sábado, 31 de março de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – O fenômeno televisão.

Coluna Direto do Arquivo – Solange Sólon Borges, crônica, “Tormenta”.

Coluna Clássicos – William Wordsworth, poema, “A ceifeira solitária”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica,“Falando com a minha mãe”.

Coluna Porta Aberta – Harry Wiese, crônica “A histórias das árvores-homens”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica “O nosso segundo hino”.



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


O fenômeno televisão


A televisão é um dos maiores fenômenos tecnológicos do século XX, informando, divertindo, divulgando, aproximando pessoas e servindo de companhia a milhões, diria bilhões de solitários mundo afora (inclusive a mim, em determinadas circunstâncias especiais). Sou fascinado por esse veículo, mesmo fazendo restrições a muitos programas inúteis e tolos e à sua má utilização por parte de alguns (ou de muitos, como queiram). Todavia, uma coisa nada tem a ver com outra. Não concebo meu cotidiano sem essa presença constante em meu dia a dia. Sou contemporâneo, inclusive, da sua introdução no Brasil. Tive o privilégio de assistir (e um dia narrarei, certamente, e com detalhes, essa inesquecível experiência) à primeira transmissão (a inaugural) feita em nosso País, pela pioneira (e hoje extinta) TV Tupi de São Paulo, em setembro de 1950.


E por que trago à baila esse assunto num espaço voltado especificamente à literatura? Por todos os motivos que você possa imaginar. Um deles é por causa da infinidade de livros – de ficção e de não ficção – escritos a propósito. Outro é o de esboçar, mesmo que ligeiramente (e é só esboço mesmo!) a história desse tão importante veículo, que evoluiu tanto, e em tão poucos anos, e que segue evoluindo espantosamente, ainda mais ao se “aliar” à internet, se tornando, entre outras coisas, cada vez mais interativo. Enfim, por entender que se trata de tema interessante e pouco abordado no que diz respeito à sua invenção, implantação e expansão. Esse “pouco”, esclareço antes que me cobrem coerência, refere-se a textos atuais, desses expostos em blogs e sites. Livros a propósito, todavia (reitero) existem em profusão, “a dar com pau”, como se diz em jargão popular.


A paternidade da televisão é atribuída ao britânico Willoughby Smith. Em 1873, esse pesquisador comprovou uma propriedade muito especial do elemento químico selênio: a de transformar energia luminosa em elétrica. Com isso, o cientista demonstrou ser possível realizar a transmissão de imagem eletricamente. A primeira emissão de vídeo realizada na história ocorreu na década de 1920, através da experiência feita por John Logie Baird. Em 1930, o francês Renê Barthélemy fez funcionar transmissor pioneiro, que tinha onda de 180 metros.


Hoje é possível fazer-se emissões de imagem de praticamente qualquer parte do universo a que o homem tenha acesso ou consiga levar uma câmera. Já houve transmissões, por exemplo, da Lua e de Marte. Outras com certeza virão. O desenvolvimento da TV foi, portanto, um dos saltos tecnológicos mais rápidos e mais notáveis que se conhece. Mas a televisão, embora fenômeno típico do século XX, começou, praticamente, a nascer mesmo em 1873, quando o inglês Willoughby Smith comprovou a tal propriedade do selênio. A primeira estação regular de TV surgiu na França. Foi em 1935, quando foi montado, na badalada Torre Eiffel, uma retransmissora de imagem, que funcionou por vários anos.


Um dos grandes responsáveis pela existência desse veículo foi o inventor Lee de Forrest, nascido em 1873 e que morreu em 1961. Ele chegou a patentear 300 invenções e, entre estas, algumas que deram condições para a criação e o aperfeiçoamento da TV. A difusão desse meio de comunicação pelo mundo foi um dos fenômenos mais espantosos já vistos até hoje. Por exemplo, em 1950, havia 11 milhões de receptores de TV em todo o Planeta. Doze anos após, em 1962, essa quantidade quase decuplicou, alcançando a 116 milhões e, oito anos mais, em 1970, os aparelhos já eram 251 milhões. Notável, não é mesmo? Não faço a menor idéia de qual é a quantidade de receptores na atualidade. Mas tenho certeza que ascende à casa dos bilhões.


A primeira estação de TV na Grã-Bretanha foi montada em Londres, em 1936. Dois anos depois, em 1938, foi a vez dos soviéticos terem esse importante meio de comunicação ao seu alcance. A primeira TV dos EUA começou a ser montada no ano seguinte, em Nova York. Durante a Segunda Guerra Mundial, nenhuma emissora esteve em atividade nos países que já conheciam a televisão: França, Inglaterra, União Soviética e Estados Unidos. Apenas a Alemanha manteve suas estações em funcionamento, assim mesmo só até 1943.


A primeira transmissão de TV para toda a Europa, 12 anos antes do recurso dos satélites (o primeiro, em caráter experimental e não voltado às comunicações, o Sputnik, seria lançado apenas em 5 de outubro de 1957), foi feita em 1950, pela BBC de Londres. O sucesso do empreendimento permitiu, no mesmo ano, a criação da Eurovision. A emissora londrina foi a pioneira, também, em transmissões do exterior. Em abril de 1961, em emissão direta de Moscou, a BBC mostrou, para milhões de telespectadores britânicos, a chegada triunfal do primeiro homem que foi ao espaço, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin. A transmissão pioneira, via satélite, iria ocorrer, apenas, no dia 23 de julho de 1962.


A evolução da TV como meio de comunicação de massa foi, reitero, espantosamente rápida. Apenas para dar outro exemplo (embora entenda ser redundante), basta dizer que em 1946 o número de aparelhos existente nos EUA era de apenas 10 mil. Em 1950, portanto em 4 anos apenas, essa quantidade pulou para expressivos 4 milhões de receptores. Quanto à TV em cores, as primeiras experiências nesse sentido começaram em 1929. Entretanto, o sistema apenas veio a obter êxito, experimentalmente, em 1950, através da rede norte-americana CBS (Columbia Broadcasting Systems). Em 1954, começaram, nos EUA, as transmissões em caráter comercial, com o sistema desenvolvido por Peter Goldmark, ainda no ano de 1940.


O valioso recurso do vídeoteipe começou a popularizar-se no Brasil a partir de 1968. Quando foi introduzido, porém, causou grande choque no meio televisivo, sendo a causa de demissão de milhares de profissionais da televisão em todo o País. A TV Gaúcha de Porto Alegre, por exemplo, antes do advento desse importante meio de gravação simultânea de som e de imagem, tinha 244 empregados, entre cantores, cenotécnicos, iluminadores, produtores etc. Com a introdução do teipe, o quadro de funcionários da emissora reduziu-se a apenas 41 pessoas, ou seja, seis vezes menos. Esse recurso fez com que surgissem as redes nacionais, com quatro ou cinco canais produzindo seus próprios programas e os demais, espalhados por todo o Brasil, transformando-se em meros retransmissores, ou quase isso.


A publicidade foi, talvez, o ramo que mais evoluiu em termos de TV, a ponto de, atualmente, muitas delas chegarem a ser, até mesmo, mais interessantes do que determinados programas. Mas isso nem sempre foi assim. Na década de 50, por exemplo, a maior parte dos comerciais era veiculada através de anunciadoras. Muitas, de tanto aparecerem nos vídeos, acabaram se consagrando em outras atividades, dentro ou fora da televisão. São os casos de Hebe Camargo, Marlene Morel, Idalina de Oliveira, Clarice Amaral e Marisa Sanches.


As emissoras, visando altos faturamentos, chegavam a abusar quanto ao número e à duração dos anúncios. Isso durou até quando foi criada uma legislação a respeito, que entrou em vigor em 1982, limitando os comerciais ao vivo a cinco minutos para cada quinze de programa. E os anúncios filmados, não podiam exceder a três minutos, em quinze. Entretanto, poucos canais respeitavam essa limitação. A violação persistiu até metade da década de 70 quando, finalmente, após grita geral dos telespectadores, as emissoras começaram a acatar a lei. As propagandas institucionais, por sua vez, mostrando as supostas realizações do governo, começaram a ser veiculadas em 1968, no auge da ditadura militar, e a responsabilidade por esses comerciais era do então coronel Hernani D’Aguiar, chefe da Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República.


Viram quanto o tema é extenso? Sequer esbocei a história desse veículo de comunicação e, mesmo assim, este despretensioso texto já se tornou tão longo. Daí não estranhar a profusão de livros existentes a propósito. Estranharia se não houvesse. Há, até mesmo, sites da internet especializados em divulgar, exclusivamente, essa literatura televisiva. Claro que voltarei, oportunamente, ao tema, e certamente muitas vezes, dando continuidade, e com detalhes, ao que somente esbocei tão ligeiramente. Por que? Ora, porque... porque como já ressaltei, sou fascinado, vidrado, louco, tarado por televisão!!! É somente por isso. E precisa de mais?


Boa leitura.

O Editor.




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Tormenta

* Por Solange Sólon Borges


Ninguém crê que tudo se incendeia habilmente, depois de sermos batidos pelo temporal. Há a necessária compensação de forças entre os amores – luxúria, urgências, cobiça e fé – corpos desnudos com seus desejos encarcerados para que as muralhas cedam, afinal.

E eles querem partir, eles querem partir dos corpos celestes mas não podem: há o homem e há a fera.

Chegam os ferreiros batendo estacas sobre o peito: miasmas inundam os dias. O coração se reveste em pátina. O amor é premente e peço as sementes: eles comem os figos. Encontro vestígios de magma em minha pele bárbara.

