domingo, 31 de janeiro de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Viagens de férias

Coluna Direto do Arquivo – Fábio de Lima, crônica “A vida é assim”.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Neurose nossa de cada dia”.

Coluna Clássicos – Fedor Dostoievski, trecho do romance “Os irmãos Karamazov ‘O grande Inquisidor”..

Coluna Porta Aberta – Luís Augusto Cassas, poema “Os Arautos do Dia (edital de tombamento)”

Coluna Porta Aberta – Xênia Antunes, poema “Maria a dos Prazeres”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Viagens de férias

Caríssimos leitores, boa tarde.
As pessoas, face à massacrante rotina do cotidiano, por mais que gostem do que fazem, não vêem a hora de chegar um feriado para relaxar e contam nos dedos os dias que faltam para suas férias. Outras tantas, sonham com a aposentadoria e fantasiam esse período, achando que nele irão colher os frutos do que plantaram. Se forem trabalhadores do serviço público, e estiverem numa faixa salarial de razoável para boa, até que têm certa razão em sonhar com esse período.
Afinal, receberão o mesmo que recebiam quando estavam na ativa. Mas se forem da iniciativa privada... Em três tempos perceberão a roubada em que entraram. Os mais ativos e experientes jogarão a aposentadoria para o alto e voltarão à ativa rapidinho, enquanto a saúde lhes permitir. Os mais acomodados... Irão morrendo aos poucos, definhando, apodrecendo em vida e aborrecendo os parentes.
Entre os que fazem contagem regressiva para as férias, estão muitos escritores, aqueles que são obrigados a dividir a atenção que dão à literatura com outras atividades remuneradas que lhes garantam o sustento (a maioria). Afinal, manter dupla jornada, e indefinidamente, é façanha para poucos. A maioria, se tem condições financeiras para tal, programa viagens: ou para Miami, ou para Cancun, ou para alguma cidade da Europa ou um cruzeiro pelas ilhas gregas, quem sabe. O destino varia, claro, de acordo com a conta bancária.
Quem não é tão abonado contenta-se (no caso dos paulistas), com uma descida para as praias, ou de Santos e Guarujá, ou do Litoral Norte, como São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba, Ubatuba, com uma esticadinha até Parati. Se o dinheiro não der nem para isso... Paciência!
Pode um escritor, em plena fase produtiva, com idéias e mais idéias borbulhando na cabeça, sequer cogitar de férias? Poder, pode. Mas creio que estará cometendo uma bobagem sem tamanho. Afinal, quase sempre, por ironia, as fases férteis são sucedidas pelo que os artistas (e escritores também, claro) mais temem: as crises de criatividade.
Estou saindo de férias da minha atividade remunerada, aquela que me garante o pão nosso de cada dia. A partir de amanhã, e pelos próximos vinte dias (dez eu vendi para a empresa) o tempo que dedicava ao trabalho, contando, claro, os deslocamentos de ida e volta, estará ao meu inteiro dispor, para que eu faça dele o que melhor me aprouver.
Um amigo dileto, que freqüenta minha casa e priva da minha intimidade, me perguntou, no início da semana: “Você vai viajar, Pedrão?”. Respondi-lhe, meio que distraído: “Vou”. “Posso saber para onde?”, tornou a questionar o xereta. “Para muitos lugares”, foi minha resposta, absolutamente evasiva.
Depois, para satisfazer sua curiosidade, complementei: “Vou para Pasárgada. Afinal lá, sou amigo do rei! Depois, darei uma passadinha no Paraíso Perdido. Talvez, quem sabe, me encontre com John Milton. E, se der tempo, visitarei o Admirável Mundo Novo, onde espero trocar idéias com Aldou Huxley”.
O amigo olhou-me com fúria homicida e murmurou um palavrão entredentes (daqueles bem cabeludos, que a bem da moral e dos bons costumes, não devo reproduzir neste espaço), achando que eu estava zombando dele, que estava chasqueando da sua pergunta (há tempos que eu não usava essa palavra que ainda consta no dicionário). Não estava.
Pretendo, sim, viajar nas férias, mas serão viagens nada cansativas e absolutamente gratuitas. Vou para o interior da minha alma, em busca de tesouros. Claro que gostaria, por exemplo, de voltar à Praia da Boa Viagem, ou a Porto de Galinhas, ou à cidade de Caruaru, onde tive experiências que me marcaram (positivamente, óbvio) para sempre. Caso pudesse, continuaria subindo o Nordeste, pois acima de Pernambuco não conheço mais nenhum outro lugar. Gostaria de fazer tudo isso, e demais.
Só que se o fizesse estaria cometendo uma baita traição comigo mesmo, com a minha vocação. Atravesso, atualmente, uma das fases mais férteis desde que me conheço por gente. Isso vai render boa literatura, ou pelo menos literatura? Não sei. Mas se não tentar, se não aproveitar esse tempo para produzir, tenho absoluta certeza de que me arrependerei, e muito.
Um ex-chefe meu, o Josias Favacho, costumava dizer a propósito: “A oportunidade é um cavalo encilhado que passa por nós raramente, às vezes uma única vez. Se não subirmos na sela e não o cavalgarmos, talvez fiquemos a pé para sempre, a lamentar a imensidão do caminho que teremos que percorrer andando”.
É isso. O fogoso corcel está passando nesse instantinho por mim, como que me convidando a subir em suas ancas. Não posso deixá-lo seguir adiante, a pretexto de precisar de descanso. E preciso? Provavelmente sim. Mas lembro-me de uma frase que ouvi certa feita de um veterano publicitário: “Para descansar, terei, um dia a eternidade”. E não terei?

Boa leitura.

O Editor.









A vida é assim

* Por Fábio de Lima

Noemi entrou no Pet Shop. Ela olhou para a direita e viu cachorros. Então, olhou para a esquerda e viu cachorros. Depois, olhou para frente, e por todos os cantos do lugar, mas só viu cachorros – muitos cachorros. Logo teve certeza estar no lugar certo.

