quarta-feira, 31 de julho de 2013

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos, quatro meses e dois dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Reflexões à margem da História.

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica “’’Vocês vão ter que me engolir!’”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, crônica “Clandestino”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “Sua melhor imagem”.

Coluna Personalidade e atitude  – Sayonara Lino, crônica, “Voz do silêncio”.

Coluna Porta Aberta – Samuel C. Costa, poema “Sou eu aldeia”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” – José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com 
Aprendizagem pelo Avesso” – Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.
  
Reflexões à margem da História

A história da humanidade, desde o início da civilização, há uns dez mil anos (ninguém sabe com exatidão qual foi o marco inicial, que pode, apenas, ser estimado e assim mesmo com enorme margem de erro) sempre se caracterizou pela emergência de algum grande império que, pela força das armas, e jamais a das idéias, submeteu os demais povos a uma incômoda, mas realística, vassalagem. Egito, Caldéia, Assíria, Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma tiveram seus períodos de predomínio, apenas para citar os mais evidentes. Talvez se pudesse incluir nesse rol os atlântidas, caso se pudesse comprovar, com provas concretas e indiscutíveis, que essa civilização de fato existiu e não foi mera lenda, como a imensa maioria crê. Não se pode, todavia.

Até muito recentemente, essa realidade histórica também ocorria, mas com dois grandes impérios, ao invés de um único, mas em tudo antagônicos: Estados Unidos e União Soviética. Ambos assumiam posição maniqueísta. Cada um deles se dizia o suprassumo do bem e, por conseqüência, impingia ao rival a personificação de todo o mal. Um era o Ocidente, o outro, o Oriente. Um era o predomínio do capital sobre o trabalho. O outro pretendia ser o reverso dessa medalha (embora fosse algo profundamente contestável). Ambos, todavia, na sua essência, tinham algo que os identificava e tornava semelhantes, a despeito da profunda diferença de métodos e de doutrinas: a paranóia contra o indivíduo, contra o ser humano isolado, desvinculado de qualquer grupo social, sistema ou ideologia.

Um demonstrava isso através da figura abstrata, mas onipresente, do Estado, em nome do qual tudo seria válido, até mesmo a irrestrita e completa anulação da individualidade, para o estabelecimento de um coletivismo utópico, indesejável e impraticável (senão injusto). Outro anulava (e ainda anula, pois sobrevive, ao contrário do seu antípoda, que “desapareceu”) o indivíduo por meio de corporações, mediante métodos a priori menos cruéis, é verdade, mas que se propunha (e se propõe) intrinsecamente a fazer prevalecer a mesma coisa do antagonista: a anulação pessoal em favor da massificação, tendo como apanágio essa figura posta como uma espécie de divindade dos tempos modernos chamada, eufemisticamente, de “mercado”.
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Para tanto, adotava (e adota) maneiras sumamente sutis, mediante “seleção natural” de pessoas, instituindo, tacitamente, algo denominado de “escala social”, ou de “pirâmide”, que teoricamente era (e é) bastante flexível e oferecia (e oferece) oportunidades iguais para todos. Oferece? Na prática... Bem, na prática, a teoria é bem outra. E o processo de exclusão da imensa maioria da população mundial, mediante a criação de rígidas e inflexíveis “castas”, em que conta o “ter” em detrimento do “ser”, se materializa através da educação (ou da falta dela). A grande verdade é que o mundo esteve, na prática, excluindo os jargões das duas ideologias, em ininterrupto conflito, até os anos derradeiros do século XX. Manteve-se sob ocupação das superpotências. Isso ficava mais evidenciado na Europa, onde tropas e mísseis nucleares de Estados Unidos e União Soviética tornavam aquele continente, repositório das mais legítimas heranças culturais da humanidade, num terreno virtualmente minado. Não posso assegurar se as coisas ainda continuam assim ou não. É provável que continuem, agora que restou uma única superpotência, hegemônica e inigualável em qualquer aspecto que se queira considerar.

Gosto de refletir a esse propósito. Durante muitos anos, minhas reflexões a respeito tinham o caráter imediatista do jornalista, atento aos fatos do dia, sem o necessário distanciamento já não digo do longo prazo, mas mesmo do médio. Hoje minha visão é a do escritor, muito mais lenta, porém segura, com margem de erro muito menor. É feita com o indispensável distanciamento no tempo e com uma soma de informações infinitamente maior do que a que estava à disposição do profissional de imprensa, quando o que ocorria “ontem” não era mais considerado no “hoje”, por ter ficado “velho”, mesmo que continuasse gerando conseqüências (e sempre continua).
  
Quando nasci, ainda não havia o que ficaria conhecido como “guerra fria”. As duas superpotências ainda estavam em processo de formação. Ambas eram aliadas na luta contra o perigo nazista, representado pelas três potências do Eixo, Alemanha, Itália e Japão, que tentavam impor sua hegemonia a poder de armas. Embora combatendo do mesmo lado, porém, ambas já mostravam diferenças inconciliáveis, que viriam a se acentuar na sequência dos acontecimentos.

Pitorescamente, a “guerra fria” teve como raiz um “acordo”: o de Yalta. E este foi obtido na reunião de cúpula realizada de 4 a 11 de fevereiro de 1945, na cidade da Criméia que deu nome ao pacto. O encontro reuniu o então presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt (já adoentado e próximo da morte, que viria a ocorrer meses depois), o (legendário) primeiro-ministro britânico, Winston Churchill e o ditador soviético Josep Stalin. Basicamente, ao cabo dessas negociações tripartites, foram fixados os limites da Europa do pós-guerra, com o estabelecimento das zonas de influência de Moscou e de Washington e seu sempre fiel (ou subserviente^) aliado.