São os pormenores da tormenta: sua face se dissolve na lembrança e peço uma foto como se pedisse qualquer rosto ou mesmo a alma. A ausência ressuscita Pã em meio ao pânico.

Mostrou-me o tango de suas pernas bailando entre as minhas no momento da submersão.

Tenho cios crônicos. Ata-me onde encontrar a fera e imagine a minha total fragilidade em seu retorno.


* Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.






A ceifeira solitária

* Por William Wordsworth

Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
E canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
Transborda à de harmonia.

Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.

Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dores de coração,
que já foram e hão de ser?

Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava
e, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia

* Poeta inglês, precursor do Romantismo na Inglaterra






Falando com a minha mãe

* Por Urda Alice Klueger

(Para Minervina Klueger, minha mãe)

Sabe, mãe? Há coisas, agora, que já não tenho para quem contar. Há coisas que eu fazia ou vivia pensando em como contaria para a mãe, e que agora faço ou vivo sem ter mais nenhuma pessoa que se interessaria em saber a respeito. Talvez, a Margaret, mas ela foi-se embora da minha vida quando a Valentina era um bebê, e a Valentina já vai fazer 9 anos.

Eu visitei meu primo Ralf Passold em novembro do ano passado e gostaria de poder contar para a mãe como foi, pois a mãe sempre queria saber tais coisas, mas agora já não tenho para quem contar. Então, escrevo.

O Ralf está morando numa cidade chamada Aurora, numa localidade chamada Fundos Aurora. É muito longe de tudo – desde o centro de Aurora (que é minúscula) até lá são uns 15 km. O Ralf comprou uma casa de negócios, uma construção enorme, que tem um bar e uma cancha de bocha. É aquele o único local de encontro da população local, além de duas igrejinhas, talvez três, pois deve ter a luterana também. O que vi foram a católica e a Assembléia de Deus. Então, nos sábados à noite, que é quando estive lá, algumas pessoas aparecem para tomar um refrigerante ou uma cerveja porque “já não agüentam mais ficar em casa sem ver ninguém”. Enquanto eu estava lá o Ralf falou para alguns clientes se já haviam conhecido a escritora Urda, etc. E, incrivelmente, lá naquele fim de mundo, as pessoas tinham meus livros e os liam!

Eu disse fim de mundo, mas é um fim de mundo muito bonito. Passeei com a Iraide ao por do sol e tudo é tão bonito, por todos os lados! E para se chegar a Fundos Aurora, a maior parte da estrada está plantada, de ambos os lados, de rosas de Santa Rita. É uma iniciativa incipiente de turismo rural. Com Iraide, vi duas ou três propriedades que já não eram rurais, mas casas de campo de gente que não era dali. E o Ralf tem um cachorrinho, e o Atahualpa estava comigo. Se a mãe soubesse como o Atahualpa ficou grande, bonito e inteligente!

Sobre o Atahualpa eu posso falar para outras pessoas, pois muitas o conhecem, e estou até escrevendo um livro sobre ele. Mas a quem mais interessara saber que fui visitar o Ralf e a Iraide? É em momentos assim que sinto a falta da mãe.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR


A história das árvores-homens

* Por Harry Wiese

O que está pensando, filho?

Papai sempre perguntava assim, quando me via agachado, cotovelos apoiados sobre os joelhos, mãos no queixo, olhos semicerrados, à noite, antes do jantar. Eu pensava coisas fantásticas sobre a vida, mas respondia que não pensava nada. E papai insistia:

─ O que está pensando, filho?

Enquanto eu permanecia nesta posição inadequada, mamãe preparava o jantar: ovos e aipim fritos com toucinho, numa frigideira velha. Uma pequena lamparina de querosene iluminava vagamente a casa de paredes de madeira de tábuas largas, meio desbotadas pela ação do tempo.

Numa noite, papai disse preocupado:

─ Querida, nosso filho está doente. Ele está muito estranho. Olhe seu jeito esquisito. Não é jeito de menino. Vamos ter que levá-lo a um médico.

Mamãe, com sua majestosa sabedoria, não se impressionou. Como eu poderia estar doente se brincava o dia inteiro e não sentia nada? O Dr. Bermudez me havia curado do tifo. Eu era um menino saudável. Mamãe retrucou:

─ Nem todos os meninos têm o mesmo comportamento. Deixa-o com as suas manias!

Nossa casa situava-se numa colina. Da varanda, avistava-se uma grande montanha coberta de mata virgem. Lá os homens desbravadores ainda não haviam chegado com seus machados e serras, mas de longe, já, cobiçavam aquelas terras fartas de madeiras e palmitos. Quase no meio daquela floresta, um pouco à direita, bem na linha do horizonte, no limite entre o céu e a terra, existiam duas árvores de grande porte, que se destacavam das demais, dando a impressão de que seriam homens, um cumprimentando ao outro. Nos dias de ventos fortes, parecia que estavam se movendo e, nos pensamentos de um menino, elas estavam vivas. Eram as minhas árvores-homens. De dia eram verdes, à noite, tornaram-se pretas, muito pretas, até a hora do milagre.

Eu esperava papai e mamãe dormirem. Papai sempre adormecia primeiro. A prova era o seu ronco forte e cadenciado. Mamãe levava mais tempo para adormecer. Eu sabia que ela meditava sobre os acontecimentos do dia e fazia projetos para o futuro. Isso prejudicava meus planos. Mas como eu poderia saber se mamãe estava dormindo? Eu tentava. Chamava-a baixinho com voz de anjo. Quando ela respondia, eu calava e quando não respondia, na ponta dos pés, dirigia-me à varanda.

Da varanda da velha casa, eu avistava as duas árvores em forma de gente. Lá, bem no meio das duas, nascia a Lua tão linda, cor de prata. Não havia, para mim, encanto maior do que observar aquele fenômeno. De uma coisa eu tinha certeza: ninguém no mundo inteiro assistia a um nascer de Lua tão lindo como eu.

Assim, em pouco tempo, as árvores-homens, lentamente, se tornaram brilhantes e a natureza se banhava nos raios macios do luar. Os sapos faziam algazarra nos pântanos e no riacho. Os animais da mata saíam das tocas e esconderijos. Os sons emitidos pelos grilos e outros insetos pareciam instrumentos musicais agudos. Os galos que dormiam nas laranjeiras anunciavam um novo dia por engano. E lá se ia a Lua, subindo cada vez mais no céu. Eu voltava à cama contente. Papai roncava, mamãe dormia tranquila e eu sonhava com as árvores-homens que significavam os mistérios da montanha e a beleza do mundo, lá fora, longe de casa a impressionar um menino sonhador.

Um dia papai vendeu a casa e eu, decepcionado, chorei baixinho para ninguém escutar. Não acreditava na beleza do luar de outra terra. Não acreditava na existência de outras árvores iguais as minhas.

O tempo passou e eu cresci. Muita coisa mudou. Não observava mais a Lua, decorava as lições da escola. Quando mamãe fritava ovos e aipim naquela frigideira velha, uma saudade enorme invadia meu coração, deixando as lágrimas à borda das pálpebras. Então, mamãe percebia minha indisposição. Quando me perguntava o que sentia, dizia que não era nada. Ninguém sabia que se tratava de um paraíso perdido no coração de um jovem.

Depois de muitos anos, voltei à terra dos meus sonhos, à terra das árvores-homens, à terra do luar mais bonito do mundo. Eram dez anos após a minha despedida. Andei. Procurei. Olhei para os lados, para a montanha, para as minhas árvores. Sentei-me sobre uma pedra e chorei feito menino. Os homens já haviam chegado com os seus instrumentos. A mata virgem das árvores vivas transformara-se em plantação de eucaliptos. A energia elétrica substituíra a beleza do luar de outrora. As lagoas secaram. As noites tornaram-se mudas e os animais da floresta morreram. Perdi o ânimo. Agachei-me. Coloquei os cotovelos sobre os joelhos, mãos no queixo e com os olhos semicerrados pensava em papai que um dia me perguntou, numa cozinha vagamente iluminada por uma lamparina de querosene:

─ O que está pensando, filho?

* Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela Academia Catarinense de Letras.


O nosso segundo hino

* Por Clóvis Campêlo

Do mesmo modo que a música “Aquarela do Brasil”, do compositor baiano Ary Barroso, é considerada por muitos como o nosso segundo Hino Nacional, considero o frevo “Vassourinhas”, de Matias da Rocha e Joana Batista Ramos, como o segundo hino do estado de Pernambuco.
Consta que a música foi composta pela dupla em janeiro de 1909 e vendida ao Clube Vassourinhas por três mil réis em novembro do ano seguinte.
A história é confirmada pelo pesquisador Evandro Rabelo em texto postado no site da Fundação Joaquim Nabuco. Afirma o pesquisador que na sede do Clube Vassourinhas foi encontrado por ele um recibo datado de 18 de novembro de 1910, no valor acima citado, assinado pelos autores da música. Do mesmo modo, ainda segundo Rabelo, no 2º Cartório de Registro Especial de Títulos e Documentos, consta outro documento, assinado por Joana Batista, em 1949, onde declara que a marcha foi composta por ela e Matias da Rocha no dia 6 de janeiro de 1909, no arrabalde de Beberibe, em um mocambo de frente a estação do Porto da Madeira.
Joana Batista Ramos faleceu em 1952, na sua casa no bairro do Zumbi, aos 74 anos de idade. Um ano antes, porém, em 1951, quando o Clube Vassourinhas foi ao Rio de Janeiro participar com êxito do carnaval carioca, ela cantou a marcha famosa devidamente orquestrada.
Sendo uma das músicas mais gravadas e executadas em toda a história da música popular pernambucana, “Vassourinhas”, no entanto, é questionada por alguns estudiosos do assunto, no que tange à simplicidade da sua estrutura melódica, já que o frevo-de-rua exige virtuosismo e um amplo conhecimento musical por parte dos seus compositores.
Entretanto, em 1956, ao lado da Orquestra Mocambo, regida pelo maestro Nélson Ferreira, Félix Lins de Albuquerque, mais conhecido como Felinho, com seu clarinete, introduziu variações tão brilhantes na música que praticamente a recriou, tornando-se por isso reconhecido e admirado.
Assim como Nélson Ferreira, Felinho nasceu na cidade de Bonito, no agreste pernambucano, no dia 14 de dezembro de 1945, e faleceu no Recife, em 9 de janeiro de 1980, deixando uma vasta obra musical.
No que tange a Matias da Rocha pouco se sabe sobre a sua biografia, além de que tenha sido um dos fundadores do Clube Vassourinhas, em 1889. Segundo o texto de Evandro Rabelo supra citado, era elegante, negro, afilado, maestro, tocador de violão, primo de Joana Batista Ramos e autor de outras músicas que não tiveram a felicidade de serem perpetuadas. Ambos eram alfabetizados, já que assinaram o recibo de venda do frevo famoso.

