Pontes e abismos
O
fundamental para o progresso de determinada sociedade (não importa
qual) é a coesão. É o espírito de irrestrita cooperação para o
alcance de um objetivo determinado. É a solidariedade. É o forte
ajudando o mais fraco, em vez de pisoteá-lo e de se aproveitar dele.
É a justiça, em seu significado estrito. A maioria das pessoas
nutre este ideal na juventude que, inexplicavelmente, vai deixando
pelo caminho à medida que amadurece.
Para
que haja essa utópica coesão, todavia, todos os integrantes da
sociedade, até por questão semântica, têm que ser tratados como
“sócios”. Devem ser partícipes dos seus sucessos e
corresponsáveis dos fracassos. O estado de miserabilidade em que
vegeta a grande maioria da população mundial é incompatível,
pois, com nossa humanidade, com a condição de seres racionais.
Estamos só de passagem no mundo. Nada, rigorosamente nada, é de
ninguém.
O
que existe, diz a mínima lógica, deveria ser partilhado com cada
pessoa, conforme suas necessidades. O que é lógico para qualquer
indivíduo esclarecido, soa como heresia para ideólogos de todas as
ideologias. Daí este paraíso cósmico haver se transformado no
inferno que é. Em vez de se erigirem pontes, para conciliar
diferenças e aproximar diferentes, erigem-se muros para separá-los
para sempre. Ou pior, cavam-se abismos que, como o Gran Canyon, nos
Estados Unidos, apenas se aprofundam à medida que o tempo passa e
que se sucedem gerações. Crescem e se multiplicam como ratos os
egoístas, os usurpadores e, principalmente, os indiferentes.
Ponderemos:
o oposto do amor não é, como se pensa, o ódio. É a indiferença.
E esta se caracteriza pelo fato de não se ligar a mínima a alguém,
ignorando, até mesmo, sua existência. Trata-se da frieza suprema,
do total pouco-caso, da completa ausência de sentimentos. Estes são
os construtores de muros de separação por excelência. São os
cavadores de valas, que se transformam em abismos, separando os
diferentes.
O
ódio, por exemplo, embora sempre destrutivo, não deixa de ser uma
forma de paixão (posto que condenável), porquanto leva em conta
quem é alvo dele, mesmo que seja para o combater. Quem odeia,
portanto, “respeita”, de certa forma, o desafeto. Já a
indiferente... nutre pelo antagonista supremo, olímpico desprezo,
como se este fosse o pior dos piores. Nada há de mais ofensivo do
que essa infeliz atitude.
É
certo que o envolvimento, tanto com pessoas, quanto com causas,
implica em riscos. Isto é óbvio. O escritor Michael Drury aponta
alguns desses perigos: "Ninguém pode negar que se envolver em
coisas significa arriscar-se. A pessoa de que nos enamoramos pode
magoar-nos terrivelmente; os amigos que discutem e que tentamos
reconciliar poderão voltar-se contra nós com a sua cólera
conjugada; o homem que se afoga e tentamos salvar pode arrastar-nos
consigo para o fundo. Contudo, evitando dissabores e desapontamentos,
tornamo-nos frios, desumanos". Tornamo-nos indiferentes. Em vez
de tentarmos erigir pontes, apenas cavaremos abismos.
O
estranho é ver intelectuais comprometidos com o acúmulo de riquezas
pessoais, empenhando o que de melhor possuem em um objetivo tão
pífio. Ninguém mais do que eles tem capacidade para perceber o
quanto essa meta é vazia e até absurda. Sequer é necessário
mencionar a razão. Tais pessoas sabem, conhecem-nas de sobejo.
Albert
Einstein, em seu livro "Como Vejo o Mundo", expressa:
"Tenho a firme convicção de que nenhuma riqueza de bens
materiais pode fazer progredir o homem, mesmo que ela esteja nas mãos
de homens que demandam uma meta superior. Pode alguém imaginar
Moisés, Jesus ou Gandhi armados com um saco de dinheiro?" A
resposta à questão é óbvia.
Ainda
há, felizmente, pessoas empenhando prestígio e credibilidade nas
grandes causas sociais, embora em um número aquém do que seria
desejável. Há muita gente erigindo pontes ou tentando aterrar
abismos. São utópicos? Sem dúvida. Mas são essas pessoas que
mantêm o mundo girando e as coisas funcionando com certa
normalidade, mesmo sem serem reconhecidas, quanto mais recompensadas
(embora nem esperem recompensas).