A “guerra fria” começou porque, na prática, nenhum dos lados estava disposto a restringir sua influência, ou domínio, aos limites impostos. Findo o conflito mundial, a Alemanha derrotada foi partilhada. O mesmo ocorreu com sua capital, Berlim, que se transformou em um enclave em pleno território da parte alemã sob domínio soviético. A URSS sonhava (e agia) para que toda a cidade permanecesse na sua esfera de domínio. Chegou a impor um bloqueio, que por pouco n/ao levou as superpotências a uma “guerra quente”. A partir daí, e até o acordo de Malta, de 1989, os dois gigantes ideológicos conviveram em clima de permanente beligerância, agravado pela corrida armamentista nuclear.

Foram dezenas os incidentes que por muito pouco não redundaram em um impensável holocausto atômico que, se acontecesse, significaria a destruição do Planeta e a extinção da vida nele. O mais grave, foi o caso dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962. Mas não foi o único. Ocorreram vários e vários outros, a maioria dos quais sequer vazou para a imprensa. Quando a União Soviética se desagregou, em 1991 e deixou de existir, o mundo, finalmente, respirou aliviado.

Nos dias que correm, os analistas e intelectuais, salvo exceções, contudo, continuam condicionados a raciocinar por esse modelo maniqueísta antigo, do tempo da guerra fria. Isso funciona na base do “quem não está comigo, está contra mim”. Quem não é capitalista, é comunista (ou radical islâmico, como se tornou moda rotular os antagonistas, ou algo que o valha) e vice-versa. Não admitem “tertius”. Convenhamos, é incrível falta de imaginação desse ser contraditório, que conseguiu tantos e tão magníficos saltos tecnológicos, que já possui condições de deixar o seu domo cósmico para explorar o espaço exterior, mas que ainda não aprendeu, passados dez milênios de civilização, os princípios mais elementares de uma convivência pacífica e, portanto pródiga de fraternidade, e com o respeito às diferenças mútuas.

Dois milênios depois de Cristo, o império contemporâneo remanescente, os Estados Unidos, pauta sua conduta pelos mesmos princípios da última potência do passado, Roma, através da adoção de um similar da “pax romana”, a paz dos cemitérios. Assumiu o papel, que ninguém ousa contestar (por razões óbvias) de “gendarme do mundo”, mas levando em conta não os interesses da humanidade, mas apenas os próprios. Onde isso vai dar? Qual o papel da nova superpotência emergente, ainda mal saída do casulo, no caso a China, nesse novo quadro estratégico mundial? Só o tempo poderá dizer (ou não).  Agora existem as armas atômicas. E se, por suprema desgraça, vierem a ser usadas, num momento de extremo desvario, seja qual for a razão, certamente transformarão este planeta, azul e brilhante, nosso domo cósmico, na eterna sepultura de mais de 7 bilhões de insensatos, que nunca aprenderam a se entender.

Boa leitura.

O Editor.


Acompanhe o editor pelo twitter: @bondaczuk
“Vocês vão ter que me engolir!”

* Por Mara Narciso

O Brasil suou para vencer a Bolívia na Copa América por 3 a 1 em 29 de junho de 1997. Mário Jorge Lobo Zagallo, técnico de Seleção Brasileira fez aquele desabafo histórico. Tempos depois relembrou o recado que enviou para calar a desconfiança da torcida: “Eu botei para fora tudo aquilo que estava dentro da minha alma”. Alagoano de Maceió, nascido em 9 de agosto de 1931, o Velho Lobo deu outra dimensão ao verbo engolir. Por agora, nos embalos da vitória do Atlético Mineiro, Campeão 2013 da Taça Libertadores da América, relembrar Zagallo e sua garra faz parte do jogo.

Engolir é passar da boca ao estômago, sendo o mesmo que deglutir. Não é preciso dissecar uma garganta para entender que alimentos e situações podem ficar travados pelo caminho, sem chegar ao seu destino. O sistema anatômico pode estar perfeito, a largura e a motilidade podem não apresentar avarias, e, no entanto, a pessoa apresenta disfagia, o nome técnico para dificuldade de engolir. As causas podem ser múltiplas. É um pai castrador e autoritário, é um marido crítico e insatisfeito, é um chefe que vive irritado, é um filho que só dá dissabor, é uma injustiça da qual se foi vítima, ou algo misterioso e impalpável que está quase mostrando sua cara.

Pode-se ser vulnerável às próprias inseguranças, ficando-se à mercê das somatizações, que são situações psíquicas que se transformam em sintomas físicos, os caminhos que o frágil corpo encontra como saída. Os mistérios da mente transformam um órgão em perfeito estado anatômico em anárquico objeto disfuncional. Trava, aperta, embola, dói, não funciona. Se não são pessoas para serem engolidas – força de expressão -, são situações limite em que “só sinto no ar o momento/ em que o copo está cheio/ e não dá mais pra engolir/” (Grito de Alerta, Gonzaguinha). São aquelas vivências que explodem num momento relativamente pacífico, pois já viram esgotadas todas as tentativas de paz.

Antigamente, um mal conhecido pela alcunha de “bolo histérico”, (histerus - útero) era comum em mocinhas que se queixavam de um bolo na garganta que as impedia de comer. Noutras, a situação atingia um grau mais grave, e de bolo que barra o alimento, passava a vômito. Diante de uma situação obstrutiva, de ordem psíquica, vem a urgência de fuga para impedir um vexame público. Podia até emagrecer, e tal situação era difícil de ser compreendida e tratada.

A mente humana são vários mistérios, e coisas da emoção se manifestam fisicamente. Para afirmar tal diagnóstico – o sintoma tem fundo psicológico -, é preciso afastar causas orgânicas através de exames complementares. Há também os casos em que se sofre num silêncio dissimulado e sem protesto. Esse tipo de comportamento abortado causa tumores e úlceras, naquelas pessoas em que a força do algoz impossibilita qualquer reação. Sequestros e cárceres privados vindos a público recentemente provam como não são incomuns esses casos de opressão extrema.

