quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013


Literário: Um blog que pensa

Leia nesta edição:

Editorial – Freud explica?.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, conto, “Ônibus da Linha Leblon”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica, “Bianca”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “O futuro será muito chato”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, crônica “A paciência do monge”.

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, poema “Amputados”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: nenem138@gmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Freud explica?

Os homens (e mulheres) que influenciaram a nossa maneira de pensar o universo, o mundo e tudo o que neles há – sobretudo a ocidental –, contribuindo para o avanço das ciências e da civilização, são relativamente poucos. Sua atuação, no entanto, foi decisiva e não por acaso suas idéias são estudadas e transmitidas geração após geração, propiciando novas descobertas nos respectivos campos em que atuaram. Nem por isso, seu pioneirismo é esquecido ou desprezado. E nem poderia.

Sempre que a atuação desses geniais pensadores vem à baila, um nome se insere, e com destaque, nessa elitizada relação, por seus estudos e consequentes teorias que tentaram explicar o funcionamento e, sobretudo, os desarranjos da nossa mente, com as respectivas formas de tratamento. Refiro-me especificamente a Sigmund Freud. Quase tudo o que se refere a esse polêmico médico é cercado de controvérsias, tanto por sua culpa quanto à sua revelia.

Suas idéias, pode-se dizer, embora revolucionárias (e o são ainda hoje), nunca foram consensuais. Ainda não são, embora a oposição a elas tenha diminuído muito com o passar dos anos. Todavia, sempre foram (e em certa medida ainda são) alvos de contestações, ora com razoável fundamentação científica (ou filosófica, ou lógica), ora sem nenhuma. É verdade que a oposição que durante décadas lhe foi feita tinha razões diferentes das atuais. Então, era fruto, apenas, de preconceito. Afinal, Freud era judeu e viveu numa época, e em uma Europa, em que isso era motivo (infelizmente) para desacreditar qualquer pessoa, por maior que fossem sua capacidade e seu valor (como era o caso) e por mais relevantes que pudessem ser suas obras. Hoje, suas idéias ainda são contestadas, mas em círculos especializados e por haverem outras, a propósito, consideradas mais adequadas (o que, aliás, pode ser contestado).

Contudo, mesmo os que não concordam plenamente com suas proposições não lhe negam (e nem poderiam), a importância e o caráter de pioneirismo. Há, praticamente, consenso mundial em considerar Sigmund Freud como o legítimo “Pai da Psicanálise”. O curioso é que seus mais ilustres opositores, os que criaram linhas de pensamento e métodos divergentes dos seus, foram seus discípulos. Entre estes, os mais ilustres (certamente os mais conhecidos e reverenciados) são Carl Gustav Jung e Wilhelm Reich.

Antes de entrar, diretamente, no tema referente às teorias que o consagraram (e que foram, e ainda são, tão contestadas), faz-se necessária uma série de comentários à margem que, embora pareçam (e talvez sejam) enfadonhos, são indispensáveis para avaliarmos devidamente a sua importância, e não somente para a ciência, mas também para várias outras disciplinas, entre as quais a Literatura.

Li, por exemplo, diversos ensaios (muito bem elaborados e com argumentos sólidos e consistentes) sobre a influência que as idéias de Sigmund Freud tiveram na produção literária de Machado de Assis. Cito, especificamente, um, de Maria Imaculada Angélica Nascimento, sua tese de mestrado na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Conforme a referida ensaísta (com a qual concordo), esta influência fica mais nítida, quando submetida a cuidadosa análise, sobretudo em três dos principais romances do “Bruxo do Cosme Velho”: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro” e “Memorial de Aires”. Embora o fundador da Academia Brasileira de Letras não cite diretamente, em lugar algum, o polêmico pensador austríaco, a complexidade psicológica dos seus personagens indica que ele tinha pleno conhecimento das teorias do “Pai da Psicanálise”.

Mas não foi apenas Machado de Assis que sofreu influências de Freud. Muitos e muitos e muitos escritores, sobretudo na Europa, foram influenciados, de uma forma ou de outra, por suas idéias. Não citarei quais, para não correr o risco de omitir alguns. Mas asseguro que foram (e ainda são) vários. No meu caso, confesso, criei vários personagens, sobretudo os mais complexos e problemáticos, baseado em estudos freudianos, principalmente a propósito de neuróticos e de pessoas histéricas.

Entre os leigos, e mais, entre os que jamais leram qualquer dos livros do pesquisador austríaco e, por isso, não têm a menor noção das suas idéias, ele é tido como uma espécie de “sinônimo” para desvios psicológicos, quando não mentais. Quem nunca ouviu, por exemplo, a referência “Freud explica”, até em tom de galhofa, para se referir a alguém que esteja se comportando de maneira insólita e incompreensível? Eu já ouvi, e muito. Aliás, já disse isso inúmeras vezes. Vários humoristas transformaram, até, essa expressão numa espécie de bordão.  

