quinta-feira, 31 de março de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos e quatro dias de criação.

Leia nesta edição:

Editorial – Enfoque metafórico sobre a peste.

Coluna Ladeira de Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Minha riqueza’”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto, “Nothing man”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto, “Quem mandou ser babaca?”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “Alexia: como ela surgiu”.

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, crônica, “A felicidade”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer – Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Enfoque metafórico sobre a peste


O escritor irlandês Bram Stocker foi mais um, dos tantos, a tratar, literariamente, da peste bubônica. Tratou, sim, mas sem especificar nenhuma epidemia determinada, como dezenas, centenas ou sabe-se lá quantos outros fizeram. Não registrou, como outros, número de mortos. Nem mesmo lembrou os sintomas da peste. E também não descreveu a desorganização psicológica e social das vítimas de uma doença, cujas causas, no seu tempo, haviam sido recém-reveladas. Não fez nada disso. Para que? O assunto estava anos-luz de ser novidade. Para ser tratado, com um mínimo de originalidade, o enfoque teria que ser diferente do adotado por escritores que o antecederam. E no caso de Bram Stocker, foi mesmo.

Sua abordagem da peste nem mesmo foi feita em um romance que a tivesse como pano de fundo. Citou-a, apenas, em um dos quatro contos que compõem o livro que no Brasil recebeu o título de “Contos de terror e arrepios”. A história em que trata da doença, e mesmo assim metaforicamente, foi intitulada “The invisible giant” (no original), traduzida para o português como “O espectro da morte”. Prefiro o título original, mais condizente com o enredo. Os outros três contos desse excelente livro – que considero a verdadeira obra-prima de Bram Stocker e não a que o consagrou mundo e tempo afora – são: “O convidado de Drácula”, “A casa do juiz” e “A Índia”. Antes de tratar do “Gigante invisível” (ou, como queiram, de “O espectro da morte”), é preciso fazer algumas observações indispensáveis sobre esse escritor, até para contextualizar sua citação à peste bubônica. Este será, pois, o tema dos meus comentários de hoje.

Bram Stocker (cujo nome de batismo era Abraham Stocker), nasceu em Dublin, em 8 de novembro de 1847. Embora revelando, desde a adolescência, um talento inato para a Literatura – tanto que escreveu seu primeiro ensaio em 1863, quando tinha, somente, dezesseis anos de idade, possivelmente nunca pensou em ser escritor. Tanto é que sua formação acadêmica não tinha absolutamente nada a ver com letras. Formou-se, isso sim, em “Matemática pura”, e com louvor, E foi além. Não apenas graduou-se nessa disciplina, como concluiu mestrado, em 1875. Mas... a vida, queiram ou não, é regida pelas circunstâncias, que surgem sem qualquer aviso, ao sabor do acaso, e ou favorece, ou arruína todos os nossos planos. Foi o que aconteceu com Bram Stocker.

Esse romancista, contista e poeta irlandês entrou para a história da Literatura mundial por um livro que nada tem a ver com poesia e muito menos com matemática. Para quem ainda não associou o nome à sua obra, digamos, “emblemática”, informo que ele é o autor de “Drácula”. Isso mesmo, consagrou esse hoje celebérrimo personagem, inspirador de milhares de histórias de vampiro escritas na sequência por tantas outras pessoas. Quem diria?! Esse é um daqueles tantos casos em que o sucesso, ao fim e ao cabo, por estranho que pareça, se torna incômodo. Bram Stocker escreveu muitas e muitas e muitas coisas literariamente melhores e mais úteis do que esse romance que o consagrou. Mas... quem se lembra disso? Nem mesmo especialistas em Literatura se lembram.

“Drácula”, que Stocker começou a escrever em 1890, mas que publicou, apenas, sete anos depois, em 26 de maio de 1897, não foi seu primeiro livro. Antes, havia publicado, pela ordem, “The primrose path” (romance), “Under the Sunset” (contos), “Contos de terror e arrepios” (contos), “O castelo da serpente” (romance), “The water’s Mou e Croken Sands” e “The shoulder of Shasta”. Todos eles, ou muitos deles, muito melhores do que “Drácula”. Mas... o que de fato “emplacou”, e rendeu-lhe a glória e dinheiro (posto que a princípio não muito) foi essa história horripilante sobre esse personagem tão cruel que se tornou o protótipo dos vampiros. Vá se entender o gosto do leitor! Não que o livro não fosse bem escrito, longe disso. Mas...

Em princípio, Bram Stocker foi muito criticado, principalmente por basear-se num personagem real, o Conde Vlad, da Transilvânia, sujeito tão cruel e maldoso que tinha o apelido de “O Empalador”. Creio que não é preciso explicar porque era chamado dessa forma. Todavia, como a opinião que conta não é a dos críticos, mas a de quem compra livros, o romance sombrio do idealista escritor irlandês logo se tornou o livro da moda e ainda hoje é traduzido e reeditado sem cessar ao redor do mundo, esgotando edição após edição.