Segundo o dicionário, engolir é sorver, tragar, consumir. Essa é a parte boa, é o comer por prazer. O alimento é transformado em nutriente, em força, em energia e bem estar. É o verbo conjugado várias vezes ao dia por toda a vida. É o alimentar-se para se nutrir. Ocorre para sempre ou quase, pois há patologias que podem impedir a alimentação pela vias naturais. Tem aqui adiante um sentido diferente para engolir: subverter, revolucionar. Seria numa guerra? Um país engole o outro, ou um adversário neutraliza e absorve o oponente? E ainda mais outro: transpor, ultrapassar num percurso. Está bem, nossa língua é rica em palavras e em sentidos diversos para as mesmas, mas a nossa mente amplia ainda mais esta lista. No sentido contrário há os insatisfeitos que se manifestam comendo sem parar, inclusive acordando de madrugada para ingerir alimentos.

Quem vomita diante de uma situação adversa, se envergonha da fraqueza de não conseguir enfrentar tal momento com serenidade. O seu oposto, o comer compulsivo, também constrange quem sofre desse mal. Os excessos em seus limites pedem discrição. De um modo ou de outro, as insatisfações estão muito ligadas ao ato de comer ou de não comer, de engolir ou de engasgar. O aparelho digestivo é um constante órgão de choque. É preciso consertar as mentes para não sofrer desses males.

Assim, ingerir alimentos e situações sugere saúde e força, ainda que, em casos extremos, precisem ser impostos aos gritos por heróis encurralados

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


Clandestino

* Por Marco Albertim

Com o frio da manhã na medula, pouco se importou que a lembrança do que deixara para trás desse conta de prejuízo na alma. A suspeita de que a demanda de afeto, inda que surda, logo seria um cavouco nas entranhas, juntou-se ao balanço de perdas e danos.

A estação de estrada-de-ferro, na cerração cinzenta da manhã, absorvia com sofreguidão lenta a vigilância sonolenta do guarda ferroviário, os olhos mortos do camponês de chapéu de feltro e capa do mesmo tecido, o sono mudo do menino com a cabeça no colo da mãe, deitado no banco de madeira; ambos envoltos numa chita mouriscada com dobras de cima a baixo, tão ao gosto dos vãos no respaldo e no assent o do banco. Absorvia o frio na medula do operário Granadino dos Montes, seus urdumes, o balanço de perdas no juízo sereno; absorvia sem incômodo.

O trem parou. Antes que do cano de escape fosse expelida a derradeira golfada de fumaça na estação, uma vintena de homens e mulheres ocupara a plataforma de cimento estropiado na margem da ferrovia. O acesso aos vagões se deu sem atropelos, sob a espreita, àquela altura, apurada do guarda com calça, paletó e quepe cor cinza. O camponês, o menino e a mãe, despertos pelo motor chiante do trem, foram os primeiros a subir no primeiro vagão do comboio. Granadino dos Montes, atrás deles, seguiu-lhes do mesmo modo de andar sem cobiça dos pobres.

Os óculos, ele os pusera no rosto macilento com vincos de quem se habituara a pensar em problemas, revolvendo-os da superfície às entranhas; óculos com aros de metal reluzente comprimindo duas lentes finas, transparentes, próprias de quem as usa para leituras a pouca distância. O guarda, também com óculos semelhantes, mas com rosto corado feito uma romã; a saliência das bochechas, logo abaixo dos olhos, compunha-se feito anteparos à armação dos óculos. Ele espreitou pelas lentes mais grossas que as de Granadino dos Montes, os óculos do operário. As roupas de Granadino, de brim ordinário como a dos outros passageiros, acentuavam-lhe o talhe de operário; já os óculos...

Granadino dos Montes sentou-se ao lado da janela. A observação do casario pobre, o desengonço das telhas, as ruas sem calçamento da Vila do Vintém ao lado da ferrovia, sucederia sem lesão o sorvo terapêutico da estação do trem. Teria que olhar sem dar conta de incômodo nos olhos. A armação dos óculos, retangulares, por certo teria o efeito de um objeto estranho em seu rosto redondo. Acomodara-os no rosto, com a preocupação de ter nos olhos a mansidão comum a quem se acostumara a ver sem sinais de espanto, de surpresa.
- Não sei quando vou devolver os óculos a você, porque não sei quando vou voltar. Também não sei para onde vou. Só quando me derem a passagem saberei para onde estou indo. Por segurança...

A peroração, a última a um parente próximo, estendera-a mais do que o preciso, mas convencera-se de que se referir a um futuro vago, denso, era o discurso mais adequado à opção de vida a que fora forçado. O parente quisera dar-lhe algum dinheiro, recusara-o para infundir confiança de que sua volta, inda que incerta, seria certa.

De seu lado, na mesma poltrona, sentou-se o camponês de capote de feltro. Em sua frente, a mulher e o filho com vestimentas de chita. O camponês tinha uma mala quadrada, de papelão revestido de plástico. A mulher, uma sacola cheia de roupas nos fundos, fechada na abertura por um laço num cordão grosso. Granadino dos Montes trouxera o macacão de trabalho na sacola com alças em arco; sacola de tamanho médio, com duas camisas e uma calça a mais, cuecas, uma toalha, escova e pasta de dentes.

No corredor, em pé, o guarda ferroviário, conferindo o bilhete de cada passageiro, deteve-se em frente ao acesso às poltronas de Granadino, da mulher e do camponês. Sopesou nos dedos sanguíneos os bilhetes do camponês, da mulher e da criança. O do operário, olhou-o para cumprir o rito, sem perder de vista os aros brilhosos dos óculos no rosto de Granadino dos Montes.
- Há muito tempo que usa óculos?

Granadino, enquanto o guarda segurava o bilhete, voltara a se distrair com a paisagem da janela. A Vila do Vintém ficara para trás. O canavial, feito um tapete ondulante no sopro do vento, sussurrava permissivo à inquirição no juízo do guarda.
- Sim.

A curta resposta do operário fez crescer as suspeitas do guarda ferroviário. Na estação de trem de Maceió, ele foi intimado a mostrar os documentos a homens sem farda, sob o olhar pomposo de triunfo do guarda.