Quem via aquela mulher com roupas muito elegantes – com trejeitos muito finos – e, ainda assim, pegando no colo todos os cãezinhos, falando com eles como se fossem bebês – garantiria que ela amava cachorro. Mas o fato é que Noemi não suportava nenhum animal de 4 patas, incluindo os irmãozinhos do Snoop. Estava naquela loja por obrigação. Isso mesmo, obrigação. Quem mandou ser mãe?

Aline tinha 5 anos e deixara claro, através da psicologia de uma criança de 5 anos, muito choro e gritos agudos, querer um ‘au-au’. Noemi que se virasse. O apartamento não era muito grande? Problema de Noemi. Não haveria quem cuidar do cachorrinho? Problema de Noemi. O síndico não gostava de cães nas dependências do prédio? Problema de Noemi. Ela, já um pouco estressada, só faltava enfartar de tanto nervosismo nos últimos dias. Era uma mulher agitadíssima. Era o estresse em pessoa. Era neurótica mesmo! E teve que parar sua atribulada rotina diária para ir ao Pet Shop. Estava decidida a comprar o cachorro para Aline. A verdade é que sua querida filha já lhe enchera o saco.

A atendente do lugar chegou para ajudar Noemi a escolher um cachorrinho. Coitada da mocinha. Ela não conhecia Noemi.

-Vou levar esse daqui.
-Claro, ele é lindo! Mas a senhora mora em casa ou apartamento?
-Pode embrulhar, minha filha! Vamos logo que eu não tenho tempo a perder.
-Mas a senhora já conhece a raça? Este é um Dog A...
-Minha filha, eu sei inglês. Cachorro e Dog, tudo a mesma coisa. Coloca ele numa caixa. Depois coloca ele no banco de trás do carro.
-Sim, senhora.

A vendedora trabalhava na loja há muitos anos e sabia o tipo de pessoa com quem estava lidando. Não adiantava argumentar. E, verdade seja dita, nem valia a pena. Noemi era uma mulher estressadíssima. Fumava 2 maços de cigarro por dia. Bebia quase 2 litros de café diariamente. Gritava com superiores e subordinados. Era chata, sem paciência, neurótica, vingativa, presunçosa e..., bem, pelas próprias palavras dela – era mãe, não era filha, portanto, não devia satisfações.

-Está aí seu cachorro! Agora não me encha mais a paciência. Vá brincar com ele, Aline. Preciso trabalhar.

Aline estava feliz. Seu cachorrinho era bonito, brincalhão, pequenininho igual a ela e tinha os olhos azuis, também iguais aos da menina. Noemi trabalhava 14, 16, 18 horas por dia. Saia muito cedo de casa e chegava muito tarde. Quase não via Aline. Quase não via o Picolé. Não se assuste leitor, esse foi o nome que Aline deu ao cachorrinho. Picolé era o nome do ‘au-au’. Aliás, ele estava crescendo rápido, muito rápido. Até a babá de Aline andava assustada. A empregada da casa também andava assustada. Mas como ninguém via quando Noemi saia ou quando chegava o assunto estava quieto. Já Aline tinha um cachorrinho como queria e, com o crescimento do animal, este já servia também como cavalinho. Para a criança eram 2 animais em 1.

De repente a situação ficou insustentável. As funcionárias da casa organizaram uma campana e esperaram Noemi chegar pela madrugada. Quando chegou achou um absurdo ser esperada por empregadas numa hora daquela. Nada podia ser tão importante. Ela estava cansada e queria descansar.

-Amanhã a gente conversa. Preciso dormir.
-Mas, Dona Noemi, é sobre a Aline.

Noemi era uma megera, mas como toda megera – lá no fundo, mas bem no fundinho do peito, tinha um coração. Afinal, o problema envolvia sua filha. Ela tinha que escutar, embora não achasse que fosse nada muito importante. Devia ser travessuras da menina, pensava.

-O que a Aline aprontou dessa vez?
-Nada senhora...
-Poxa! E vocês me enchendo a paciência uma hora dessas. Assim não dá. Não vêem que trabalhei o dia todo...
-Senhora, é o Picolé!
-Que diabos de Picolé? Ah, o cachorrinho da Aline?
-Senhora, o cachorrinho cresceu.
-Mas como vocês são burras. Isso é normal. Cachorros crescem. A Aline cresce. Vocês um dia foram crianças e hoje são grandes, não são? Grandes e burras! Vou dormir!
-Mas, senhora. Ele cresceu muito.
-Ele está bravo?
-Não, mas...
-Se ele bagunça muito, então dêem uma tapinha nele. Aliás, isso também vale para a Dona Aline. Já autorizei vocês.
-Mas, senhora. Venha cá!

As empregadas pegaram a patroa pela mão e levaram-na rapidamente ao quarto de Aline. Abriram a porta devagar e apenas com a luz do abajur mostraram para Noemi. A mulher ficou muda. A mulher ficou pálida. A mulher ficou perplexa. Noemi estava trêmula. Noemi estava horrorizada. Noemi correu!

Era inacreditável. Picolé havia crescido. Picolé havia crescido muito. Picolé tinha o tamanho de 3 Alines. Picolé era bem maior que a cama da menina. Aquilo não era um cachorro, avaliara, Noemi, depois do pânico. Definitivamente aquilo era um cavalo. Aquilo ou aquele era o maior cachorro que Noemi já havia visto em sua vida.

Foram mobilizados o porteiro, o síndico e o zelador do prédio. Todos estes e mais a empregada e a babá. Eram 5 para levar Picolé de volta ao Pet Shop. Eram 5, mas Noemi pensou até em chamar o corpo de bombeiros. Só não o fez, porque os funcionários insistiram não ser necessário. Mas, ela não acreditava que um inofensivo cachorrinho tinha se transformado naquele bicho.

Noemi entrou na loja e visualizou a atendente que vendera o cachorro.
-Você! Foi você!

A atendente já vira aquela cena ridícula outras vezes. Dava tédio. Mas, lá estava outra madame, como tantas outras, que comprava um cãozinho para os filhos como se compram brinquedos. Comprava para se livrar dos filhos e não para presenteá-los. Comprava por que achava que tudo e todos têm um preço. Achava que a felicidade dos filhos podia ser comprada com um bichinho de 4 patas e cheio de pêlos. O importante era que os filhos não a incomodassem por um bom período.