Bram Stocker continuou escrevendo, e muito, mesmo após haver sofrido severo AVC, na esperança de emplacar outro sucesso, mesmo que remotamente parecido com a história do crudelíssimo Conde Drácula. Publicou, por exemplo, “Miss Betty” (1898), “A jóia das sete estrelas” (1903), “Os sete dedos da morte” (1903) e “Personal Reminiscences of Henry Irving” (1906) e nada de sequer se aproximar do livro sobre o tal vampiro. Tentou voltar ao tema, publicando, em 1909 “O caixão da mulher-vampiro”, em vão. Seu último romance foi “Monstro branco” (1911), que passou batido, como os demais. Bram Stocker morreu em 20 de abril de 1912, na cidade de Londres, para onde havia se mudado em 1879. Caso estivesse vivo, certamente receberia, hoje, uma fortuna em direitos autorais pelo romance “Drácula”, que está longe de ser seu melhor livro, em termos literários. Mas quem decide é o público. E este consagrou definitivamente a história do sádico e sanguinário Conde Vlad, da Transilvânia. Vá-se entender o gosto do público!!!!

Boa leitura.


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk                       
Minha riqueza


* Por Pedro J. Bondaczuk


O prazer e o trabalho são as duas únicas formas que o ser humano dispõe para esquecer os estragos que o tempo faz em seu corpo e em sua mente. Claro que os resultados desses dois tipos de ação são muito diferentes. Mas a escolha é livre, ditada exclusivamente pelo livre-arbítrio. As conseqüências, no entanto, é que são inflexíveis.

Os hedonistas entendem que o homem veio ao mundo apenas para gozar as suas delícias. Já os pragmáticos acham que o seu papel é o de produzir obras, que o tempo, afinal, se encarregará de destruir. Quem tem razão? Sei lá! Da minha parte, entendo que a virtude está no meio. Ou seja, que o mais sábio é dosar, e muito bem, os prazeres com o trabalho.

A vida é constituída de escolhas, cuja exatidão vai determinar nosso sucesso ou fracasso, felicidade ou amargura, bem ou mal. Escolhemos profissões, companhias, amizades etc. e até clubes de futebol para torcer. Somos sempre instados a escolher alguém ou alguma coisa, e não nos é permitido errar.

Essas escolhas têm que ser estudadas, ponderadas e, sobretudo, cautelosas. Se escolhermos uma profissão para a qual não tenhamos talento ou habilitação, por exemplo, ficaremos à margem do mercado de trabalho. Se a escolha de uma companhia não for feita por amor, o resultado será de frustração e infelicidade. E isso vale para tudo o mais na vida.
Se nossas escolhas forem corretas e adequadas, o resultado será o sucesso, a alegria e a plena realização. Se equivocadas... esses equívocos vão gerar, com certeza, fracassados, marginalizados e seres amargos e infelizes. Há os que optam por serem apenas amados, com o que se dão para lá de satisfeitos. Incluo-me entre estes.

Há, porém, quem não se importe tanto com afetos e que queira ser admirado, ou pelo que é ou pelo que faz. Há, também, os mais ambiciosos, que querem as duas coisas. Ou seja, serem amados e admirados, simultaneamente. E existem, ainda, inúmeras outras opções, de todos os tipos e naturezas.

Embora muita gente não concorde, somos senhores absolutos do nosso destino. Deus concedeu-nos o livre-arbítrio para que escolhamos nosso caminho e arquemos com as conseqüências dessa escolha. Por piores que sejam os acontecimentos e as circunstâncias que nos cerquem, temos plena capacidade de viver com dignidade, justiça, alegria e bom-humor. Basta que queiramos e manifestemos esse querer por atitudes.

Devemos colocar tudo o que de belo, de sublime e de construtivo sonhamos no plano do real. Os caminhos são pedregosos e cheios de espinho? São! Mas o resultado vale a pena. Como a fábula de La Fontaine, da Cigarra e da Formiga, assim são os homens. Enquanto uns trabalham, construindo templos, cidades, tumbas e monumentos, outros "cantam", gozando as delícias do ócio e do fruto do trabalho alheio.

Enquanto uns criam, outros aproveitam e esbanjam. Qual o valor das obras, além do óbvio, utilitário, de uso imediato? São fontes de perpetuidade da memória, ou não passam de frustradas tentativas para evitar o esquecimento após a morte? Os pioneiros da civilização, os que fizeram descobertas marcantes, práticas, que facilitaram ou até mesmo garantiram a sobrevivência humana, são absolutamente anônimos.

