sexta-feira, 30 de abril de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Sucesso que atraiu sucesso.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “A poesia imensa que a imprensa não vê”.

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “A professora”.

Coluna Visões do cotidiano – Silvana Alves, poema “Bom dia, vida, e obrigada, meu pai!”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire – crônica, “Multiplicidade”

Coluna Porta Aberta – Mateus Berteges, crônica “A violência no espaço”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Sucesso que atraiu sucesso

Caríssimos leitores, boa tarde.
Vocês já notaram como o sucesso age como se fosse um imã? Até o fato de você escrever sobre o êxito alheio tende a fazer com que seja bem-sucedido também, em seu texto. Claro, isso se ele for minimamente bom, correto e interessante. O fracassado não interessa a ninguém. A menos que seu fracasso tenha sido monumental, tão grande, a ponto de ser inigualável e por essa razão despertar curiosidade, sobretudo, sobre o que o provocou.
O historiador norte-americano T. J. Stiles sentiu o gostinho de partilhar o sucesso do personagem sobre o qual decidiu escrever. E sua escolha não poderia ter sido mais feliz. Resolveu escrever a biografia de um titã contemporâneo, do homem que revolucionou os transportes nos Estados Unidos e acumulou uma fortuna tão imensa, que mesmo a quarta ou quinta geração da família ainda não conseguiu “torrar” até hoje. Pode-se dizer, até, que foi ele que moldou a economia do país mais rico do mundo, do jeito que ela é atualmente. Refiro-me ao magnata e multimilionário Cornelius Vanderbilt.
Stiles, portanto, não poderia ter escolhido melhor seu protótipo de sucesso. E, com ele, ou melhor, com a biografia que escreveu a seu respeito, conquistou nada menos do que o segundo prêmio literário mais cobiçado do mundo, o Pulitzer. É verdade que a importância da premiação sequer está na quantidade de dinheiro paga ao vencedor. Os dez mil dólares que recebe – equivalentes, mais ou menos, a dezessete mil e quinhentos reais – são merreca se comparados ao o que o Nobel rende. Ninguém fica rico, portanto, apenas com o Pulitzer.
A importância do prêmio está no prestígio que rende ao vencedor. E este não tem preço. Com a consagração literária que vem com sua conquista, vêm contratos e mais contratos de toda a sorte que, estes sim, tendem a enriquecer os felizardos.
Pois é, T. J. Stiles, conhecidíssimo por livros anteriores ficou com o Pulitzer de 2010 na categoria de Biografia. Seu livro que lhe trouxe a esperada consagração tem este título em inglês: “The first tykoon; the epic life of Cornelius Vanderbilt”.
O biografado desperta, e sempre despertará, interesse do público. Afinal, partiu do nada e se tornou multimilionário, uma espécie de Tio Patinhas do século XIX. É o protótipo perfeito do que os norte-americanos chamam de “self made man”, ou seja, do “homem que se faz sozinho”, e de que tanto admiram e procuram imitar (alguns, é claro). Faz parte de um seleto e restrito grupo de pessoas que construiu empresas poderosas e centenárias do “nada”, com as próprias mãos, mas... sem “perder a ternura”, como diria Che Guevara.
Muitos, como Vanderbilt, extrapolam a condição humana e viram lenda. Histórias e mais histórias passam a ser contadas a seu respeito, a maioria frutos da imaginação popular. Não é o caso, todavia, da biografia de Stiles. Daí, por conseqüência lógica, a conquista do precioso Pulitzer. Quem não gostaria de ganhar um? Até eu, que sou mais bobo, gostaria!
A trajetória incrível de Cornelius Vanderbilt é narrada com sabor e verdade por este historiador respeitado, ora travestido de biógrafo (não faz muito, publicou uma polêmica biografia de um dos mais lendários bandidos norte-americanos, Jessé James, e desfez um rosário de mitos sobre esse fascinante personagem).
Como se vê, sucesso pode, também, atrair sucesso (desde que, claro, você tenha um tiquinho de competência e um tantão de talento). O do biografado, pelo menos, possibilitou a consagração do seu (agora) ilustríssimo biógrafo.
Vanderbilt, à semelhança do mítico Rei Midas, era um sujeito que transformava em ouro tudo o que tocava. Ou melhor, em dólares. Mas não merrecas e sim, toneladas e toneladas da ainda cobiçada verdinha. E como esse sujeito juntou-as!
Muito jovem, por exemplo, já conduzia a própria balsa, tosca e rústica, pelas águas do Rio Hudson, em Nova York (naquele tempo não existiam as tantas pontes que há hoje), na travessia “de” e “para” Manhattan. Ganhou fortuna com isso. Lançou as bases, entre outras coisas, da própria e poderosíssima marinha mercante dos Estados Unidos.
Lá um belo dia, resolveu apostar todas as suas fichas num outro tipo de transporte, que ainda não havia conquistado seu espaço no vasto e acidentado território norte-americano: o ferroviário. O “cavalo de ferro” mal iniciava a sua marcha para o oeste, tão bem retratada por Hollywood em inúmeros filmes de cowboys.
Na época, as coisas funcionavam na base do “vale tudo”. Vanderbilt valeu-se, principalmente, de uma estratégia monopolista, fazendo o possível e o impossível, o legal e até o ilegal, para varrer a concorrência. Utilizou-se dos políticos, quando estes lhe poderiam ser úteis, e de pistoleiros, quando outro tipo de estratégia não funcionava. Hoje, sua estátua permanece, firme e forte, na principal estação ferroviária de Nova York, a lembrar seu caráter de pioneiro.
Só por estas palhinhas, dá, certamente, para o leitor depreender de quão fascinante foi a vida desse homem. E T. J. Stiles explorou-a direitinho. Durante décadas, por exemplo, quem pretendesse viajar de Nova York a Boston, teria, necessariamente, que se utilizar de algum dos meios de transporte de propriedade de Cornelius Vanderbilt, quer seus barcos, quer seus trens. Foi assim que pôde amealhar a assombrosa fortuna que até espanta e causa inveja a nove em cada dez norte-americanos (e pessoas de qualquer outra parte do mundo, claro).
Até na aparência, esse gigante dos negócios, capitalista até a medula, impressionava (ou assustava?). Era um sujeito grandão – tinha 1,90 metro de altura e quase 200 quilos de músculos – esse patriarca do clã dos Vanderbilts, conhecido como Comodoro.
E vocês acham que tinha muita (ou pelo menos alguma) cultura? Nada! Era um cara xucro, quase que analfabeto. Parou de estudar com apenas onze anos de idade. Mas justificou-se, certa feita, quando lhe perguntaram a respeito: “se fosse me educar, não teria tempo para mais nada”
Quem de nós não gostaria, pois, de escrever a biografia desse mito, caso tivesse acesso a informações precisas sobre a sua vida? T. J. Stiles quis, pesquisou à beça, redigiu uma história saborosa e verídica e deu no que deu: a consagração. Embarcou no sucesso de Vanderbilt e se deu bem!

Boa leitura.

O Editor.



A poesia imensa que a imprensa não vê

* Por Urariano Mota

Quando o Brasil perdeu Alberto da Cunha Melo em 13/10/2007, não houve qualquer notícia na imprensa do Sul e Sudeste. Se vivêssemos em uma civilização, o poeta, que não havia sido celebrado em vida, teria sido pelo menos lamentado como os gregos faziam com os seus melhores. Não exagero. Em dúvida, copio um trecho do seu “Um Cartão de Visita”:

Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.

Eu uma crônica escrita há mais de cinco anos, eu dizia que todos os dias encontrava o poeta no ônibus. Que sorte a minha, que infelicidade a dele, de ter uma cascavel com o meu veneno alcançando-o. Com o chocalho da minha voz, eu o chamava. Ele vinha e sentava-se ao meu lado. “Como vai a saúde, Alberto?”, eu perguntava, porque via em seus olhos uma sombra. “Boa, para a minha idade”, ele respondia. E conversávamos. Melhor dizendo, escutava-o. Melhor, aprendia. Porque Alberto, alheio à assistência do ônibus, sem medo da zombaria ou do motejo da gente, punha-se a falar sobre poesia, com a mais pura sinceridade e desarmamento. E seguíamos para o trabalho. Ele descia antes, para o posto de funcionário da Biblioteca Pública do Estado, onde ganhava menos que dois salários mínimos. E tudo porque era um poeta integral, que se dedicava a um ofício amargo:

RELÓGIO DE PONTO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor...
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas, com o verniz das estrelas.

Depois, quando ele recebeu o Prêmio de Poesia 2007 da ABL, rascunhei algo como “pediram-me uma apresentação do poeta Alberto da Cunha Melo”. E para que todos soubessem o quanto eu era incapaz disso, recolhi-me à minha insignificância e copiei um trecho do seminal “Oração pelo poema”:

“A cem quilômetros por hora
solto a direção do automóvel
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida...

Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.

Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal”
.
Na crônica de 2004 eu concluía que aquele homem a quem os amigos ouviam com a voz gasta por milhares de cigarros, aquele Alberto da Cunha Melo em quem eu não enxergava roupas, corpo, cabelos, em quem só percebia os olhos com uma névoa, que aquele homem era um clássico, um imortal que ninguém via. Agora que o seu corpo está morto e os cadernos culturais estão mudos, termino com estas linhas que ele um dia nos legou:

O PRESENTE

O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não vêem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
não pode ser devolvido.