Quem
vive apenas para si, fazendo da acumulação de objetos materiais seu
o objetivo de vida, indiferente às necessidades e sofrimentos
alheios,em determinado momento de reflexão, mesmo que este seja o de
uma simples fração de segundo, vai se dar conta de que a sua
existência é fútil e vazia. Terá muita sorte se conseguir escapar
da depressão ou de outra neurose mais grave.
O
homem ativo, altruísta, que tem na ética e nas virtudes o seu
fundamento, que derruba muros e constrói pontes para atravessar
abismos, não corre nunca esse risco. Não malbarata tempo juntando o
que jamais levará para a sepultura. Ninguém é dono de nada no
mundo. Temos apenas a posse transitória das coisas, pelo tempo em
que vivermos. Assim que a morte nos suprimir a chance de continuarmos
com essa maravilhosa aventura, chamada "vida", não
poderemos interferir na escolha sobre a quem caberá nosso espólio,
cada objeto, cada livro, cada centavo do dinheiro que juntamos e a
que tanto nos apegamos.
Esse
tema, de abismos, muros e pontes, vem, há tempos, sendo tratado, das
mais diversas formas, na literatura. Está mais presente, é verdade,
nas obras dos poetas, esses incorrigíveis sonhadores, esses
utopistas natos, esses escritores dopados e embriagados de ideais. É
uma tentativa de sensibilizar os insensíveis, os indiferentes que,
por consequência, também são omissos. Peço licença para
reproduzir um poema, que compus no já longínquo 5 de abril de 1971,
com minha visão particular a propósito do tema:
Pontes
Minha
vida tem sido uma busca
por
justiça e pela criação
de
liames, de pontes concretas
que
liguem o real ao ideal.
Constante
pesquisa do que sou,
de
olho no que possa vir a ser,
sem
pensar no que esperam de mim.
Muitas
vezes perco-me em vazios,
fico
sem ter referenciais
e
ao tentar livrar-me do atoleiro
vacilo
e atolo-me mais e mais.
Sob
os pés que trilham este trecho
esquecido
e singular do tempo,
abrem-se
fundas, famintas valas,
perdem-se
esperanças e crenças.
Mas
volto a lançar pontes de barro,
renovo
com frequência o alento
e,
munido de exemplar paciência,
disponho-me
a recomeçar.
E
os dias, com suas circunstâncias,
macetes
e peculiaridades,
as
horas, passageiras fugazes,
as
muitas ausências e distâncias,
são
valas escuras e profundas,
famintas,
insaciáveis gargantas.
Hienas
famélicas e vorazes,
encurvadas,
sempre a gargalhar
dos
meus tolos sonhos infantis:
devoram
toda e cada esperança
nova.
Forçam a me renovar.
Não
houvesse você, alma gêmea,
que
partilha ilusão e a vida,
sonhos,
sorte, azar e destino,
fé
e tudo o quanto ainda sou;
não
houvesse você, companheira,
que
segue através do meu caminho
repisando
os rastros dos meus passos,
e
jamais eu lançaria pontes
sobre
abismos e valas profundos
e
ao invés de apenas meus desejos
eles
destruiriam meu ser.
Vem
para meus braços, doce amada.
Sinta...Sinta
o mudo desespero
que
vibra na fragílima carne.
Sinta...Sinta
na sua estrutura
minha
virilidade, euforia,
meu
carnal e instintivo amor.
Acolhe
neste seu ventre fértil
sementes
sagradas do amanhã.
Faça
gerar em suas entranhas,
para
lançar sobre o fundo abismo
a
nossa concretíssima ponte
entre
o efêmero humano e Deus.
Somos
educados para a competição, mas nem sempre (ou quase nunca) estamos
dispostos a seguir regras. Competir não é errado, desde que com
lealdade e sem humilhar o adversário vencido, mas socorrendo-o nas
adversidades. Embora retoricamente condenemos essa atitude egoística
e indiferente,, na prática agimos achando que os meios (lícitos ou
não, éticos ou não, justos ou não) justificam os fins. Corremos
atrás de sombras. A substância não se faz presente. Mesmo sem nos
darmos conta, erigimos muros e mais muros. Cavamos valas, cada vez
mais profundas, até que se transformem em abismos. Recusamo-nos,
porém, ou não sabemos, ou não queremos construir pontes.
O
homem, em sentido genérico, abre mão do usufruto da beleza que
existe em tudo o que o cerca, bastando apenas um pouco de atenção
para ser percebida e aproveitada – e onde reside a verdadeira
felicidade – foge das emoções sadias, abomina a solidariedade
para tentar conquistar o abstrato: fama, fortuna e poder. Trilogia
maldita que desgraça multidões! Sombras, fumaça, ilusões...
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
O idealismo da juventude se esvai quando a pessoa decide juntar coisas.
ResponderExcluir