Quem descobriu a roda? Ou a maneira de produzir o fogo? Quem foi o inventor do primeiro alfabeto? Ou da escala musical? Ou dos números? Ou dos princípios básicos da matemática? Estes são alguns dos fundamentos da civilização e foram criados por alguém. Mas por quem?

Gosto das pessoas, mesmo das que ajam mal e mostrem, ostensivamente, que não gostam de mim. Entendo que, para agir dessa forma, têm lá suas razões, que respeito, mesmo que não as compreenda. Claro que gosto delas à distância. Afinal, como diz o povo, “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.

Sou grato a todos os que me beneficiam e tornam minha vida melhor, senão possível. Respeito os milhões, que sequer conheço, trabalhadores em usinas de eletricidade, lixeiros, padeiros, pedreiros, médicos, cientistas, filósofos, professores, jornalistas etc.etc.etc., que fazem o mundo, bem ou mal, funcionar e possibilitam minha sobrevivência.

Os marginalizados, injustos, violentos e néscios não nascem assim. São frutos da falta de educação, do ambiente em que vivem e das circunstâncias. Procuro fazer, da melhor forma possível, minha parte na sociedade, como forma prática de gratidão. Reitero: gosto das pessoas! Apego-me, ferrenhamente, por convicção e formação, a elas, jamais a coisas.

Tenho noção do quanto o conceito de propriedade é nocivo para a convivência harmoniosa dos homens. Nada, efetivamente, me pertence. O que “tenho” só é meu enquanto eu estiver vivo. Ou seja, toda posse é transitória. Claro que não saio distribuindo, tolamente, por aí o que consigo com o fruto do meu trabalho. Mas quando perco, o que quer que seja, não me sinto frustrado ou derrotado.

Esse sentimento, porém, é bem diferente quando ocorre a perda de um parente, um amor ou um amigo. Estes, sim, são meus patrimônios. Quando essa perda acontece, por desavenças, morte ou por outras circunstâncias, sinto morrer um pouco. Fico menor, mais pobre e mais mesquinho. E essa sensação sequer é exclusiva. Emily Dickinson, por exemplo, declara, num magnífico verso: “Todo meu patrimônio são meus amigos”. O meu também! Esta é a riqueza que busco preservar a todo custo. O resto...

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk




Nothing man


* Por Marcelo Sguassábia


Na verdade, o que irritava demais era que o sujeito parecia uma caneta muito gasta e quase seca, de design ultrapassado, tampa mordida e serventia duvidosa até para a própria mãe, os irmãos e os vizinhos da frente que o ajudaram a criar.

Dava aflição e pena só de passar o olho no sempre esticado ser humano, mole ali no sofá mais mole ainda, feito boi na engorda – com a diferença que o quadrúpede, ao contrário dele, costuma passar a maior parte do tempo de pé. E não é mentira dizer que bastava terminar o almoço pro elemento já ir tratando de cavar espaço no bucho pra caber a janta, na adivinhação do que teria à mesa pra se refestelar até que não houvesse mais vaga disponível para um tremoço ou uma mísera azeitona sem caroço.

Com essa vida sem prestança o moço durou pouco sendo moço e logo logo rendeu-se ao definhamento, pelo uso muito continuado de certas partes do corpo e pelo desuso completo de outras. Ficou aquele velho que é ancião de tenra idade, acabado antes da hora, alvo de comentário e exemplo de mau exemplo. Do jornal só lia horóscopo, e nele se fiava mais que nos profetas do Antigo Testamento, mais do que no pronunciamento do presidente do Banco Central sobre a taxa de juros e mais até do que em fofoca de tia viúva – e dessas tinha duas que valiam por dúzias. Ô velhas mexeriqueiras, que quando apareciam com seus tupperwares lotados de biscoitos de nata traziam junto sacolas de injúrias e difamações sobre todo ser vivente da cidade, especialmente a parentada da zona norte. A sorte é que ambas, Aurora e Lélia, só muito de vez em quando surgiam e logo caíam fora após alguns jorros caudalosos de infâmia, deixando-o novamente às voltas com os botões do seu pijama.

“Esse cara aí é herdeiro de cartório”, diziam alguns à primeira vista, vendo aquele monumento à preguiça zapeando a tarde toda entre desenhos animados e alternando o trabalho das mandíbulas entre sacos de balas chita e bolinhos de chuva. E a chuva caía mansa como ele nas paragens que habitava, tão sem vontade de cair que em sua moleza o levava a meditar, pra descansar um pouco do estafante esforço de fazer coisa nenhuma.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).


Quem mandou ser babaca?

* Por Gustavo do Carmo


Depois de quase vinte anos de espera, cobranças familiares e crises de raiva, choro e ansiedade por não conseguir defender seus argumentos de não trabalhar no que os pais desejavam e de ser esnobado pelos ex-colegas de faculdade e ex-amigos virtuais, chegou a vez de Aston brilhar.