• Poeta, jornalista e radialista

sexta-feira, 30 de março de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Verdade nascida do erro.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, trecho do livro “Os corações futuristas”, “Terroristas no tempo de Médici”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, microcontos “Pílulas Literárias 115”..

Coluna Porta Aberta – Jair Lopes, crônica, “Sandices aviatórias”.

Coluna Porta Aberta – Mário Prata, crônica, “A criação e a culpa”.

Coluna Porta Aberta – Guilherme Scalzili, crônica “Protegendo o inimigo”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Verdade nascida do erro



A verdade, seja ela qual for ou o que se entenda que ela seja, pode nascer do erro? Os moralistas dogmáticos, do alto da sua arrogância, ou do seu fanatismo, dizem que não. Afirmam isso não com a convicção nascida do pleno conhecimento e, principalmente, da experiência, mas da sua rigidez mental, se não moral, que pode ser interpretada, até, como preguiça de pensar. Sequer se apercebem que essa postura intransigente é a mãe do atraso e fonte, se não de todos, pelo menos de boa parte dos males que afligem pessoas e, por conseqüência, comunidades e povos.


Abomino dogmas. Oponho-me à existência de temas tabus, de conceitos preestabelecidos e de idéias incontestáveis, que não possam ser submetidos a análises, e/ou a críticas, quando não desmentidos. Muita gente boa, hoje respeitada e reverenciada por todos, como Galileo Galilei Galileu ou Giordano Bruno, entre outros, foram vítimas deles. E por que? Por contestarem falsidades. Por ousarem pensar e buscar a verdade, difícil, muito difícil de identificar. Afinal, como Machado de Assis indagou, em um de seus tantos textos, complementando com a devida resposta: “O que há neste mundo que se possa dizer verdadeiramente verdadeiro? Tudo é conjetural”.


Supostas “verdades” – científicas, morais, teológicas, filosóficas, comportamentais etc. – que por muito tempo foram tidas e havidas como absolutas e indiscutíveis, acabaram desmascaradas por “rebeldes”, que ousaram pensar. E hoje, se alguém, por algum motivo, se propuser a defendê-las, certamente cairá não somente em descrédito, mas em completo ridículo.


Portanto, a resposta à questão que propus no início destas reflexões é “sim”. A verdade pode nascer do erro. Aliás, é a forma mais comum que há de se chegar a ela. Isso, claro, desde que se tente. Desde que não se eleve o que “supomos” ser verdadeiro à condição de dogma. E que não se vete, em circunstância nenhuma, sua análise e discussão. Seria até redundante citar exemplos, tantos e conhecidos que eles são, de verdades que nasceram de erros. Querem um deles? O da idéia de “geração espontânea”.


Hoje isso soa ridículo e ninguém acredita nessa bobagem, todavia, até meados do século XIX – portanto, historicamente, um tempo bastante recente, um quase ontem – cientistas reputados, tidos e havidos como “sérios”, como luminares da Biologia, acreditavam nessa fantasia. Criam, por exemplo, que vermes nasciam de trapos velhos ou coisas assim. Ridículo? Claro que sim! Foi preciso que Louis Pasteur achasse essa idéia absurda e sem sentido (como de fato é) e, com suas pesquisas e experiências, se empenhasse em comprovar o erro, e o comprovasse na prática, sem sombras de dúvidas. Daí, da sua comprovação, resultou a descoberta de vírus e bactérias, possibilitando à medicina a cura de doenças hoje tidas como simples e banais, mas que até então, não raro, eram incuráveis e letais.


Isaac Asimov – eminente bioquímico e consagrado escritor de ficção científica, falecido em 6 de abril de 1992 – escreveu, do alto da sua experiência de pesquisador e de pensador: “Um sutil pensamento errôneo pode dar lugar a uma indagação frutífera que revela verdades de grande valor”. Reitero, todavia, que para isso ser possível, não podemos ser dogmáticos ou intransigentes. E muito menos estabelecer temas tabus. E, claro, não se pode ter preguiça de pensar. Afinal, como concluiu Machado de Assis, “tudo é conjectural”. A verdade de hoje pode ser a grande mentira de amanhã e vice-versa.


Aliás, por falar no “Bruxo do Cosme Velho”, lembro-me de outra de suas tantas afirmações polêmicas, mas que, após muitas reflexões, não tenho como discordar. A avareza, como sabemos, é um defeito de caráter. Trata-se de uma espécie de “doença” da alma, listada, inclusive, pelos teólogos como um dos sete pecados capitais.


Todavia, no que ela consiste? Consiste na poupança, posto que levada a extremos, a ponto do “poupador compulsivo” deificar determinados valores materiais (dinheiro, jóias etc.). Não fosse tão extremada, essa atitude seria a mais lídima virtude. O mal, pois, está no “exagero” do ato e não nele em si.. E Machado de Assis concluiu, a respeito: “A avareza é apenas a exageração de uma virtude”. E não é?! Não se trata de defender essa atitude, óbvio, mas de colocá-la em seu devido contexto, até para evitar que venhamos a ser contaminados, um dia, por esse “vírus”.


Sei que reformar idéias preestabelecidas, cristalizadas pela tradição, é um processo penoso e, não raro, perigoso, mesmo que a intuição nos alerte que são erradas. É um processo lento, trabalhoso, que exige de nós não somente pleno conhecimento do que queremos contestar, mas capacidade de convencimento para convencer os que estão incorrendo no erro. A verdade leva tempo, muito tempo para emergir, às vezes décadas, não raro séculos, quando não milênios. E não emerge por “geração espontânea”. Alguém terá que procurá-la, comprová-la e trazê-la à luz.


Já que recorri tantas vezes a Machado de Assis, para fundamentar estas reflexões, não me custa me valer mais uma vez da sua argúcia, perspicácia e sensatez. Em uma de suas crônicas políticas, das que assinava no jornal “Gazeta de Notícias” do Rio de Janeiro, na coluna denominada “Notas semanais”, a da edição de 7 de julho de 1878 – e foi há tanto tempo que o Brasil, então, vivia ainda sob o reinado de D. Pedro II – o escritor constatou: “Nenhuma reforma se faz útil e definitiva sem padecer, primeiro, as resistências da tradição, a coligação da rotina, da preguiça e da incapacidade. É o batismo das boas idéias; é ao mesmo tempo seu purgatório”.


No conto “Eterno”, todavia, o fundador da Academia Brasileira de Letras nos lembra do senhor da razão (embora dependa de agentes que tragam à luz as verdades essenciais ao homem). Afirma: “Confio no tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes, quando menos, em cascalho”. Não nos conformemos com o erro. Façamos dele o “estopim” para a explosão da verdade. Sejamos críticos, sim, mas, sobretudo, não nos limitemos a contestar. Saiamos à cata de comprovações do que entendemos ser correto e verdadeiro e se nos provarem que nós é que estamos errados, não tenhamos escrúpulos em mudar.

Boa leitura.

O Editor.




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Terroristas no tempo de Médici *

** Por Urariano Mota

Samuel tomou conhecimento dos assassinatos na praça de Paulista. Ele esperava o ônibus da Alumínio SA, que o deixaria na fábrica em Igarassu, onde com orgulho vestia o seu macacão. Ao ver as fotos no jornal pendurado na banca, ele não conseguiu reprimir a exclamação:

- Caíram! Meu Deus ...

Ato contínuo foi lendo com raiva e ansiedade: "equipes especiais dos órgãos de segurança cercaram no último dia 9 um 'aparelho' numa chácara em Camaragibe, utilizado como centro de treinamento de guerrilha. Dada ordem de prisão os terroristas que ali se achavam reunidos reagiram a bala. Após cerrado tiroteio, foram encontrados no aparelho dois terroristas mortos. Dois outros conseguiram fugir ...".

- Mentira, canalhas - resmungou. E olhou para os lados. Era como se a praça, a avenida, a feira de Paulista, estivessem vazias. Porque desconheciam o cinismo da manchete estampada no jornal.