-Senhora...
-Senhora uma ova! Que bicho é esse?
-Um belo cachorro, senhora.
-Senhora uma ova! Olha o tamanho do monstro!
-Ele só está com 6 meses, senhora. Ele ainda vai chegar ao tamanho ideal.
-Ideal uma ova! Ele está do meu tamanho! Em pé ele dá 2 de mim!
-Normal, senhora. Ele é um Dog Alemão. Uma das maiores raças do mundo.
-Você é louca! Me vender um cachorro desses. Eu o dei de presente pra minha filha de 5 anos. Eu e ela moramos num apartamento.
-Mas senhora...
-Senhora uma ova! Você é maluca!
-Mas senhora, eu tentei avisá-la quando escolheu o cãozinho...
-Cãozinho uma ova! Devolva meu dinheiro!

Depois de 30 minutos de um monólogo de Noemi disfarçado de diálogo. Depois dela chamar a atendente de insana, burra e toupeira. Chamar o gerente de incompetente, imbecil e traste, Noemi saiu do Pet Shop com o nariz empinado. Havia devolvido o bicho e retomado parte do dinheiro. Mostrara quem era Noemi Baunmer. Mostrara quem mandava. Agora bastava passar numa loja de brinquedos e comprar um cachorro de pelúcia para Aline. Ela choraria alguns dias – mas seria apenas frescura de criança. Logo passaria.

O tempo passou e Aline Baunmer cresceu. Hoje, tem 43 anos e um casal de filhos. Mora em uma casa grande e adora cães. Ela tem 5 em seu quintal: 2 Pastores alemães, um Poodle, um Husk siberiano e um Dog alemão. Os nomes dos outros cães não importam, mas do Dog alemão é PICOLÉ. A vida é assim!

*Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Atua como repórter freelancer para o jornal Diário do Comércio (SP) e é diretor de programação da Cinetvnet (TV pela WEB). Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.





Neurose nossa de cada dia

* Por Pedro J. Bondaczuk


O nosso cérebro é uma das estruturas mais fantásticas e misteriosas que existem e, por isso, é a que requer maior cuidado para que se tenha uma vida saudável, equilibrada e produtiva. Não há nada no mundo que se compare, ou que rivalize, com o seu funcionamento. Seu potencial é tão grande, que se torna impossível de delimitar até onde vai.

É o cérebro que rege a totalidade dos nossos atos – voluntários e involuntários; conscientes e inconscientes. Tanto a Medicina, quanto o Direito, estão de pleno acordo que é nele que se localiza a verdadeira “sede” da vida. Por essa razão, para efeito de doação de órgãos com vistas a transplantes, a morte do possível doador é legalmente definida não quando o coração pára de pulsar, mas quando a atividade cerebral cessa.

O cérebro tem a capacidade de promover a cura de um sem-número de doenças, de aplacar as piores dores e de operar tantas e tantas outras maravilhas, desde que corretamente estimulado. Por exemplo, através de uma técnica chamada de Visualização, é possível tratar males graves e crônicos, além de curar medos e vícios. Nos Estados Unidos, o método é usado amplamente, há anos, na preparação de atletas, com sucesso total.

Em contrapartida, o mesmo cérebro, que tem tamanho potencial curativo, pode causar (ou agravar) severos desarranjos comportamentais, que findam por afetar também o restante do organismo, em caso de mau-funcionamento, e causar doenças de difícil cura ou até mesmo fatais. É o caso específico, por exemplo, das várias neuroses, que afetam parcela considerável da população mundial, e que provocam sofrimentos, constrangimentos e prejuízos incalculáveis aos que são afetados por elas.

Alguns cérebros são resistentes à maioria dos vários tipos de agressões psicológicas externas do cotidiano a que todos estamos sujeitos. Proporcionam, dessa forma, aos seus detentores, reações equilibradas, compatíveis a quaisquer circunstâncias traumáticas e/ou tensionantes que venham a enfrentar. Reagem, de maneira espontânea, no sentido de contornar esses perigos racionalmente e assegurar, dessa forma, a saúde e a felicidade às pessoas consideradas resistentes. Outros, no entanto, são vulneráveis a esses mesmos estímulos. E a ciência sequer sabe explicar a razão porque uns resistem, e até saem fortalecidos das agressões psicológicas do cotidiano, e outros não.

Tecnicamente, a neurose não é doença. É, sim, uma reação anormal, exagerada, do sistema nervoso, em relação a uma experiência vivida (reação vivencial). É, pois, uma maneira de a pessoa ser e de reagir à vida. Pode ser evitada mediante um comportamento positivo, em que se cultive o bom-humor, a alegria, a esperança e a fé. O problema, na maioria das vezes, é de natureza constitucional. Ou seja, o neurótico é mais sensível do que o normal a determinadas situações ou acontecimentos. É como se tivesse alguma espécie de alergia, só que, no caso, de caráter psicológico. Por isso, não se pode dizer que a pessoa “está” neurótica, mas que “é” neurótica. Mesmo que não manifeste essa reação, ela pode ser deflagrada a qualquer momento, face a determinadas situações. Há pessoas potencialmente sujeitas às neuroses e que, no entanto, não as manifestam a vida toda. E há outras que convivem com esse desajuste desde a infância e não se livram nunca dele.

A maneira exagerada de reagir leva o indivíduo a adotar uma série de comportamentos que fogem da normalidade. Evita, por exemplo, determinados lugares e recorre a certas práticas para aliviar a ansiedade, entre outras tantas coisas inusitadas e, por isso, anormais, que faz. O neurótico tem plena consciência do seu estado, mas, muitas vezes, sente-se impotente para modificá-lo, o que só multiplica a sua angústia, o seu desespero e o seu sofrimento.

Um dos principais tipos de neurose é o chamado “Transtorno Fóbico-Ansioso”. Caracteriza-se pela prevalência da fobia (medo exagerado de determinadas coisas ou situações), entre outros sintomas de patológica ansiedade. As mais comuns são, entre tantas, as de ficar só, as de trovoadas, as de contrair doenças e as de cometer pecados. Os especialistas, contudo, já catalogaram mais de 700 fobias e acreditam que existam mais de mil delas.