Seus microcontos postados no Twitter começaram a pipocar entre as celebridades e ele sentiu o gosto doce do sucesso, aos 39 anos. Começou quando foi seguido por um ator de novelas das seis. Depois por uma jornalista de um canal a cabo. Estes fizeram a propaganda boca a boca. E, em uma semana, o seu perfil, que por cinco anos não passava de 450 seguidores, chegou a 2 mil. No final do mês já tinha 20 mil. As visitas do seu blog de contos também dispararam de 100 por dia para 100 mil.

Aston foi procurado por diversas editoras para publicar seus contos, inclusive algumas que rejeitaram os originais  para republicar o seu primeiro livro de contos, boicotado pela editora que o diagramou e imprimiu. Esta também o procurou.

E ele optou pela única para a qual nunca tinha mandado textos. Era de São Paulo. Não chegou a ganhar adiantamento, mas só de conseguir relançar o tal livro boicotado pela editora da Lapa, no Rio, já foi um grande negócio. 

A coletânea fez muito sucesso. Vendeu  um milhão de exemplares. Rapidamente lançou uma segunda reunião dos seus contos, de igual repercussão. Aston lançou um romance inédito que estava inacabado. Ele só pretendia terminar se já tivesse uma editora. E assim foi feito. Teve vinte milhões de unidades vendidas e 20 edições.

Recebeu convites de produtores de teatro, cinema e televisão para adaptação de seus contos e o romance. Aliás, relançou o primeiro livro que escreveu. Agora com consultoria do dono da editora, um ex-jornalista de televisão, que corrigiu os erros infantis. O resultado? O livro mais vendido durante um ano.

Aston ficou rico e famoso. Libertou-se das cobranças do pai, que queria vê-lo funcionário público. Ficou imune às ironias e humilhações da irmã, que o chamava de desocupado. Quase matou a mãe de orgulho.

O filho preferido de Dona Gelma, já octogenária, ainda lhe pagou uma dama de companhia, além de uma cozinheira e uma arrumadeira para cuidar do seu novo apartamento na Barra da Tijuca, onde Aston passou a morar com a mãe, após quase quarenta anos morando em Bonsucesso.

Conheceu belas mulheres, dormiu com algumas e engravidou Hérica, que deu à luz um menino, chamado Martinho. Aston não era feio, mas também não era um galã. Era moreno e tinha nariz grande. Aparência que lhe dava uma fisionomia árabe. E também já estava um pouco gordinho. 

Graças ao sucesso, Aston também passou a ser procurado por organizadores de feiras de livro do mundo inteiro, palestras, festas literárias de todo o país, pela imprensa para dar entrevistas, pelos seus ex-colegas de escola, faculdade e pós-graduação e até ex-amigos virtuais com quem tinha rompido.

Participou dos eventos com todo o prazer. Nunca tinha viajado tanto. Nem quando passou um mês na Europa com a irmã e teve que enfrentar sete voos e seis viagens de trem. Realizou outro sonho da sua vida: viajar a trabalho.

Para a imprensa deu entrevistas a jornais, portais de internet e rádios do Rio, São Paulo e várias cidades do Brasil e também de Portugal, além da televisão. Mas começou a pôr em prática um boicote que sempre teve desejo de fazer. Não dava entrevistas para jornalistas cariocas que se mudaram para São Paulo ou programas produzidos em São Paulo pela única emissora carioca do país.

Dava desculpas. Dizia que era muito tímido. No início, os produtores relevavam e atendiam as suas exigências. Porém, depois, perceberam o seu estrelismo. E começaram a reduzir os convites.

Com os ex-colegas de escola fundamental e ensino médio, Aston até tratava muito bem quando os encontrava pessoalmente. Dava autógrafos, tirava selfies e respondia e-mails. Deu uma palestra para a pequena escola onde fez o primeiro grau, em Bonsucesso.

Com os contemporâneos da faculdade de jornalismo e pós-graduação, requintou o seu plano de vingança. Não respondia a e-mails e nem a pedidos de entrevistas, já que muitos eram jornalistas. Fingia que não os conhecia quando era abordado na rua por alguns deles.

Sua carreira começou a declinar quando ele começou a ofender seus desafetos. Vomitou verdades como:
“Quando a gente estudava junto, você fazia corpo mole para fazer os trabalhos de avaliação comigo.”
“Quando a gente estudava junto, vocês me recusavam nos grupos de trabalho.”
“ Quando eu era anônimo eu te procurava e você não me respondia.”
“Você já me perguntou uma vez se eu te conhecia”.
“Quando eu era um merda vocês diziam que eu era feio e fedia.”
“Quando eu não era nada você passou a fugir de mim só para não conversar comigo.”
“Não me seguia no Twitter”,  “Me recusava no Facebook”, “Plagiou o meu conto”, “Me negou emprego”, “Fingiu que não me conhecia na rua”, “Não queria me pagar.  Agora quer produzir um curta?”  
“Agora querem entrevista?” “Querem dar para mim?”
“Vão se danar, babacas!”