Quarenta anos depois, uma multidão se comprime na Praça do Derby. Granadino dos Montes tem no rosto óculos com armação de acetato. Chove; ele não sente os pingos nos ombros arqueados. Olha para a grama da mesma cor do canavial que respondera com sussurros às perguntas do guarda ferroviário.
- Granadino! Segure essa bandeira!Vai começar a marcha.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.


Sua melhor imagem

* Por Fernando Yanmar Narciso

Todos têm aquele lado sombrio, que nos humaniza e impede que sejamos iguais uns aos outros. Geralmente não gostamos quando essa porção de nosso caráter vem a furo. Você não pode falar assim, tem criança olhando! Que tipo de exemplo pretende dar a elas com um espírito de porco desses? Vista a máscara da falsidade e continue posando de bom moço, é mais seguro e te mantém empregado.

O ilustre sucupirano Nezinho do Jegue, criado pelo imortal Dias Gomes, possuía um estranho caso de múltipla personalidade. Geralmente, era o maior cabo eleitoral do histórico político Odorico Paraguaçu, e não perdia uma chance de passar mel no coronel da pacata Sucupira. Porém, bastava mandar pro bucho um copo de cana e o fenômeno Dr. Jekyll/ Mr. Hyde vinha à tona. Virava um ferino combatente dos desmandos do prefeito, mandando um MORRA, ODORICO em qualquer oportunidade. E, quando ficava sóbrio de novo, voltava a ser o baba-ovo extra-oficial do futuro inquilino do cemitério de Sucupira.

Na versão recente de O Bem Amado, em filme, Nezinho infelizmente foi descartado e substituído por Moleza, o sósia de Sérgio Mallandro, cachaceiro e zelador do cemitério. Porém, mais plausivelmente, nessa versão o lado puxa-saco do personagem aparecia quando ele enchia a cara, e no resto do tempo ele era uma “grande ameaça” ao reinado de Odorico. Eles tinham problema mental ou era pura hipocrisia mesmo? Difícil de saber, num vilarejo onde ninguém era o que aparentava.

Há muitas décadas, num tempo longínquo em que o Domingão do Faustão era digerível e as pessoas sequer desconfiavam das armações, eles fizeram uma pegadinha inesquecível. Um repórter abordava um“desavisado” transeunte e lhe perguntava sobre um tema, na época, polêmico, como homossexualidade, mulher de idade com caras mais novos e tal. Enquanto a pessoa respondia, no outro lado da rua dois atores personificavam o tema da maneira mais caricata e exagerada possível. O objetivo da pegadinha era ver se a reação do entrevistado diante da cena condizia com suas palavras. Nem é preciso dizer que ninguém passou nos testes... Hoje há no ar diversas imitações e ramificações dessa idéia, inclusive uma em que o repórter do CQC deixou o filho de Renan Calheiros com o oritimbó na mão ao lançar uma indireta contra o pai dele, mas o original é sempre o melhor.

O assunto da semana que passou foi a visita do porta-voz de Deus na Terra, Papa Chiquito. Pela primeira vez os brasileiros conseguiram cair de amores por um argentino. Piadas à parte, ele parece ser tudo o que seu antecessor, Vossa Emérita Santidade Bento XVI, não conseguia ser: humilde, bom ouvinte e simpático. Aquele sorriso medonho e levemente cínico de Ratzinger foi varrido pra debaixo do santo tapete e substituído por um constante, caloroso e aparentemente sincero exibir de pérolas da parte de Don Jorgito.

Não sei de vocês, mas desde que vi a primeira capa da Veja com o rosto do novo papa, não consigo deixar de imaginá-lo usando o capuz do Batman. Ele pode até se mostrar mais amistoso que seu antecessor, mas depois de uma semana comendo feijoada e conhecendo clássicos de nosso folclore como a Dança da Garrafa e Plaque de 100, seu farto e puro sorriso passou a apresentar ares de desconforto e malevolência, como um jacaré tentando esconder as presas. Após tão longas e entusiasmadas apresentações, será que Papa Chiquito está a ponto de mostrar ao mundo sua verdadeira personalidade?

Claro que Frankie estava ciente que o ambiente no país esteve barra- pesada no mês passado, com os jovens saindo às ruas para protestar contra o status quo governamental, Dilma, seus asseclas e adversários políticos. Mesmo que eles soubessem que Chiquito não tinha vindo passar a mão na cabeça de ninguém, não podiam perder a chance de ser fotografados apertando a mão dele. Um festival de cumprimentos e sorrisos amarelos de ambas as partes, especialmente da presidente, que bancava a boa anfitriã e sorria quase tanto como ele, apesar de já ter atacado diversas vezes a Igreja Católica e estar a ponto de aprovar uma lei permitindo o aborto apenas em casos de vítima de estupro.

Parece que, já que não há solução nem pra política nem pro povo brasileiro, pelo menos a gente tem se garantido quanto à realização de eventos megalomaníacos. Podiam inclusive nos dar ordem de evacuação da área e transformar o país num imenso galpão de festas. Toda essa Jornada Mundial da Juventude, que ao seu final colocou 3.000.000 de fieis na praia de Copacabana- com um único banheirinho químico pra todo mundo... - não deixa de ser uma ode à hipocrisia. Don Jorgito, sendo o jesuíta e seguidor de São Francisco de Assis que diz ser, sequer devia ter concordado em descer do avião se soubesse o quão distante dos ensinamentos de seu ídolo essa festa seria.

Para ele, só um tamborete de pau na beira do mar e um megafone deviam bastar para pregar as palavras de Nosso Senhor. Na verdade, se ele fosse mesmo discípulo de São Francisco, teria vendido suas vestes- que, apesar de simples e menos carnavalescas que as de Bento XVI, não deixam de custar centenas de milhares de euros- e dado o dinheiro aos pobres. Mas nem vimos o Santo Padre dar uma mísera moedinha de 5 centavos pros mendigos, só sorriso e sermão.

Incoerência, a gente se liga em você!