Para os que sentem e pensam, esse presente jamais será esquecido. Ainda que sobre ele persista o mais ruidoso e bárbaro silêncio.

* Jornalista e escritor



A professora

* Por Rodrigo Ramazzini

Na sala de casa.
- Pai!
- Ãhn?
- Paaaaaai!
- O que é?
- Tô falando contigu!
- Não está vendo que estou assistindo TV?
- É que eu precisu...
- Não dá para deixar terminar o telejornal?
- É urgenti.
- Fala então...
- É que eu...
- Fala de uma vez!
- É que eu tô apaixonado pela minha professora...
- Ah, só isso?
- Só isso, pai? Ela é o amor da minha vida e tu pergunta “só isso”?
- Quem na sua idade não se apaixonou pela professora, hein?
- Sei lá! Mas eu amu ela!
- Isso passa! Agora, não me enrola e pode voltando para o teu quarto fazer o dever de casa...
- Mas é que...
- Não quero ouvir reclamação!
- Mas pai!
- Agora!

Minutos depois, na cozinha.
- Amor! Escuta essa: o Gustavo acabou de me contar ali na sala que está apaixonado pela professora...
- Ah era isso? Escutei qualquer coisa daqui, mas não entendi a história...
- Diz que é o amor da vida dele! Coisa de guri... Eu era apaixonado pela minha professora também na idade dele...
- Ele não é o primeiro na escola que se apaixona por essa professora. Ela é nova por lá. Chegou essa semana. Mas eu fui largar ele ontem e ouvi outras mães falando a mesma coisa sobre a paixão dos filhos...
- Coisa de guri! Passa. Será que a conheço?
- Não sei! Agora pára de mexer nas panelas e volta para a sala...
- Que horas fica pronta a janta?
- Daqui a pouco... Está me atrapalhando! Vai Paulo... Vai...

No outro dia pela manhã. Era dia de Paulo levar Gustavo de carro a escola. Ao chegarem em frente ao prédio...
- Paaiiii! Paaiiii! É ela... Olha ali...
- Ela quem?
- A professora! Minha namurada...

Paulo aprecia por alguns segundos o remexer dos quadris da professora ao caminhar e pensa: “É gostosa a professorinha mesmo... O guri tem bom gosto... Esse é o meu garoto!”.
- Ela é linda, né pai?
- Muito bonita! Agora desce! O pai já está atrasado para o trabalho...
- Tchau, pai!
- Tchau!

Paulo despede-se do filho com um beijo e olha novamente para a professora. Então, se dá conta que aquele par de nádegas lhe era familiar. Arrepiou-se. Proferiu um palavrão, e, depois de ouvir a buzina insistente do carro que estava parado atrás, rumou para o escritório. Ao chegar ao trabalho, foi direto ao telefone.
- Alô, Rachel?
- Já sei! Já sei, Paulo! O que está usando um abrigo esportivo roxo é seu filho... Já descobri! Sou professora dele...
- Qualquer gracinha com ele...
- É só andares na linha que eu não conto que ele tem um irmãozinho do paizinho dele fora do casamento...
- Estou te avisando: qualquer gracinha com ele... Eu te mato!
- Vê se te enxerga, Paulo!
- Estou avisando!
- Ah! Foi bom ligar. Quero o dinheiro na minha conta até amanhã, viu?
- Sua...
- Olha o que vai dizer...

À noite, já em casa, Paulo comenta com a esposa.
- Sabe amor! Estou preocupado com o Gustavo. Só fala da tal professora. Falou o caminho todo hoje. Isso está passando dos limites. Será que não era de trocá-lo de escola, hein? O que achas?

* Jornalista



Bom dia, vida, e obrigado meu pai!

* Por Silvana Alves

Sabe aquela vontade louca de acordar e abraçar alguém? Aquela vontade que faz você acordar bem cedinho, olhar para o lado, para cima.. e gritar: “Bom dia vida”!? Vontades como essa deveriam ser eternas, não são porque às vezes nos despedaçamos em pensamentos ruins, daqueles que só trazem cores cinzas para nossos dias.

Falta-nos mentalizar que a vida é suave, colorida e pode ser, sim, do jeito que queremos. Não fique bravo (a) se acordou cedo e foi para o banho, mas no meio dele a energia acabou..Sorria, afinal, algumas pessoas não têm água nem para beber, ou luz para assistir TV.

Ah, saiu de casa e na garagem pisou na caca do cachorro, já sei... @"¨&¨*&*&*(*(###.. Mil palavrões e, para completar, "eu mato esse cão". E tantas outras coisas chatas aconteceram durante o seu dia: chefe chato, cliente que não atende telefone, pessoas mal educadas. Esses são alguns dos contratempos de nosso louco cotidiano. Mas o que importa é manter pensamentos positivos, sempre.

E é fácil, desde que você tenha sempre Deus em seu coração... Entregue a Ele seu dia, seus problemas, suas lágrimas e seu sorriso. Agradeça a Ele por tudo o que lhe aconteceu de bom ou ruim, afinal.. Ele é o único que lhe entende e sempre estará ao seu lado!

Então, amanhã, quando você acordar, já sabendo que vai ter que ir à padaria encontrar a atendente de cara fechada, o cliente mal-humorado, o chefe chato, pense nisso: a vida é muito, mas muito mais do que esses pequenos detalhes. Então divirta-se e grite: “Bom dia vida, e obrigada MEU PAI!!!”

* Jornalista formada pela FATEA (Faculdade Integrada Teresa D´Ávila). Duas palavras falam por mim: vida e poesia.



Multiplicidade

* Por Eduardo Oliveira Freire

De um tempo para cá, estou ouvindo uma conversa de que com a proliferação do Twitter, os blogs vão acabar. Não concordo muito com esta ideia, porque reduz a diversidade de manifestações de comunicação que a mídia digital e as redes sociais potencializam.

Como já escrevi uma vez, o blog é um advérbio de lugar, um substantivo, um verbo, uma coisa, um meio de comunicação, uma forma de expressão, diário íntimo, rede social, político, artístico, jornalístico, coorporativo, comercial, liberdade, lixo, ensaio, efêmero, gueto e universo.

Talvez, algumas formas de se usar o blog podem deixar de ser usadas. Como, por exemplo, mensagens rápidas de divulgação de produtos e artigos de jornais. O twitter é uma rede social e servidor para microblogging que permite aos usuários enviarem ou lerem atualizações de mensagens pessoais e de outros contatos de até 140 caracteres, conhecidos como "twists", por meio da própria Web ou por SMS. Portanto, há possibilidade de ser utilizado como intermédio a outros espaços virtuais.

Outra forma que há possibilidade de cair em desuso: o blog relacionado com quem gosta de escrever aforismos, haicais e microcontos. Frases, versos e narrativas que em pouquíssimas palavras mostram um universo de probabilidades. Ou, simplesmente, indivíduos que só querem dizer coisas do cotidiano, sem pretensões.

Uma vez procurei o significado de Twitter: “vt+vi 1 cantar, gorjear, chilrear, pipilar, estridular. 2 rir em surdina. 3 falar rápido e alto sobre coisas sem importância devido ao fato de estar nervoso.”(Fonte: http://michaelis.uol.com.br).

Como outras redes de relacionamentos (Orkut, Facebook, blog, Youtube, entre outros), possui diferentes maneiras de utilização. Depende do usuário. Acho que as novas tecnologias vão se integrar e não se rivalizar. Talvez, um pouco diferente da mídia impressa e do livro. Mas, aí é outra história e realmente não tenho opinião formada.

* Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e aspirante a escritor. Blog:
http://duduoliva.blog-se.com.br/blog/conteudo/home.asp?idblog=13757



A violência no espaço

* Por Mateus Berteges

E o homem se despede de seu amor. Tudo que eles queriam era encontrar paz. Mas quem a fabrica, quem a faz? Ouviu um ruído se aproximar. A sua paz estava vindo buscá-lo. A sirene o distraía e aquela cor vermelha não era pra lhe trazer alegria. Era a cor da rosa que trazia em sua mão, que em câmera lenta, caía ao chão. Era a despedida, a tristeza e alegria pela sua partida. Durante todo aquele dia o homem caminhou com um sorriso no rosto, mas não imaginava o quanto estava exposto.

Um objeto perdido foi encontrado por ele. No meio do peito. O mesmo local que usou para amar, recebeu a fúria como companhia. Foi uma correria, regada de tristeza e terror. Diferente da rosa que cuidou e que com o nome de sua amada nomeou. E ela seria a única. E foi a única testemunha de que seu nome não mais existiria.

O homem fechou seus olhos. Parecia um sonho a cada encontro com seu olhar. Eram pequenos filmes que insistiam em passar, eram leves gritos que insistia em escutar. O homem foi notado, percebeu que seu rosto estava pintado, mas não era pra torcer pelo seu time. Voltava sempre à realidade e quando acontecia alguém o mandava resistir e segurar firme. Mas o que era mais firme que a dor que sentia? A dor que dobrou, duplicou sua despedida. Aquela tristeza poética havia se transformado em uma ferida. E nessa, a passagem era só de ida.

Do outro lado, sua amada o esperava. Com os olhos marejados e um desejo desencorajado de seguir. Seu amor estava atrasado, seu coração apertado e desistir da viagem lhe parecia mais sensato. O relógio a lembrava de seus compromissos, seu coração batia sem ritmo. Lembrou-se também do seu último contato: o homem lhe disse que não queria vê-la chorar e que a despedida não era a melhor opção. Ela não acreditava que aquilo seria verdade. Ela não queria acreditar que sua rosa ficaria pelo chão.