Para encerrar estas considerações de hoje – introdutórias a um estudo mais amplo a propósito da Psicanálise e de seu criador – peço licença para citar esta declaração de Freud, que expressa, a caráter, o respeito e a consideração que ele tinha pelos escritores: "Os poetas e os romancistas são aliados preciosos, e o seu testemunho merece a mais alta consideração, porque eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda. São, no conhecimento da alma, nossos mestres, que somos homens vulgares, pois bebem de fontes que não se tornaram ainda acessíveis à ciência". E não estava certo?

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Ônibus da Linha Leblon
 (Conto)

* Por Pedro J. Bondaczuk


As cidades grandes afastam as pessoas. Muitas vezes vivemos em um bairro durante décadas e sequer chegamos a conhecer nosso vizinho do lado. Cruzamo-nos uma infinidade de vezes e na maioria dos casos, o máximo de relacionamento que nos permitimos é um bom dia ou boa tarde distraídos ou mero aceno de cabeça. Ou nem isso. Um passa pelo outro como se passasse diante de um ser inanimado, de um boneco, de um robô, de uma miragem, de uma simples visão.

A luta pela sobrevivência torna nossa vida perpétua correria. Corremos até quando não é necessário e temos todo o tempo do mundo para gastar. A violência urbana afasta-nos de estranhos, por questão de prudência, para evitar assaltos e outros contratempos.

Nem todos, porém, são assim. Há pessoas ingênuas (diria autênticas), na maioria dos casos vindas há pouco do interior, que puxam conversa com qualquer um e em qualquer lugar. Lembro-me, a propósito, de um episódio ocorrido comigo no Rio de Janeiro.

Tomei um lotação nas proximidades da estação Dom Pedro II, com destino ao Leblon, onde tinha compromisso social. Como quisesse rever as belas praias da Zona Sul, saí com bastante tempo, com intenção de vagar a esmo, até a hora marcada para o encontro. A linha que resolvi tomar era a mais longa, com maior número de paradas e eu sabia disso.

Mal o veículo rodou três quarteirões, subiu uma mulata de meia-idade, bonita, mas de beleza já um tanto gasta pelas dificuldades e sofrimentos, que estavam desenhados em seu rosto. Como o banco do meu lado estava vago, a mulher sentou-se ali. Não tardou para que puxasse conversa.
--- O senhor vai para o Leblon? ---, perguntou, embora parecesse o óbvio.
--- Sim ---, respondi secamente, um tanto distraído, perdido em meus pensamentos e com a atenção concentrada na janela, no movimento das ruas, nos prédios, nas lojas e nas calçadas. Não estava com disposição para conversar com ninguém, muito menos com pessoa estranha.
--- Eu também vou para lá. Trabalho num apartamento, o de dona Mariazinha Moreira, conhece? ---. insistiu a mulata, como se me conhecesse de longa data.
--- Não! ---, respondi, laconicamente. ---- Não moro no Rio de Janeiro---. acrescentei, à guisa de explicação.

Porque fui responder! A mulher começou a desfiar, primeiro, toda a história da patroa, intercalando elogios à sua condição social e críticas ao seu "pãodurismo" e severidade. Depois, pôs-se a falar de si, de sua família, de onde e como vivia etc. Lembro-me de poucos detalhes dessa conversa, que começava a me cacetear, já  que contrariava minha intenção de observar o trecho da cidade por onde passávamos, para fixar detalhes na memória. Mas a mulata não parava de matraquear.

Disse que vinha de Minas (o nome da cidade não me recordo). Havia se separado do marido, incorrigível "pé-de-cana", que quando bebia, quebrava tudo o que havia em casa e ainda de sobra espancava-a e aos filhos.
--- E eu com isso! ---, pensava mal-humorado com os meus botões.

De vez em quando, por questão de hábito e para fazer a interlocutora parar de falar, eu fazia uma ou outra observação, torcendo para que o lotação chegasse logo ao meu destino ou, o que seria melhor, ao dela.

Sua voz era irritante. Falava alto e quando narrava detalhes das brigas com o marido, poderia parecer aos outros passageiros que estava discutindo comigo. Eu já não sabia onde enfiar a cara de vergonha.

E a mulata prosseguia explicando que estava amigada com um bom homem no Rio, que tinha uma filha de 14 anos que fazia admissão (naquele tempo havia uma espécie de vestibular para quem saísse do primário e quisesse cursar o ginásio), que a menina era muito inteligente e esforçada, que também estudava datilografia, que já era a segunda porta-bandeira da Escola de Samba Império Serrano, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá .

A mulher não parava de falar e nada de chegarmos ao destino (dela ou meu). Em resumo: num trajeto de cerca de meia hora, fiquei conhecendo toda sua história de vida. Ou pelo menos sua versão, um tanto dramatizada, de suas venturas e desventuras.

Hoje, passadas três décadas, quando me lembro desse episódio, não consigo deixar de rir e até de sentir uma pontinha de ternura pela mulata. Gente ingênua, como ela, escasseia cada vez mais nas cidades. Até mesmo, ou principalmente, no Rio.