Voz do silêncio

* Por Sayonara Lino

(Para Lorena)

Se você já conhece o poder do silêncio, considere-se privilegiado. Seu apelo é sutil, portanto é preciso sensibilidade, maturidade, paciência e disposição para se render a ele. É preciso ser capaz dele. Ao contrário do que possa parecer, em sua companhia descortinam-se inúmeras possibilidades, lampejos criativos e uma sensação de segurança e bem-estar. Ele nos resgata, nos traz de volta a nós mesmos e melhora nossa percepção em relação aos fatores externos. Aumenta nossa atenção. É assim que o vejo, o percebo. Uma comunhão bem sucedida entre as partes que compõem o todo.

Quantas pessoas fogem dele... não o suportam como companhia. É ele também quem nos leva ao encontro das misérias ocultas, varridas ao longo dos anos para as áreas mais profundas que possuímos. Nos faz refletir, raciocinar, reelaborar. Mas não se trata apenas disso. O silêncio, tantas vezes temido e evitado das formas mais variadas, pode conduzir a paisagens antes pouco exploradas. Leva ao amor, compaixão, leveza, bondade.

A vida moderna, o mundo agitado, a aldeia global, todos querendo falar. E o silêncio lá, quieto e presente, muitas vezes em vão convidando com sua doce voz. Ávidos por prazer imediato, é comum e certamente mais fácil a busca frenética por coisas que estão fora de nós. Os estímulos estão aí, por toda parte e não exigem muito esforço , menos ainda tempo e dedicação.

Perceba o silêncio. Ouça o silêncio. Incoerência? Não, o silêncio nos fala. Sussurra em meio à balbúrdia que insiste em deixá-lo de lado. Permita-se, deixe-o entrar. Ele te acompanhará em momentos felizes, sim. Porém, nas tristezas e curvas da vida, onde tantos outros poderão te abandonar, eu garanto, ele estará ao seu lado.


* Jornalista, fotógrafa e colunista do Literário
Sou eu aldeia

* Por Samuel C. Costa

Para Ana Paula Kalantã

Foram mil passos que dei.
Passos perdidos na floresta.
Foram mil vozes que escutei!
A gritar o teu nome
Em vão...
Foste embora
E não voltas mais

***

Sou eu floresta
Sou eu árvore
Sou eu aldeia
Sou eu índio
Sou eu grão de areia

***

Estou derrotado:
Massacrado!
Desterrado!
Desiludido!

***

Sou eu cego e perdido,
Em mim mesmo.
Pois não sei quem sou

***

Sou eu a escutar mil vozes...
Que sussurram o seu nome.
Em vão...
Pois partiste, não estás mais aqui
Estás perdida em mim
Em algum lugar
Que eu não sei bem onde

***

Sou eu plateia
Sou eu artista
Sou eu tablado
Sou eu palco
Sou eu massificado
Sou eu nas ruas
Sou eu perdido na floresta

* Poeta  em Itajaí/SC 


terça-feira, 30 de julho de 2013

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos, quatro meses e um dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – A arte de cativar

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica, “Pausa para subir”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica “Crenças e Confúcio”.

Coluna Do Real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto “Laura”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, artigo “Um novo modelo de medicinal”.

Coluna Porta Aberta – Emir Sader, artigo “Os intelectuais e a esfera pública”..


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso”Pedro J. BondaczukContato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


  
A arte de cativar

Há pessoas que têm o dom natural, uma característica ímpar, que classifico de arte: a de nos cativar. Mesmo que tenhamos com elas um único encontro, este se torna marcante e inesquecível. Passam-se anos, décadas até, e nos lembramos de cada detalhe dessa conversa isolada e solitária. Por que isso acontece? Nunca consegui entender e nem explicar. Mas acontece. Tive inúmeras experiências do tipo, em que fui cativado por pessoas especiais, inteligentes, amáveis e prestativas, mas, principalmente carismáticas. Sinto-me privilegiado pela oportunidade de viver essas experiências que, sempre que surgem oportunidades, faço questão de partilhar com os que me honram com sua leitura.

Uma dessas pessoas cativantes, com a qual mantive um único, porém marcante, encontro, e que tenho satisfação particular de citar sempre que aparece pretexto para isso, é o escritor e jornalista mineiro, Fernando Sabino. Escrevi, recentemente, a respeito, neste mesmo espaço, e deixei, na ocasião, muita coisa no ar, a propósito do nosso (felizmente para mim) longo diálogo, em decorrência da limitação de espaço. Foi uma conversa que deveria ter durado, no máximo, meia hora, tempo suficiente para fazer uma boa entrevista (que era o objetivo daquele contato), mas que se estendeu, sem exagero, por cinco horas, comprometendo nossas respectivas agendas. Não me importei nem um pouco em ter que adiar compromissos inadiáveis. Pareceu-me que Sabino também não se importou. Pelo menos, presumo que não. Foi a impressão que ele me passou.

Para quem não leu meu texto anterior, informo que o escritor havia vindo a Campinas (e isso ocorreu em 1983) para lançar, em uma livraria da cidade, seu então novo livro de crônicas, “O gato sou eu”. Para tanto, precisava divulgar a noite de autógrafos, agendada para o dia seguinte. Daí ter ido à redação do Correio Popular, ainda sediada no prédio antigo – hoje demolido e substituído pelo de uma concessionária de carros – da Avenida Norte-Sul, para ser entrevistado.

Na oportunidade, eu não trabalhava na editoria de Arte e Cultura. Minha função era outra, bem diversa dessa. Aliás, nem repórter eu era, mas sim editor de Política Internacional. Todavia, dada certa fama que então eu já gozava entre meus colegas de trabalho, a de escritor (embora na ocasião não tivesse ainda publicado nenhum livro), fui convidado pelo editor da área (o notável jornalista e professor de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Celso Bodstein), a fazer a entrevista e a redigir o respectivo texto. Claro que aceitei, sem vacilar. Afinal, não é todo dia que se tem a oportunidade de entrevistar um dos figurões do mundo literário.

Fernando Sabino mostrou-se sumamente solícito e receptivo. Não fugiu de nenhuma pergunta, mesmo as mais indiscretas (indelicadas?) e impertinentes. Respondeu a todas, com clareza, inteligência e bom humor. Aliás, ele perguntou-me mais coisas sobre minhas preferências literárias e minhas atividades do que eu a ele. Parecia que ele é que estava me entrevistando e não o contrário. Não tardou para que o assunto se desviasse do foco original, do lançamento do seu livro e a entrevista se transformasse em conversa amigável de pessoas que passaram a se gostar (e de cara, logo no primeiro encontro). Falamos praticamente de tudo: de política, de economia, viagens, futebol, outros esportes etc.etc.etc. E, claro, de Literatura.

Foi só então que fiquei sabendo que Sabino, na juventude, havia sido festejado esportista. Mais do que isso, foi campeão de natação, havendo conquistado até um título sul-americano de nado de costas (sua especialidade), estabelecendo recorde continental da modalidade. E isso em 1939, quando o esporte amador no Brasil não contava com o mínimo apoio oficial e quando o País raramente conseguia qualquer êxito (nem mesmo no futebol) em âmbito internacional. Lembrei-me que no romance “Encontro marcado”, o personagem central era um nadador de renome. Perguntei-lhe se ele foi baseado em sua experiência pessoal (embora hoje essa pergunta me pareça óbvia demais, ridícula, pueril e não compatível com um jornalista que pretendia ser inteligente e original) e ele confirmou que sim.

Fernando Sabino aproveitou sua experiência de esportista também no jornalismo. Foi incumbido, pelo Jornal do Brasil, de fazer a cobertura da Copa do Mundo de 1966, disputada na Inglaterra (conquistada pelos ingleses), aquela em que a Seleção Brasileira deu enorme vexame, sendo eliminada ainda na primeira fase, justo ela que ostentava um bicampeonato e era a favorita para a conquistas do tri. E com Pelé e tudo. A respeito disso, não lhe perguntei (felizmente) nada, pois acompanhei, na oportunidade, seu trabalho, meticuloso e perfeito, que se tornou mais meritório ainda se levarmos em conta, principalmente, os escassos recursos com que os jornalistas tinham que trabalhar.

Fechando os olhos posso ver, ainda hoje, como que num filme, cada detalhe daquele nosso encontro: o local em que ele se deu, a roupa que ambos trajávamos, as respostas de Sabino, seu sorriso, seu olhar, as piadas que contou, os vários casos que relatou e vai por aí afora.

Ao nos despedirmos, com promessas mútuas de novas conversas (que nunca aconteceram infelizmente), meu interlocutor insistiu num ponto, que havia repetido muitas vezes ao longo do nosso diálogo: no pedido para prefaciar meu primeiro livro, tão logo estivesse pronto para publicação. Claro que lhe prometi isso sem pestanejar.

Contudo... não foi possível cumprir a promessa. Por que? Porque quando minha obra de estréia ficou pronta para ser publicada, Fernando Sabino já não estava mais no mundo dos vivos. Ficara “encantado” (como Guimarães Rosa costumava se referir à morte de escritores). Mas permanece vivo, vivíssimo, com seu modo cativante e sua maneira bem-humorada de encarar a vida, de contar casos engraçados ou de comentar os acontecimentos do dia a dia. Para mim, será sempre, enquanto eu viver, imortal, por exercer com maestria a rara arte de cativar.

Boa leitura.

O Editor.         


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Pausa para subir

* Por Evelyne Furtado

Olhos no mar, pernas desgovernadas e coração na boca. Lembro da liberdade e da euforia que me acompanhavam morro abaixo na praia de minha infância.

Era a melhor hora do dia. Ao pé da duna a queda era previsível e a areia que me cobria o corpo inteiro ia embora nos mergulhos quase infindáveis que terminavam com o chamado insistente de minha mãe.

Haja esforço para subir o monte de areia escaldante, mas fazia parte da farra e eu chegava em casa com o apetite dobrado. Depois do banho para tirar o sal, desfrutava almoço e sobremesa sem contar calorias.

Hoje o morro do qual falo virou hotel onde a recepção é no andar de cima. Apartamentos, auditórios e área de lazer localizam-se nos pisos inferiores.

O mar continua no mesmo lugar, mas de certa forma aquela construção bonita dá-me a impressão de ver o mundo de cabeça para baixo.

O progresso mudou tudo por lá. O tempo agiu em mim. Todos os dias crescem degraus na minha praia e na minha vida.

Alguns, alcanço com o fôlego da menina de antes, outros me parecem íngremes demais para subir e ainda há aqueles não me inspiram segurança.

É preciso avançar. Daqui a pouco estarei um degrau acima, mas quero uma pausa aqui onde estou. Tomarei uma água de coco enquanto esqueço meus olhos no mar.


* Poetisa e cronista de Natal/RN
Crenças e Confúcio
 
* Por José Calvino


Nessas prévias carnavalescas, as ruas foram decoradas para o período de Momo (que já não é mais três dias). Numa roda de alguns religiosos estavam comentando sobre Jesus Cristo e todos foram unânimes em afirmar, exceto um teólogo que se encontrava presente, que Jesus Cristo seria a única salvação do mundo. Para admiração geral, o teólogo perguntou se já ouviram falar de Confúcio. Um deles respondeu que era o diabo, Satanás!

Ora, o nosso povo, a maioria, não tem o hábito de ler, e o teólogo explicou que antes de Cristo existia na China um filósofo Kung Futsé (Confúcio), que pregava a benevolência, o amor, a harmonia e a paz mundial. Era mais um sistema ético do que uma religião a favor dos fracos e oprimidos, fazendo com que o povo chinês denunciasse as injustiças sociais. O confucionismo influenciou profundamente a consciência e a educação dos chineses. Confúcio escreveu uma série de reformas responsabilizando mutuamente e moralmente a sinceridade dos governantes e governados... (Cristo nunca escreveu, nada, nada mesmo! Só fazia pregar! Segundo os pesquisadores o problema é que todos os evangelhos, canônicos ou não, foram escritos bem depois da morte de Jesus).