E o homem passava aos poucos pelo seu fim. Estava distante da vida, da ida, de sua amada e da rosa cultivada. Nada mais o prendia àquele mundo de ira. Talvez fosse um prêmio pela sua perseverança. Ele sabia que ninguém mais do que ele tinha esperança. Ele se lembrou da paz que queria. Daquela cor branca que sempre vestia. Ele lembrou de sua amada, que partiria para propagar o seu desejo. Ajudar os inocentes na guerra, ajudar a anestesiar o medo. Mas o medo estava ali com ele. Por que seu amor salvou tantas vidas e iria ignorar a dele? E o homem só quer saber o quanto sua dor, não a do amor, iria durar

* Analista de sistemas

quinta-feira, 29 de abril de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Nas entranhas da economia global

Coluna Aventuras em Paradoxo – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Urubu pintado de verde”

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Criação e inventividade”..

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto “Nothing man”.

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Sem o meu cabeleireiro”..

Coluna Porta Aberta – J. Freire Ribeiro, poema “Cântico”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Nas entranhas da economia global

Caros leitores, boa tarde.
Liaquat Ahmed, a despeito de haver conquistado um dos mais cobiçados e disputados prêmios dos Estados Unidos, atribuído anualmente pela tradicional Universidade de Colúmbia, em Nova York, não é norte-americano. É inglês. É verdade que reside e trabalha há muitos anos nesse país, onde conquistou fama e fortuna.
Por outro lado, apesar de seu prêmio ser na categoria de História, não é historiador. Não é, sequer, escritor de profissão. É economista. Quem, pois, mais habilitado do que um homem ligado diretamente à área de finanças para escrever sobre crises financeiras globais? Poucos, certamente. E de preferência, também economistas, claro.
Mas para tanto, teriam que dispor de documentos comprobatórios e, não somente isso. Precisariam conhecer em detalhes os acontecimentos que se propusessem a relatar, penetrar nas entranhas da economia global, saber de seus personagens, datas e locais absolutamente precisos dos fatos a serem narrados, além de cifras etc.
Afinal, a proposta, neste caso, seria a de escrever um livro de História (com “H” maiúsculo) e não de “história” (ou seja, de ficção e com “h” minúsculo). Liaquat Ahmed preencheu todos esses requisitos e se deu bem. Produziu um best-seller, que continua vendendo à beça, não só nos Estados Unidos, mas em todos os países em que já foi lançado (inclusive no Brasil). Seu relato em “Os donos do dinheiro – os banqueiros que quebraram o mundo”, não só se tornou campeão de vendas, como foi mais longe: valeu-lhe o prêmio Pulitzer de 2010, na categoria “História”.
Ahmed apresenta, em seu livro, o perfil de quatro homens que, no seu entender, por meio de suas ações pessoais e profissionais, mudaram o rumo econômico mundial do século XX. Para melhor? Para os Estados Unidos, que se tornaram a superpotência da Economia que são, sim. Já para o restante do mundo... Entendo que haja sido um irreparável desastre.
Todavia, o economista, alçado à condição de historiador, não se limita a especular ou, meramente, a opinar sobre a tese que traz à baila. Longe disso. Apresenta provas incontestáveis, inquestionáveis e contundentes a propósito.
O leitor, certamente, estará, a esta altura, perguntando: “Quem são estes quatro indivíduos, com tamanho poder e influência?”. Adianto que não são ETs e nem seres imaginários. São pessoas de carne e osso, como nós. São os banqueiros Montagu Norman, do Bank of England; Èmile Moreau, do Banque de France; Hjalmar Schacht, do Reichbank e Benjamin Strong, do Federal Reserve Bank of New York.
Nenhuma análise anterior, das várias crises financeiras globais, seguiu essa trilha histórica. Ahmed mostrou, sem sombras de dúvidas, a dimensão do impacto das decisões dos banqueiros centrais (e não somente destes, mas dos demais que os sucederam) nos bolsos de cada um dos cidadãos do mundo da época em que viveram e que se reflete nos dos 6,7 bilhões de pessoas que habitam o Planeta hoje, uns mais e outros menos, obviamente, mas sem que ninguém escape.
Antes de conquistar o Pulitzer, o livro – lançado no Brasil pela Editora Campus-Elsevier – já havia sido eleito pelo Financial Times como o melhor de 2009. A conquista do prêmio, portanto, não foi nenhuma surpresa, mas mera conseqüência.
Interessantes são as diferenças de personalidade dos quatro banqueiros que, de uma forma ou de outra, foram responsáveis pela crise financeira (não somente eles, óbvio, mas também os que acataram suas determinações) que arrasou a economia mundial no decênio que se seguiu ao “crash” de 1929, na Bolsa de Valores de Nova York, tido como origem da chamada Grande Depressão, o que levou, inclusive, as grandes potências a “cambalearem” em direção à guerra.
Enquanto Montagu Norman era “neurótico e enigmático”; Èmile Moreau era “xenófobo e desconfiado”; Hjalmar Schacht era “arrogante, mas habilíssimo” e Benjamin Strong “traumatizado por dramas pessoais, mas viciado em trabalho”.
Liaquat Ahmed transita com desenvoltura pelos ambientes que descreve, mas não por acaso e nem por havê-los meramente pesquisado. Esse é, e sempre foi, o seu meio. Afinal, foi gerente de investimentos profissionais durante 25 anos, tendo trabalhado no Banco Mundial (BIRD) e sido diretor-executivo da firma Fischer Francis Trees and Watts, com sede em Nova York, onde reside e trabalha. Sabe, portanto, como ninguém do que fala.

Boa leitura.

O Editor.



Urubu pintado de verde

Por Fernando Yanmar Narciso

Ei, por acaso você estaria interessado em comprar fotos do ET de Varginha? Eu mesmo tirei! Não? Que tal umas cápsulas de cartilagem de tubarão? Minha bisavó toma e já tem 132 anos. Não, não. Já sei do que você precisa! Tenho aqui uns relógios suíços de ouro legítimos, iguais aos que o Falcão usa. Eles não são contrabandeados, apenas não paguei ainda por eles. Dois por R$ 5.000,00 e você ainda leva um jegue que põe ovos de ouro de brinde. Vai levar ou não vai?

Quando eu tinha 10 ou 11 anos e morava em minha segunda casa, enquanto dava uma voltinha pelo bairro, me deparei com uma cena incomum. Na rua de baixo, estava estacionado um caminhão de bombeiros com a escada magirus erguida. Mas não havia fumaça, e a casa era térrea. Como a curiosidade matou o Yanmar, fui olhar. Uma equipe de filmagem estava presente, e o cinegrafista filmava dependurado no extremo superior da escada uma moça na varanda da casa.


Eu digo casa, mas na verdade era um barracãozinho da largura de um ônibus, socado no fundo de um jardim enorme. Eles filmavam um comercial para uma imobiliária, cujo nome não consigo me lembrar. O truque era filmar o barracão do alto, em close, para parecer que era uma mansão. Então na outra semana, quando o comercial foi ao ar, a moça dizia “Se não fosse pela imobiliária X, eu nunca teria conseguido comprar a minha casa.” O importante é sempre vender o peixe, e ninguém precisa saber do resto, OK?

E você? Como faria para vender uma coisa que ainda não existe? Nesse mundo capitalista, onde a competição é tudo, quem não tiver o dom do gorjeio e da malandragem logo vai ser devorado pelos mais espertos. Aos pequenos, algumas vezes é sugerida a fina arte de descolar um troco fácil e rir da cara dos otários, pois muitos se baseiam em tal conceito de esperteza. Claro que não deveria ser assim, mas é.

Grandes vendedores conseguiriam vender um crucifixo pro Drácula colocar na cabeceira do caixão, até um lote num condomínio na lua. “Sim, senhor. Estamos totalmente cientes de que não há atmosfera na lua, mas já estamos trabalhando na questão. Daqui a dois meses, quando nossa primeira colônia deixar o planeta, o solo lunar já estará fértil e o ar estará respirável. Agora, se puderem assinar essas três vias...”

Aquele que se considera um grande golpista conseguiria vender algo que não é seu, como a Torre Eiffel, não uma, mas duas vezes, como no célebre caso de um trambiqueiro que o fez em 1925. Para se ganhar uma eleição, promessas mirabolantes impossíveis de serem cumpridas são sempre utilizadas, afinal nada rende mais votos que a promessa de um reino de fantasia, onde tudo dá certo e os pobres estão sempre sorrindo. Salários mínimos astronômicos, jornadas de trabalho mínimas, reforma agrária, vale tudo para garfar o coração do trabalhador.

A ficção é um santo terreno para malandros e vigaristas, principalmente no Brasil, onde muitos torcem pelo espertalhão. Renato Aragão tá aí pra não me deixar mentir. Não existe melhor estereótipo do cara que quer sempre levar a melhor que o Didi. O Pica-Pau é meu ídolo-mor justamente por ter sido o rei da malandragem em seus primeiros anos. E o que se pode dizer sobre o Zeca Urubu, então? Não tem personagem de desenho animado mais brazuca que ele, capaz de virar o mundo pelo avesso pra levar o Pica-pau na conversa, mas que sempre acaba sendo preso ou esculachado pelo anti-herói de cabeça vermelha no final.

De um modo geral, quase todo malandro da ficção acaba escapando pela tangente no final, rodeado de gostosas num iate, mas nas raras vezes em que vêem o sol nascer quadrado, nos sentimos vingados, apesar de as pessoas agirem igual a eles. Afinal de contas, trapaça só é trapaça se o trapaceiro for descoberto.

* Fernando Yanmar Narciso, 26 anos, formado em Design, filho de Mara Narciso, escritor do blog “O Blog do Yanmar”, http://fernandoyanmar.wordpress.com



Criação e inventividade

* Por Pedro J. Bondaczuk

As pessoas verdadeiramente inteligentes, ou seja, que contam com capacidade de entendimento além da média, não se limitam a observar, elucubrar e refletir sobre tudo e todos que as cercam.. São homens e mulheres práticos, de ação, que não se conformam com a fragilidade humana e por isso fazem, criam e inventam. Mesmo que não reconhecidos, são os responsáveis pelos saltos de civilização e progresso deste estranhíssimo animal, misto de semideus e bronca fera.

Os três verbos citados podem ser interpretados, por muitos, como sinônimos. Não são. Posso fazer, por exemplo, um objeto, ou uma obra de arte, sem necessariamente criá-los. Ou seja, ao construir uma cadeira, não estou criando e muito menos inventando nada. Mesmo que acrescente a esse objeto alguma inovação, algo que ninguém ainda havia feito, sigo, apenas, um modelo previamente conhecido, que me limito a reproduzir, mesmo que à minha maneira.

A criação é mais nobre, embora, para viabilizá-la, me utilize de elementos já existentes, posto que não reunidos da forma que eu vier eventualmente a reunir. Grosso modo, seria uma “variação em torno do mesmo tema”. Quando “crio” uma idéia, na verdade não apresento nada de novo. Tudo o que eu pensar, alguém, em algum tempo e em algum lugar já pensou, embora não rigorosamente da mesma forma, com os mesmos elementos que utilizo. O mesmo vale em relação a um poema.

As palavras de que lanço mão para escrevê-lo não são de um idioma novo inventado por mim. Todas existem desde muito antes de eu nascer. Ademais, se fossem de uma língua particular e exclusiva, só eu (e mais ninguém) as entenderia. Por seu turno, os sentimentos expressados no poema igualmente não contam com a característica da exclusividade. Alguma outra pessoa (não importa qual) já os teve, posto que possam variar de intensidade. O original, neste meu ato de criação, portanto, é apenas a “forma” de expressão (isso quando o for).

Quanto à inventividade... É possível, nesta primeira década do século XXI do terceiro milênio da Era Cristã alguém inventar o que quer que seja? Há esse gênio capaz de produzir algo absolutamente original, sem utilizar nada, mas nada mesmo do que já seja conhecido? Teoricamente, talvez sim. Na prática...

Dá para se inventar o que ainda não exista? Um novo alfabeto, por exemplo, que não se assemelhe a nenhum outro da infinidade dos já existentes? Ou a roda? Esta não é possível, pois já existe, embora ninguém saiba quem a inventou. Os algarismos? Estes, também, os há. O conceito do zero ou algo similar? Também não. Inventar o que? Fica por conta da sua fértil imaginação, inteligente leitor.

Os chamados “inventores”, portanto, por esse critério exposto acima, usam com impropriedade essa designação. São, na verdade, “criadores” (quando não, meros “construtores”). Mas não importa. Nem por isso perdem sua utilidade, por possibilitarem, com suas ações, a evolução (mesmo que apenas material) do homem e, por consequência, das sociedades, cidades, povos, nações e do mundo.. . .

Conforme conclusão do físico Albert Einstein, um dos gigantes da espécie, os três verbos que citei acima têm uma característica em comum. O pai da Teoria da Relatividade escreveu, em seu livro autobiográfico “Como vejo o mundo” a esse propósito: “Fazer, criar, inventar exigem uma unidade de concepção, de direção e de responsabilidade”.

Ninguém faz nada de útil, produtivo e bom sem que antes conceba como fazer. Requer-se que antes aprendam o que se propõem a realizar. Ninguém nasce sabendo. Não raro isso exige interesse, concentração, aplicação, autodisciplina e constância. E isso tudo só será possível caso haja “uma direção”. Ou seja, é preciso ser sumamente objetivo.

Se para “fazer” (não importa o que) esses são alguns dos requisitos básicos, mais indispensáveis ainda eles se tornam para criar. E (se ainda for possível qualquer invenção que não se trate de mera variação do que já existe), muito mais ainda para “inventar”.

Só isso basta? Claro que não! Os três verbos exigem de quem age aguçado senso de responsabilidade. Posso fazer, por exemplo, algo que seja nocivo e até mesmo letal às outras pessoas (e a mim mesmo, claro), como produzir cocaína (ou heroína, crack ou outra droga qualquer, que vicie e destrua quem a consuma). Compete-me, pois, não agir dessa forma e não por medo das sanções a que poderei ser submetido pela sociedade, mas por convicção pessoal da nocividade desse ato.

Posso, por outro lado, criar uma arma de destruição em massa pior do que a bomba de hidrogênio (caso isso seja possível) expondo nossa espécie e todos os seres vivos ao risco de destruição (não importando o pretexto de que me utilize para essa estúpida criação). Posso, eventualmente, (pelo menos em teoria) “inventar” algo tão terrível que a imaginação do cronista sequer se aproxime de um grosseiro esboço do que possa vir a ser.

Compete, pois, a homens e mulheres práticos, de ação, que não se conformam com a fragilidade humana, de fato fazer, criar e inventar. Mas para que seus atos sejam positivos e construtivos, devem atentar, sempre e, sobretudo, ao “como” (com unidade de concepção e de direção), “quando” e “para quem” (senso de responsabilidade) agir.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com



Nothing man

* Por Marcelo Sguassábia

Na verdade, o que irritava demais era que o sujeito parecia uma caneta muito gasta e quase seca, de design ultrapassado, tampa mordida e serventia duvidosa até para a própria mãe, os irmãos e os vizinhos da frente que o ajudaram a criar.

Dava aflição e pena só de passar o olho no sempre esticado ser humano, mole ali no sofá mais mole ainda, feito boi na engorda – com a diferença que o quadrúpede, ao contrário dele, costuma passar a maior parte do tempo de pé. E não é mentira dizer que bastava terminar o almoço pro elemento já ir tratando de cavar espaço no bucho pra caber a janta, na adivinhação do que teria à mesa pra se refestelar até que não houvesse mais vaga disponível para um tremoço ou uma mísera azeitona sem caroço.

Com essa vida sem prestança o moço durou pouco sendo moço e logo logo rendeu-se ao definhamento, pelo uso muito continuado de certas partes do corpo e pelo desuso completo de outras. Ficou aquele velho que é ancião de tenra idade, acabado antes da hora, alvo de comentário e exemplo de mau exemplo. Do jornal só lia horóscopo, e nele se fiava mais que nos profetas do Antigo Testamento, mais do que no pronunciamento do presidente do Banco Central sobre a taxa de juros e mais até do que em fofoca de tia viúva – e dessas tinha duas que valiam por dúzias. Ô velhas mexeriqueiras, que quando apareciam com seus tupperwares lotados de biscoitos de nata traziam junto sacolas de injúrias e difamações sobre todo ser vivente da cidade, especialmente a parentada da zona norte. A sorte é que ambas, Aurora e Lélia, só muito de vez em quando surgiam e logo caíam fora após alguns jorros caudalosos de infâmia, deixando-o novamente às voltas com os botões do seu pijama.

“Esse cara aí é herdeiro de cartório”, diziam alguns à primeira vista, vendo aquele monumento à preguiça zapeando a tarde toda entre desenhos animados e alternando o trabalho das mandíbulas entre sacos de balas chita e bolinhos de chuva. E a chuva caía mansa como ele nas paragens que habitava, tão sem vontade de cair que em sua moleza o levava a meditar, pra descansar um pouco do estafante esforço de fazer coisa nenhuma.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”



Sem o meu cabeleireiro

* Por Gustavo do Carmo

Zuleide só cortava o cabelo com o Fred. Só ele sabia aparar as suas pontas e não deixar as madeixas armarem. Somente o Fred podia pintar, alisar e fazer a escova. Além de tudo, era o seu único confidente. Só aceitava conselhos pessoais dele.

Quando chegava ao salão, os outros cabeleireiros a assediavam como abelhas, mas Zuleide só aceitava o Fred. Marcava horário somente com o Fred. Se ele atrasava, esperava. Quando não podia aparecer, voltava para casa (frustrada) e agendava um outro dia. Só fazia as unhas ou a depilação depois do corte pronto, pois tinha medo de perder a vez, já que o seu trabalho era muito concorrido. Fred atendia Zuleide em seu salão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.

Fred era um homem moreno, alto e forte. Pele e barba lisa como bunda de neném. Cabelos bem aparados. Casado, tinha três filhos. De origem humilde, foi procurar emprego em um pequeno salão no Engenho de Dentro, que pertencia a duas irmãs.

Estava desempregado, prestes a ser despejado com a mulher e os ainda dois filhos pequenos. Pediu um emprego para varrer o chão do salão. Ao ser flagrado cortando perfeitamente o próprio cabelo em um dos intervalos do serviço, ganhou uma oportunidade para cuidar do cabelo de uma cliente – amiga das patroas – que serviu de cobaia. O corte chanel ficou perfeito. A mulher não só tornou-se fiel como recomendou os serviços de Frederico para as amigas, entre elas, Zuleide. Frederico foi promovido a cabeleireiro e passou a ser apelidado pelas donas e as clientes de Fred. Fez vários cursos na área de estética e beleza para se aperfeiçoar e regularizar a sua nova profissão.

Zuleide morava no Engenho de Dentro. Era uma moça muito bonita, morena como Fred, que tinha cabelos cacheados antes de alisá-los com o seu cabeleireiro preferido. Publicitária, também foi promovida a diretora, o salário aumentou e ela se mudou para Ipanema. Apesar disso, manteve-se fiel ao trabalho de Fred. Aparecia toda a semana com o seu carro luxuoso na porta do salão no bairro do subúrbio.

A violência da cidade aumentou. O trabalho de Zuleide também. Tornou-se difícil para ela manter a fidelidade a Fred. Depois de um assalto que sofreu ao voltar do salão onde o amigo trabalhava, Zuleide ficou com medo de aparecer no Engenho de Dentro com o seu carro importado zero-quilômetro. Tratou de arrumar um emprego para ele em uma rede de salões de beleza em Copacabana, onde podia ir a pé.

Com muita tristeza, Fred deixou as antigas patroas, que se transformaram na mãe que ele perdeu cedo. Em cinco anos, Fred se destacou no novo local de trabalho e conquistou também a clientela de artistas e profissionais liberais renomados. Ganhou prêmios e muito dinheiro. Ficou rico.

Abriu o seu próprio salão de estética e beleza. O negócio prosperou. Tornou-se concorrido. Zuleide, claro, foi a sua primeira cliente. Porém, teve que se conformar em ser obrigada a marcar hora com o amigo, pela primeira vez. A moça ficou chateada no início, mas depois aceitou. Mas passou a ter ciúmes do cabeleireiro com outras clientes. A esposa também. Manicure do salão, cismou que o marido a estava traindo com Zuleide quando o via conversando alegremente com a cliente. Só tirou a idéia da cabeça, por um tempo, quando foi surpreendida com um jantar romântico e uma lingerie. Engravidou do terceiro filho.

Já Zuleide era tão obcecada pelo tratamento capilar de Fred que tinha pavor só de pensar na morte dele. Chegou até comentar durante uma sessão de pintura:
— Ai, Fred. Se você morrer eu nunca mais cortarei o cabelo na minha vida.
— Ih, deixa de bobagem, Zu. Eu tenho tantos cabeleireiros talentosos. Se você quiser eu te indico o René.
— Não. Só aceito cortar o cabelo com você. Se acontecer o pior, aí sim eu aceito a sua sugestão.
— Xi, vamos mudar de assunto? Detesto falar em morte.

Aconteceu o que Zuleide mais temia. Fred foi alvejado por seis tiros no peito, caindo inerte no asfalto frio pelo sereno das onze da noite. Saía do salão após um dia movimentado de trabalho e lucro. Estava se dirigindo para o apartamento onde morava na Constante Ramos quando sentiu o primeiro estampido quente em seu peito, vindo de alguém que havia tocado as suas costas. A féria do dia foi roubada.

O salão amanheceu aberto, mas sem atendimento. Apenas para os funcionários desolados comunicarem o triste acontecimento às clientes. Zuleide se desesperou. Fez questão de ir ao velório e ao enterro do cabeleireiro fiel e amigo. Comportou-se como a viúva. Chorou abraçada ao caixão. Fez escândalo. Assustou até as antigas patroas de Fred, que já estavam bem velhinhas. A verdadeira viúva aceitou, contrariada, as condolências dadas por Zuleide. Os dois filhos mais velhos de Fred estavam inconsoláveis. Os meninos começavam a trabalhar com o pai. O rapaz, como cabeleireiro e a moça como atendente. O menino mais novo não estava presente na capela. Ficou brincando na casa da avó materna, sem saber que vai crescer órfão.

Zuleide passou um mês de luto. Mandou até tingir algumas roupas de preto. Assim ia para o salão do amigo falecido e cortava o cabelo com René, um jovem humilde que teve a mesma trajetória de Fred, a quem também pediu um emprego. Mas René não conseguiu agradar a Zuleide, que detestou o seu trabalho e dos outros nove cabeleireiros do Freds Coiffeur.

Mudou de salão. Tentou cortar em Ipanema. Em um shopping da Barra, outro de Botafogo. Até na zona norte. Voltou a cortar no salão das ex-patroas de Fred, no Engenho de Dentro, já sob nova direção. Não se acertou com nenhum.

A polícia suspeitou de assalto, da viúva por causa de ciúmes e de René, homossexual apaixonado pelo patrão. Todos provaram inocência. As investigações chegaram até Zuleide, através da denúncia feita por René que, indignado pela humilhação que levou da nova cliente, se vingou, contando, em depoimento, o comportamento exagerado da antiga cliente no velório. Também acharam as suas digitais na pistola com silenciador. Zuleide confessou tudo.

Matou porque descobriu que Fred desmarcou um horário com ela só para atender a sua ex-melhor amiga, que lhe roubou o seu noivo, único homem por quem se apaixonou.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores



Cântico

* Por J. Freire Ribeiro

Brasília – auriverde
buscando o futuro!
Brasília formosa
agitando o cocar
de verde esperança
ao porvir acenando!...

Os homens – gigantes,
heróicos, pisando
em marcha febril
o solo bendito
da nova cidade
Brasília – Brasil!

A cruz, altaneira
benzendo a cidade
à luz das auroras
das tardes festivas,
da noite de prata
na lua gentil,
- cenário imponente
o Brasil caminhando
o futuro buscando,
Brasília – Brasil!

As novas “bandeiras”
rumando à cidade!
automóveis, tratores,
operários suando
na paz trabalhando!

Novos lares nascendo,
os malhos vibrando,
aviões revoando,
sirenes no ar,m
mensagens levando
o povo cantando
Brasília – Brasil!

Sementes de ruas
no solo medrando!
as casas nascendo
aos beijos do sol
nas manhãs ouro-anil!

As nuvens-bandeiras
de paz nos altares!
Os homens felizes
e o gênio da raça
na boca dos ventos
a todos dizendo
Brasília – Brasil!

(Poema reproduzido da revista “Brasília”, da Novacap, edição de maio de 1958.)

* Poeta sergipano

quarta-feira, 28 de abril de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Régio presente de aniversário

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, crônica “Utopia e barbárie – o risco dos comentários”.

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica “A invasão da estatística”.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Exagerada”

Coluna Suave Inspiração – José Geraldo Mendonça Junior (Penninha), poema “Montesclarear”.

Coluna Porta Aberta – Paulo José Cunha, poema “Candanga”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Régio presente de aniversário

Caríssimos leitores, boa tarde.
O que um poeta mais gostaria de receber a título de presente de aniversário? Vocês, certamente, devem estar estranhando a pergunta, mas ela procede. Como a questão é ambígua, cabem, claro, várias respostas, não somente uma, e todas um tanto vagas. Uns, por exemplo, gostariam de ter, 24 horas por dia, 365 dias do ano e em todos os anos da vida, inspiração para compor. Como se vê, depende do poeta.
Há os que gostariam de ganhar viagens para os mais aprazíveis, belos e inspiradores recantos da Terra. Outros, ficariam sumamente felizes se pudessem estar sempre ao lado da musa que os inspira. Dante Aligheri, certamente, pediria a sua adorada Beatriz. Edgar Alan Poe não se contentaria com ninguém menos do que Lenora. É difícil entrar na cabeça dos poetas e adivinhar o que de fato desejam. São seres sonhadores, raramente práticos e boa parte deles, convenhamos. excêntrica.
A poetisa norte-americana, Rae Armantrout, todavia, ganhou um régio presente, especialíssimo e de valor inestimável, que duvido que esperasse (embora, provavelmente, sonhasse com ele): o Prêmio Pulitzer de Poesia de 2010 em seu aniversário! Querem coisa melhor para um escritor?! Subitamente saltou de um relativo ostracismo para a glória, a fama, o sucesso, a consagração. É verdade que o “presente” não lhe foi dado de graça, de mão beijada. Ela fez por merecer.
O que me chamou a atenção, porém, foi o fato dela haver conquistado a cobiçadíssima e super-reputada premiação literária, provavelmente a segunda em importância no mundo, abaixo, somente, do Nobel de Literatura, justo em abril, mês de seu aniversário, quando completa 63 anos de vida que, agora pode afirmar aos quatro ventos que é vitoriosa.
Eu poderia reproduzir para vocês sua biografia, com detalhes e mais detalhes, mas não o farei. Isso, a maioria dos meios de comunicação, de várias partes do mundo, fará, e muito melhor do que eu. Essa não é minha praia, ou seja, biografar personalidades. Apenas digo que Rae nasceu na pequena cidade californiana de Vallejo. Que se criou e estudou na capital do seu Estado, San Diego e em Berkeley.
Poderia limitar-me, somente, a estes dados, mas lhes darei outra colher de chá. A agora laureada poetisa é professora de Literatura na Universidade da Califórnia. Seu primeiro livro de poesias, “Extremities”, foi publicado em 1978 (já lá vão 32 anos!), quando tinha 31 anos de idade. Algumas de suas outras obras poéticas são: “The invenction of hunger” (1979), “Precende” (1985), “Necromance” (1991), “The pretext” (2001) e, logicamente, “Versed” (2009), com a qual conquistou o Pulitzer.
Rae participou, com poetas como Kit Robinson, Bob Perelman, Lyn Heijinian, Barrett Watten, Ron Silliman, Steve Benson, Tom Mandel e Carla Harryman da coletânea de textos em prosa intitulada “The grand piano”, classificada como “experimentação de uma autobiografia coletiva”. Excentricidade? A poetisa galardoada é, mesmo, digamos, um tantinho excêntrica.
Rae, desde que se lançou no mundo das letras, no início dos anos 70, quando ainda universitária, sempre esteve fortemente vinculada à corrente poética conhecida como “languages poets” que Ricardo Domeneck traduz como “poetas-linguistas”, ou seja, os que valorizam, sobretudo, a palavra, independente até do seu significado. Não disse que ela era excêntrica?
Sua poesia, para que o leitor que ainda não a conheça tenha uma ligeira idéia, lembra um pouco a de Emily Dickinson, não pelos temas abordados ou pelo estilo, mas pela forma de composição. E, creiam, isso não é pouca coisa.
Outro fato pitoresco cercando Era Armantrout é o seu livro premiado, “Versed”, mais especificamente, como e quando nasceu. Foi escrito em um momento terrível da vida da poetisa, de angústia, incerteza e impasse, ou seja, quando soube que estava com câncer. Esta é uma notícia que ninguém, claro (mesmo que tenha instinto suicida) deseja ouvir. Talvez por isso, os poemas “brinquem” com o conceito de vice-versa e os limites do desconhecido.
Será que ela contava com essa reviravolta em sua vida que “Versed”, no fim das contas, causou? Duvido. Foi justamente um livro escrito num momento de incerteza, medo e angústia que lhe valeu o Pulitzer e catapultou-a, definitivamente, para a glória, a fama, o sucesso e a consagração.
Conheça, um pouco, da sua poesia, neste único exemplo que lhes trago, extraído do excelente blog “Revista Modo de Usar” (http://revistamododeusar.blogspot.com), com tradução de Ricardo Domeneck:

Proveniência

É característica de X
posicionar aqui sua ansiedade

entre "tempo"
e "vivo."

O que você pode dar-me
por este relance
e sua proveniência?

Eu tenho um idêntico.

O que me interessa agora
são derivados
de derivados.

A narrativa
que nos resgata
outra vez

é um caminho menos provável.

Ao velejar
de ponta-cabeça no ocaso
retornamos
da terra dos mortos.

Anotem este nome: Rae Armantrout. Vocês ainda ouvirão falar muuuuito dele. E eu não ficaria nem um pouco surpreso se ela conquistasse, também, o Prêmio Nobel de Literatura de 2010 ou de 2011. Pena que, se isso acontecer, não será a título de outro presente de aniversário. Afinal, o Nobel é anunciado, apenas, na primeira semana de outubro. Mas isso já seria querer demais!

Boa leitura

O Editor.



Utopia e barbárie – O risco dos comentários

* Por Marco Albertim

Comentar “Utopia e barbárie” é arriscado. Sílvio Tendler, o realizador, trabalhou 19 anos na obra, entrevistou mais de 60 personalidades, visitou quinze países. Arrisca-se quem faz algum reparo, inda que se trate de uma releitura de tragédias humanas e sociais, a começar da poeira de cogumelo da bomba atômica, terminando com o foco em líderes ainda em ascensão no continente: Lula, Chávez, Morales. Tendler não arriscou-se tanto, visto ser um cineasta já com uma filmografia reunindo vinte trabalhos. Depois de dois infartos, decidiu que o órgão vital que pulsaria no começo do filme, ao som da música de Marcelo Yuka, seria o da imagem de uma cintilografia feita em si mesmo, em 2000.

É o cronista que se vale da imagem, reverencia-a como a um ícone, valorizando minúcias, depoimentos. Como historiador revisitando episódios, faz a crítica ao socialismo, sua trajetória a partir da revolução russa; sem romper, contudo, com o legado do mesmo socialismo. Os sonhos, trata-os como utopias sem detrair “utopistas”. A crítica ao pensamento, usa-a para salvar corações esperançosos. Como cineasta, tem uma matriz revolucionária, dialogando no próprio documentário com filmes russos como A mãe, de Pudovkin; e com O Encouraçado Potenkim, de Eisenstein.

A revolução cubana não é mostrada como um ato de força de um punhado de denodados. Há cubanos, cubanas empunhando bandeiras atrás, à frente de moços nada imberbes. A crônica mostra-se viva num supermercado no Vietnã, com produtos nada vietnamitas. Ao fundo, anos atrás, moços vietnamitas com sentimentos antiimperialistas. Chávez, o loquaz Chávez, presenteia Obama com um exemplar de “Las venas abiertas de América Latina”. Pinochet não é um general senil, de juízo fraco, é “um ditador cínico”. “Que baita economia!”, diz ele ao saber que os corpos de dois fuzilados foram achados numa só cova.

Para montar um painel tão rico, o perfil plural de Sílvio Tendler soube aproveitar olhos e bocas das testemunhas. Chama a atenção a revelação do jornalista Carlos Chagas. Conforme ele, Pedro Aleixo, então vice do general Costa e Silva, foi o único a ser contra a edição do AI-5. Disse Aleixo: “Não tenho medo das mãos honradas do presidente Costa e Silva. Tenho medo do guarda da esquina...”

Em entrevista, Sílvio Tendler diz que Marx e Engels, “para o bem gestaram o Manifesto Comunista (...). Para o mal, os grandes massacres promovidos, ora contra os socialistas, caso da Comuna de Paris, ora pelos socialistas, como foram os expurgos stalinistas, com massacres de camponeses na URSS.” A história é parteira, também madrasta; é paciente e demora, diz Eduardo Galeano. Tendler ouviu-o, mas... Mas talvez por não ter absorvido a lição, ponha no mesmo saco episódios ocorridos em circunstâncias distintas.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.



A invasão da estatística

* Por Mara Narciso

Os jornalistas costumam ir ao local de um acidente quando morrem pelo menos duas pessoas. A frieza diante dos fatos é justificada pela expressão “números frios da estatística”. Está lá no jornal: o trânsito matou um jovem. A nota soa banal, mesmo com foto em local destacado da página. Mas quando o número um salta o muro e pula no seu jardim, tudo de transforma. O sangue encharca a sua vida e o seu gramado onde você vê o corpo destroçado ao lado da família despedaçada. Acontecem muitas perguntas e explicações de toda ordem, mas o entendimento nem sempre acontece.

O morto era um rapaz saudável, trabalhador, pai de uma menina de quatro anos. O quebra-cabeça vai sendo montado. Ele esteve com amigos, tinha bebido, perdeu o controle da moto próximo a uma ponte. Uma testemunha viu o momento do acidente. Um carro teria fechado o motoqueiro que acabou saindo pela tangente, enfiando a roda num buraco e sendo lançado à distância, momento em que o capacete voou, e ele bateu no chão, tendo a cabeça esfacelada. Desde o instante que o Corpo de Bombeiros chegou ao local, já diagnosticou a gravidade da lesão. No hospital, ficou ligado ao respirador por dois dias, e quando foi definida a morte cerebral, a família doou os seus órgãos. Questões técnicas impediram de eles serem aproveitados, e apenas as córneas foram utilizadas, dando luz a dois cegos.

A cerimônia do adeus teve a presença maciça da família dilacerada, de pais separados pela vida e unidos pela dor, que abraçados chorando, sensibilizaram a todos os presentes, e desencadeou uma cascata de choros. Presenciar os desdobramentos de uma perda tão sofrida extrai emoções fortes, numa dor em cadeia. Uma coroa de rosas vermelhas, símbolo da paixão, foi encaminhada pelos colegas do agente carcerário com a frase “para o colega que tanto admiramos sem nenhuma restrição”.

O pastor encomenda o corpo, dizendo aquelas coisas tristes que mencionam quando o féretro vai partir. Fala do bem, do amor e da vida após a morte. Consola a família e valoriza aquele que parte, dizendo o quanto ele é insubstituível. E é, pois cada um é único. O irmão segreda que o morto “não acreditava em muita coisa não”. Ele se referia ao fato do falecido não possuir uma religião específica. A mãe confirma o excelente pai e filho que ele era. Em cima do corpo, uma foto num porta-retratos mostra a alegria e a beleza do jovem. A mãe chama a atenção para esse fato mostrando aos presentes: vejam meu filho, tão jovem e tão lindo! Agora, o corpo jaz no caixão, em meio a flores e lágrimas, imensos volumes de lágrimas de todas as origens, sejam de parentes, amigos ou namoradas.

Entre os comentários, surgem aquelas possibilidades do que poderia ter acontecido e não aconteceu, do que poderia ter sido evitado, e não foi. O que será colocado naquele buraco no coração moído daquela mãe? Quando o corpo baixar à sepultura, qual grito será dado por esse pai desconsolado? Todas as vidas dos que estão em torno desse jovem homem estão destruídas. Muitos se perguntam o que será deles agora, diante desse vazio torturante.