Outra forma de neurose é o “Transtorno Ansioso”. Trata-se de uma ansiedade intensa e persistente, que traz sérios e profundos reflexos orgânicos. Algumas pessoas podem ter, por exemplo, sintomas cardiovasculares, como palpitações, sudorese ou opressão no peito. Outras manifestam reações gastrointestinais, como náusea, vômito ou vazio no estômago. Outras, ainda, sentem profundo mal-estar respiratório ou predomínio de tensão muscular exagerada, tipo espasmo, torcicolo e lombalgia. Como se vê, a sintomatologia é das mais variadas. Psicologicamente, a ansiedade pode comprometer desde a atenção e a memória do paciente dessa espécie de anomalia, até a sua capacidade de interpretação fiel da realidade.

A “Histeria”, por sua vez, é um tipo de neurose que tem, como sintoma principal, a teatralidade, a sugestionabilidade, a necessidade de atenção constante e a manipulação emocional das pessoas que convivem ou que estejam ao redor do neurótico. O histérico pode desmaiar, ficar paralítico, sem fala, trêmulo e desempenhar todo tipo de papel de doente.

Já os “Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo” têm, como principal reação, a incapacidade da pessoa de controlar manias e rituais. Os pacientes dessa patologia, entre outras coisas, não conseguem administrar pensamentos desagradáveis e absurdos. Vivem num permanente terror de perigos que, na verdade, são, na maioria, apenas imaginários. Finalmente, entre as neuroses mais comuns, está a “Distimia”, que é a tendência a longos períodos de depressão, que levam o neurótico, não raro, a perder até a vontade de viver e, em casos extremos, a cometer suicídio.

A psicóloga gaúcha, Ana Maria Rossi, autora do livro “Visualização: o sucesso através dos olhos da mente” (Editora Rosa dos Tempos) explica que o cérebro não distingue o real do imaginário. Por isso, ter pensamentos e imagens positivos ajuda conseguir o que se quer. E, se a pessoa for propensa às neuroses, esse comportamento ideal atua como um poderoso, perfeito e eficaz antídoto, capaz de nos assegurar não só absoluta saúde mental, mas, sobretudo, uma vida equilibrada, produtiva, sadia e feliz. Daí eu insistir tanto, nestes nossos periódicos contatos, na necessidade de nunca nos deixarmos levar pela tentação de pensar e, principalmente, de agir com negativismo, com mau-humor e com pessimismo. Esse comportamento equivocado não leva a nada, além de nos expor a riscos que não precisamos correr.


*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com






O Grande Inquisidor

Por Fiodor Dostoievski

- É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A ação passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante (1). Em França, os "clercs de la basoche" (2) e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espetáculos ingênuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscou, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste gênero, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam-se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem dúvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles "de que até Deus se esquece" – expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?" –, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é justa!". Pois bem: o meu poemazinho teria sido deste gênero, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: "Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores".

É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: "Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev (3), que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda".

Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A ação passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, "como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei (4). Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hosana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
- Vai ressuscitar a tua filha – gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és Tu, ressuscita-me a filha! – e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança – e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
- És Tu, és Tu? – E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez – diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.
- Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã – objetou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. -É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?
- Admite essa última hipótese – respondeu lvã, rindo -se o realismo moderno te tornou a esse ponto refratário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espírito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
- E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
- Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos." Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. "Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?" - pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: "Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" – acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro – prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completamos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
- Não compreendo outra vez – interrompeu Aliocha; -é uma ironia dele, é uma troça?
- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objetivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
- Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
- Mas é o ponto capital do discurso do velho
.
"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada – continua ele – falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te "tentou". É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as "tentações" que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o fato de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstituí-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: "Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.

"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.

"Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há de vencer, e que todos o hão de seguir gritando: "Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?" Hão de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. "Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!" Eis o que se há de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão de clamar: "Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram." Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: "Fazei de nós escravos, mas alimentai-nos." Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão de saber reparti-lo entre si! Também se hão de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão de seguir por causa deste pão, mas que há de ser dos milhões e dos bilhões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão de tornar-se finalmente dóceis. Hão de admirar-nos e hão de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo-nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade – indivíduos e coletividade –: "diante de quem se inclinar?" Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!

Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: "Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai." Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-te: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São covardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazinhos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão de chamá-Lo com desespero e esta blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfêmia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exatamente oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objetivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.

No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengis Cão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! Hão de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter conosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra "Mistério!" Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão de perdê-los num tal labirinto, hão de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão de arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-à tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.

Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão de escutar-nos com alegria. Hão de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns cem mil, os dirigentes, exceto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão de contar-se por bilhões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles. Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvamos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me levantarei e mostrarei os bilhões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o número". Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um sorriso nos lábios.

Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
- Mas... é absurdo! – exclamou, corando. -O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
- Espera, espera – disse-lhe rindo lvã. -Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
- Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas demais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? – gritou Aliocha, quase zangado. -Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
- Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça". Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército "ávido do poder apenas para os vis bens", não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia diretriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os maçons; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.
- Talvez tu sejas também maçom – disse de súbito Aliocha. -Não acreditas em Deus – continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça. -Como acaba o teu poema? – prosseguiu ele, baixando os olhos. - Não há mais nada?
- Há. O fim que eu tinha pensado era este: "O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
- E o velho?
- O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua ideia.


Notas:

1 Poeta Italiano, autor, entre outras obras, de Vita Nuova e d'A Divina Comédia, de que existe tradução portuguesa, viveu de 1265 e 1321.
2 Funcionários Judiciais.
3 Poeta russo, defensor da "santidade" da Rússia; viveu de 1803 a 1873.
4 Para maior glória de Deus.

(Trecho do romance “Os irmãos Karamazov”)




Os Arautos do Dia (edital de tombamento)

* Por Luiz Augusto Cassas

(escrito em papel embrulho)



Ficam declarados tombados
pra todos os efeitos e dados
os herói anônimos e martirizados:

os paralelepípedos sob o asfalto
& a cobertura de cobalto

o sorvete de ameixa do hotel central
& as sessões coloridas no cine-rival

as sabiás de cócoras
& os bem-te-vis de galochas

a coroa de rei dos homens
& a galinhagem de ana jansen

a caldeirada do germano
& os endereços dos pés-de-pano

os vendedores de pirulito
& os jogadores de palito

os anjinhos despirocados
& os poetas emprenhados pelos ouvidos

os quebra-queixos à mingua
& o teu beijo de língua

o doce de bacuri com cravinho
& o pôr-do-sol do portinho

as meninas da rua 28
& as virgens mortas sem coito

(a esses 20 tiros de canhão
e 30 missas em intenção)

e mais ainda: a saudade etérea
do amor de g. dias & ana amélia

O pintor de cartazes do cine-éden
faça repintar e imprimir e correr
a nova aurora que vai nascer

* Poeta de São Luís/MA



Maria a dos Prazeres

* Por Xênia Antunes

Cada vez que me possuem
cada vez fico mais pura
mais casta
mais virgem

Cada vez que fico nua
cada vez sou mais louvada
beijada
aleluia

Cada vez que eu me entrego
cada vez eu sou mais santa
mais salve
rainha

Cada vez que estou parindo
cada vez sou mais mater
mais ave
maria.

* Poetisa, jornalista, artista plástica e fotógrafa de Brasília. Autora do livro “Exercícios de Amor e Ódio”.

sábado, 30 de janeiro de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Clima e ânimo

Coluna Direto do Arquivo – Euclides Farias, crônica “A vez da música prapular brasileira”.

Coluna Clássicos – J. D. Salinger, Trecho da novela “O apanhador em campos de centeio”.

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica, “O poema ‘Sertão’, de Ascenso Ferreira”

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, artigo, “Polícia catarinense prende líderes do MST em ‘ação preventiva’”

Coluna Porta Aberta – José Calvino de Andrade Lima, poema, “Balas perdidas”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Clima e ânimo

Caros leitores, boa tarde.
O ano de 2010 começou de forma não muito alvissareira para boa parte das pessoas. Nas regiões sul e sudeste do Brasil, por exemplo, algumas cidades (inclusive a que resido) ainda não viram um único dia pleno de sol e de céu azul, do alvorecer ao entardecer. As chuvas, ou melhor, os temporais, até já viraram rotina para nós.
Fossem mansas e na medida certa para a época, seria fato para se comemorar. Mas não é o que vem ocorrendo. A temporada chuvosa bate recordes sobre recordes de índices pluviométricos, causando desastres, mortes e contratempos de todos os tipos. Alguns paulistanos, a exemplo do que fazem os moradores de Belém, no Pará, até já vêm marcando encontros para “depois da chuva”.
Os meteorologistas atribuem a excessiva pluviosidade desta temporada ao fenômeno El Nino, que se caracteriza pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico (que, a rigor, nem faz jus ao seu nome). Muita gente (e me incluo entre essas pessoas), no entanto, desconfia que já sejam os primeiros resultados catastróficos do “efeito estufa”. Tomara que estejamos equivocados.
E o que esse verão líquido, aquoso, molhado, úmido etc. tem a ver com literatura? Nada e tudo. Especificamente, as artimanhas do clima são assunto para os especialistas e, por extensão, para quem lida com notícias, os jornalistas e não para literatos. Todavia, esse cenário permanentemente sombrio, com nuvens escuras reduzindo ou até suprimindo a quantidade de luz, afeta direta e profundamente quem vive de escrever.
Notem, amigos escritores, como seus textos soam “diferentes” em um cenário como este que caracterizou janeiro. A tendência, ao redigirmos notadamente crônicas, é a de refletirmos nosso estado de espírito no resultado final da produção. Se estivermos alegres, se o ambiente ao nosso redor for bonito e agradável, o que escrevermos terá, mesmo que sutilmente (e embora nem seja nossa intenção) tons de alegria, descontração e felicidade. Caso contrário...
Somos animais “meteorológicos”. Ou seja, o clima afeta diretamente nossos sentimentos e emoções. Em dias belos e amenos de outono e de primavera, nossa produção tende a ser mais copiosa e de melhor qualidade. Aliás, todos os animais são afetados pela maior ou menor quantidade de luz e calor. Basta observar seu comportamento. No inverno, é um. No verão, é outro muito diferente. Em dias de sol, reagem de uma certa maneira. Nos nublados e chuvosos, a reação é diametralmente oposta. Provavelmente isso tem a ver com os níveis de melanina no organismo. Ou não, sei lá. Pelo menos, é o que suponho.
Aliado ao clima, que nos estragou metade do verão, o noticiário, desde finais de dezembro, é dos mais sombrios e desanimadores. Tragédias e mais tragédias se sucedem e pouca coisa positiva (não me lembro de nenhuma) ocorreu para contrabalançar.
Os norte-americanos fizeram uma interpretação pitoresca e, acima de tudo, otimista deste ano. Denominaram-no de “vinte dez”. Ou seja, deixaram implícito que teríamos duas dezenas de ocorrências perfeitas, com grau absoluto de excelência, a ponto de merecerem nota dez. Convenhamos, ainda não tivemos nenhuma. E o primeiro mês já foi pras cucuias.
É certo que vem aí o Carnaval. Quem aprecia (e pode aproveitar) essa festa popular certamente não estará nem aí se estiver chovendo ou fazendo sol de rachar mamona. Tenho minha maneira peculiar de participar da folia. Não é, óbvio, pulando nos bailes de salão ou torcendo por alguma escola in loco, na avenida.
Pular até que pulo, mas nos lençóis do meu leito. E não perco um único desfile na Marquês de Sapucaí. Calma, leitor, não há nenhuma contradição nessa confidência. Participo do Carnaval, sim, mas não comparecendo ao sambódromo. Faço-o de forma mais barata (na verdade gratuita), segura e confortável: assistindo este que é um dos maiores (senão o maior) espetáculos da Terra pela televisão.
Não deixa de ser, também, um sacrifício, pois uma noite sem dormir sempre cobra seu preço, principalmente se levar em conta que já não sou tão garoto assim. O festival de sons, luzes e cores, todavia, mais do que compensa tudo isso. Ademais, como estou de férias, posso perfeitamente trocar a noite pelo dia e repor minha cota, de oito horas batidinhas, de sono sem qualquer problema.
Quem sabe, o Carnaval será o primeiro dez, dos vinte que este ano sugere. O outro, espero, deve ser a conquista do hexacampeonato, por parte da Seleção Brasileira, nos gramados da África do Sul. Faltarão, pois, outros dezoito. Espero que sejam surpreendentes e marquem, não somente a minha vida, como a de todos os brasileiros. Evidentemente para melhor, claro, pois ninguém é de ferro para suportar tantas chateações e desgraças.