O confucionismo na década de 70, entretanto, foi combatido pelos líderes da Revolução Cultural, que achavam uma ideologia conservadora, contrária ao comunismo chinês. Todos ficaram atônitos com as palavras do teólogo e mais ainda quando de repente chega um grupo de evangélicos distribuindo panfletos impressos: “Vida Nova. Nosso Senhor Jesus Cristo o Salvador” , estampado o céu com uma nuvem branca. Não quero de maneira alguma insinuar aos nossos religiosos que o os ensinamentos de Confúcio são a nossa salvação. Apenas quero registrar nesta Coluna Literária que existiu antes de Cristo esse homem desconhecido para a maioria dos brasileiros, como também existiram depois de Cristo os reformadores Lutero e Calvino, que se separaram da Igreja Católica no século 16. E aqui relembro muito bem que na época de minha infância (anos 50) os católicos chamavam os protestantes de Nova Seita e crentes. Hoje são reconhecidos como evangélicos.

*Escritor, poeta e teatrólogo. Blog Fiteiro Cultural – HTTP://josecalvino.blogspot.com/


Laura

* Por Eduardo Oliveira Freire

Olha através do espelho a tatuagem, um nebuloso labirinto de galhos e raízes em suas costas.

Lembrou-se que estava no metrô e não pensava nada importante, quando um homem apareceu de repente e lhe disse: - Faz tempo que a procuro.-. Laura não teve medo e começaram a conversar. Ele parecia ser tão culto, sentia-se envergonhada de não conseguir acompanhar a sabedoria dele.

Caminhavam pela cidade através dos olhos dele. Laura tinha a impressão que visitava outra cidade e não a que sempre vivera.

Em fração de segundos, tudo ficou em silêncio e o homem misterioso a beijou. Ela viajou para outros mundos de que nunca tivera conhecimento. A tatuagem, através dos lábios dele, adentrava no corpo de Laura.

Percebeu-se outra vez no metrô. Estava cansada, como se retornasse de uma longa jornada...

***
O homem misterioso caminhava feliz pela rua. Sentia o prazer de estar vazio.

 Com o passar do tempo, ficou cansado de tanto saber.

* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, com Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor


Um novo modelo de medicina

* Por Elaine Tavares

Ontem passei algumas horas dentro do HU, o Hospital Universitário da UFSC. Desde bem cedinho já se pode ver muita gente por ali. Nas primeiras horas começam a chegar as ambulâncias do interior do estado. É gente demais. Descem com os olhos aflitos, semblante perdido. Estão muito longe de casa, doentes, frágeis, sozinhos. Tudo o que querem é chegar e serem atendidos por alguém que lhes segure a mão e diga que as coisas vão ficar bem. Mas, nem sempre é assim. Seguem-se horas e horas de espera nos corredores lotados de outros seres como eles: perdidos, sozinhos, frágeis na dor.

Cada corredor de cada especialidade é um mundo. Ali se acotovelam vidas, sofrimentos, angústias. Afinal, estar doente é estar submetido a nossa condição mortal, é ficar cara-a-cara com a ceifadora. Daí esse medo que nos toma. Na sala de espera do raio-x algumas pessoas choram. Devem sentir muita dor. Por um átimo, os olhos se encontram e tudo o que se percebe é um atormentado pedido de ajuda, sem eco. Não há nada a fazer. Há que esperar. Nos salas de quimioterapia, os que esperam evitam olhar nos olhos como se tivessem vergonha de estarem doentes. Ficam ali, fixados no nada, ruminando uma profunda solidão.

A visão dos corredores do HU não é diferente de outros tantos hospitais públicos pelo Brasil afora. Gente demais, buscando algum alívio para essa dor de estar doente. No mais das vezes, não encontrando. Mas, a lotação dos hospitais decorre muito mais por conta do modelo de cuidado com a saúde que nossa sociedade escolheu. Não se faz prevenção de doenças. A política é tratar o que já se instalou, e de preferência com remédios bem caros para que as “pobres” empresas farmacêuticas possam lucrar muito. O modelo brasileiro de um Sistema Unificado de Saúde é muito bom, mas acaba entravando nessa lógica que muito mais serve às empresas da morte do que ao ser que precisa de ajuda.

Para começo de conversa a melhor prevenção de doenças é uma vida saudável. Só que para isso a pessoa precisa ter condições de tê-la. Alimentação adequada, higiene, moradia digna, sossego emocional. Num país dependente, onde as diferenças econômicas são abissais, como conseguir isso? Como pode uma pessoa que vive num lugar insalubre, sem comida, sem abrigo, colocada cotidianamente diante da violência, da miséria, da dor, pode prevenir enfermidades? A coisa deveria começar por aí. Mudar o modelo da organização da vida, destruir o sistema capitalista que exige a morte de um para que o outro viva. Uma pessoa que vive em condições dignas de vida tem menos chance de adoecer.

De qualquer sorte, mesmo com todo o cuidado e prevenção, e ainda que fôssemos um país soberano, com outra forma de organizar a vida, haveriam de existir doenças e doentes. E aí, o que fazer? Uma solução encontrada por países como Cuba é o cuidado da pessoa na sua totalidade. Através dos médicos de família, cada pessoa é monitorada e acompanhada nas suas enfermidades, de maneira sistemática. O médico visita a pessoa, sabe seu nome, conhece seus problemas e, com base da história completa de cada um, consegue dar soluções para os problemas de saúde que aparecem. Remédios, só quando realmente necessário. Não há uma política medicamentosa do cuidado com a vida. A saúde é vista como condição básica de ser no mundo.