Depois do desabafo os convites para entrevistas rarearam até cessarem por completo. Começou a ter o seu trabalho questionado. Críticos literários, amigos dos seus desafetos que Aston não conhecia, diziam que ele escrevia mal. Que errava muito nas regências temporais e verbais. Que repetia muitas palavras. Que tinha vocabulário pobre.

Jornais sensacionalistas o acusavam de maus tratos à mãe e a crianças, que ele assumia publicamente detestar. E também o criticavam por isso.

A divulgação dos seus livros foi interrompida. As vendas caíram. A editora rompeu o contrato. Ia ser convidado para assinar algumas colunas de jornal e enfim exercer a sua profissão de jornalista, mas desistiram. Os filmes produzidos foram um fracasso. As peças de teatro sequer viajaram. Aston perdeu a eleição para a Academia Brasileira de Letras.

Perdeu dinheiro. Ficou desempregado. Precisou vender o apartamento da Barra. Precisou dispensar a cuidadora da mãe e as empregadas. Assessor de imprensa ele nem chegou a contratar.

Aston voltou a morar com a mãe, o pai mal-humorado e fumante em Bonsucesso e o filho. Voltou a ser pobre. E agora com uma criança para criar. Hérica, que também o abandonou, deixou Martinho com o ex e foi morar na Itália com o novo marido rico que detestava crianças. Tal como Aston.

Sua carreira de escritor famoso só durou três anos. Caiu para apenas 50 seguidores no Twitter (30 só de empresas para fazer marketing) e 10 parentes no Facebook. O ator e a jornalista que impulsionaram o seu sucesso também o abandonaram. Ele teve que entender  que os outros podem ser babacas com ele e boicotá-lo. Mas ele não pode se vingar.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
 Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe -http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores



Alexia: como ela surgiu


* Por Fernando Yanmar Narciso


Os primeiros esboços do que viria a se tornar a personagem Alexia surgiram nos cantos de cadernos de colégio pelos idos da 8ª série. Naquele tempo eu e meu colega Filipe Xavier tínhamos uma parceria, fazíamos histórias em quadrinhos que ninguém conseguia entender, nem nós mesmos...

Na época éramos grandes fãs dos Simpsons e de todas suas imitações, então criamos nossa própria cidade e a enchemos de gente doida. Hey, Scum City!- Esse era o nome. No início Alexia surgiu como uma mera coadjuvante na vida de dois irmãos, Jack e Mad, e era basicamente só uma eye candy com seios enormes. Em vez de Alexia, seu primeiro nome era Claire, a quem Filipe rebatizou como Reckenville, ou Recken para os íntimos.

Infelizmente repeti o ano no 1º Científico e minha parceria com Filipe terminou, mas não a vontade de criar minha perfect girl. Na época comecei a desenhar mangá, desenhos japoneses, e com eles a figura de Recken foi se aperfeiçoando cada vez mais. Claro que os seios enormes permaneceriam como sua principal característica. Garotos são sempre garotos...

Roupas coladas ao corpo, tatuagens, mania de usar tênis vermelhos... Em algum ponto ela já teve dreadlocks alaranjados com duas mechas tingidas de verde. Como Filipe era fissurado pelo Nirvana na época, fiz da Recken também uma tiete do Nirvana e lhe dei uma tatuagem da letra N.

Em 2001 ela ganhou suas principais vestimentas: calças jeans skinny e um lenço na cabeça, inspiração que veio, acreditem ou não, da antítese de Kurt Cobain: Axl Rose.

No entanto os anos foram passando e minha paixão por essa Alexia seminal foi se arrefecendo, afinal eu tinha uma personagem, mas não tinha sua personalidade e nem outros personagens. Naquele tempo já havia aberto mão de todos aqueles outros personagens e me concentrado só nela. 2005 foi o último ano do reinado de Recken...

Numa tarde tediosa como todas as outras de 2010, me veio a ideia de ressuscitar não apenas ela como toda a turma dos cadernos de colégio, mas em forma de romance. Na época, por motivos inexplicáveis tinha voltado a assistir a novela das nove, e conforme assistia eu ficava pensando ‘se esses autores recebem fortunas pra escrever essa porcaria, eu também consigo!’

Assim surgiu Os Excluídos, mais tarde rebatizada como Terra De Excluídos. O primeiro passo foi tirar os personagens, típicos dos filmes da rota 66, e trazê-los para um cenário no interior de Minas Gerais, inspirado nos contos de Dias Gomes. Seriam três anos de dedicação total a mais de 300 páginas de desventuras.