Mas o pior estava reservado para a minha volta do Leblon. No terceiro ponto, depois que tomei o lotação, quem é que sobe? Exato, a mesma mulher!

Toquei a campainha, discretamente, levantei-me e desci na primeira esquina, antes que a mulata tivesse tempo de se sentar ao meu lado. Ela reconheceu-me e deu-me uma piscadela de cumplicidade.

Da calçada, ainda pude vê-la conversando com novo interlocutor. Ou melhor, com novo ouvinte das venturas e desventuras de um histórico de vida que trazia na ponta da língua de tanto narrar para os outros, provavelmente com algumas variações em torno do mesmíssimo tema.

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 


Bianca

* Por Marcelo Sguassábia

I
Bianca, a mais do que muito séria, fizera filho no banco da frente do Dodge emprestado, as costelas raspando no volante, de longe se via o carro chacoalhando. Fosse de fato séria a fama de séria, ela não chegaria a tanto, não a ponto de esfregar-se em pelo, unhas e secreções a céu aberto e justo com aquele um, o primeiro que se achegou no começo da quaresma.


II
Nunca a tão fêmea Bianca pareceu tão pálida e tão perdida, quando chamou num canto a mãe para uma dura conversa. E lhe falou do filho vindo, ia assumir o mau passo. Era uma quinta esquisita, onde se via uma lua de estranhíssimas crateras.


III
A doce e insensata Bianca, ainda que poucos soubessem, era valise sem dono. De tão distraída que era, nem se lembrava com quantos tinha dormido e acordado sem que adivinhasse o nome e sem que soubesse que aquilo não era coisa que se fizesse. E foi assim que o filho, de pai com ficha na polícia e feito às pressas num Dodge, cresceu um moço perverso, maldizendo o berço infame e os tropeços de Bianca, sua mãe, a bem nascida.


IV
Bianca, a mais linda ainda que mais velha, passou a trazer na pele um bocado das crateras da lua de outros tempos. Enclausurou-se e deixou que a vida lhe vincasse num convento – que acabou sendo invadido por um moço de capuz, condenado a 30 anos pelo estupro de uma freira.


        * Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).


O futuro será muito chato
 
* Por Fernando Yanmar Narciso

O que o amanhã nos reserva? O que haveria lá do outro lado? Como estaremos daqui a 30 anos? Estas perguntas sempre nos afligem, mas, levando em consideração os avanços tecnológicos e o rumo que já estamos seguindo, pode-se afirmar, quase com 100% de certeza, que... Não acontecerá nada conosco.

Lembram-se daqueles tempos, quando grandes autores de ficção científica pareciam estar com a chave da bomba nas mãos, tentando nos alertar do grande risco que a humanidade corria? O século passado foi o mais prolífico de todos no ramo da literatura e do cinema- catástrofe. Se você fosse um Isaac Asimov, um Ray Bradbury, um Philip K. Dick ou um Anthony Burgess, certamente estaria muito apreensivo com tudo o que ocorre com o planeta. Previsões cataclísmicas escapavam das páginas de seus contos como cachoeiras. Invasões alienígenas, guerras nucleares, a inteligência artificial assumindo o comando do planeta, a nova era glacial, regimes opressores, limitação da liberdade... Mesmo que quisessem nos alertar de perigos não tão distantes, no fundo eles estavam torcendo para que o mundo acabasse. Mas, e se a ficção não fosse ficção?

Volta e meia, alguma nova sandice nos deixa temporariamente de cabelos em pé. Todos pensamos, ao ver os aviões se chocando contra as torres gêmeas no 9/11, que aquilo era apenas o prelúdio de coisa muito pior. E nunca mais aconteceu nada de tal magnitude. Passamos a década passada esperando que o diabólico aquecimento global mostrasse a que veio, e até agora nada de ondas gigantes engolindo o mundo, como no documentário de Al Gore. Na onda do dia 21 de dezembro de 2012, muitos ficaram com o terceiro olho na mão, atocaiados dentro de casa, com medo que o tal alinhamento peculiar do sistema solar trouxesse uma nova idade da pedra junto com ele. E agora, com essa chuva de meteoritos que houve lá na Rússia, vislumbramos as imagens do agora clássico filme trash Armageddon em nossas mentes. E se um meteoro daqueles acertasse em cheio meu carro novinho?

Como seria nossa existência se alguma previsão cataclísmica do século passado tivesse se concretizado, e não sobrasse hoje nem 1/10 das pessoas vivas no planeta? Quando penso no fim do mundo, a primeira coisa que me vem em mente são os filmes da série Mad Max. O paramédico convertido em cineasta George Miller nos mostrou um “futuro próximo” funéreo e desértico depois da guerra nuclear, onde não restou quase nada da sociedade atual. Mel Gibson, um dos poucos sobreviventes, atravessa os desertos australianos solitário em sua super-caranga caindo aos pedaços. A única coisa que ele ainda consegue fazer é perseguir e matar punks motoqueiros, para afanar a escassa gasolina deles e continuar dirigindo rumo ao infinito. O Clint Eastwood da era pós-moderna, cruzando o oeste montado numa mula com motor V-8... E isso que Miller fez o primeiro filme da série em 1979!

Os filmes não explicam há quanto tempo ocorreu o grande eclipse, nem há quantos anos o estóico andarilho está a vagar pela areia, mas a vida dele, mesmo sendo tenebrosa, oferecia adrenalina diária e perigos mil em cada esquina, com todo mundo disposto a matar todo mundo, e não raro até a comer os cadáveres. O problema é que, depois de alguns anos, essa constante luta pela sobrevivência poderia tornar-se muito... Repetitiva.

Queria tanto existir no mesmo mundo daqueles sobreviventes ou no de outros filmes-catástrofe. Sentir que cada dia é diferente um do outro, a imprevisibilidade inserida à força em nosso cronograma... Não dá para enganar, o cotidiano é um saco. A rotina, a segurança da repetição, os problemas menores do dia- a- dia são motivos de sobra para que os seres humanos vão se sentindo cada vez menos humanos. Acostumamo-nos à idéia de que, se seguirmos metodicamente os mesmos passos todos os dias, nada nos faltará. Então, o caminho da segurança é sempre o preferido. Vá para a escola, forme-se, vá para a faculdade, forme-se, arrume um emprego e trabalhe até morrer. É assim que deve ser e assim sempre o será. Nossa vida é tão rasa de propósitos e tão tique-taque que, apesar de a idéia do fim do mundo nos assombrar, bem no íntimo de nossas almas, acabamos torcendo para que tais eventos de magnitude global aconteçam. Só para ver se muda alguma coisa em nossa claustrofóbica e miserável rotina. Pois, da forma como a sociedade moderna foi construída, não há muito que o cidadão comum possa fazer para fugir dela.

*Designer e escritor. Site:HTTP://terradeexcluidos.blogspot.com.br


A paciência do monge


* Por Gustavo do Carmo

Já tentei psicólogo, psiquiatra, acupunturista, cultura indígena, confissão ao padre, descarrego e até macumba para tentar acabar com a minha imaturidade e insegurança pessoal.  Como eu sou brasileiro e não desisto nunca, por enquanto, vou apelar para mais uma consulta. Agora num templo budista.

Um amigo de Teresópolis me indicou e decidi viajar até lá, não para ouvir conselhos, mas para desabafar os meus problemas. Entrei no templo. Caminhei até o final da nave, onde um monge já idoso, com traços orientais, parecido até com o Dalai Lama, vestindo uma bata laranja e lenço amarelo, meditava em silêncio, sentado com as pernas perfeitamente cruzadas.

Fiquei sem graça de interrompê-lo.  Sentei-me à sua frente e compartilhei o seu silêncio. Dois minutos depois, finalmente, ele perguntou o que eu queria, sem interromper a sua meditação.

Falei sobre mim:
— Amado monge, sou uma pessoa honesta, gosto muito de escrever, sonho em ser um escritor famoso, mas apenas pelo meu nome. Ser independente e ganhar dinheiro com o que eu produzo, mas não consigo. Sou tratado como imaturo aos 35 anos. Todos os meus primos com essa idade já estão quase se aposentando, já têm filhos de dez anos...
— E por que não consegue? Perguntou o monge, sem mover um músculo.
— Sei lá, acho que é porque sou muito sincero. As pessoas não gostam de sinceridade. Também sou muito tímido. Só consigo me expressar bem quando eu estou bem preparado. Parei de falar e um silêncio reinou por um minuto no templo. Enfim o monge perguntou:
— E por que você não se prepara?
— Porque me falta tempo.
— E por que te falta tempo?
—Não sei dizer. Acho que é porque penso demais nos meus problemas, nos meus sonhos, além de produzir meus textos. Sou sonhador demais.
— Me diga como você pode realizar o seu sonho?
— Produzindo e conhecendo alguém influente para me indicar.
— E o que te impede de realizar este sonho?
— A minha insegurança, meus medos e a minha sinceridade, pois ninguém gosta de sinceridade demais, né?
— Qualquer coisa exagerada nunca é bom. Mas se você usar a sua sinceridade com moderação, pode conseguir o que deseja. Agora me diga: se realizar os seus sonhos, o que vai acontecer com você?
— Vou ganhar dinheiro, ter o meu nome conhecido, arrumar uma mulher, casar, ter filhos e, sem querer, (querendo para algumas pessoas) abandonar os amigos. Serei feliz, acho.
— Por que você acha que vai abandonar os seus amigos?
— Porque as realizações modificam a rotina e fazem com que eu não tenha tempo para eles, assim como aconteceu com muitos amigos que me abandonaram e usaram essa desculpa.
— E se você não realizá-los? O que vai acontecer com a sua vida?
— Vou perder dinheiro. Ficar pobre de tudo, continuar sendo esquecido, perder meus pais, ser motivo de piada... Ou desistir de tudo isso, que é a previsão mais otimista.
— Qual é a sua maior qualidade, além da honestidade?
— A educação e o respeito ao próximo.
— E o maior defeito, além da sinceridade, insegurança, imaturidade e também a preguiça.
— O senhor me acha preguiçoso?
— Senti uma preguiça em você. Acho que isso te atrapalha também.
Contrariado, concordei com o monge, que em seguida ficou uns dois minutos sem falar nada. Continuou na mesma posição que estava quando eu cheguei. Enfim, deu o seu conselho:
— Você tem que parar de criar barreiras para realizar os seus objetivos. Percebo que você é muito preso aos seus medos. E pare de depender dos outros e da sociedade. Se preocupe mais com você.
— Mas se eu me preocupar mais comigo vão dizer que sou egoísta.
— Olha aí. Mais uma vez você está se preocupando com os outros. Com a opinião dos outros. Se concentre no que você pode fazer para si mesmo e ser feliz. Conquiste os seus objetivos concentrado em você e não nos outros.
— Você quer dizer que...
— Isso mesmo. Batalhe e vença sozinho. Só assim você vai fazer com que os outros te valorizem. E desnude-se dos seus preconceitos.
— Muito obrigado, senhor monge. Me desloquei do Rio até Teresópolis, em duas horas de viagem, para ouvir que eu preciso me virar, além de ouvir tudo o que já me disseram. Agradeci, com ironia.
— E seja mais educado com os outros também. O que você queria encontrar aqui? Emprego? Ora, faça-me o favor!
— Eu vim para desabafar.
— Mas eu não sou psicólogo. 
— Mas é um monge. Deveria ser mais paciente.
— Mas eu sou humano. Perco a paciência com teimosias e com falta de educação. Além do mais, você disse que outra qualidade era a educação e respeito ao próximo, mas não estou vendo isso agora.
— E você está dizendo que eu sou mentiroso?
— Mentiroso não. O mentiroso age por má fé. Diria que você é um contraditório, uma forma mais suave para não te chamar de hipócrita.
— Então passe bem, senhor monge. Dá licença que eu vou embora.

Saí furioso do templo. Além de ficar mais tenso fui chamado de hipócrita. Consegui tirar a paciência de um monge, mas não consigo resolver os meus problemas.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores


Amputados

* Por Alberto Cohen

Corta nosso cordão umbilical
e nos coloca em mundos diferentes.
Quem sabe desse modo te convenças
que mudaste pra sempre noutra gente.
Só não pede que eu mude, pois não mudo,
jamais serei apenas encomenda
entregue em domicílio, frente a frente
com a farsa que certa vez foi tudo
a que me dediquei como oferenda.
Pinta o rosto, levante-se a cortina,
e palmas, gargalhadas, misturadas
com lágrimas que um dia choraremos,
demarquem o território que termina
em todas as coisinhas que tivemos,
nas coisas todas que jamais teremos.

   * Poeta e escritor paraense

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013


Leia nesta edição:

Editorial – Artífices de um mundo novo

Coluna de Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica “Todos deveriam ver ‘Muito além do peso’”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, conto “Galpão de triagem”.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, poema “Vou-me embora pra Pasárgada”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Dantas Silva, artigo, “O Semiárido Nordestino e a nova seca”.

Coluna Porta Aberta – Jair Lopes, crônica “Yraima”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: nenem138@gmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Artífices de um mundo novo

Os séculos XIX – notadamente sua segunda metade – e XX foram “revolucionários” no que se refere à evolução material e intelectual da humanidade. Neles se deram as grandes descobertas científicas, em praticamente todos os campos da ciência. Ademais, surgiram disciplinas novas, até então inexistentes (ou sem espaço próprio), como a Sociologia, a Etologia (estudo do comportamento animal e, consequentemente, também do homem) e a Psicanálise, entre tantas e tantas outras, que hoje estão consolidadas e que muito contribuíram (e vêm contribuindo) para o entendimento das ações, reações e motivações do único animal racional da natureza.

Pode-se dizer que os avanços e criações ocorridos nesse período de 200 anos moldaram a atual civilização, como a conhecemos. Nele foram “inventados”, por um punhado de artífices do mundo novo, praticamente todos os equipamentos que caracterizam a vida moderna: a eletricidade, o automóvel, o avião, o telégrafo sem fio, o telefone, o rádio, a televisão, o computador, o celular, o Ipad, o Ipod e vai por aí afora, incluindo equipamentos aos quais nem sempre atribuímos o devido valor, mas sem os quais nossa vida seria muito mais penosa e problemática, como o caso dos eletrodomésticos, por exemplo.