- Isso é uma canalhice! - Samuel conteve-se, à força, para não gritar. Quanto sofrimento coberto pelo silêncio. Ele o sabia: Vevê há uma semana fora arrancado da casa dos pais por soldados. Num sequestro, pode-se dizer, à maneira de quem toma da família um cão danado. Agora ele aparecia como terrorista, morto, porque teria trocado balas com a repressão. Isso acusava também a falsidade das circunstâncias da execução de Cíntia. Desde que entrara para a clandestinidade, tornado-se operário, não mais a vira. Tomaram caminhos paralelos. Ainda assim, sabia-o, a prática da organização não era a de treinamento de guerrilha em chácara, pelo menos no grande Recife. Haviam sido assassinados sob tortura, desarmados, isso era evidente. A bonequinha de milho fora machucada até o último sopro de vida. Samuel sentiu-se tomado por um profundo desprezo, um desdém por sua própria segurança. "A revolução há de responder", ele se disse, em voz baixa. Ergueu-se. Sentia-se cheio de coragem, mas não no sentido vulgar que é dado a essa qualidade. Nada de fanfarronice, de pabulagem, ou de se sentir melhor e mais alto que o comum da gente. Apenas estava tomado pela decisão de fazer o que era preciso ser feito. Sem ostentação, mas com uma naturalidade prenhe de raiva. Como dizer, decompondo essa raiva? - angústia, paixão, amargura. Ele não queria que chegasse a sua vez, de morrer amordaçado sob a dor - isso ele não queria. Mas se esse fosse o único e possível preço ... que raiva o invadiu por tão estreita opção, que não se liberava nem se deixava expandir para um campo de luta aberto. Ele se dizia, sem articular em vocábulos: "chama-me, convicção, e eu te responderei. Mas, luta, dá-me pelo menos a lealdade de armas claras no duelo. Sem canalhice, sem essa brutal infâmia. Sem ter de optar entre o amor por minha particular humanidade e a humanidade do amor geral, histórico. Eu não quereria sacrificar os olhos de quem mais quero à minha convicção. Mas a isso nos impelem. Canalhas...". E gritou, a todos e a ninguém, em frente à igreja de Santa Elizabete:

- Filhos da puta!

Baixou o rosto, e numa convulsão autônoma ficou com as mãos apertando-se nos bolsos. Quase não ouviu o ônibus da Alumínio buzinando.

João chegou no trabalho afundado. Desejava, porque estava triste, afastar de si todo e qualquer convívio, ao mesmo tempo que gostaria da compreensão por seu estado de tristeza, numa parca esperança de solidariedade. Era necessário, no entanto, e aí o seu rosto não sabia que face vestir, era necessário no entanto ostentar frieza, indiferença, como se não soubesse da notícia dos jornais, para que o rosto de dor não lhe atraísse suspeita, assemelhando-o aos companheiros mortos. Sabia-o na inteligência, - como dizer? - por instinto primário, animal, que o insinuar de um sorriso cúmplice com os assassinatos da manhã seria bem-vindo. Mas um frio no estômago lhe interditava essa possibilidade. "Disse-lhe Pedro", vinha-lhe num tormento: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti. Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim?". A pergunta lhe chegava num espanto, incrédula: "Darás a tua vida por mim?!".

Entrou no escritório. Sentou-se, abriu a gaveta, fechou-a, tirou a capa da máquina, sem saber como a partir de tais movimentos rotineiros iria tocar o seu dia. Ouviu, do chefe janota:

- Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram?

Abriu e fechou a gaveta, fechou e abriu, cabisbaixo, imergindo todo nesse ir e vir. Um perfume enjoado, ativo, mistura de repelente e álcool, chegou-lhe próximo:

- A puta era até bonitinha. Carinha de anjo, mas terrorista. Você viu, João?

- Eu? - "Darás a tua vida por mim?" pensou. - Não vi o jornal hoje.

Um bolo azedo lhe subiu à boca.

- Trocaram tiros com a polícia... São afoitos.

Era como um cerco. Deviam ter desconfiança dele, e vinham com armadilha, estimulando-o, para que se traísse pelo coração na goela.

- Vocês se lembram da bomba no aeroporto? Tem que matar mesmo. Eu nuca vi terrorista ter cura - dizia um velho, que João sabia ser um funcionário desonesto.

- Mocinha tão bonita... - acrescentava outro, em falsa piedade - ...desencaminhando jovens de família.

"Eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", bateu-lhe na mente. E rosnou:

- Os jornais mentem muito. - "Com a ternura e raiva e um bem guardado no mais íntimo segredo", os seus olhos quiseram marejar. Conseguiu mantê-los num seco frágil.

- O quê, o quê você disse? - voltou-se o chefe.

Quis responder com voz alta e firme, "eu disse que os jornais mentem". Mas a voz, teimando em lhe sair num fio, que era a expressão do seu real embaraço, tropeçou nas sílabas:

- (Eu) diis-se que os (jor)nais (es)tão meentindo...

- Como é que você disse?

João sorriu, para a sua desgraça e inferno sorriu, como um menino espancado em frente a visitas. A fortaleza evadira-se do peito. Em luta, restou-lhe um meio sorriso, procurando ganhar tempo para o desvencilhar do enredo. E como os segundos de um embaraço multiplicam-se na angústia, a sua inteligência descobriu uma terceira via: ele deu de ombros, e declarou num ar de quem fala coisa de pouca importância:

- Esses jornais... de vez em quando eles inventam. A gente tem que dar uns descontos.

- Ah! mas eles eram terroristas. Isso não é mentira, é?

"Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem que tu me tenhas negado três vezes". João virou-se e procurou começar a bater a máquina. As lágrimas teimavam em lhe vir aos olhos.

- Mas eles não eram terroristas? – ouviu de novo. "Disse-lhe Pedro: por que não posso eu seguir-te agora? ". E era como se o indivíduo que estava às costas lhe dissesse: tu também és um deles. E o seu silêncio frente à pergunta, "eles eram terroristas, isso não é mentira, é? ", soava como a resposta "Eram. Mas eu não sou um deles". As teclas da máquina ficaram embaciadas. Então ele se levantou da cadeira com um nó na garganta pronto a desatar. E, tendo saído para fora, chorou amargamente.

* Do romance “Os corações futuristas”

** Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.






Pílulas literárias 115

* Por Eduardo Oliveira Freire

- SEU COLO É TÃO BOM...
- Gosto de consolar.
- Minha mãe era assim. Sinto o leite escorrer no rosto.

***
MIMADO
- Quando algo o contraria, papai bate o pé com força.

***
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00h00min Preciso dormir e paro de escrever o conto que continua a cavalgar por lugares que nunca conheci.


* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, com Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor






Sandices aviatórias

* Por Jair Lopes


A história da aviação é bastante polêmica quando se trata de dizer quem foi o primeiro a construir e voar numa aeronave “mais pesado que o ar”. Para nós brasileiros não há dúvida que o franco tupiniquim Alberto Santos Dumont foi o precursor da façanha, tendo voado 1906 numa geringonça chamada 14 Bis, construída por ele mesmo em Paris. Para os americanos, os irmãos Orwille e Wilbur Wright voaram em 1903, embora eles não tenham registro fotográfico ou impresso sobre o feito, enquanto o voo de Santos Dumont foi amplamente registrado em filmes e na imprensa. Como dizem os bicheiros, “vale o escrito”; ou como os órgãos da justiça determinam: O que não está nos autos não existe. Então para nós, e para todo o sempre, o nosso ASD foi o pioneiro e pronto, quem não estiver satisfeito que mude a história.


Além desse embate por hegemonia aviatória no continente americano, há outras estórias da carochinha que, vez ou outra, aparecem em algum artigo jornalístico ou em livros por aí. Parece que todo mundo foi pioneiro da aviação. Os russos, que não costumam “perder” para ninguém, também tem lá um inventor que em 1889 teria feito um arriscado voo em uma máquina de fundo de quintal e teria morrido no experimento. Na França, o crédito é dado a Clément Ader que teria feito o primeiro voo em uma aeronave impulsionada por motor a explosão e levantando voo pelos seus próprios meios em 9 de Outubro de 1890. Gustave Whitehead disse ter voado em uma aeronave mais pesada do que o ar, por meios próprios, em 14 de agosto de 1901. Esse “Gustavo Cabeça Branca” falhou em documentar seu voo, mas posteriormente, uma réplica de seu Number 21 conseguiu alçar voo com sucesso, indicando tratar-se de uma máquina tecnicamente viável. Lyman Gilmore, outro inventor ousado, também afirmou ter voado em 15 de maio de 1902, embora, como muitos outros, nada pôde provar.


Na Nova Zelândia, o fazendeiro e inventor Richard Pearse construiu um monoplano que alçara voo em 31 de março de 1903. Existem fortes evidências que esta decolagem de fato ocorreu, entre testemunho e fotografias. Porém, o próprio Pearse, num rasgo de honestidade, admitiu que foi um voo não controlado e que havia terminado por chocar-se em um morro após ter voado a um teto de três metros. Karl Jatho voou em uma aeronave mais pesada do que o ar em agosto de 1903. Seu voo foi de curta duração, porém, e a velocidade da aeronave e o desenho da asa fizeram com que o avião não fosse bem controlável pelo piloto, ou seja, a traquitana não poderia ser considerada um avião sob qualquer ângulo. Ainda em 1903, testemunhas dizem ter visto o escocês Preston Watson fazer seus voos iniciais em Errol, no leste da Escócia. Porém, a falta de quaisquer evidências fotográficas ou documentárias faz com que este voo pareça mais outro conto da carochinha.


O engenheiro romeno Traian Vuia também diz ter voado em um avião, e que ele decolou e sustentou voo por tempo razoável, e sem a ajuda de ventos opostos. Vuia teria pilotado a geringonça que ele desenhou e construiu, em 18 de março de 1906, em Montesson, perto de Paris. Contudo, ainda que paire dúvidas se eles existiram de fato, nenhum de seus voos superou 30 metros de distância. Para efeito de comparação, no final de 1904, os irmãos Wright, dizem os americanos, já teriam realizado voos de 39 quilômetros de distância e de 39 minutos de duração.