Logo Recken foi renomeada Alexia, em homenagem a uma colega de faculdade, Alexia Ballesteros, muito amiga minha. De multicoloridos seus cabelos passaram a ser volumosos e ruivos, referência às personagens Caitlin Fairchild dos quadrinhos Gen 13 e à Bloom de Clube das Winx. Sempre fui fascinado por ruivas... Em vez da bandeira americana lhe dei uma bandana de pirata, com crânio e guitarras cruzadas. Cabelos indomáveis e um lenço invocado na cabeça formam a expressão perfeita de sua personalidade rebelde.

Na hora de vestir a personagem eu fiquei meio perdido, até que no jornalzinho da faculdade minha grande amiga Laisa Bastos fez um ensaio fotográfico usando uma camiseta baby-look amarela com regata roxa por cima... E eu pensei: ‘Quer saber? Alexia é Laisa e Laisa é Alexia. Pronto!’ Assim minha heroína virou não apenas minha perfect girl como uma caricatura de minha amiga.

Então, como poderia definir minha magnum opus? Alexia é o que costumavam chamar de slacker nos Estados Unidos da década de 1990, os jovens acomodados que chegavam à idade adulta vivendo com os pais e passavam os dias trancados no porão assistindo à MTV e jogando videogame, ao melhor estilo Beavis & Butt-head. Para eles a vida simplesmente passava diante de seus olhos como num videoclipe sem fim.

A diferença sendo que em vez de uma imprestável Alexia é uma moça que simplesmente não tem grandes ambições. Esperta, desapegada, sem muitos amigos e que quando não está trabalhando passa os dias tocando guitarra, compondo e escrevendo em seu blog. Mesmo sendo reservada, sua aparência é garantia de que nunca passará despercebida. Ela vê sua beleza como um fardo.

Como eu, ela tem a mania de analisar excessivamente e ironizar qualquer situação, por mais mundana que seja. Humilde, sempre ali pra te ouvir, apesar de ser meio caladona e fingir não se importar com as pessoas. Algumas feministas dirão que ela não devia ser tão eye candy, mas defender os direitos das mulheres não é desculpa para não ser atraente.

Toda boa personagem precisa de uma boa parceria. Sempre tive uma ligação muito forte com meus primos, talvez os únicos amigos de verdade que já tive, então decidi que a melhor amiga de Alexia seria sua prima, Bárbara. A relação entre Alexia e Bárbara é meio que inspirada num trio de colegas de faculdade que sempre estavam juntas, e na relação de minha mãe com sua amiga, Dulce, sendo que a personalidade da Barbie é um papel-carbono da própria Dulce.

E em 2015 resolvi promover minha musa a narradora, contando os ocorridos de Terra De Excluídos em 1ª pessoa, com seu ponto de vista peculiar. É até irônico que o relacionamento mais longo de minha vida seja com uma mulher que nem existe no mundo real... Well, patience, como a própria diria.

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
cyberyanmar@gmail.com

Conheçam meu livro! http://www.facebook.com/umdiacomooutroqualquer
A felicidade


* Por Alberto Cohen


O mais engraçado é que, dando de encontro com a felicidade, emudecemos ou pedimos desculpas. Emudecemos frente ao inesperado de sua chegada, pedimos desculpas por não estarmos preparados para recebê-la. E ela apenas sorri. Já viu a mesma cena milhões de vezes em sua trajetória, esse não saber o que fazer com ela, a hesitação entre abraçá-la ou pedir que sente na sala, enquanto a roupa de usar em casa é trocada por outra melhor.

E é muito afobada, a felicidade. Não pode perder tempo, pois tem tantas outras visitas e partidas repentinas a fazer no seu dia-a-dia de médica da alma, que salva ou desengana, devolve a saúde ou reconhece a doença incurável e vai embora sem ao menos confortar o doente. E depois que parte não há maneira de localizá-la. Não deixa endereço, telefone nem e-mail.

Interessante é que o tempo de sua visita é contado em leves e brilhantes segundos, enquanto o da ausência é conferido em séculos pesados e soturnos. É de notar, porém, que, nos poucos instantes em que está presente, pinta a casa de cores alegres e claras e decora todos os compartimentos com sorrisos fáceis. Depois de sua partida, lentamente o cinzento volta a predominar e os sorrisos são banidos pelas sobrancelhas franzidas.

E aqui ficamos nós a esperar, como ela queria, sempre na expectativa de que volte, mande um recado, enfim, dê sinal de vida. Cada vez que batem à porta é aquele sobressalto: Será que é ela que está voltando? Dificilmente, pois, como foi dito acima, é muito ocupada, tem muitos clientes, assim... Esperem um instantinho, que a campainha está tocando! Será...?

* Poeta e cronista paraense


quarta-feira, 30 de março de 2016

Encastelados sem castelo

* Por  Mara Narciso


Estou instalada aqui nesse meu medíocre mundinho de aparente segurança. Escrever é um risco. Os censores costumam aparecer com o lápis vermelho. Sobre minha cabeça um teto, há um chão sob meus pés. Ele está seco, assim, não temos inundação, entra luz natural pelas frestas, o ar está respirável, tenho energia elétrica, água nas torneiras, dispensa com provisões para alguns dias, posso sair para comer ou pedir comida. Tenho telefone, internet e TV a cabo. Estou vendo, andando e, aparentemente em boas condições mentais. Tenho um filho por companhia, não acumulei, mas não devo, exceto o Imposto de Renda que já está sendo calculado. Ontem à noite saí com amigas. Fomos a um barzinho simples, comer espetinhos de carne e de coração e beber uma bebidinha. Em janeiro viajamos juntas. A noite estava fresca e uma lua quase cheia estava enfeitando e nos chamando a falar de Deus. Alguns me perguntam por que não falo Dele.

Há 36 anos trabalho de manhã e à tarde, por toda a semana. Depois das 18 h descanso, leio, escrevo, visito, participo de reuniões. Uma rotina que massacraria a muitos desejosos de uma existência emocionante. A minha vida, no momento, não emociona. De vez em quando um evento, uma festa. Tenho sorte em ser amada pela minha família. A um grito, logo aparece algum dos meus muito queridos tios. Meu maior tesouro: minha credibilidade.

Uma vida comum não deve servir ao comodismo, ao não olhar em volta, ao não pensar no coletivo. Somos responsáveis pelo conjunto. O solo precisa ter saúde. A árvore que plantamos não é nossa, é da comunidade. A água da nossa cisterna não nos pertence. Apenas a cavamos. O lençol freático é dos que sobre ele vivem. Nem a água da nossa torneira é apenas nossa. É preciso regrá-la para que dê para todos. O ar que respiramos é da coletividade. Devemos mantê-lo com razoável qualidade e deixar o ambiente habitável. Verbos indispensáveis: recuperar, consertar, reutilizar, poupar, reduzir a produção de lixo. Cuidando do nosso quintal, emporcalharemos menos o mundo. Já cometemos muitos erros, somos responsáveis pelo esgotamento de bens não renováveis, pela sujeira e pelo comportamento mesquinho reinantes.

É preciso ter memória e reverenciar os mortos, mas também deixar alimentos para as gerações de amanhã. E os seres vivos? Como os protegemos? O barulho que produzimos é tolerável? Qual é o nosso direito de incomodar o próximo? Como nos comportamos nas ruas? Jogamos lixo fora da lixeira, passamos pelos necessitados com desprezo, vemos a violência e fingimos que não nos atinge? Protegemos os fracos? Receio, cautela, sentido de preservação são indispensáveis, mas que, em nome da aparente segurança não nos deixemos desumanizar de todo. Carros blindados e casas/prédios bunkers são uma necessidade construída ano a ano pela deterioração da nossa espécie. Massificamo-nos, e isso nos parece irreversível.

Vemos alguém ser humilhado, ferido física ou psicologicamente e ignoramos o fato. É cômodo pensar: ainda bem que não é comigo. Quando vemos alguém salvar um desconhecido, nos surpreendemos, a ação vira manchete de jornal. Vídeos de gente que salva gente ou animais tornam-se virais, são loucos a ser estudados. Afinal, o que temos com isso? Queremos é escapar do infortúnio. Caso a fatalidade visite o outro, foi má sorte. E se quase vemos o desastre, viramos o rosto.

Não podemos nos fazer de surdos quando vizinhos brigam e a alteração de vozes se torna perigosa. Não é possível ver/ouvir adultos maltratando crianças e animais. E a pior imoralidade: o que fazer quando nos feriados prolongados um cão uiva pelos dias, noites e madrugadas adentro, intermináveis lamentos durante todo o período, mês após mês?  Eu imploro para que alguém o salve, pois ele sofre e sangra ao se arrebentar de dor, pedindo socorro. Todo o quarteirão se contorce em agonia ao ouvir a penitência desse cão infeliz. É preciso agir. Não agindo, somos vermes, isso se não ofendermos aos que rastejam, os comparando conosco.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


O portão do pasto do tio Júlio


* Por Urda Alice Klueger


Lembro-me como se fosse hoje, mesmo que já se tenham passado umas quatro décadas. Era o portão do principal pasto do tio Júlio, porque o tio Júlio tinha diversos pastos, e suas nédias e mansas vacas holandesas faziam rodízio neles, alimentando-se sempre de grama nova e viçosa. O portão do pasto do tio Júlio era daqueles portões de madeira encarunchada e arame farpado que quase todas as propriedades tinham então, e era aberto sempre que se queria, por qualquer um, mesmo que fosse uma criança. Ele só era fechado por uma corrente que engatava num prego, e eu e meus primos podíamos abri-lo sem nenhuma dificuldade.

Lá no tio Júlio havia oito primos, fora três “anjinhos” que dormiam no cemitério e para quem a gente levava flores – mas os primos de idades mais próximas da minha eram o Jorge e o Afonso, a Ruth e a Darcy. Desde muito pequenos eles ajudavam tio Júlio em milhares de coisas no seu ofício de produtor de leite para o Hospital Santa Isabel, de Blumenau: colocavam gramão e cana na máquina de cortar trato, carregavam os balaios de trato para os cochos das mansas vacas holandesas, tinham seus próprios banquinhos de ordenha e tiravam baldes de leite de cada vaca, pois as do tio Júlio eram vacas premiadas, que produziam muitos litros de leite a cada dia. Era necessário, então, depois da ordenha, levar as vacas para o pasto daquela ocasião (elas freqüentavam um pasto de manhã e outro de tarde), e a Darcy, e o Jorge, e os outros é que o faziam, e muitas vezes abriam o portão mencionado, e acompanhavam mais de trinta vacas estrada abaixo, até o pasto escolhido para aquele dia, indo buscá-las de noitinha para a nova ordenha, abrindo e fechando o portão sem nenhuma dificuldade. No tempo em que eu era bem pequena, tio Júlio passava naquele portão com sua carroça; mais tarde, já lá pelos anos 60, entrava ali com seu carro. Em ocasiões em que havia um touro brabo no pasto, o portão ficava fechado o tempo todo – em outras ocasiões, quando as vacas já tinham saído para pastar alhures, o portão podia ficar aberto, com o cavalo Baio sozinho lá no pasto, que o Baio era tão manso que não fugia. E reafirmo o que já disse acima: o portão tinha tal simplicidade de fechadura que qualquer criança pequena podia abri-lo ou fechá-lo.

Mas então o tempo passou. Tia Fanny, e depois o tio Júlio, ambos acabaram viajando para outras plagas, e seus herdeiros tiveram que decidir o que fazer com aquela barbaridade de terra que tinha ficado. E ali no pasto principal do Tio Júlio cresceu um imenso condomínio cheio de prédios modernos, com um portão de entrada exatamente onde tinha sido o antigo portão do pasto. Meus primos moram lá, hoje, cada um num espaçoso apartamento, e cada um levou consigo para a nova morada algumas peças de mobiliário da antiga casa do Tio Júlio, e eu vou lá e tenho vontade de chorar quando as vejo e lembro daqueles tempos que ficaram lá tão longe.  Meus primos tiveram o cuidado de mandar imortalizar por famosa pintora as fotos daqueles tempos em que eu era criança, e em que qualquer pequena mão infantil podia abrir o grande portão do pasto, e nas paredes dos seus apartamentos aqueles quadros são como que um soco no peito que o passado nos dá.

No Domingo passado eu fui lá lhes fazer uma visita. Minha mãe, que foi junto, telefonou antes, para confirmar estas coisas de bloco e andar, estas coisas que existem nos endereços contemporâneos. E então, que aconteceu? Minhas primas disseram:
-Olha, vocês trazem o celular e ligam lá do portão, que então a gente abre!

Santo Deus, há que se ter um telefone celular, agora, para se entrar no portão do pasto do tio Júlio! Levamos o celular, entramos – eu aproveitei para dar uma espiadinha no sistema de interfone que havia lá no portão, e que era complicadíssimo, desses que se criam para enganar qualquer ladrão, coisa de uso impossível para pessoas comuns. Sem celular, a coisa fica bem difícil!

E pensar que era um portão que qualquer mãozinha de criança abria!


Blumenau, 06 de Fevereiro de 2003.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).


Pé de vento


* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral


Não jogue fora o pedaço
de papel, vai que nele
habite uma poesia,
dessas que mal brotam
e se engalfinham
num pé de vento.
Se dela não fizer uso,
não a condene à última gaveta,
solte-a sem olhar seu rumo,
nem tente se despedir,
o pé de vento passou
e você nem viu...

 * Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário


Desfecho


* Por Pedro Du Bois


No desfecho
fecho a porta
e dentro
esqueço
a hora
permitida
aos pensamentos
filosóficos

o desvelo com que cuido
meu tempo permitido
na desilusão aleatória
dos enganos

fecho o caderno
e repouso a mão
sobre o tempo

o grafite inerte
sobre razões confessadas
em juízo.

* Poeta, autor dos livros “Brevidades” e “Tânia”, lançados através do Projeto Passo Fundo – blog HTTP://pedrodubois.blogspot.com.br