danação e a maldição e todas as desgraças em ão se unirem, ah, sorriremos, como a dizer, gente, foi bom, apesar de tudo, o caminhar até aqui. E seguiremos, na pior hipótese.

O ato de escrever agora sofre um preciso conflito e a perseguição obsessiva de um pensamento. O conflito é ter o objetivo de comentar um debate que acabará daqui a horas, ao mesmo tempo em que temos a certeza de saber que depois dele, esse largo tempo depois que alcança a leitura e os dias que virão, o debate já não mais interessará. O debate foi, terá sido, e seu efeito sobre o que vemos será nenhum, nas futuras horas.

O debate foi, terá sido. Passaremos por ele como passamos impacientes por uma procissão de automóveis, como passamos as horas antes de receber o esperado salário do fim do mês, ou como atravessamos as horas antes da correspondência com a notícia há muito esperada. Para quê falar de debate agora, diremo-nos, se ele é a própria expressão das horas mortas?

O pensamento obsessivo a nos perseguir como um pentecostes, como Deus no caminho de Paulo a bradar contra Si uma blasfêmia, é uma interrogação que tem a forma de uma chama incessante: de que nos serve a liberdade se não transgredimos? Existe liberdade quando não vamos além do permitido, do recomendado, do que é sugerido pela tradição? Por isso é válido e inserido no contexto imaginar Dilma depois do próximo domingo.

Com exceção dos profetas, com certeza ninguém escreve sobre o que virá. Sempre escrevemos sobre o que foi, veio ou lembramos. Daí que o tempo entre o que vemos e o que transmitimos não se dá na mesma ordem, a não ser na escrita automática dos delírios do inconsciente. Daí que ao acabar a frase “ninguém escreve sobre o que virá”, recebemos de imediato o golpe de um estudante de Letras, a nos perseguir com “o que me dizes sobre a ficção científica?”. Ora, lhe respondemos: uma boa forma de prever é refletir sobre o visto. A tendência de futuro está presente agora mesmo, a nosso lado, e muitas vezes os olhos míopes não veem. A ordem do tempo, para quem escreve, sempre é invertida. Porque partimos sempre da experiência, e somos lidos como se partíssemos do fruto presente. Daí o conflito, daí a perseguição do pensamento que nos perfura com a sua subversão.

Esse futuro virá como uma lembrança do último debate em 2006, quando o cowboy William Bonner anunciou, como anunciará:

“Estamos na Central Globo de Produções, no Rio de Janeiro, para o último debate entre os candidatos à Presidência da República....”

E o cowboy Bonner, que Deus o tenha, porque é um bom rapaz e acredita na sua farsa, depois perguntará, dirá coisas que a sua produção e Kamel pensam ser acreditáveis, pois este será o seu espetáculo, talvez, quem saiba, o último, de Bonner, de Kamel, ou de ambos. As imagens ficarão indecisas se fazem planos e tomadas que privilegiem os olhos esbugalhados, atônitos, de humorista involuntário de Serra, ou se tomarão segura distância, porque, quem sabe, à distância ele parece um tiozinho sério. Então será provável que a câmera gradue a distância, porque olhos arregalados em close são puro pavor, Hitchcock sem trilha musical. Enquanto em Dilma, assim como aconteceu com Lula, o zoom deixará de ser um recurso, e, até compreendemos, será apequenada, para que o espaço da sua fala venha a se dividir com a imagem do adversário Serra, que a rondará. Que papelão, que cenário para a democracia de cenário!

O certo é que depois desse último debate, a maioria do povo terá escolhido um número bem direitinho, pobre e analfabeto que é, a saber: o algarismo 3 depois do algarismo 1, que, assim colados, nessa ordem, o 1 primeiro, o 3 depois, farão, assim como em 2006, um número 13. Para maior vitória desse domingo futuro, que passou.

• Escritor e jornalista



Sábado de futebol



* Por Rodrigo Ramazzini

Era sábado e como acontecia em todos os finais de semana o futebol estava marcado pontualmente para as 8h da manhã no clube. Mas sabe como é, sábado é um dia meio preguiçoso. Lá pelas 09h15min apareceram os dois primeiros, o Juninho e o Beta, uma abreviação do apelido original que era Beterraba. A dupla chegou e como viu que não tinha ninguém ainda, e como era deles a importante missão de levar a cerveja para a turma, resolveram abrir os trabalhos e estourar a primeira geladinha enquanto aguardavam o restante dos atletas.
Ficaram por ali, bebericando e conversando sobre futebol, mulheres e trabalho, não necessariamente nessa ordem. Aos poucos, coisa rápida pode-se dizer, um a um dos jogadores foram chegando, se interando dos assuntos e pegando os seus copos. Precisamente às 11h15min os dois times estavam completos e o futebol já podia começar. Foi que então se depararam com um dilema: ou o Odair atacava de camisa nove no time vermelho ou guiava os espetos para o churrasco de meio-dia.
Jogo transferido para as 16h e uma “vaquinha” organizada para buscar mais cerveja, todos os jogadores sentaram-se perto da churrasqueira e o bate-papo rolou solto. Entre uma cervejinha e outra e uma beliscadinha em um pedaço de carne aqui outro acolá, o José que morava bem próximo ao clube, teve a idéia de buscar o cavaquinho em casa para fazer um sambinha, enquanto digeriam o churrasco antes do jogo de futebol. Em pouco tempo, coisa de 45 minutos, ele retornou trazendo além do cavaquinho, mais uma turma que tocava bumbo, pandeiro e violão, mais três mulatas para remexerem os quadris.
Roda de samba formada, só tocando sambão das antigas, entretidos em meio às melodias e cantorias, pedaços de carne, nádegas firmes e cerveja, o tempo voou e o relógio marcou 16h. Como o Jorginho e o Mário tinham saído para buscar mais uma rodada de cerveja para abastecer a geladeira, o jogo foi novamente transferido para assim que a dupla de zaga do time azul chegasse das compras. Pontualmente às 17h35mim a bola estava no meio de campo, apesar dos protestos de alguns que queriam ver o final da partida que estava sendo transmitida pela televisão.
O dia tinha passado com um jeito de chuva, com algumas nuvens bem pesadas no céu, que resolveram mandar água às 17h40min. O Pedrão, um preto de quase dois metros de altura, disse que não jogaria na chuva porque ainda estava se recuperando de uma forte gripe e abandonou o gramado. O resto da turma, que também não estava muito a fim de jogar, o seguiu e no aguardo que a chuva cessasse, comprou mais uma rodada de cerveja e ficaram por ali contando história um para o outro e tomando uma gelada.
Quando o relógio marcou 19h30min, o Teixeira, um dos mais animados com o sábado de futebol, a contragosto, teve que se despedir e ser o primeiro a ir embora, pois tinha que participar do casamento de uma amiga da sua mulher que ele nem lembrava o nome. Chegando a sua casa, a esposa o recepcionou na porta e vendo-lhe com o uniforme de futebol completamente limpo, não refutou e questionou:

- Ué! Não teve jogo?

E o Teixeira, mesmo engasgando-se no começo, quase deixou transparecer o esquecimento e escapar um “que jogo?” na resposta, conseguiu recuperar o fôlego e encenar uma situação, com um ar de indignação.

- Que... que... jogo... Ah! A maior palhaçada os caras fizeram hoje! Armaram tudo para jogar a partida... daí, uma hora um não pode por causa disso, outra o outro não pode por causa daquilo... Palhaçada! Quando a bola realmente rolou começou a chover... resumindo: ficamos o dia todo tomando cerveja e contando mentiras. Um saco! Estava louco para jogar uma bolinha! Vou te contar... mas, também, já decidi... se não sair jogo sábado que vem não vou mais!

E a esposa, parecendo convencida com a resposta, apenas replicou:

- Ah, tá!

Sentindo que a estratégia fora correta e que liberação para o próximo sábado de futebol estava garantida, Teixeira não titubeou e rapidamente trocou de assunto.

- Mas que horas é o casamento mesmo?


• Jornalista



No que sinto

* Por Silvana Alves

Prefiro crer no que sinto, no que se traduz em sentimentos para mim. Prefiro dizer o que sinto, ao invés de agradar para ganhar mais um sorriso. Dizer a verdade, às vezes, machuca, eu sei.... Mas, pior do que não dizer a verdade é sustentar a ilusão ou mentira de alguém.

Sou paciente para esperar que as pessoas consigam entender isso em mim. Mas não tolero falso moralismo, superficialidade, demagogia e todas as mentiras que ela planta para ela mesma. Sou ser humano, portanto, nem perfeita e nem a dona da verdade.

Sou ser humano, repleta de erros, dúvidas, medos e temores. Mas creio no ser maior. Creio em Deus, que sustenta minha alma e meu espírito. Creio que, se depositarmos nossa fé n’Ele, tudo se resolverá na medida do tempo de Deus. Creia nisso, e tudo se renovará em sua vida!

* Jornalista formada pela FATEA (Faculdade Integrada Teresa D´Ávila). Duas palavras falam por mim: vida e poesia.



Madrugada quente

* Por Eduardo Oliveira Freire


Yolanda chegou cansada do trabalho.


A primeira coisa que viu foi a Olivetti sobre o sofá-cama. A madrugada avançava. A quitinete estava um forno e mesmo com a janela escancarada, não vinha sequer uma brisa. Yolanda (só de calcinha) escrevia alguns poemas, sentada no sofá-cama e com a máquina de escrever portátil sobre os joelhos. As horas passavam, o calor continuava. Ela parou de escrever e foi beber água. O seu corpo estava todo suado. Decidiu tomar banho para se refrescar. Não adiantou, a água estava quente.

“Está tão quente, que parece que vou derreter, aliás, que tudo em minha volta se transformará numa poça de suor”. Quando saiu do banheiro, lembrou-se da discussão com Clara, que a chamou de alienada. Revoltada, Yolanda respondeu que tinha consciência dos problemas que o país estava passando: a repressão militar e as mazelas sociais, mas que não podia se esquecer de sua família, principalmente da mãe, que estava muito doente.

Às vezes sentia raiva, queria ser sozinha para seguir os seus ideais e desejos. Andou em direção à janela. Recordou que a mãe lhe dizia sempre: – Você é que nem um passarinho. Frágil, mas livre –. Calor, sono, pensamentos e poemas por passar a limpo se misturavam. Estava tão cansada, que dormiu entre os papéis e a Olivetti. No meio de tanto desconforto, ficou o último poema que acabara de passar a limpo:

“A verdadeira nudez é caótica.
Não se pode entendê-la, mas senti-la.
Deve-se buscar o lado animalesco
e deixar o humano de lado”.
Yolanda Ferreira


* Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e aspirante a escritor. Blog:
http://cronicas-ideias.blogspot.com/



Simplificar

* Por Fabiana Bórgia



É preciso simplificar a vida: cortar as tarefas que não são essenciais e saber curtir o máximo do momento do lazer. Viver os momentos em sua plenitude. Na hora do trabalho, por exemplo, ficar atento apenas a isso. No momento de diversão, esquecer os outros compromissos. É isso.

Simplificar é não trazer tarefas demais. É aceitar a vida da forma como ela se apresenta. Entender que sempre falta alguma coisa. Compreender as fases. De esforço. De dedicação. De abdicação. De entrega. Fase de curtir. De viajar por aí. Férias. Novidades.

Sonhar sim, mas com os pés no chão. Acreditar que tudo é possível dentro do seu possível. Sentir aquilo que realmente lhe toca o coração. Entender que tudo é processo. E que se leva uma vida toda, às vezes, para chegar a determinado patamar.
Viver bem o dia de hoje. Fazer acontecer agora aquilo que depende de você. Já. O amanhã se encarrega de colher aquilo que foi plantado ontem, um ontem que já foi "hoje".

Difícil ser assim: ter asas e saber que seus voos também têm limites, de acordo com o tamanho de suas asas e a velocidade e direção do vento.

Passar pelas tempestades e inundações.Viver períodos de bonanças, farturas, excessos. Sobreviver aos períodos de seca. Saber florir, mesmo quando se quer murchar. É assim que se vive bem.

• Escritora por vocação e advogada por formação. Paulista por natureza e carioca por estado de espírito. Engenheira de sonhos: alguém em eterna construção. Autora do livro “Traços de Personalidade”

quinta-feira, 28 de outubro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Só um pouquinho de atenção

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Fale-me de flores”.

Coluna Aventuras em paradoxo – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Vem que é bom!”

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto “Piadabras”

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Microcontos - Diálogos”

Coluna Porta Aberta – Raul Fitipaldi, crônica “Po0sso chorar como ‘cabecita negra’”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Só um pouquinho de atenção

Boa parte dos problemas que afligem uma quantidade imensa de pessoas mundo afora, tão grande que se torna impossível de quantificar, mas que ascende a alguns bilhões, é a sensação onipresente de solidão. É a falta de compreensão alheia e a imensa dificuldade humana de comunicação. Vocês talvez tenham estranhado essa afirmação. Pois é isso mesmo o que ocorre com enjoativa freqüência. Basta observar atentamente. Raros não se sentem sozinhos e o tempo todo.

Reitero o que escrevi em inúmeros artigos e ensaios que, “se sentir só” é não apenas estar em um lugar isolado, em que não haja ninguém. Posso sentir-me assim (e geralmente eu e praticamente todo o mundo se sente) em meio a grandes multidões. A verdadeira solidão, a que dói demais e deixa profundas marcas psicológicas e afetivas, é a caracterizada ou pela ausência ou pela deficiência de contatos efetivos entre pessoas. É, pois, como afirmei, uma falha (se não falta) de comunicação.

Concordo com Milan Kundera quando escreve em seu “O livro do riso e do esquecimento”: “Toda a vida do homem entre seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do outro”. Observe-se que o escritor checo não quis referir-se, aqui, especificamente, ao órgão auditivo. Quis dizer que nos empenhamos a todo o momento para obter e conservar a “atenção alheia”, e quanto mais, melhor. Até porque, os “desabafos” não ocorrem, somente, por via oral, mas também por textos (e hoje, com o advento da informática e da internet, mais do que nunca. Recebo, diariamente, dezenas de emails de pessoas expondo suas angústias e dificuldades. Não lhes nego atenção. Só lhes peço que não queiram conselhos meus, pois não sei o que lhes dizer).

Notem, por exemplo, o que ocorre em uma conversa informal qualquer. São raros os participantes desses papos, por mais descontraídos que sejam, que se dispõem a apenas ouvir. Todos querem falar (não importa o que), muitas vezes ao mesmo tempo. Quem mais ouve, calado (ou que assim pareça), passa a ser o personagem principal, o interlocutor mais requisitado nesses papos. Como se vê, “todos batalham, e o tempo todo, para se apossar dos nossos ouvidos”. Pôr para fora problemas, temores e mágoas é importante, importantíssimo. E ouvi-los? Também considero que seja.

Gosto de ouvir as pessoas. Daí, certamente, contar com certo grau de popularidade nas tais rodas de amigos. Faço isso, todavia, é bom que se esclareça, não por generosidade, mas pelo contrário, por motivos, digamos, bastante egoísticos. Aprendo demais sobre o comportamento, as neuroses, os terrores e os anseios de um monte de gente ouvindo o que esse pessoal tem a dizer. E como escritor, esse aprendizado é precioso e essencial, porquanto (óbvio) escrevo sobre pessoas, para outras pessoas lerem.

Cheguei à conclusão que o melhor que podemos fazer, em favor de quem precisa de ajuda, não é, por exemplo, lhe dar dinheiro para adquirir bens, nem comida para alimentá-lo, muito menos roupa para vesti-lo ou um teto para abrigá-lo. Podemos e devemos fazer isso emergencialmente. No longo prazo, todavia, a verdadeira generosidade consiste em ensinar essa pessoa a obter tudo o que precisa, mas com os próprios recursos. Trata-se da velha máxima de, em vez de dar um peixe ao faminto, ensiná-lo a pescar. Dessa maneira, não saciará a fome só uma vez, mas sempre que a tiver. Também concluí que ouvindo, atento, seus desabafos, por mais longos, monótonos e incoerentes que sejam, presto-lhe imensa ajuda, mesmo que não lhe diga uma única palavra. Acabo, nesses casos, fazendo as vezes de um psicanalista.

Carlos Bernardo González Pecotche, “pai” da Logosofia, observa: “A maior obra de caridade se constitui em estender a compreensão básica do que cada homem pode fazer em seu próprio benefício”. Ou seja, devemos ajudar o desvalido a se ajudar, mesmo que à sua revelia. Por comodismo, ele vai resistir a essa tentativa. É mais fácil pedir! Devemos, no entanto, ser inteligentes e persuasivos o suficiente para convencê-lo de que esse é o único caminho para a sua redenção e progresso. Isso quando se dispõe a ouvir-nos. Se não se dispuser, não nos custará muito disponibilizar-lhe nossos ouvidos.

Há pessoas cuja simples presença ilumina o ambiente em que se encontram, traz alegria ao nosso coração e nos leva a esquecer problemas, mágoas e preocupações. São as que têm o dom de encarar a vida sob um prisma positivo. E, mais do que isso, de nos convencer que nossos sofrimentos não são tão profundos como achamos e que nossas alegrias são maiores do que de fato são. Têm carisma, magia, e o dom da empatia. Partilham pensamentos e sentimentos nobres. Tentemos ser assim. Basta querer. Quando falarmos, evitemos de ser derrotistas, com pensamentos e sentimentos negativos.

Há pessoas que vivem, o tempo todo, a se lamentar. Encontram defeitos reais ou imaginários em tudo e em todos. Contagiam-nos com seu pessimismo e fazem com que fujamos da sua companhia, desagradável e negativa. Ainda assim, sejamos generosos. “Emprestemos-lhes” nossos ouvidos, para que elas ponham para fora tudo o que as amedronta, deprime e infelicita. Sejamos, em nossa conduta diária, na medida do possível, os que iluminam o caminho e consolam quem necessite de consolo. Façamos como o poeta Paul Claudel expressa num magnífico poema: “Que todos os que se aproximarem de mim tenham vontade de cantar, esquecendo as amarguras da vida”. Ofertemos ao próximo aquilo que para ele pode ser o bem mais precioso e que mais necessite: um pouquinho que seja da nossa atenção.

Boa leitura.

O Editor.