Muitas reivindicações de voo são estranhas pelo fato de que vários destes deslocamentos alcançaram tão pouca altura, que fizeram os aviões confundirem-se com o solo e não ficou patente se eles estavam voando ou quicando no chão. O pejorativamente chamado “voo de galinha”. Além disso, são controversos também os meios utilizados para alçar voo. Alguns decolaram supostamente por meios próprios, enquanto outros foram inicialmente catapultados para decolagem, e, no ar, continuavam a sustentar voo por meios próprios. Só que “meios próprios” também são controversos nestes casos citados, porque ao atirar uma pedra com estilingue ela “voa” até o impulso inicial se extinguir em consequência do atrito com o ar e ela cair por força da gravidade. Então cadê os meios próprios? Eu diria que a maioria dessas máquinas de fundo de quintal se semelhava a grandes pipas meio desengonçadas que conseguiam se sustentar enquanto impulso houvesse e os ventos lhes fossem favoráveis, algo muito longe de uma aeronave autônoma.


Essa plêiade de arrojados pioneiros estabeleceu um nascimento tão tumultuado que, aparentemente, não se via um futuro definível à frente. Então, é surpreendente que a aviação tenha se desenvolvido até isso que vemos hoje. Imensas aeronaves incorporando o que há de mais avançado no campo de ligas e compostos leves e materiais resistentes às altas temperaturas, à fadiga e ao desgaste; a última geração do mais avançados equipamentos eletrônicos e computadores que praticamente pilotam e navegam sozinhos, de tal modo que a intervenção humana é quase totalmente dispensável; comunicação e localização geográfica global por meio de satélites com precisão de centímetros em certos casos; motores com potência, desempenho e economia de combustível inimagináveis até no sonho mais louco dos pioneiros; desenho aerodinâmico que permitem velocidades até três vezes maiores que a do som; capacidade de carga útil ou de passageiros seguramente de até centenas de vezes maiores que as primeiras aeronaves; e uma proliferação planetal de modo que virtualmente todos os cantos da Terra, habitados ou não, estão ao alcance dessas máquinas com o maior conforto. Isso tudo, além de ser uma arma de guerra formidável, para vergonha dos homens de paz.


Num artigo sobre os avanços da aviação, o cientista Otto Fitzmayer fazendo uma alusão aos níveis tecnológicos que as aeronaves incorporaram desde seu surgimento no século passado, disse: “Se os automóveis tivessem incorporado tecnologias e inovações no mesmo nível que as aeronaves o fizeram estariam hoje fazendo 200 quilômetros por litro, andando normalmente a trezentos por hora e teriam autonomia de trinta mil quilômetros”. É isso aí, o meio de transporte aéreo, além de tudo, só não é mais seguro que elevadores.


• Escritor, autor dos livros “O Tuaregue” e “A fonte e as galinhas”.


A criação e a culpa

* Por Mário Prata

Por que a culpa?
É o que eu tenho perguntado ao meu psicanalista de plantão.
No princípio era o verbo e eu achava que só eu me sentia culpado. Com o passar do tempo (e da verba) fui descobrindo que todo criador tem culpa. Não no cartório. Mas na consciência.
Vou tentar explicar.
Todo mundo acha que a pessoa que vive de criar, ou seja, um criador, não faz porra nenhuma o dia inteiro. Fica só pensando. É verdade. O problema é que ninguém considera o trabalho de pensar como trabalho. Daí a culpa ensimesmada. Será que só pode ser considerado trabalhador o sujeito que fica o dia inteiro numa mesa de escritório, ouvindo pela janela "olha a uva de Atibaia", "melancia barata, melancia barata"?
Você vê uma frase num out-door tipo "isso é que é". São quatro palavrinhas mágicas. O sujeito que inventou isso deve ganhar uma fortuna por mês. O que ninguém entende é que ele trabalha há vinte neste ofício. Pode ser que a frase tenha saído de um estalo. Mas um estalo vinte anos depois. Não precisa ser nenhuma brastemp para se ter uma idéia dessas. Ou precisa? Mas o povo pensa: ganhar essa fortuna para escrever uma bobagem dessas?
Cada vez que lanço um livro, estréio uma peça de teatro ou vou ao cinema ver um filme com roteiro meu, me dá pânico. Fico pensando: o pessoal vai pensar que eu escrevi isso na maior moleza. Que eu sou um vagabundo. E eu, realmente, fico achando que sou? Algumas mulheres trabalhadeiras já me jogaram isso na cara. E tome divã!
As crônicas, por exemplo. Escrevo uma vez por semana no Estadão e ganho mais que muitos coleguinhas que dão duro lá o dia inteiro e ainda fazem, de vez em quando, um plantãozinho de fim de semana. Fico com culpa. Sei que não devia, mas fico.
Para aliviar meu sofrimento, penso no Romário que "trabalha" umas doze horas por mês e ganha 100 mil dólares. Será que ele tem culpa? O Chico Buarque, que fica meses sem trabalhar, jogando futebol, será que ele acorda com culpa, vendo, todo dia, a sua mulher sair cedo e dar um duro danado no cinema, na televisão e ainda, de noite, fazendo um teatrinho?
Vou almoçar no Pé Prafora e quase emendo com o fim do dia. Bebendo cerveja. Mas pensando. Pensando nessas besteiras que vocês estão a ler agora. Depois, no fim do mês, vou receber a grana de um simpático funcionário que deve - com certeza - ganhar menos do que eu para trabalhar ali, o mês inteiro. Fazendo o meu cheque. Não tem jeito de não bater a culpa.
Fico pensando em Deus, que só trabalhou seis dias e tirou o sétimo para descansar. Mentira dele. Descansou o resto da vida. Ou você conhece mais algum trabalho dele nesses anos todos? Deve andar culpadíssimo. Mesmo porque, na hora de enfrentar o batente mesmo e apanhar na cara, mandou o filho. Este sim, trabalhou, deu duro e morreu pobre.
Eu, pelo menos, trabalho. Penso, invento, crio. E esses funcionários fantasmas, que trabalham em várias repartições e nunca comparecem? Será que eles não têm culpa? Será que só eu me sinto culpado neste país?
Uma vez perguntei para o Chico Buarque, que acabava de acordar às duas da tarde, se ele não tinha culpa. "Já tive. Superei". E o Caetano Veloso que nunca acorda antes das quatro (da tarde)?
Conta uma lendas que quando Einstein esteve no Brasil foi recepcionado pelo Austregésilo de Athayde. O imortal andava com um caderninho para ir anotando as idéias para seus livros e ensaios. Perguntou se o genial Einstein não fazia o mesmo. No que ele respondeu: "Não. Só tive uma idéia na vida". E o pior, é que essa idéia tinha só três letrinhas. Aquela famosa língua dele para fora denota um certo sinal de culpa. Deve ter morrido, relativamente, cheio de culpas.
Quanto menos escrevo e mais ganho, vou me sentindo, cada vez mais, subdesenvolvido e comunista. Quando deveria ser o contrário, como afirma o meu psiquiatra. Ele, por exemplo, não sente culpa nenhuma de ficar ouvindo os meus lamentos entre um bocejo e outro. Ou será que tem? Jamais saberei lidar com a culpa dele. Basta a minha.
Isso é que é!

• Escritor e jornalista



Protegendo o inimigo

* Por Guilherme Scalzili

Denzel Washington repete a composição eficaz dos filmes com Tony Scott (“Chamas da Vingança”, etc), cuja influência aqui chega a desconcertar. Até os assistentes do jovem diretor sueco Daniel Espinosa são assíduos colaboradores de Scott. Mas é na estilização visual que essa referência ganha contornos de homenagem.

O fotógrafo Paul Cameron (que vem de ótimos trabalhos na “Trilogia Bourne”) registra a ação com notável destreza. Mas exagera na climatização glamorosa, de cores predominantes, película granulada e altos contrastes. O resultado, de uma dramaticidade meio barroca, parece gratuito.

Uma diversão à parte é imaginar os instrumentos a que Cameron teria recorrido para criar tais efeitos. Meu palpite: um filme “rápido” (mais sensível), filtros de correção que subtraem alguns tons (azuis, na seqüência do clímax, daí os céus ficarem quase brancos e tudo resultar dourado) e fontes duras de luz, com poucas compensações nas sombras.

Novamente, escolhas infelizes na distribuição dos papéis ajudam a tirar boa parte da surpresa final do enredo. Não que faça alguma diferença, evidentemente.

*Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.

quinta-feira, 29 de março de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Caracterizações supérfluas.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, conto “A despedida”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica,“Um controle Z de presente”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Aqui o sistema é bruto!”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “O otimista”.

Coluna Porta Aberta – Suzana Vargas, poema “Tango”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Caracterizações supérfluas

A
caracterização de gêneros literários gera – e não é de hoje – muitas controvérsias entre críticos e estudiosos de literatura. Isso ocorre quando se trata de ficção e, no meu entender, é uma discussão bizantina. É como discutir o sexo dos anjos. Ou seja, rigorosa inutilidade, quando não imensa tolice. Ao escritor, por exemplo, pouco lhe importa se a história que narrou será rotulada de conto, de novela ou de romance. E aos leitores, muito menos. A estes importa se o texto é bem escrito e sem erros, se prende sua atenção e se satisfaz um dos motivos que levam as pessoas à leitura: ou distrair, ou informar, ou suscitar reflexões ou (o que é desejável) tudo isso simultaneamente.

Se para quem lê, o gênero literário utilizado para classificar o texto que está lendo e que prende sua atenção (e, portanto, satisfaz suas expectativas) pouco ou nada importa, para o escritor, às vezes, tem importância imensa, diria fundamental. Pode significar o ineditismo ou a divulgação plena do que escreveu. Por que? Porque algumas editoras (felizmente poucas), ainda manifestam certo preconceito em relação ao conto, argumentando ora que se trate de gênero menor, ora que não vende e vai por aí afora. Tolice, claro. Algumas limitam publicações do gênero. Outras são mais radicais ainda e, simplesmente, não publicam livros de contos. Estão no seu direito. Todavia, prestam imenso desserviço à cultura em geral e à literatura em particular.

Esses editores néscios – caso detivessem os respectivos direitos – deixariam de publicar contos de Machado de Assis, de Clarice Lispector ou de Aluísio de Azevedo? Duvido! Todavia... nunca se sabe. Abririam mão da publicação das deliciosas histórias de Ligia Fagundes Teles, Dalton Trevisan, Lima Barreto, Humberto de Campos ou Otto Lara de Resende, apenas para citar alguns dos consagrados autores nacionais? Se o fizessem (ou fizerem) estariam (ou estarão) “queimando dinheiro”, ao deixarem de ganhá-lo, face ao grande apelo popular que esses escritores têm, logicamente pelos seus inegáveis méritos literários. E todos são peritos contistas.

Houve quem tentasse estabelecer, como limite, para que determinada história fosse classificada como conto, a 7.500 palavras. As que excedessem essa cifra, seriam novelas ou, até mesmo, romance. Como essa tentativa não “colou”, esses parâmetros de extensão foram modificados. Atualmente, alguns críticos e estudiosos de literatura entendem que textos do gênero, para serem enquadrados como tal, devem conter um mínimo de 1.000 palavras e máximo de 20.000. Claro que esses limites são solenemente ignorados pelos contistas. Felizmente. Da minha parte, os ignoro. E não somente isso: os abomino, por entender que se trate de tola tentativa de se engessar a criatividade.

Há contos minimalistas, todavia completos, com começo, meio e fim, sumamente inteligentes e de bom gosto, que contêm, no máximo, cinco linhas, talvez 140 palavras (como se fossem twittes, que andam muito na moda). Há, em contrapartida, os que ocupam até 100 páginas, sem perderem sua característica e, principalmente seu interesse.

E os leitores habituais, aqueles que fazem da leitura mais do que um hábito ou quem sabe obrigação, mas um insubstituível prazer, apreciam, igualmente, tanto uns quanto outros. E não lhes importa nem um pouco, nada mesmo, se críticos literários à procura de chifres em cabeça de cavalo ou se teóricos de literatura no afã de comprovarem suas inúteis teorias os consideram ou não como contos. A eles não faz a menor diferença se o que estão lendo é conto, novela ou romance. O que lhes conta é a “qualidade” (e o interesse, claro) do texto e nada mais.

De uns cinco anos para cá, por exemplo, o chamado microconto vem se popularizando cada vez mais. Utilizando-o com perícia, o autor consegue contar não apenas cinco, ou dez ou vinte histórias em um livro, mas centenas delas. Um dos escritores que melhor utilizaram essa forma foi o já saudoso e genial Millôr Fernandes, que acaba de nos deixar para entrar de vez na posteridade. O paranaense Dalton Trevisan é outro que esbanja talento e versatilidade utilizando o mínimo de palavras. E alguém pode dizer, sem cair em ridículo, que ambos sejam maus escritores?Ou que não tenham imaginação? Ou que não saibam esgrimir peritamente com palavras para compor histórias instigantes e inteligentes? Claro que não!

Há, na literatura (e não apenas na brasileira) romances que os teóricos, (sempre eles) rotulam de “romances desmontáveis”), que são, de fato, coletâneas de contos aos quais os autores conferem unidade temática, mas cujos capítulos podem ser lidos isoladamente, por se constituírem, por si sós, em histórias completas. Um exemplo? Simples, “Vidas secas”, de Graciliano Ramos. Outro? Cito dois de uma vez, ambos de Machado de Assis: “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. Ah, querem um exemplo do exterior? Então leiam com atenção o livro “O processo”, de Franz Kafka.

Embora minha intenção não seja a de polemizar, mas apenas a de trazer à baila algo que afeta a tantos escritores que têm no conto a sua especialidade literária (mas que não vi ainda nenhum trazer o assunto a debate), sei que minhas colocações vão gerar polêmicas em alguns círculos. Paciência! O que acho inadmissível é a tentativa, seja de quem for, de se engessar a criatividade, estabelecendo, aleatoriamente, limites ao que deve ser sempre livre e ilimitado. Ademais, nessa questão – como em todas as outras que envolvam literatura – só há e deve haver um único juiz, ao qual me submeto sempre: o leitor.

Boa leitura.

O Editor.





Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






A despedida

* Por Pedro J. Bondaczuk

Conto

- Ouçam! É o Lucas que virou, de novo, lobisomem – afirmou, convicto, o moleiro Manoel, a respeito de um conhecido nosso, que já havia trabalhado, há uns dois anos, na fazenda do meu avô.


A reação foi provocada pelo uivo desesperado e lúgubre de um cão nas proximidades da casa. Era sexta-feira, de uma noite qualquer de agosto de 1947, nos arredores de Santa Rosa, interior do Rio Grande do Sul. A Lua Cheia brilhava intensamente no céu, com seu clarão iluminando as casas e as ruas sem calçamento e sem iluminação pública, criando cenário propício para alimentar crendices e superstições daquela gente humilde e simples.


- E você acredita nessas bobagens? – perguntou meu pai, homem esclarecido e cético que zombava da superstição do amigo.
- Não só acredito, como já vi o Lucas transformado em lobisomem, seu Francisco - respondeu. - Corri o quanto pude. Desafiar esse tipo de criatura não é coragem, mas burrice – acrescentou, tentando se justificar.


Meu pai limitou-se a gargalhar, daquele seu jeitão franco e espontâneo, com a risada ecoando por todos os cômodos da casa. Apesar do adiantado da hora, ele não baixou o tom de voz. Esse, aliás, sempre fora seu costume, para desespero da minha mãe, dona Lúcia, pacata e sossegada, que pigarreou de um dos quartos, numa espécie de censura. Afinal, não estávamos em nossa casa. Era preciso mais respeito com quem queria dormir.


O alarido acordou a esposa do Manoel que, estremunhando, vestida com um robe desbotado, de um tom rosa pálido, que já conhecera melhores dias, foi para a cozinha, assustada, saber o que estava acontecendo. Eu, da minha parte, não havia conseguido conciliar o sono. Estava elétrico, tenso e excitado com o que me esperava nas próximas horas. Ouvia toda a conversa e ria, com meus botões, das tolices do moleiro.


Meu pai, para não magoar o amigo, com o qual já tivera inúmeras discussões a propósito desta e de outras lendas locais, mudou, estrategicamente, de assunto. Perguntou, como quem não quer nada, quais eram as novidades da cidade grande.


Enquanto isso, a mulher, dócil e submissa, apressou-se em preparar um chimarrão para todos. Colocou, com paciência e perícia, a erva na cuia, enquanto aguardava a água da chaleira ferver no fogão a lenha. Além do meu pai e do Manoel, participavam da conversa os dois filhos mais velhos deste, Malaquias e Fabiano. Ambos, porém, pouco falavam. E quando o faziam, limitavam-se, meramente, a confirmar as palavras do pai.

Santa Rosa, esclareça-se, naquele tempo, perto de onde morávamos – um novo e pacato distrito, cujo vilarejo central consistia somente de duas ou três ruas de terra batida, se tanto, chamado de Horizontina, caracterizado pela colonização de imigrantes provenientes do Leste europeu, na maioria russos e ucranianos – era verdadeira metrópole, embora não tivesse nem trinta mil habitantes.


Estávamos na casa do moleiro porque pela manhã, exatamente às cinco horas, embarcaríamos, eu e minha mãe, para São Paulo. Iríamos na frente, enquanto meu pai ficaria mais algum tempo em Horizontina, para vender nossos parcos bens, antes de seguir definitivamente para a cidade que, para nós, era a Meca das oportunidades, a possibilidade de mudarmos de vida, nos ilustrarmos, termos, enfim, um futuro que sonhávamos fosse radioso e progressista.


Já passava da meia-noite. Tinha, portanto, menos de cinco horas para conciliar o sono, antes de nos trocarmos, fazermos as respectivas despedidas e embarcarmos rumo ao que era, pelo menos para mim (na verdade para todos os que estavam na casa) desconhecido. Aquela viagem, há tantos meses planejada, tinha, para o garotinho sapeca e esperto, que os pais pretendiam que fosse, um dia, médico, engenheiro ou advogado, o sabor de fascinante aventura.


Eu imaginava São Paulo muito diferente do que era. Jamais havia visto cidade maior do que Santa Rosa e, na minha imaginação, este era o meu parâmetro de grandeza. Imaginava a metrópole paulista, que “não podia parar” (conforme já era seu slogan) como um grande vilarejo, nada mais do que isso. Sequer sonhava com ruas tão apinhadas de carros, com multidões indo de lã para cá em permanente correria, com tanto barulho e fumaça.


Arranha-céus? Nunca tinha visto nenhum. Se me dissessem que existiam, e que eram tantos e tão altos, ficaria irritado com quem me dissesse, certo de que estivesse tentando me enganar. A maior casa que eu já vira era um sobrado no centro de Santa Rosa, de propriedade de um comerciante alemão. E já considerava uma exorbitância, um exagero.


Enquanto, excitado, eu dava asas à imaginação, a conversa na cozinha continuava mais animada do que nunca, com a voz do meu pai se destacando entre as demais. Conversavam, agora, sobre política, sobre a necessidade da volta de Getúlio Vargas ao poder. Embora houvesse consenso entre os amigos a esse respeito, a conversa mais parecia uma discussão do que um diálogo, tamanha a ênfase que cada qual punha em suas respectivas opiniões.


Meu pai era getulista ferrenho. Considerava-o “o pai dos pobres” e sentia-se órfão com seu afastamento temporário da política. Manoel também era adepto do caudilho, mas manifestava certo tom de crítica, relativa mágoa até pelo fato do matreiro político pouco ter feito pelo Rio Grande do Sul, principalmente pela região de Santa Rosa, conforme seu entendimento.


Meu pai discordava, claro. E dessa discordância nascia a discussão que, embora acalorada, não deixava de ser cordial, por paradoxal que pareça. Afinal, naquela roda todos se estimavam e se consideravam, de certa forma parentes, mesmo sem que o fossem. Ademais, essas discussões eram costumeiras, freqüentes, diria que semanais, pois se repetiam sempre que meu pai e o moleiro se encontravam, quer em sua casa, em Santa Rosa, quer na nossa, em Horizontina.


Excitado, eu estava dividido. Tanto ouvia a conversa dos adultos, quanto imaginava como seria essa São Paulo de que meus pais tanto falavam, e com tamanha esperança, na verdade certeza de uma vida melhor. Na época, não me passava, nem remotamente, pela cabeça que aqueles seriam os derradeiros momentos que eu passaria na minha terra natal. Que, embora bem sucedido na grande metrópole, um dia sentiria tamanha saudade dos campos verdes de Horizontina, das pacatas ruas de Santa Rosa e, principalmente, daquela gente tão amiga e tão querida, que nem sei que fim levou.


- Mãe, como é São Paulo – perguntei em determinado momento, esperando uma explicação que satisfizesse, pelo menos um pouco, minha intensa curiosidade.
- Você está acordado, menino?! – disse minha mãe, em tom de severa reprimenda. – Você deveria estar dormindo. Daqui a pouco vamos viajar e não quero que você me dê nenhum trabalho, ouviu? – completou, em tom de ameaça. Fiquei quieto, por medo de levar algumas palmadas.


Claro que, mesmo que quisesse, não conseguiria dormir. Quem conseguiria? Com tanta novidade à minha espera, era impossível me desligar, por um momento que fosse, e atender à sábia recomendação (na verdade, enfática ordem) da minha mãe.


Continuei ouvindo a conversa dos adultos. Ouvindo, sem ouvir. Ou seja, sem atentar para os assuntos tratados. Eu estava com a mente em outros mundos, ou melhor, no “futuro”, tentando adivinhar como era essa São Paulo, da qual diziam tantas maravilhas, onde a família previa que teria vida melhor. Antes de me dar conta, chegara a hora de levantar e se preparar para a longa viagem de trem, de três dias.


Ficaríamos, eu e minha mãe, hospedados na casa dos meus avós maternos, que residiam na metrópole paulista, até que meu pai liquidasse nossos parcos bens em Horizontina e fosse ao nosso encontro, com dinheiro que ele julgava suficiente para comprar uma casinha, mesmo que modesta, na periferia de São Paulo.


Depois de um reforçado desjejum, fomos para a estação. Meus tios e avós paternos não estavam presentes para as despedidas. Mas o moleiro e a família estavam. Embarcamos, eu e minha mãe, com mil recomendações do meu pai para que tivéssemos cuidado e, especificamente para mim, para que me comportasse. Não entendi muito essa advertência, mas prometi que seria bonzinho.


O trem, após agudo apito, começou a distanciar-se da plataforma. Ante os meus olhos extasiados, desfilavam os belos campos da minha terra natal, que nunca mais veria. O som das rodas do vagão nos trilhos, monótono e repetitivo, pareceu-me uma canção de ninar. E teve, mesmo, esse efeito. Nem a excitação, nem a precoce saudade das pessoas queridas que ficaram para trás, foram suficientes para manter-me desperto. Quando dei por mim, minha mãe me chamava para fazermos baldeação. Já estávamos no Estado do Paraná e eu dormira o dia todo. Foi assim que me despedi da terra natal...



* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk






Um controle Z de presente

* Por Marcelo Sguassábia

Dedicado ao meu amigo e ilustrador deste texto, Thiago Cayres, que faz aniversário no mesmo dia que eu. E também para o meu pai.

Como de costume, estava eu à noite na varanda, curtindo o fastio da janta e dando comida pro cachorro, quando o Homem lá de cima chegou de surpresa e aboletou-se na cadeira do papai. Que aliás, era mesmo do meu pai. Sem maiores cerimônias, ajeitou-se na poltrona, coçou por instantes a longa barba e desembuchou:

- Diga lá, criatura. Como é que está essa força?
- Oi, Criador. O Senhor por aqui!
- Trouxe pra você um presente. Não repara, é só uma lembrancinha.
- Um presente do Onipresente. Não precisava se incomodar...
- Imagina, temos que comemorar seu aniversário.

Abri o pacote, embrulhado em um papel cheio de anjos, e no fundo dele vi um pequeno cartão escrito com a inconfundível letra do Todo-Poderoso: "Vale um Control Z".

- Meu Deus! Um Control Z! O comando mágico que conserta as besteiras que a gente faz no computador.
- Pois é, pra você apagar alguma burrada que tenha feito. Um erro que tenha cometido na vida, não no computador. Escolha o momento em que quiser voltar atrás e faça bom proveito. Seus hábitos de fazer o sinal da cruz quando passa em frente à igreja e de desviar das formigas que andam pela calçada o fazem merecedor deste mimo, meu caro.
- Ah, então já sei o que quero fazer. Aproveitando que o Senhor está na cadeira que foi do meu pai, traga ele de volta pra mim. Um Control Z faz isso, não faz?
- Meu querido, o que eu te dei de presente não é lâmpada de Aladim. Um Control Z só pode reverter uma ação que você tenha praticado e se arrependido depois. Ele funcionaria, no caso, se você tivesse colaborado para que seu pai se fosse. Mas felizmente não foi isso o que aconteceu. Do contrário você estaria bem arrumado Comigo...
- Bom, nesse caso, peço que o Senhor use o Control Z que me deu e conserte a Sua ação de ter levado meu pai. Com todo respeito que Lhe devo, o que me diz da ideia?
- Não diga nunca mais isso, sob pena de cair em pecado mortal! Como Onipotente, sou infalível. Se seu pai se foi, era a hora dele e não cabe a você questionar os Meus desígnios. Estou muito chateado com o que disse, e sua ficha razoavelmente limpa acaba de ser maculada.
- Mas Senhor, veja bem...
- Porém, Minha infinita bondade permitirá uma remissão do acontecido. Use o Control Z que acabou de ganhar para voltar atrás no que disse. Aí então estaremos quites. Sua impertinência o forçará a desperdiçar o presente que com tanto carinho escolhi para você.
- Tá certo... mas sem chance de me arrumar um outro Control Z depois deste?
- De jeito nenhum. Assim, sugiro que o use pra limpar sua barra com a minha Pessoa. Além do mais, se bem o conheço, você não ficará com a consciência tranquila sabendo que Eu voltaria lá para cima sentido com o que fez.- Ah, isso não ia mesmo.
- Então vamos logo com essa história, porque Eu tenho a eternidade toda mas não tenho muito tempo a perder por aqui. Dê um Control Z no que disse, entenda que é para o seu bem e saiba que o seu pai está ótimo lá em cima, cuidando de importantes afazeres.

Fiz a vontade de Deus. Acionado o Control Z, olhei para a cadeira do papai e dei com ela vazia, como se nada tivesse acontecido. Só os latidos do Poopin, pedindo mais ração. E as batidas no meu peito, pedindo de volta o meu pai.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)






Aqui o sistema é bruto!


* Por Fernando Yanmar Narciso

Esse cara aqui é um estúpido! Flagrou a mulher saindo de casa de mãos dadas com o Ricardão e atropelou os dois! Aquele outro, na igreja, terminou de se confessar com o padre, puxou um três- oitão e meteu bala no padre e em mais três. Um absurdo! Mais uma: Brigou com a sogra e jogou nela a geladeira do 3º andar do prédio. E aquela jovem que matou a família toda a tiros porque “não gosta de segundas-feiras”? Mas nenhuma ganha dessa aqui: Usuário de crack e heroína mata a mãe a facadas por ter pegado emprestado o cartão de crédito dele sem avisar.
“Típicos” casos que acontecem todos os dias em qualquer parte do planeta... Na maioria das vezes passam despercebidos, mas se caírem na mão de algum programa policialesco de fim de tarde, é só correr pro abraço! Desde os tempos do Aqui Agora, do Cadeia Nacional e do 190 Urgente, esse tipo de noticiário policial trash não sai de nossas telinhas. Quase sempre eles mostram perseguições a bandidos e tiroteios no morro, numa forma que outros noticiários não têm coragem de fazer, com as câmeras bem na cara dos policiais e dos criminosos e repórteres fanfarrões e suarentos de tanto correr atrás da notícia e zombar da cara dos meliantes.
Não os desaprovo por isso, mas são os casos menores, os “corriqueiros”, os que atraem mais audiência, fazendo os jornalísticos sensacionalistas deixarem de marcar traço no IBOPE pra marcar 1 ponto.
O apresentador, geralmente o Datena ou o Wagner Montes, chama todas as câmeras para si e dispara lugares-comuns furiosos como “Vocês não vão acreditar! Isso é um absurdo, uma insanidade! Se seus filhos estão na sala, toque todo mundo pra fora, ou melhor, NÃO ASSISTAM!!”, com toda a expansividade e o espírito de porco que lhes são esperados. Aí, depois de enrolar uns cinco minutos para contar o caso, ele roda uns 15 segundos do VT e corta, pra fazer comentários sensatos e pertinentes sobre o ocorrido antes mesmo de levar a história toda ao ar.
Quase sempre os tais casos são brigas e discussões entre vizinhos que terminam terrivelmente mal, e às vezes nem têm tanta graça assim.
Para se ter sucesso nesse tipo de programa, basta ter em mente que matar o cachorro a pauladas na frente do filho de 2 anos não é notícia, já matar o filho de 2 anos a pauladas na frente do cachorro, isso sim é notícia!
Para aqueles que querem ver o circo pegando fogo, mas não querem ver tanto sangue, há sempre os programas da Márcia Goldschmidt e Cristina Rocha, também nos fins de tarde. Historinhas mal contadas e mal encenadas de bate-boca e brigas entre classes D e E, que nada fazem a não ser se humilharem em rede nacional. Se essa gente pudesse pagar psiquiatras e advogados, não precisariam se sujeitar a isso. Nunca vou me esquecer de uma vez que Márcia falou sobre fetiches e colocou um sem-vergonha para lamber chantilly no pé de uma desvairada. Quem quiser programação de qualidade, que assine TV a cabo!
Mas a pergunta que não sai da minha cabeça quando vejo essas histórias é: E nós com isso? Em que ver esses pequenos genocídios, brigas, homicídios e eugenias locais vai alterar o curso de minha vida? Quer dizer, e daí que o cara matou três dentro da igreja? Nem eram parentes meus nem nada. O drogado matou a mãe, isso não é problema nosso, é só dele- e como o sujeito tem problemas!
Esses programas seguem a idéia dos combates de gladiadores da Roma antiga e dos filmes de terror com serial killers. Assistimos àquele show de horrores, tiros, facadas, torturas, desmembramentos e sentimo-nos expurgados de toda a crueldade do mundo por algumas horas.
Fico pensando o que se passa na cabeça desses repórteres e apresentadores. Todos não passam de uns sádicos, assim como suas audiências. Seriam mais úteis para a sociedade fazendo algo para acabar com toda essa sujeira, em vez de simplesmente sair apontando tudo o que há de errado conosco. Ora, pare de segurar essa câmera e ajude a enfaixar aquele cara todo estropiado no chão! Desliga esse microfone e ajuda o esfaqueado a entrar na ambulância! Seja solidário e não pense apenas no precioso 1 ponto do IBOPE! Claro que isso não vai acontecer, né verdade? Porque todos nós temos contas a pagar, mesmo que o pagamento seja com sangue.

• Designer e colunista do Literário.Blog Terra de Excluídos, http://terradeexcluidos.blogspot.com






O otimista


* Por Gustavo do Carmo

As moscas já tomaram conta do barraco. O estrume virou adubo, mas já se esfarelou . O pai morreu há muito tempo e o deixou cheio de dívidas. A mãe foi morar com o irmão em Paris. E Viriato tenta o suicídio pela quinta vez. Já não acredita mais no pônei que esperou por vinte anos, desde que ganhou uma caixa de estrume do seu pai.

Seu irmão, que ganhou uma bicicleta no mesmo dia, nunca se machucou como acreditava. Tornou-se ciclista profissional, ficou rico e famoso, mudou-se para Paris e nunca mais procurou o irmão.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.






Tango

* Por Suzana Vargas

Tu possuis um caribe de paciência
Eu sou atlântica, fatal

No teu mar
os meus mortos sempre voltam

E todas as miragens são reais.

(Do livro “O amor é vermelho”).

* Poetisa gaúcha, radicada no Rio de Janeiro, autora de literatura infantil e ensaísta. Tem 16 livros publicados, entre os quais “Sombras chinesas” , “Caderno de Outono” (indicado ao Prêmio Jabuti) e “O amor é vermelho”.

quarta-feira, 28 de março de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Beleza e solidez.

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica, “Como carregar o país nas costas”.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, conto, “O choro de Indira”.

Coluna Personalidade e Atitude – Sayonara Lino, poema “Haja poesia”.

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema “Viver”.

Coluna Porta Aberta – Pedro Du Bois, poema “Cores”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Beleza e solidez


Acompanho a literatura portuguesa (aqui me refiro à praticada especificamente em Portugal), posto que não com a assiduidade desejável (e desejada), por razões que fogem ao meu controle. E esse acompanhamento, posto que parcial, é feito há muito tempo, há cerca de quatro décadas. Nesse aspecto, diga-se de passagem, evoluí bastante, com o advento da internet, que me possibilita acesso a sites literários da boa terrinha e mantém-me, dessa forma, razoavelmente informado a propósito.


Entre os inúmeros e excelentes escritores portugueses, tenho um carinho muito especial por um que, na juventude, viveu um tempinho no Brasil e que, depois que voltou a fixar residência em Portugal, sempre que podia, nos visitava. Mas aprecio-o não apenas por essa assiduidade entre nós (óbvio), mas, sobretudo, pela qualidade da sua obra, o que é incontestável. Trata-se de um escritor dos mais consagrados, tanto em sua terra natal, quanto no Brasil. Refiro-me ao poeta, contista, memorialista, romancista, autor de peças teatrais e ensaísta Miguel Torga.


Em literatura detesto essa história de se declarar que fulano, sicrano ou beltrano seja “meu preferido”. Posso preferi-lo num determinado momento, até por desconhecer as obras de outros, mas isso não quer dizer que despreze os demais, ou que lhes tenha menor apreço. Tenho o direito de gostar não apenas de um, mas de centenas, de milhares, quem sabe de milhões de escritores, e simultaneamente, por razões diferentes (ou mesmo iguais), e com a mesma intensidade. Por que não? O que me impede? Afinal, literatura não é competição e eu não sou jurado para optar por um ou por outro.


Meus gostos são ecléticos e cumulativos, ou seja, têm acréscimos constantes e novidades periódicas sem que, com isso, abra mão de preferências anteriores. E (felizmente) não faltam magos do texto para me encantar, ensinar, atrair e influenciar. Gosto de bons textos, dos bem escritos, com temas espicaçantes, que não somente me ensinem o que não sei, mas que me induzam à reflexão. E a obra do português Miguel Torga está entre as que me encantam, ensinam, atraem, influenciam e satisfazem minha fome estética.


Coleciono seus poemas, tanto os publicados em livros (infelizmente tenho apenas dois deles, por razões, digamos, financeiras, de falta de dinheiro mesmo), quanto os divulgados pela imprensa (provavelmente uma centena, devidamente classificados em minha preciosa hemeroteca). Gostaria de ter mais, óbvio, se possível todos os que ele escreveu. Mas... entre a nossa vontade (no caso, a minha) e a possibilidade de satisfazê-la vai uma distância imensa, impossível de se mensurar.


Miguel Torga foi um poeta tão criativo (e digo “foi” porquanto já é falecido; morreu em 17 de janeiro de 1995 na cidade de Coimbra, onde residia) que esbanjou criatividade até na escolha do pseudônimo que adotou e com o qual se consagrou. Seu nome de batismo é Adolfo Correia da Rocha, mas são raras as pessoas (talvez um ou outro parente ou amigo íntimo) que o conhecem dessa forma. Esbanjou veia poética até nesse detalhe, aparentemente de pouca importância.


Ah, vocês querem saber onde a criatividade na escolha desse pseudônimo, aparentemente trivial? Pois lhes explico, mas recorrendo à providencial ajuda do Wikipédia. A excelente enciclopédia eletrônica da internet informa que o prenome Miguel foi uma homenagem a dois outros “Miguéis” bastante ilustres: o de Cervantes (criador do imortal Dom Quixote de La Mancha e seu inseparável parceiro Sancho Pança) e o de Unamuno, sublime poeta espanhol. E o Torga? De onde extraiu esse nome, já que não se trata de sobrenome, não, pelo menos, o de sua família?


O Wikipédia nos revela essa particularidade. E nela há um símbolo que caracterizou tanto sua personalidade, quanto sua maneira de escrever. A enciclopédia eletrônica registra que “Torga é uma planta bravia da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca e arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente retilíneo”. E o que isso simboliza? Simboliza simplicidade, mas com beleza. Simboliza solidez. Simboliza retidão. O escritor adotou esse pseudônimo, tão de acordo com sua personalidade, em 1934, quando já contava com 27 anos de idade.


Sua obra é vastíssima. Ascende a cerca de quatro dezenas de livros, entre poesia e prosa. Não tive acesso aos seus romances, ensaios e peças teatrais, mas, a julgar por sua poética (e pelos inúmeros prêmios literários que recebeu), estou seguro que é sólida e bela, como seu pseudônimo sugere que ele e tudo o que fez sejam. Tenho, como destaquei, apenas dois livros de Miguel Torga, mas que praticamente resumem todos os de poesia que escreveu: “Poesias Completas – volumes I e II”. Foi do primeiro deles que extraí este marcante poema, que partilho com vocês, a título de ilustração (e para encerrar estas reflexões):


Confidencial

“Não me perguntes, porque nada sei
da vida,
nem do amor,
nem de Deus
nem da morte.
Vivo,
amo,
acredito sem crer,
e morro, antecipadamente
ressuscitado.
O resto são palavras
que decorei
de tanto as ouvir.
E a palavra
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez
aprende a adivinhar
o que de mim não possas entender”.


Lindo, não é verdade? E sólido, como a planta “Torga”, na qual se inspirou para compor parte do seu marcante pseudônimo.


Boa leitura.


O Editor.




Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk