domingo, 29 de julho de 2018

Creiam, Suplício tocou a face de Deus - Eduardo Murta


Creiam, Suplício tocou a face de Deus


* Por Eduardo Murta


Era dos céus que viria o sinal. Suplício cravara essa certeza logo menino, e não é ninguém mais, se não ele, aquela silhueta de admirador já maduro espreitando os aviões que ciscam a pista da Pampulha. Sabia decorado horários de chegada, de partidas, nomes de companhias e, orgulho, o tipo de aeronave só pelo barulho. Dos velhos turbo-hélices à geração dos jatos.

Ele enxergava naquela capacidade de cruzar os ares um traço indiscutível de divindade. E, mais que aproximar os homens dos pássaros, viria a crer que aquilo era capaz de direcioná-los a rotas que só Deus, o deus em que ele punha fé, habitava. Acima até mesmo das tempestades. Absoluta plenitude. Não era casual, portanto, que tratasse a Santos Dumont como a um iluminado, mais que no plano científico, espiritual.

Daí ter como natural a tese de que, procurando, ainda teria chance de encontrá-lo. Imortal, nos arredores da Paris que o consagrara. Haveria de estar por lá – fosse num castelo qualquer do século XV, numa taberna do Quartier-Latin ou nos subterrâneos dos aeroportos. E que o aguardasse, porque o pouco dinheiro em sobra ele, Suplício, vinha reservando nas dobras do colchão justamente para num ano tal fazer a viagem.

Contava nota por nota, das pequenas sempre, e não se desprendia da convicção: um dia, Paris; um dia, Santos Dumont revisitado. Chegando, falariam, claro, sobre aviões e, fundamental, sobre o rosto de Deus. Pediria confirmação quanto àqueles olhos à Frank Sinatra, os cabelos soando flutuar, os traços singelos do nariz e se sua voz de fato era terna. Mais: se fora recepcionado, era o que presumia, com um sorriso acolhedor.

Anotaria tudo na caderneta grossa, verde ("a esperança era um bem inegociável"), com sua caneta decididamente vermelha ("a História é escrita também com sangue"). E, a que não perdesse um detalhe sequer do futuro encontro, foi se preparando. Traçava e repassava ponto por ponto o roteiro de perguntas. Depois de 27 anos de anotações, observações, considerações, acha que está finalmente pronto. Confere e reconfere o dinheiro salvo em biscates de toda ordem. Acomoda à mala 007 e parte rumo ao aeroporto.

Da porta a atendente vislumbrou o tipo: fazia gênero de leitor de bula de remédio, os olhos num vaivém descontrolado, lábios trêmulos, respiração em atropelo. Suava. Vinha em direção ao guichê. Assentou a valise ao balcão e pediu: queria bilhete de primeira classe para a capital francesa. Ficaria no desejo, porque a maior parte das notas havia sucumbido com os sucessivos planos econômicos do país. Era letra morta.

Suplício viu conspiração do destino naquela recusa. Jurou que embarcaria. Rascunhou uma carta às pressas, ao próprio Santos Dumont, em caso de esbarrar numa prisão ou hospício. Pedia que não permitisse que o privassem de vê-lo. Descrevia que ele, iluminado, era feito fosse céu de brigadeiro para a conexão com Deus, luz maior. No aeroporto de Paris, quando retiraram aquele homem do compartimento de trem-de-pouso, o rosto congelado revelava uma estranha harmonia, destas de quem encontrou respostas plenas. De quem suavemente tocou a face do Criador.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

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