Raramente paramos para pensar na importância desses inventos, pois quando nascemos, a maioria  já estava, há tempos, implantada, em pleno uso, amplamente popularizada. Não tivemos, portanto, a experiência de viver sem eles. Reitero, houve uma revolução tecnológica e científica como nunca antes vista neste relativamente escasso período de tempo e em todos os campos de atividades: no dos transportes, nas comunicações, na Medicina, na coleta e difusão de informações e vai por aí afora, incluindo as artes, os esportes e o entretenimento. Imaginem viver em um mundo sem tudo isso! Quando somos forçados a passar, por exemplo, um único e reles dia sem energia elétrica, em decorrência de algum acidente nas linhas de transmissão ou de qualquer defeito nas linhas de distribuição, já é um deus nos acuda. Ficamos enlouquecidos! Nossa vida doméstica é virada de ponta cabeça, fica toda tumultuada e nos sentimos perdidos, aturdidos, irritados e sumamente desconfortáveis. Imaginem, porém, se ela não existisse, se não houvesse sido descoberta e aperfeiçoada! Nos sentiríamos perdidos.

O mesmo vale para os transportes (automóveis, caminhões, trens de alta velocidade, aviões etc.), que “encolheram as distâncias e tornaram possíveis viagens que há menos de 150 anos duravam semanas, quando não meses, em apenas um par de horas. Vale, também, para as comunicações, possibilitando-nos contatar, por exemplo, parentes, amigos, clientes etc. do outro lado do mundo, instantaneamente, em tempo real, pelo “milagre” da internet. E vale para praticamente todos os bens de alta, média ou baixa tecnologia, aos quais não valorizamos devidamente, por nunca termos sido privados deles.

Os críticos da atual civilização tecnológica (e, em certos aspectos, me incluo neste rol), argumentam que neste período de 200 anos, as ciências, de fato, evoluíram espantosamente (e não há como negar), mas os princípios, os valores como a ética, o direito, a moral e o comportamento da humanidade, estagnaram, se não regrediram. Entendo, porém, que uma afirmação tão genérica e vaga não passa de generalização estúpida e não verdadeira (pelo menos, não toda ela).

O homem evoluiu, sim, também nesses campos. Pode não ter evoluído o suficiente (e depende do que se entenda por “suficiência”). É provável, até, que muitos desses avanços tenham sido neutralizados pelo surgimento de novos problemas, como os da superpopulação, do desperdício de recursos escassos e não renováveis do Planeta, das continuadas e progressivas agressões ao meio ambiente, e vai por aí afora. Todavia, se fizermos uma análise sensata, ponderada, sincera e serena, concluiremos que houve evolução, também, nesses aspectos.

O mundo atual, essa civilização tecnológica que aí está, é ruim? Sem dúvida! Está muitíssimo distante da ideal, do que gostaríamos que fosse. Todavia... poderia ser muito pior, caso não ocorressem os avanços que ocorreram. Cientistas notáveis que podem (e muitos devem) ser caracterizados como gênios, contribuíram e contribuem para que nossa vida seja, pelo menos, confortável, segura e mais longa. Nossos antepassados, caso estivessem vivos, sentiriam tremenda inveja dos confortos e facilidades existentes ao nosso dispor, que nem nos damos o trabalho de valorizar e que eles sequer sonhavam em suas mais delirantes fantasias.

Entre esses magníficos pesquisadores, esses “gênios”, esses “gigantes da espécie”, que moldaram o mundo à atual feição, se inclui um sujeito polêmico, controvertido, dizem que viciado em drogas, adorado por alguns e odiado por muitos, que ousou invadir, estudar e desvendar o que temos de mais pessoal e secreto: nossa mente. Muitas das suas conclusões contribuíram, e ainda contribuem, para que entendamos (e possamos corrigir), por exemplo, atos que praticamos, mas que não julgávamos que pudéssemos praticar.

Permitiu que identificássemos, e exorcizássemos, o que costumo chamar de “nossos demônios interiores”, que são alguns instintos ruins, que convém que sejam pelo menos controlados e reorientados para a prática de ações positivas, construtivas e boas. Homem de idéias e posições consideradas exóticas, afirmou, certa ocasião: "Se o desenvolvimento da civilização é tão semelhante ao do indivíduo, e se usa os mesmos meios, não teríamos o direito de diagnosticar que muitas civilizações, ou épocas culturais – talvez até a humanidade inteira – se tornaram neuróticas sob a influência do seu esforço de civilização?"  Refiro-me ao complexo, ao controvertido, ao misto de gênio e de demente, invasor e xereta da mente humana, Sigmund Schlomo Freud. É a essa estranha figura que o convido, curioso leitor, a conhecer um pouco melhor, na sequência destas não menos polêmicas e controvertidas reflexões.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk     

Todos deveriam ver “Muito além do peso”

* Por Mara Narciso

Numa palavra? Impactante! O documentário brasileiro de 2012 “Muito além do peso”, dirigido por Estela Renner e produzido por Marcos Nisté, choca pela crueza das suas revelações. As causas da obesidade infantil, mostrada aqui como pandemia, e ocorrência nos cinco continentes, são apontadas de forma lúcida e inquestionável. Explicita de forma alarmante e assustadora o que muitos sabem, mas fazem vistas grossas. Trata-se de um alerta que, caso fosse minimamente seguido, pouparia muitos bilhões de reais, e sofrimento na mesma dimensão. E por qual motivo não aparece na grande mídia?

As pessoas estão dependentes de embalagens, cores, aditivos químicos, odor e sabor artificiais, sal, gordura e açúcar em proporções bíblicas. Seguindo a flauta de Hamelin, vão apáticas, levadas para a morte sem demonstrar resistência. Inebriadas pela chamada da publicidade, caminham passivas ao encontro do prazer, fidelizador do vício. São os alimentos processados que as capturaram, e o pior, as crianças são seus principais alvos e vítimas.

Quando o governo tenta uma reação, agindo pela conscientização, as grandes empresas alimentícias tomam a bandeira, e fingindo-se de cordeiros, massacram os incautos com seus mísseis publicitários, e ainda posam de bons moços. Tudo é feito para ludibriar. Os rótulos são meras perfumarias nessa enganação. As quantidades criminosas de açúcar são omitidas ou ofuscadas por termos que não são da compreensão do público, como carboidrato, por exemplo. O famoso “zero de gordura trans” engabela mais uma leva de consumidores levando-os a crer que o produto não tem gordura e faz bem a saúde. Ou o “enriquecido com cálcio e vitaminas”. Resultado: sobrepeso e obesidade, seguidos pelo diabetes, colesterol alto, hipertensão, problemas respiratórios, circulatórios e articulares. As doenças de velhos, pela primeira vez na história estão atacando crianças, e os avanços da medicina são neutralizados por elas. Os meninos de hoje deverão viver menos do que seus pais. E produzirão muito mais lixo.

Os pequenos obesos do Oiapoque ao Chuí, de leste a oeste, são os grandes prejudicados, dos quais a maioria permanecerá gorda quando adulta. Quem poderia imaginar até há pouco tempo a existência de obesidade grave em crianças pobres do Piauí? Pois isso já existe, graças à publicidade predatória dos produtos, atrelada a imagens de heróis infantis e brinquedos adquiridos compulsoriamente na compra do “alimento”. Os pais que não conseguem controlar seus filhos, que dão birra para forçar a compra do que querem, são tidos como fracos, e sem pulso por essa mesma publicidade irresponsável. Os dados estatísticos alarmantes são mostrados nas entrevistas de autoridades brasileiras e estrangeiras numa sequência que vai preocupando o espectador a cada tópico. A mesma criança personagem aparece várias vezes no filme, ao longo de irretocável montagem, com falas arrepiantes.

É ao mesmo tempo constrangedor e triste ver pessoas, feito gado, entrando às levas nos locais de venda, e saindo felizes, acreditando estar de posse do que há de melhor para si e seus filhos. A mãe desmama precocemente para dar ao seu neném leite enlatado, e ainda se jacta por conseguir fazer isso. Mais da metade coloca refrigerante nas mamadeiras. O produto embalado dá status a quem o consome, e as crianças, na luta desigual de seus pais, contra a propaganda que os bombardeia fulminantemente pela televisão, não querem levar fruta ou suco para a escola, e se o fazem, comem escondidos, com receio da zombaria dos colegas.

Infelizmente, quanto mais a pessoa sobe na escalada de salário, pior come. E depois reclama de estar a cada dia mais pesada. Abandona a comida de pobre e vai embevecido de encontro às embalagens e seu colorido mágico. Dentro, quantidades imorais de tudo que faz mal. E as autoridades deixam. Deveríamos como pessoas conscientes, nessa luta inglória e titânica, tentar reverter o processo. Mas quem pode contra o poder de milhões de dólares?

As embalagens crescem, o conteúdo aumenta e o vício assola. As cantinas escolares fizeram uma tímida caminhada de volta ao passado, época em que os alimentos processados eram exceção e não regra. Impressiona as crianças pequenas sorrirem e chamarem pelo nome pacotes de salgadinhos, refrigerantes, sucos de caixinha, bolachas recheadas (um pacote equivale a oito pães de sal), e outras maiores errarem nomes de frutas e legumes, numa desinformação desconcertante.

Muito pedagógica é a linha de produção da salsicha. Quem vê aquilo deveria sentir nojo e não comer mais. Tal preparado parece um dejeto, não alimento, mas é o lixo que as escolas mais servem. As crianças manifestam surpresa ao saberem o que tem dentro das embalagens e podem, quem sabe, lutar para se afastar do veneno. Ver o filme é primordial para se informarem. É instrutivo, e mostra em 80 minutos o que o mundo capitalista esconde.

Amor com amor se paga, assim como para se defender se usa as mesmas armas. As chamadas publicitárias são virulentas? Pois o documentário também é, e com alto poder de convencimento. A música de filme de terror e a tomada de imagem quando uma criança obesa de afasta é digna de um prêmio. "Gostaria que esse filme passasse em cada sala de aula do Brasil", disse Frei Betto. Os informados concordam.