Para qualquer um que já tenha precisado de atendimento médico em um hospital no Brasil, fica claro que há uma diferença gigantesca no modelo de medicina. O mesmo acontece nos Postos de Saúde. O modelo é o de atendimento por ficha. O médico, mesmo contratado para ficar no posto por quatro horas, atende apenas um número x de fichas. O que significa que se uma pessoa chegar depois da última ficha, não será atendida, mesmo que o horário do médico ainda não tenha terminado. Essa lógica da ficha obriga a pessoa doente, além de ter de se enfrentar com toda a angústia de estar enferma, a chegar aos postos na madrugada para garantir a tão esperada ficha. Pessoas há que dormem no relento da noite para garantir a senha do atendimento. É um paradoxo. O doente, que deveria ser cuidado, amparado, acolhido, precisa enfrentar toda essa outra carga de dor, para além da doença. Tudo isso torna o atendimento nos Postos de Saúde uma farsa. Ali, só são possíveis os agendamento de rotina, o trabalho de acompanhamento de doenças crônicas. Se o vivente estiver mesmo doente, a única saída é o hospital.

Mesmo os médicos mais experientes afirmam que essa foi a forma que os pobres encontraram de furar o bloqueio da falta de atendimento. Como o Posto de saúde funciona por ficha, e no geral são poucas, uma ou duas vezes na semana, as pessoas preferem buscar diretamente o hospital. Mesmo que demore. Pelo menos lá o atendimento pode ser possível. Daí o inchaço dos hospitais, recebendo desde casos gravíssimos até pessoas com gripe. A hospitalização acaba sendo uma espécie de técnica de sobrevivência dos empobrecidos, ainda que isso acabe gerando toda a superlotação que pode, inclusive, fazer com que alguém que realmente precise do atendimento de urgência fique sem ele. É uma roleta russa Um jogo de sorte.

Mesmo a classe média, que pode pagar por planos de saúde, já está percebendo que os modelos de mercadologização da saúde avançam para o caos. Marcar uma consulta com um especialista através do plano de saúde pode demorar dois meses ou mais, tal qual no SUS. E o atendimento de emergência nas clínicas dos planos não se diferencia muito do que é dado nos postos de saúde, consultas de menos de cinco minutos e uma receita gigante de remédios caros. Não poderia ser diferente, o médico que atende no plano é também o que atende no posto. Ele tem aprendido assim na escola. É um modelo de ensino da medicina. Cada vez menos a atenção com a pessoa, cada vez mais atenção nos exames. N. T. (54 anos) conta que foi ao médico por estar com sintomas de pressão alta. Era nova na cidade, não conhecia ninguém. Marcou consulta numa clínica particular. O médico recebeu, perguntou o que ela sentia, ela respondeu. A conversa não durou dois minutos e ele já começou a preencher a receita. “O senhor não vai me examinar?”, perguntou, perplexa. Ele largou a caneta, olhou para ela pela primeira vez e perguntou: “A senhora quer que lhe toque?” A mulher saiu dali horrorizada, chorando, sem chão. Seguiu mais doente do que entrara. Médico particular, 250 reais.

Agora, vivemos no Brasil um momento de “levante” por parte de alguns médicos. Não aceitam a proposta do governo de obrigar os estudantes de medicina a passarem dois anos em atendimento nos Postos do SUS. Isso não é surpreendente. Nem a solução dada pelo governo, nem a reação dos profissionais da medicina. Qualquer das duas não resolve de imediato a situação daqueles que sofrem o sistema. A medida governamental é pirotécnica. Não é obrigando os alunos a se defrontarem com a pobreza que os fará melhores médicos. Alguns até poderão mudar sua forma de pensar, mas, esses, que o fazem, certamente o fariam em algum momento da vida. Estão sensibilizados para isso. Já os que estão contra a medida não poderiam atuar de forma diferente. Foram ensinados a ver a doença, não o ser humano. A esses tanto se lhes dá se o que está à frente é pobre ou rico. Eles veem papéis, números, exames, e estão treinados para receitarem as novidades da indústria farmacêutica. Talvez até acreditem mesmo que o que precisa é mais material, mais máquinas de exames e coisas assim.

A solução para toda essa pendenga tem de ser estrutural. Mudar o modelo de desenvolvimento, mudar o modelo de formação do profissional médico, investir cada vez mais na política de acesso às universidades, para que jovens da classe trabalhadora possam também ter a chance de formarem-se médicos, dentistas, psicólogos. Há que reestruturar a lógica do sistema de atendimento nos postos de saúde. Coisas simples como a manutenção de um médico durante todo o dia, atendendo as pessoas que vão chegando. Nada de marcação de fichas. Chegou, tem médico, é atendido. Pronto! Não há que ceder a chantagens de pagar salários astronômicos para que um profissional vá trabalhar no interior ou em regiões inóspitas. Tendo bastante gente formada, gente inclusive oriunda da classe trabalhadora, que conhece o sofrimento do seu companheiro, as coisas vão se transformando naturalmente.

E se para que esse modelo vingue for necessário, por enquanto, buscar profissionais fora do país, já que a formação de um médico é cara e demorada, que venham aqueles que sabem atuar dentro de uma política de saúde, não de morte. Que atuem no sentido de ver a pessoa como um todo e não como um pedaço doente. Aqueles que compreendem que uma criatura doente é um ser frágil, precisando de amparo e carinho. Aqueles que já vivenciam um modelo de saúde onde o cuidado com a dor do outro é a única medida. Se fora assim, que venham os cubanos, os africanos, os espanhóis, qualquer um que possa começara a mudar esse triste cenário. Mas esse médico tem de ser diferente, não pode estar contaminado com essa lógica da morte, do lucro, do estar ajoelhado diante das farmacêuticas.

Todo aquele brasileiro que um dia precisou de ajuda, e foi num posto, e ouviu o indefectível: “não tem ficha”, sabe muito bem do que estou falando. Há que ter gente para cuidar da gente. Muitas vezes, a presença de um médico nos apertando a mão, olhando nos olhos e dizendo que tudo vai ficar bem é mais curativa que os sintéticos produzidos nos laboratórios. As pessoas precisam de pessoas que as vejam por inteiro. Logo, é o modelo de medicina ensinado nas escolas, aliado a uma política de acesso ao curso, que precisa ser transformado.


* Jornalista de Florianópolis/SC