Boa leitura.

O Editor






A vez da música prapular brasileira

* Por Euclides Farias


Foi provavelmente o ferino Carlos Imperial, ao publicar uma notinha em sua influente coluna na Revista do Rádio, nos idos de 1963, quem detonou a pretensão de Nelson Motta de se tornar músico. Fã da então novíssima bossa nova, época da proliferação dos sextetos, Motta também lançou o seu, batizado pelo padrinho da banda, Ronaldo Bôscoli, de “Seis em Ponto”. Imperial escreveu, devastador: “A idéia não é boa: o nome vai dar chance a trocadilho dizendo que só vieram para fazer hora”. Depois do petardo, o Brasil começou a ganhar um lúcido crítico musical, letrista talentoso e excepcional historiador da música chamado Nelson Motta.

A lembrança do episódio – contado no livro Noites Tropicais, pelo próprio Nelson – vem no rastilho de pólvora espalhado por músicos que vêem a si próprios como reinventores da roda. Pretensos donos de estilos vanguardistas, mutilam composições irretocáveis, imprimem arranjos de mau gosto com a percussão sufocando vergonhosamente violão e sopros, interrompem a interpretação para grunhidos supostamente modernos e, com suprema soberba, ainda esperam aplausos da platéia. Um giro por bares e shows nas cidades e por catálogos fonográficos revela a tal genialidade que não resiste à primeira audição.

Não vai aí nenhuma simpatia pelo conservadorismo que despreza o experimental e o estudo que requalifica e leva às novas gerações a beleza de obras musicais, sem desfigurar-lhes a essência poética ou melódica. Mas a tolerância, por isso é assim chamada, tem limite. A “nova roupagem”, “a releitura” e a “visita”, expressões cunhadas para muitas vezes invadir a produção alheia sem nada acrescentar-lhe, povoam os cadernos de cultura de jornais e páginas de revistas, anunciando a reabilitação de uma música ou de um compositor postos no ostracismo, momentâneo ou secular. O show, você vai assistir, são outros quinhentos. É muito barulho por nada.

Grande parte dos partidários desse tipo de experimentalismo inconseqüente merecia estar mesmo sob o alvo de um código de defesa do consumidor de música e do tiroteio verbal de Imperial.

De Elza Soares veio talvez o melhor exemplo de reabilitação musical que dignifica o artista. No último disco da cantora, com composições de gente da pesada, ela escancara a verve jazzística que mesmo o samba-jazz deslustrava. Elza solta a voz como fazia na época em que escandalizou o auditório de Ary Barroso com sua cruel sinceridade, sem auto-piedade, ao relatar a vida severina que levava num morro carioca. O melhor do disco, porém, é que Elza libertou-se de certo repertório que lhe aprisionava o timbre, como já admitiu a própria cantora.

Se pudesse ouvi-la hoje, Imperial, o impiedoso, teria corrido à velha máquina de escrever, falsamente generoso: “A carne mais barata do mercado é a carne negra. Mas, no caso de Elza, vale a pena pagar mais caro por ela”. Atordoado pelos tempos modernos, aprenderia com a fina ironia de Nelson Motta que a discografia nacional pôs de lado a qualidade para se dedicar preferencialmente à música prapular brasileira.

Jornalista, 48 anos de idade e 25 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.






O apanhador em campos de centeio

Por J. D. Salinger


"Nem parecia que tinha nevado, as calçadas já estavam quase limpas. Mas fazia um frio de rachar e tratei de tirar do bolso meu chapéu vermelho e botei na cabeça – estava pouco ligando para minha aparência. Cheguei até a baixar os protetores de orelha.

Bem que gostaria de saber qual o safado que tinha roubado minhas luvas no Pencey, porque minhas mãos estavam geladas. Não que eu fosse fazer muita coisa se soubesse. Sou um desses sujeitos covardes pra chuchu. Procuro não demonstrar, mas sou. Por exemplo, se tivesse descoberto quem roubou minhas luvas no Pencey, provavelmente teria ido até o quarto do vigarista e diria: "Muito bem. Que tal ir me passando as luvas?".

Aí, o vigarista que as tinha roubado provavelmente responderia, com a voz mais inocente do mundo: "Que luvas?". Aí eu provavelmente ia até o armário dele e encontrava as luvas num canto qualquer, escondida na porcaria das galochas ou coisa que o valha. Apanhava as luvas, mostrava a ele e perguntava: "Quer dizer que essas luvas são tuas, não é?". Aí o filho da mãe provavelmente olharia para mim, com a maior cara de anjinho, e diria: "Nunca vi essas luvas em toda a minha vida. Se são tuas, pode levar. Não quero mesmo essa droga pra nada".

Aí eu provavelmente teria ficado uns cinco minutos de pé, no mesmo lugar, com as luvas na mão e tudo. Ia me sentir na obrigação de dar um soco no queixo do sujeito, quebrar a cara dele. Só que não iria ter coragem de fazer nada. Ia só ficar ali, de pé, tentando fazer cara de mau. Talvez dissesse alguma coisa bem cortante e sarcástica, para aporrinhar o sujeito – em vez de lhe dar um soco no queixo.

Seja lá como for, se eu dissesse alguma coisa bem cortante e sarcástica, ele provavelmente se levantaria, chegaria mais perto de mim e perguntaria: "Escuta, Caulfield. Você tá me chamando de ladrão?". Aí, em vez de dizer que era isso mesmo, que ele era um filho da mãe dum ladrão, eu provavelmente só teria dito: "Só sei que a droga das minhas luvas estavam na droga das tuas galochas".

A essa altura o sujeito já saberia com certeza que eu não ia mesmo dar um soco nele e diria: "Olha, vamos deixar esse negócio bem claro. Você tá me chamando de ladrão?". Eu então provavelmente responderia: "Ninguém está chamando ninguém de ladrão. Só sei que as minhas luvas estavam na porcaria das tuas galochas".