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/   


Galpão de triagem

* Por Marco Albertim

Robson tem 14 anos; a voz débil combina com a compleição miúda. As pernas estão à mostra sob a bermuda de cor cinza; na camisa verde desbotado reflete-se, por tabela, a luz que o sol faz incidir no canal do Arruda. É difícil distinguir a cor de sua camisa, bem como a da água gelatinosa do canal.

A sujeira ali depositada, no aperto de copos plásticos, papéis, talos de madeira e molambos, não é um traço telúrico; é uma superfície doentia, feito as chagas de um corpo bexiguento. Robson, com o corpo fino, lembra a estreiteza do canal.

Ele esboça um sorriso nos olhos, na boca, quando se dá conta de que o prefeito Geraldo Julio tem na mão um microfone. A voz do prefeito ressoa sem alarde; o dispasão, fraco, acode-se no anúncio da construção do Galpão de Triagem de Resíduos Recicláveis. Robson é pouco atento às nuanças do calendário, inda que se lembre da conversa de sua mãe, no almoço de fartura regrada ou no jantar do cuscuz fumacento, cheiroso.
- Minha mãe vai votar nele... – adianta com inconfidência.

As eleições de outubro último são um traço a menos no calendário. Robson, no infinitivo do verbo, anuncia o propósito da mãe num ato ainda por acontecer. Mirando-se na mulher que o pariu, ele engatinha sua cidadania.

Faz calor em todo o Recife. Nas margens nuas do canal, a fervura do tempo é vista na apuração dos olhos. Sob a tenda improvisada, a comitiva do prefeito assente, não exibe o luxo próprio dos salões. Newton Mota, o secretário de Infraestrutura, fora o primeiro a usar o microfone. “Feito o plano de ataque, vem agora a ordem de serviço. Em oito meses, talvez seis meses, o galpão estará pronto”, diz ele, com os pés no palco de madeira empoeirada, por certo com a noção de que a sonoridade de sua voz repercutirá nos ouvidos das 70 mil pessoas que moram no entorno do canal do Arruda. O secretário de Governo, Sileno Guedes , seguira-o na falação. Assenta-se na memória que tem do vozerio popular. “O galpão será construído graças à luta do povo!”

Geraldo Julio, o derradeiro a falar, franze a testa para se mostrar convencido de que é impossível “viver com a lama no lixão, na lama.” Conforme ele, já foram retiradas mais de setecentas toneladas de lixo, do leito do canal; mais de seiscentas e cinquenta nas margens do canal. O programa de governo estima em doze o total de galpões que serão construídos. A mão que não empunha o microfone, sacode-se conforme a gravidade de cada sentença. Ele acusa os responsáveis pelos focos de tétano, de hepatite B, “as empresas que depositam o lixo e estão longe do canal.” Menciona a mudança do cenário com a urbanização do canal. Robson, o único garoto da comunidade Palha de Arroz no meio de barnabés sem a severidade de outrora, mostra os dente s quando o prefeito antecipa a construção de ciclovias. Mais casas serão erguidas na busca do fim do déficit habitacional, ainda peco em mais de 120 mil casas.

Não distante dali, vê-se a bueira restaurada do Nascedouro de Peixinhos. A tenra caliça de seu verde transparente não solta cheiros de estrume queimado, como nos tempos do matadouro. A cor suave acolhe os sons de trombones, bombardinos e percussões no palco. São moços de Peixinhos no ensaio musical. O ruído não interrompe a viagem que, na biblioteca vizinha, outros moços fazem na fruição de narrativas de Machado de Assis, de José Lins do Rego. Na comunidade Palha de Arroz não há biblioteca, não há moços soprando trompetes. Há o ouvido atento de Robson, o peito tênue, sôfrego de músculos.

O juízo tão curioso que se fartaria de cores no meio de uma festa mambembe. As pernas finas têm familiaridade com os becos da Palha de Arroz. Antes de chegar em casa, feito um artista mambembe com um sorriso próprio, não ensaiado, deixar-se-á cobrir pela escassa sombra ao lado de um pardieiro abandonado; onde, na administração passada, a Construtora Delta instalara escritório e depósito. Não há mais portas nem janelas, os vãos estão abertos nos pavimentos de baixo e de cima. Houvesse ali uma biblioteca, ou a combinação fortuita da rebeca com o tambor, Robson teria mais escolhas para suas tardes ociosas.

 *Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.



Vou-me embora pra Pasárgada

* Por Sayonara Lino

“Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura..."
 
Fui até Pasárgada
Pensava que aqui não pudesse ser feliz
Ledo engano
Lá chegando, não tive tudo o que quis
Sou amiga do rei, mas isso não foi suficiente
Felicidade é interna, construída dentro da gente
Encontrei pessoas por lá
Que foram com o mesmo intuito
Olhei ao redor, observei com atenção
Todos, de alguma forma, tiveram decepção
Sempre digo: não fuja, persista
Fique bem onde estiver
Só assim seguirá inteiro
Esteja aonde estiver

<       · Jornalista, fotógrafa e colunista do Literário