O amigo de infância e vizinho custa a acreditar. Explica, como se isso fosse necessário, o quanto eles se davam bem. A eterna ex-namorada que sempre volta o namoro está transtornada. Ela sabe que é verdade, mas não quer aceitar que agora acabou para sempre. Não haverá mais volta. Acabou e ele nunca mais retornará. Rememora os períodos em que estiveram juntos desde a adolescência de ambos, um aos 14 e o outro aos 16 anos quando começaram a namorar. Fala do filho que nunca tiveram e que poderiam ter tido. Alega que o não dar certo de ambos passava por questões sociais e financeiras, que segundo o falecido eram um fosso intransponível.

E loucura das loucuras, a mãe esteve no local do acidente, desceu e foi olhar o sangue do filho no asfalto. É conseguir sofrer ainda mais do que o necessário, mas cada um sabe das suas necessidades. Após a missa de sétimo dia, a família começa a colocar as coisas no lugar, definir as questões práticas da morte, que são o inventário, a filha órfã, as coisas da vida real, que não esperam e precisam ser céleres.

Dias após o falecimento, a eterna ex-namorada fala do morto, do seu cabelo liso e comprido em boa parte da sua vida, da sua beleza mestiça, um pouco indígena, feito a mãe, e volta a lamentar a perda irreparável. Normal, muito normal o vácuo, o choro, os tiques, as insônias, os dias de apetite alterado. O que choca é a compulsão de ficar pensando no corpo desintegrando-se sob a terra. Não! É preciso impedir esse tipo de pensamento.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



Exagerada

* Por Sayonara Lino

Há duas semanas, minha cadela fox paulistinha, que tem nove anos de idade, recebeu o diagnóstico de diabetes. Como a quantidade de urina aumentou absurdamente de dois meses para cá, corri com ela para a clínica.

A glicose estava altíssima. Ela foi submetida a exames de sangue, a curva glicêmica foi realizada com objetivo de determinar como seria o tratamento e tudo foi entrando em uma certa normalidade. Diariamente é aplicada uma dose de insulina, onde o problema crônico é controlado. Ela passa muito bem.

As doenças chegam sem nosso consentimento, sem dó nem piedade. Não querem saber se nossa cuca está legal para lidarmos com elas. Também não consultam nosso saldo bancário para saber se daremos conta das despesas.

Além de estar triste por ela, meu bolso gritava. Primeiro vieram os exames, a hospedagem, depois o frasco de insulina. E eu suava frio. Além disso, precisava de alguém que aplicasse a dose para mim, já que devido ao nosso grau de intimidade, ela dá saltos e solavancos. Sem contar que não manejo bem aquela agulhinha fina. Então, combinei na clínica um pacote de banho com as aplicações incluídas. Jóia! De repente, veio a notícia fatal: “você terá que pagar a seringa, que é descartável. À parte”. Pronto, foi a última pá de cal.

Cheguei em casa e chorei ao fazer os cálculos. Um choro sofrido, que apenas os dramáticos, descendentes de italianos como eu, conhecem. Aproveitei e chorei todos os atrasados: desafetos, mágoas, decepções, as enchentes, os tsunamis, os maremotos, as guerras, as antigas dores de cotovelo, de coluna e de cabeça. Chorei por causa do preço do tomate. Chorei as pitangas possíveis e as inimagináveis.

No dia seguinte, respirei fundo para chegar com ares de tranquilidade e conversar com o veterinário. O rapaz olha para mim e diz, calmamente: "a seringa custa apenas vinte centavos”. Ou seja, sairia pelo menos quinze vezes mais barato do que o valor que eu havia calculado.

Vou te contar, no fim de tudo ri de mim mesma e percebi que sofri sem tanta necessidade. O sangue açucarado da minha querida cachorrinha me lembrou mais uma vez que às vezes sou mesmo assim, um tanto exagerada.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Colunista do portal www.ubaweb.com/revista.



Montesclarear

* Por José Geraldo Mendonça Junior (Penninha)

Homenagem a Godofredo Guedes

Ah! Quanto choro chorinho na praça, quanta graça na morena na moça
Que passa, no sorriso, no feitiço do corpo roliço, na malícia, no pudor em busca
Do amor, da mulher montesclariana, que ana, que chama, que fogo
No olhar. Ai! Que vontade de Montesclarear!...

Ah! Quanta luz luzindo na praça, fervilhando com a massa e seu “Godô”
Tocando com graça um choro, no clarinete, sobre o coreto, azulando a praça
Enquanto eu tipo tiete curtia aquela música baiana, mineira
Brasileira, montesclariana, que ana! que chama! que fogo no olhar!
Ai! Que vontade de montesclarear!

* José Geraldo Mendonça Júnior ou Penninha, como é conhecido literariamente, nasceu em Montes Claros (MG). É economista, trabalha na Diretoria do Hospital Universitário Clemente de Faria, da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Participou dos livros “Antologia de Poesia, Contos e Crônicas” – Palavras Escolhidas, No Limite da Palavra, Elo de Palavras e Enigmas de Amor, da Scortecci Editora, em 2003, 2004, 2008 e 2009. Colaborador do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, em Montes Claros, de 1986 a 2009.



Candanga

* Por Paulo José Cunha

Para Paulo Bertran

Candanga, a alma leve dos cerrados,
a moça e seus cabelos nos longes de Goiás.

Candangos nós, teus filhos de adoção.
Candangos nossos filhos,
nascidos do teu chão.

A mão que te acenou de tão distante
foi quem prometeu que te faria:
trocou o talvez, por neste instante,
e a cidade assim se fez.

Candangos Vladimir, Bertran, Oscar, Sayão,
candangos Lúcio, Vera, Nicolas, Bulcão,
candangos Teodoro, Cássia, Renato, Catalão.

Misteriosos como os campos de cerrados
de longe, apenas troncos retorcidos,
de perto, segredos revelados.

Água de mina, raízes, folhas, flores,
beleza pura que explode por detrás
dos detalhes escondidos na aridez
da vastidão dos campos de Goiás.

* Poeta de Brasília/DF

terça-feira, 27 de abril de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – O roqueiro escritor

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, crônica “JK e os 50 anos de Brasília”

Coluna Imitação da vida – Laís de Castro, crônica “Gil, depois do Domingo”.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Do que não sei”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Insônia 1”.

Coluna Porta Aberta – Paulo Valença, conto “Fugas noturnas”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

O roqueiro escritor

Caros leitores, boa tarde.
O sucesso é, mesmo, caprichoso e nos alcança quando menos esperamos ou estamos preparados para ele. Isso acontece, principalmente, em nossa atividade de escritores. Muitas vezes nos preparamos a vida toda para encarar esse complicado e incerto mundo das letras. Estudamos, desenvolvemos um talento descoberto, muitas vezes, na remotíssima infância, somos criativos, autodisciplinados, de imaginação fértil, produtivos e autocríticos. Produzimos obras irretocáveis, escolhemos uma grande editora, com a melhor das estruturas e perfeita distribuição, para publicá-lo, comparecemos a noites de autógrafos sem fim e... nada acontece. Nossos livros encalham, desgraçadamente, nas prateleiras das livrarias e dão prejuízos imensos para todos os participantes que tornaram viável seu lançamento.
“Onde erramos?!”, perguntamos, atônitos e desesperados. Não cometemos erro algum. As circunstâncias é que nos foram desfavoráveis. Em contrapartida, um sujeito que gosta de escrever, mas nunca se julgou escritor, produz um romance pequeno, de uma história simples que lhe veio à cabeça, mas que tem muito de autobiográfica, edita-o com um esforço inaudito, numa editora nova, minúscula e sem nenhuma tradição ou estrutura, vende-o num esforço pessoal gigantesco, praticamente de casa em casa, mal recupera o investimento que fez e, subitamente... Bum!!! Explode em sucesso.
Transforma-se, da noite para o dia, num best-seller, escritor badalado pela crítica, requisitado pelo público e pela imprensa e assediado por dezenas de grandes editoras, ávidas por conseguirem um contrato para suas próximas produções, oferecendo-lhe, inclusive, polpudos adiantamentos de dinheiro. E, para culminar,. seu livrinho despretensioso conquista um dos mais reputados e cobiçados prêmios literários do mundo. Parece até enredo de um romance ruim, desses dos mais óbvios possíveis. Fantasia? Nem tanto! Isso acaba de acontecer.
Aconteceu, sim, garanto-lhes e juro, e com Paul Harding, de 42 anos, roqueiro, ex-baterista do grupo de rock (relativamente obscuro) Cold Water Flat. O sujeito até que gostava de escrever, e escrevia bem, mas nunca teve oportunidade de divulgar seus textos em qualquer grande veículo de comunicação. Resolveu redigir um romance, por puro prazer da escrita, sem a menor ambição de nem mesmo se tornar famoso. Seu livro ficou pronto, tinha 191 páginas, e achou que ficou bom. Mostrou-o aos amigos e a maioria não lhe deu a menor importância.
Um deles, porém, sugeriu, talvez para se livrar do seu assédio, que o publicasse. Tentou, tentou e tentou chegar às grandes editoras, em vão. Resolver fazer uma última tentativa numa pequenina empresa editorial, a Bellevue Literary Press, afiliada da NYU School of Medicine, com somente três anos de existência, só dois funcionários e sem nenhuma estrutura de distribuição e divulgação. Não teve jeito. Colocou os livros debaixo do braço e saiu por aí vendendo, como um mascate, de porta em porta. Trabalhou feito um camelo, mas vendeu quinze mil exemplares. “Vitória!”, pensou. Mal sabia, porém, o que o aguardava.
“Tinkers”, história de um homem à beira da morte que mantém um relacionamento especial e franco com seu pai, em que ambos descobrem, além, do cotidiano banal, novas formas de compreensão do mundo e da vida, acabou caindo em mãos de críticos literários famosos, de várias partes dos Estados Unidos. Foi como uma chama em um rastilho de pólvora. Bum! Explodiu! O sucesso chegou para Paul Harding.
Primeiro, seu livro, lançado em janeiro de 2009, tornou-se assunto preferencial em todos os círculos literários do país. Choveram elogios e cartas e solicitações de entrevistas. Alguns chegaram a classificá-lo como novo J. D. Salinger, mas sem as esquisitices e idiossincrasias do original. E tudo acabou desembocando em algo maior, muito maior do que o mero sucesso: a consagração e a glória. Paul Hardin, com seu livro, conquistou o Prêmio Pulitzer de 2010, na categoria “Ficção”. Quantos gostariam de estar em seu lugar, que lutam há muito mais anos para isso, e não estão e jamais estarão?! Milhares, diria milhões de escritores.
Claro que se ele não tivesse o talento que tem, jamais conseguiria essa façanha. Continuaria como baterista de um conjunto de rock não tão famoso assim, fazendo desgastantes turnês para sobreviver. Estão aí, porém, as tais das “circunstâncias”, citadas pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset, e sobre as quais tenho escrito tanto. Paul Harding estava no lugar certo, na hora certa e com a atitude que era a mais adequada para a ocasião. Deu no que deu: sucesso! E que sucesso!
A esse propósito, o escritor declarou, ao “USA Today”: “De início, minhas possibilidades de êxito eram quase nulas. Afinal, tratava-se de um pequeno livro, de uma editora minúscula, de um escritor estreante e desconhecido, vendido de mão em mão do início ao fim. O Pulitzer confere-me uma sensação de liberdade. Posso me dar o luxo, daqui para frente, de continuar fazendo o que mais amo fazer: escrever”.
Tudo o que Paul Harding vier a conquistar, daqui pra frente, será lucro. E se não conseguir mais nada (o que não acredito que ocorra), pelo menos já sentiu o dulcíssimo sabor do sucesso (e que sucesso!): inscreveu, para sempre, seu nome na Literatura dos Estados Unidos e, provavelmente, na mundial. Que tal pelo menos tentarmos seguir seu exemplo? Pode dar certo, não é mesmo? Pelo menos é o que creio. Como o sucesso é estranho e inesperado!!!!