O negócio podia continuar assim durante horas. Finalmente eu iria embora sem ter dado um sopapo nele. Provavelmente ia para o banheiro, acendia um cigarro e ficava me olhando no espelho, fazendo cara de valente. De qualquer maneira, era nisso que eu estava pensando enquanto voltava para o hotel. Não é nada engraçado ser covarde.

Talvez eu não seja totalmente covarde. Sei lá. Acho que talvez eu seja apenas em parte covarde, e em parte o tipo de sujeito que está pouco ligando se perder as luvas. Um de meus problemas é que nunca me importo muito quando perco alguma coisa – quando eu era pequeno minha mãe ficava danada comigo por causa disso.

Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder. Talvez por isso eu seja em parte covarde. Mas isso não é desculpa. Sei que não é. O negócio é não ser nem um pouquinho covarde. Se é hora de dar um soco na cara de alguém, e dá vontade mesmo de fazer isso, a gente não devia nem conversar. Mas não consigo ser assim.

Eu preferia empurrar um sujeito pela janela, ou cortar a cabeça dele com um machado, do que dar um soco no queixo dele. Odeio briga de soco. Não que me importe muito de apanhar – embora, naturalmente, não seja fanático por pancada – mas o que me apavora mais na briga é a cara do outro sujeito. Não consigo ficar olhando a cara do outro sujeito, esse é que é o meu problema. Não seria tão ruim se a gente estivesse com os olhos vendados, ou coisa que o valha. Pensando bem, é um tipo gozado de covardia, mas não deixa de ser covardia. E eu não procuro me iludir (...)"

(Trecho do famoso romance, páginas 79-80)





O poema “Sertão”, de Ascenso Ferreira

* Por Luiz Carlos Monteiro

O poema “Sertão”, de Ascenso Ferreira (Palmares, 1895/ Recife, 1965), segundo do livro Catimbó (1927), mereceu uma breve análise de Manuel Bandeira, no prefácio que este fez à edição de luxo de Poemas, lançado em1951, no Rio de Janeiro. Nesta análise, que aparece juntamente com a de poemas de outros livros, Bandeira chama a atenção para o “extremo limite em que o verso já é quase música, [que] constitui a virtude mais característica da forma tão pessoal de Ascenso Ferreira”.

E isto nos motiva a dizer, embora de outro modo, que Ascenso, neste poema, intenta surpreender e talvez deixar pasmo, instantaneamente perplexo e sem ação o leitor de poesia. Assim, para melhor compreensão e acompanhamento de nossa análise, breve também, igualmente à do autor de Estrela da manhã, faz-se necessário, logo de início, a transcrição do poema:

Sertão! – Jatobá!
Sertão! – Cabrobó!
– Cabrobó!
– Ouricuri!
– Exu!
– Exu!
Lá vem o vaqueiro, pelos atalhos,
tangendo as reses para os currais...
Blém... blém... blém... contam os chocalhos
dos tristes bodes patriarcais.
E os guizos fininhos das ovelhinhas ternas:
dlim... dlim... dlim...
E o sino da igreja velha:
bão... bão... bão...
O sol é vermelho como um tição!
Lento, um comboio move-se na estrada,
cantam os tangerinos a toada
guerreira do Tigre do sertão:
“É lamp... é lamp... é lamp...
é Virgulino Lampião...”
E o urro do boi no alto da serra,
para os horizontes cada vez mais limpos,
tem qualquer coisa de sinistro como as vozes
dos profetas anunciadores de desgraças...
– O sol é vermelho como um tição!
– Sertão!
– Sertão!

O que imobiliza – e, ato contínuo, leva o leitor a um estado emocionalmente ativo –, é tanto a sonoridade viva e gradativa dos seus versos, quanto a intensa plasticidade visual sugerida. A evolução vocabular das tônicas finais permite, além das frequentes e identificáveis elevações de tom, alternâncias diversas na disposição e na logicidade das sequências de consoantes e vogais. Acompanhados de ressonantes e insistentes vibrações exclamativas, que geram, como em diapasão, efeitos positivos de entusiasmo e empatia, os lugares sertanejos sucedem-se, repetem-se ou se revezam: “Sertão! – Jatobá!// Sertão! – Cabrobó!// -- Cabrobó!// -- Ouricuri!// -- Exu!// -- Exu!”.

Os dois versos seguintes, em decassílabos, vão referir-se à entrada do vaqueiro em cena, no seu papel secular vivido entre a rudeza de bois e cavalos, a persistir em livrar-se do perigo de valas, grotas, veredas, garranchos, desvios ou eventuais emboscadas. Ao aviso de sua presença e do gado que tange, somam-se chocalhos, guizos e o sino, associados, nesta sequência, à morosidade dos “bodes patriarcais”, à tranquilidade das “ovelhinhas ternas” e à resignação do “sino da igreja velha”. Os sons produzidos ligam-se, por sua vez, aos objetos que os representam: blém – chocalhos, dlim – guizos e bão – sinos. A aparição do mito mais admirado dos sertanejos, Lampião, é registrada numa toada bastante conhecida: “É lamp... é lamp... é lamp.../ é Virgulino Lampião...”
.
O movimento final volta-se à perspectiva espacial (a serra e os horizontes) e aos reflexos sonoros (o “urro do boi” e as “vozes dos profetas anunciadores de desgraças”). O efeito sonoro-visual do meio do poema (“– O sol é vermelho como um tição!”) é retomado como um grito de alegria e esperança do poeta nesta terra de todos e de ninguém, onde tanto pode operar-se a violência mais surda e radical, como a hospitalidade mais humilde e verdadeira. Ao término do poema, retornam os efeitos sonoros com as tônicas do início: “– Sertão! – Sertão!”

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com





Polícia catarinense prende líderes do MST em “ação preventiva”

* Por Elaine Tavares

Um dos coordenadores estaduais do MST em Santa Catarina, Altair Lavratti, foi preso na noite desta quinta-feira (28 de janeiro) em Imbituba numa ação que lembra os piores momentos de um estado de exceção. Com uma força de mais de 30 policiais militares, a prisão foi efetuada no momento em que ele realizava uma reunião pública, num galpão de reciclagem de lixo da cidade. A acusação é de que Lavratti, junto com outros sindicalistas e militantes sociais preparava uma ocupação de terras na região. Foi levado sob a alegação de “formação de quadrilha”.

Segundo informações divulgadas no jornal Diário Catarinense, que estava “magicamente” no ato da prisão ao lado da polícia, os integrantes do MST estavam sendo monitorados desde novembro depois que um integrante do Conselho de Segurança Comunitária de Imbituba passou informações sobre a organização de uma suposta ocupação em terras do estado. Outras duas pessoas também foram presas, sendo que uma delas, Marlene Borges, presidente da Associação Comunitária Rural, está grávida. Ela teve a casa cercada na madrugada de sexta-feira e foi levada para Criciúma. Outro militante, Rui Fernando da Silva Junior, foi levado para a cidade de Laguna.

Integrantes do MST, advogados e um deputado estadual estiveram procurando por Lavratti durante a noite toda, mas não haviam conseguido contato até a manhã de sexta-feira, quando souberam que de Imbituba ele havia sido levado para Tubarão.

Ainda segundo informações da polícia, o juiz Fernando Seara Hinckel autorizou gravações telefônicas e determinou a intervenção do Ministério Público. Também teria havido a participação de P-2 (policiais a paisana, disfarçados) infiltrados nas reuniões dos militantes sociais da região de Imbituba.

Usando de um artifício já usado contra o Movimento dos Atingidos das Barragens, que foi o de prender “preventivamente” integrantes do movimento alegando “suspeita de invasão”, o poder repressivo de Santa Catarina repete a dose agora contra o MST. Para a polícia e para o poder público, reuniões que envolvam sindicalistas e lutadores sociais passam a ser “suspeitas” e sendo assim, passíveis de serem interrompidas com prisão. Só para lembrar, este é um tipo de ação agora muito usado nos Estados Unidos, depois de 11 de setembro, quando o presidente George Bush acabou com todas as garantias individuais dos cidadãos. Lá, e agora também aqui, o estado pode considerar suspeito qualquer tipo de reunião que envolva movimentos sociais. Conversar e organizar a luta por uma vida melhor passa a ser coisa de “bandido”.

A acusação de formação de quadrilha não encontra respaldo uma vez que é pública e notória a preocupação do MST com a situação das famílias daquela região, que vêm sistematicamente tendo que abandonar a zona rural em função da falta de apoio à agricultura familiar, enquanto o agronegócio recebe generosa ajuda governamental. A reunião na qual estava Lavratti justamente discutia esta situação e levava a solidariedade do movimento às famílias que seguem sendo despejadas de suas terras, ações que fazem parte do cotidiano do MST. A ação do governo se deve ao fato de em Imbituba ter sido criada uma Zona de Processamento e Exportações que tem engolido fatias consideráveis de dinheiro público sendo, portanto, considerada estratégica para os empresários da região.

Para o MST, as prisões foram descabidas, e só reflete a forma autoritária como o governo de Santa Catarina tem conduzido a relação com os movimentos sociais, criminalizando as tentativas dos catarinenses de realizar a luta por uma vida digna. Já para dar respostas aos atingidos pelo desastre em Blumenau, ou aos desabrigados pelas chuvas que têm caído torrencialmente este ano em Santa Catarina, não há a mesma agilidade estatal. Como bem já analisava o sociólogo Manoel Bomfim, no início do século vinte, ao refletir sobre a formação do estado brasileiro: “desde o princípio o Estado foi um aparelho de espoliação e tirania, feroz na opressão, implacável na extorsão. É um parasita”. Sempre aliado aos donos do poder e da riqueza, o Estado abandona as gentes e só existe para o mal do povo. É por conta disso, que, conforme Bomfim, “a revolta contra as autoridades públicas é o processo normal de reclamar justiça” já que as populações são sistematicamente abandonadas pelo Estado e pela Justiça enquanto a minoria predadora dos ricos e poderosos tem seus interesses defendidos, inclusive com o uso do dinheiro e do patrimônio que é de todos.

Como exemplo disso, basta trazer à memória o escândalo da Moeda Verde, quando ricos empresários locais fraudaram laudos ambientais para a construção de grandes empreendimentos na cidade de Florianópolis. Presos sob a luz dos holofotes, não ficaram um dia sequer na cadeia e o governador do Estado segue frequentando suas festas e dizendo ao país inteiro, através da televisão, que os empreendimentos construídos a partir da fraude são os mais bonitos da cidade e necessitam ser conhecidos e consumidos. Outro caso emblemático e atual, que não recebe a mão pesada do poder público, é o que envolve o vice-governador Leonel Pavan, enredado em escândalo de corrupção, e que também muito pouco interesse provoca na mídia. Não precisa ir muito longe para observar que Manoel Bomfim está coberto de razão: “os estadistas devem inquirir das condições sociais, indagar se as populações se sentem mais felizes e as causas dos males que ainda as atormentam, para combatê-las eficazmente”. Mas, em vez disso, lutadores do povo são presos e os direitos coletivos se perdem diante do interesse privado de uma minoria.

(Texto enviado pela escritora Urda Alice Klueger, de Blumenau/SC).

* Jornalista




Balas perdidas

* Por José Calvino de Andrade Lima


(anos 50)

Cada um desce o Morro
indo trabalhar de manhã

Nada somos que seja considerado
uma pessoa digna de respeito.

Não se pode andar à vontade,
a lei se deve obedecer.

(1970)

Bala perdida,
Polícia ou Favela?

A maioria das vítimas
é gente humilde e trabalhadora.

Só posso dizer que isso
me revolta também.

Devemos no máximo
encontrar um novo caminho

O destino do país depende
da inteligência das autoridades.

Tenho certeza disso, afinal,
lá vamos nós resolver...

Tudo o que for humanamente possível!


Rio de Janeiro, 2007/2009.

* Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo e poeta, membro da União Brasileira de Escritores, UBE-PE . Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 11 títulos publicados, todas edições esgotadas. Em 2007, integrou-se na Antologia (Poetas Independentes).