Boa leitura.

O Editor.



JK e os 50 anos de Brasília

* Por Risomar Fasanaro

Juscelino Kubitschek, “o peixe vivo” de Minas governou durante a melhor época que minha geração viveu neste país: os anos dourados. Parecia que o país vivia em festa. Durante seu governo passei um mês em Copacabana, na casa de uma amiga de meus pais.

Nas ruas do Rio eu me encantava com a alegria das pessoas. Algumas ao passar em frente a uma loja de som começavam a dançar na calçada. Era visível a felicidade que havia no Brasil. As pessoas jamais imaginavam que dali a alguns anos o país viveria sob um clima cinza, de chumbo.

Adolescente, eu me deslumbrava ao ver os pés descalços do presidente nas fotos que as revistas “Manchete”, “Fatos e Fotos” e outras publicavam. Só hoje sabemos que aqueles “cinqüenta anos em cinco” que JK pregava custaram ao Brasil, na época, um crescimento de 40% da dívida externa além de ver a inflação dobrar.

Mas esses problemas passavam ao largo de nossas vidas e em nossos momentos românticos os assuntos giravam em torno da bossa-nova, recém surgida, ouvindo “Desafinado” na voz de João Gilberto ou “Eu e a brisa” com Johnny Alf”, ou o Barquinho na voz de Nara, para a voz de quem, nos parecia, a bossa-nova fora criada
.
E nos momentos de agito a loucura era total com o rock and roll de Elvis Presley. A juventude enlouquecia com o requebrado negro e alucinante do cantor. As mocinhas tingiam os cabelos de loiro e usavam batom rosa lilás com contorno à la Brigitte Bardot, e os homens se encantavam com as duas polegadas a mais de Martha Rocha e vibravam com a Copa do Mundo.

Mas de tudo que aconteceu no governo JK, o que mais marcou aqueles anos dourados foi o início da construção de Brasília, por ele chamada de “a capital da esperança”. A idéia da fundação da capital do Brasil em Goiás surgiu no primeiro comício da campanha de Juscelino à presidência, quando uma pessoa perguntou a ele se cumpriria o artigo 4o. das Disposições Transitórias da Constituição brasileira que tratava da fundação da capital do Brasil no planalto Central.

Juscelino era rapidíssimo, inquieto, famoso por estar sempre agitado e foi assim que num repente, sem grandes reflexões, ou em uma reflexão rapidíssima, respondeu que sim. Plantava-se ali a semente do que seria a capital da esperança. A cidade que rompeu com a arquitetura de milhares de anos.

Juscelino era uma presença que parecia estar sempre alegre, feliz, agradável de ver e de se ouvir. Transitava com a mesma desenvoltura entre intelectuais, artistas, desportistas e o povo simples que construiu Brasília.

Chamado de presidente bossa-nova era alvo constante dos humoristas da época, e até de uma canção de Juca Chaves. Nem tudo, no entanto correu às mil maravilhas no seu governo.

Mas embora tenha enfrentado alguns problemas como a greve geral de quatrocentos trabalhadores em 1957, da inflação que cresceu muito em seu governo, ele rompeu com o FMI em 1959.

E para atestar o momento feliz que vivíamos, data de 1956, durante seu governo, o lançamento do romance considerado a maior dentre as obras literárias brasileiras: “Grande Sertão: veredas”, de outro mineiro tão ousado quanto ele: Guimarães Rosa.

Foi lamentável ver esse homem de quem as pessoas em geral só têm lembranças agradáveis, não ter podido entrar livremente na cidade que fundou. Durante a ditadura militar poucos anos antes de morrer, entrou em Brasília dentro de um caminhão, agachado, para não ser visto.

Sedutor, Juscelino despertou paixões verdadeiras e platônicas nas mocinhas de então, e é triste lembrar, nesse aniversário de 50 anos de Brasília, que o “o peixe vivo”, morreu no asfalto escaldante da via Dutra, em um acidente que ainda hoje desperta suspeitas.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.



Gil, depois do Domingo

* Por Laís de Castro

Depois de “Domingo no Parque”, segunda colocada no Festival da Record (1967), Gilberto Gil já compôs várias músicas e está preparando um novo LP. InTerValo antecipa para seus leitores algumas dessas músicas, com interpretação do autor.

“A primeira que fiz”, conta Gil, “com letra de Torquato Neto, chama-se ‘Domingou’ (uma corruptela do verbo domingar, seria). Trata-se de um domingo no Rio, mas não tem nada a ver com ‘Domingo no Parque’.

Fiz uma segunda, com letra de Capinam, bilíngüe”. Chama-se ‘Soy loco por ti América’ e tem uma estrutura musical toda latino-americana. É uma canção em português e castelhano, de todas as Américas. Ela vai ser gravada por Caetano Veloso em seu LP”.

Da terceira música, Gil fala com um carinho todo especial: “Ainda não tem nome, é uma música existencialista, feita sobre uma canção surrealista do Recife. Não se preocupe, quando sair ela será logo identificada”.

Uma outra mais, vamos ver: “chamada ‘Bem-vindo’, que fiz com Capinam e Torquato, um baião que traz uma característica de monotonia porque se repete muito”.

Gil pára um pouco para pensar e volta ao assunto falando de letras. Ele explica, então, por que tem feito músicas com letras compridas: “As coisas que têm que ser ditas, têm que ser ditas. Em uma ou dez palavras. A gente abre mão da letra curta, às vezes, para dizer o que quer”.

Gilberto deixa para o fim a música “Panis et Circenses” (pão e circo, em latim), que também irá para o próximo disco. Sua letra, entre outras coisas, diz: “eu quis cantar/ minha canção iluminada de sol/ ergui os panos sobre os mastros no ar/ soltei os tigres e os leões nos quintais/ mas as pessoas da sala de jantar/ estão ocupadas em nascer e morrer…”

A historinha por trás do texto

Em 1968, Gilberto Gil era gordinho e usava um chapéu de couro que parecia pequeno para o seu grande coco. Uma cabeça grande, bela, por dentro e por fora, fazendo maravilhas como “Soy loco por ti América” e outras. Apenas alguns anos depois ele iria aderir à comida macrobiótica que o tornou magro e, até hoje, saudável. Abriu mão de todas as gorduras…

Ele andava sempre pelos lados da TV Record. A partir de “Domingo no Parque” (segunda colocada no Festival da Record de 1967), revolucionou a MPB com a tropicália.

As revistas de TV, como a InTerValo, passaram a se interessar por ele e a publicar seu trabalho. Eu tive a alegria de sair para uma sessão de fotos com Gilberto Gil pelo centro de São Paulo e de fazer essa entrevista, pequenina (a revista era pequenina), mas que traz muitas informações nas entrelinhas…

A canção “existencialista”, identifico hoje, em 2010 é a seguinte:

BATMAKUMBA
Gilberto Gil & Caetano Veloso
1968

Batmakumbayêyê batmakumbaoba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaoba

Obs: Publicada na revista InTerValo de 14 de janeiro de 1968.

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura