segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011




Leia nesta edição:

Editorial – Exímios sugestionadores.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, crônica “Hora extra”

Coluna Pessoas e Histórias – Eduardo Murta, conto “Eu não existo, mas me lembrei de você”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Da beleza imperceptível”.

Coluna Porta Aberta – Ana Flores, crônica “Vida roubada”.

Coluna Porta Aberta – Alípio Freire, artigo “Revolução cubana dá samba”. .

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Exímios sugestionadores

A Literatura é muito mais sugestão do que descrição. Quanto maior for a perícia de um escritor em despertar (e mexer com) a imaginação dos seus leitores, maior será seu potencial de prender sua atenção e torná-lo cúmplice da sua criação. Jorge Luís Borges afirmou, anos atrás, que nós, literatos, não criamos os contos e romances que nos são atribuídos. Limitamo-nos a “sugerir” as histórias, que são, na verdade, completadas ao gosto de cada um pelos que as lêem.
Sobre a poesia, nem é necessário ressaltar o quanto tem de sugestão. É um tipo de texto feito a caráter para a emoção e a imaginação, muito mais do que ao mero raciocínio. Abundam metáforas de toda a sorte que nos fazem viajar e adaptar as palavras escritas ao nosso gosto e à nossa realidade pessoal.
Em contos, novelas, romances e peças de teatro, por sua vez, não descrevemos os personagens de sorte a torná-los “reais”, de carne e osso. Para tanto, seria necessária uma fotografia, já que uma única imagem vale por mil palavras. Limitamo-nos a descrever características gerais deles, ou seja, se são gordos ou magros, altos ou baixos, maltrapilhos ou bem-vestidos etc.etc.etc. Cada leitor complementa a imagem que faz do sujeito que pretendíamos descrever à sua maneira. O mesmo vale em relação a cenários.
Por mais que descrevamos determinada casa, por sua vez, quem lê nosso texto interpreta nossa descrição (por mais perfeita e detalhada que seja) de uma forma pessoal, nunca igual à que imaginamos. Limitamo-nos a descrevê-la em linhas gerais, determinando se ela se localiza em uma favela e não passa de um barraco mambembe, se fica em um bairro de classe média e tem relativo conforto, posto que não tenha luxo ou se é alguma mansão, com todos os requintes que o dinheiro pode comprar.
Nunca, por exemplo, um romance, ao ser adaptado para o cinema, tem os “mesmos” personagens e cenários que o escritor criou, embora, não raro, sejam até melhores do que os da sua imaginação. É provável, por exemplo, que a heroína de algum dos meus contos, embora bela mulher, esteja infinitamente distante da beleza de uma Júlia Roberts (como, também, pode ser muitíssimo mais bonita) Ou que o sujeito cuja história estou narrando não tenha a mais remota semelhança com Tom Cruise.
Daí ser altamente desejável ao escritor que desenvolva sua capacidade de sugestão, mediante uma linguagem coloquial e amigável, que faça do “parceiro” da sua obra, o leitor, seu grande e competente cúmplice e não o afugente com cansativas e, em geral inócuas descrições.
Há autores que têm o raro talento de, em pouquíssimas palavras, elaborar textos criativos, inteligentes e completos, posto que curtos. São exímios “sugestionadores” e conseguem transformar os leitores, se não em parceiros de criação, pelo menos em cúmplices das teses que expõem.
Fique claro, porém, que não há nada de errado com quem escreve textos extensos, livros com vários volumes, às vezes com 5 mil páginas ou mais. Claro, desde que o assunto abordado assim o exija e que não haja palavras supérfluas, não seja repetitivo e que, sobretudo, exista sólido e extenso conteúdo no que escreveu. Ou seja, que não se trate de mera “enrolação”. Como leitor compulsivo, prefiro este tipo de escrita, que “vale o quanto pesa”.
Todavia, quem conta com capacidade de síntese, diz mais coisas, em menor espaço. Pode nem ser tão didático (e não é) quanto quem escreve textos bastante longos, mas leva a vantagem da variedade e do talento de sugestionar o leitor. Ou seja, seus livros nunca são “samba de uma nota só” e não comportam uma única interpretação, mas tantas quantas forem seus leitores. Tratam, por exemplo, de dezenas de assuntos, num único volume, ao passo que, quem não conta com essa capacidade de síntese, precisaria de uma dezena ou mais deles para dizer as mesmas coisas.
Já tive a oportunidade de editar contos curtíssimos, de escassos dois parágrafos, e que ainda assim foram completos, com começo, meio e fim. Ou seja, coerentes, instigantes e verossímeis. Quem achar que é fácil escrever desta maneira que o tente, para ver que as coisas não são o que parecem. É difícil! Dificílimo! Para a maioria dos escritores, é até impossível.
Claro que o valor de qualquer obra literária não está em sua extensão. Há muito texto capenga, sem rumo, direção ou sentido, composto de poucas palavras. São tão ruins, que nem dá para considerá-los “Literatura”. Como também há produções extensíssimas, que requerem tempo imenso para serem lidas, sumamente atrativas.
Há livros “massudos” que o leitor até reluta em tirar da estante e muito menos em abrir. Mas... quando começa a leitura, não quer mais parar, tamanha é a capacidade do autor de torná-lo “cúmplice”. O que conta, de fato, em Literatura, portanto, é sempre o conteúdo (está implícito que a forma seja rigorosamente correta, clara e lúcida). Todavia, que a capacidade de síntese, de um escritor talentoso e criativo, é uma arma a mais para seu sucesso, disso não resta a menor dúvida.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor no twitter: @bondaczuk



Hora extra

* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral

Lembro-me como se fosse ontem.
-Tia o que é câncer?
Percebi no rosto dela uma inquietação, mas não desisti da pergunta.

-Tia?
- É um signo do zodíaco.
- Não tia...esse não. O tal de câncer que deixa as pessoas doentes.

- Ah! Tá. Esse câncer... é uma doença meu anjo que se aloja em nosso corpo e pode atingir vários órgãos e até lugares que nem imaginamos.
- Ele é mau?
- Nenhuma doença é boa, mas quando a gente se cuida e descobre a tempo, podemos fazer tratamentos e nos curarmos.
- Mas...mas...e se a gente não percebe?
- Bom...nesse caso vira uma corrida contra o tempo pois o tratamento é mais prolongado e às vezes os remédios deixam a pessoa tão fraquinha...

- Tia?
- Fala meu anjo? O que foi?
- Posso contar com Deus nessas horas?
- Pode não, deve, ele sempre nos ouve e conforta...
Um silêncio longo se instalou depois de tantas perguntas.

Percebi que a pequenina limpava os olhinhos com seu lencinho de joaninhas.
- Deus não vai se cansar de me ouvir?
Um nó tão grande travou minha garganta que com o coração sacudido pelo desamparo dela, agachei-me ao seu lado e disse-lhe baixinho:
- Pra você meu amor, Deus vai fazer hora extra.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário



Eu não existo, mas me lembrei de você

* Por Eduardo Murta

Foi no estertor despretensioso do noticiário que Pompílio deu com a mais singular idéia, desde que o fenômeno da Internet fizera divisor de água na vida de tanta gente a um só tempo. O aspecto singular, e quase ingênuo, o comovia naquilo. Do outro lado do mundo, ouvira, um homem iria montar plantão e abrir fila a que as pessoas, uma a uma, viessem e lhe contassem uma história.
Numa era em que a palavra ganhara contornos cada vez mais virtuais, das frases com calor e das entonações carregadas de sentimento Pompílio nutria saudade essencial. Daí enxergar-se por inteiro nessa empreitada. E encher-se do desejo de repetir nessas terras as cenas que descreviam do estrangeiro: homens, mulheres e meninos prontos para encarnar seu dia de livro vivo.
Fez, então, exatamente como lá. Espalhou panfletinhos pelo lugarejo e armou sua barraca na praça. Levou junto três vasilhas de biscoito, o gato Veludo e duas cadeiras de balanço. Logo formou-se fila longa, dobrando quarteirão. Importava pouco se o que movia o povaréu era a promessa de uma nota de 10 ou a pura inspiração.
Vieram doninhas com recordações do Império, pescadores com mentiras de assombrar Pinóquio, meninas que sonhavam com príncipes encantados, meninos com DNA de super-herói. Outros nem tanto. Foi um destes quem transformou o dia de Pompílio. Retesou-lhe o espírito, fartou-lhe em sensações já na primeira frase. Beirava os 9 anos, levava serenidade de 60.
Se sentou, estalou os dedinhos, sorriu breve. Surpreendentemente circunspecto, pediu ao homem que fechasse os olhos, a melhor ouvi-lo. E revelou, aura de mistério: “Eu não existo, mas me lembrei de você”. As órbitas de Pompílio imprimindo um tremor de embriagada expectativa. O caudal de ansiedade arrastando-lhe como para um sonho, em que os avós, que conhecera só por fotos, festejavam sua chegada à chácara da família.
Ele gargalhando, num tom que lembrava crianças desembrulhando presentes de Natal. E não era coisa menor essa benção de estar diante dos quatro velhinhos. Ganharia doce de cristaleira, passeio a cavalo, biscoito de forno de barro e molharia os pés nas nascentes do lugar. Suprema glória.
Mas viria o melhor: banho morno em banheira, as costas massageadas, pijama, e o acalanto de dormir ouvindo avôs e avós contando-lhe histórias de tempos outros. Como se, no próprio sonho, adormecesse. Ele deixou-se embalar naquele sentimento cristalino, restaurador, até o burburinho trazer-lhe de volta.
Relampejou os olhos e, pronto, estava diante do menino que lhe dera as mãos naquela santa imersão. Trocaram sorrisos de cumplicidade. E o visitante completou o arco de revelações: “Nenhum deles esteve com você, mas todos te amaram como uma grata história a ser contada”. As miradas lhe marejaram, e Pompílio, ar de leveza, pleno, puxou do criadinho uma nota de 100. Estendeu, e deu com o vazio da cadeira, ela num balanço fantasma, brando, jeito de vento bom. E inundando-lhe para sempre aquele sentimento de ternura antiga. Destas que não envelhecem a nenhum tempo.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.



Da beleza imperceptível

* Por Talis Andrade



Amo as mulheres que veneram
a beleza das deusas
Repugna a formosura
das coquetes
que todos tocam
com as mãos andejas

Amo o encanto a magia
da imperceptível beleza
que muitas vezes
só uma mulher
pressente e almeja

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Vida roubada

* Por Ana Flores


Existem vários tipos de ladrão. Ladrão de galinha, ladrão de carro, batedores de carteira, os políticos, e alguns outros que você puder lembrar. Todos esses, sempre que possível, são julgados e devidamente condenados. Mas para mim, há um tipo de ladrão que é o pior de todos: o ladrão de tempo. Existem vários dessa espécie. Eles andam soltos por aí, roubando o tempo de vida das outras pessoas. Considero este o pior, devido ao fato de que aquilo que ele roubou, não poderá ser recuperado nunca mais. É tempo que se vai e que não volta. Se roubarem o meu carro talvez eu ainda consiga recupera-lo mas os meus 15 minutos de vida roubados por alguém que se atrasou, áh...esses eu não verei nunca mais.

O mundo está cheio desses cleptomaníacos, essas pessoas que sofrem pelo impulso de roubar...o tempo dos outros. Eles nem percebem mais, mas estão sempre 5 minutos atrasados. Frequentemente desmarcam compromissos no dia. Não aparecem. Não se posicionam. Ficam em cima do muro. Sempre perdem os trailers porque chegam atrasados no cinema. Sempre há alguém esperando por um ladrão de tempo, seja um amigo para um café, um colega de trabalho ou o cabeleireiro. E adoram colocar a culpa no coitado do trânsito ou no despertador que não tocou!

Para mim, tempo significa vida. Logo, sempre que alguém rouba o meu tempo, penso: Ele roubou um pedaço da minha vida! E pode ser só 10 minutos, mas continua sendo vida roubada. Pense em quantas coisas boas e úteis que você pode fazer com 10 minutos e multiplique por todos os 10 minutinhos que lhe deixaram esperando e perceba o quanto da sua vida lhe foi roubada. Pausa para reflexão. De roubado, só beijo.

• Escritora

Revolução cubana dá samba

* Por Alípio Freire


Mostrar ao Brasil e ao mundo uma Cuba livre de preconceitos, descortinando sua história, cultura e conquistas sociais. Esse é o objetivo da escola samba de Florianópolis União da Ilha da Magia. Por defender que o Carnaval é não apenas beleza e diversão, mas também informação e momento oportuno para questionamentos, a agremiação desfilará na Festa de Momo com o enredo "Cuba sim! Em nome da verdade". É a primeira vez que a revolução cubana será homenageada numa passarela do samba.
A ideia é aproveitar os 52 anos da revolução cubana, em 2011, e os festejos pelo bicentenário das independências na América do Sul, iniciados em 2010, para exaltar a luta da ilha pela liberdade.
A mais nova escola de samba de Florianópolis, que vai para o sue terceiro ano de desfiles, associa o tema escolhido à função que avalia ser a mais importante em uma agremiação, a de trabalhar a questão da cidadania. Nesse sentido, quer questionar no Carnaval: "qual o preço da liberdade?"
"Este enredo quer mostrar a saga de um povo que sonhou revolução e lutou para conquistar sua independência. A fibra de pessoas simples, alegres, cheias de sonhos e desejos que valorizam o social, o trabalho, a educação, a cultura e o esporte. Um lugar onde se vive sem miséria ou fome e que mantém acesa a chama dos ideais de liberdade, mesmo com todo o sofrimento do bloqueio que lhes é imposto pela “nação” à qual eles tiveram a ousadia de dizer não", diz a sinopse do enredo.
A União da Ilha da Magia, que já está realizando ensaios todas as sextas e domingo, na Praça Bento Silvério, em Lagoa da Conceição, lembra no samba os heróis da ilha, José Martí, Che Guevara e Fidel Castro. Destaca as conquistas de Cuba, mas também não deixa de mencionar os prejuízos do bloqueio norte-americano: "Um preço a pagar, não vou negar/ Mas a comunidade em primeiro lugar", diz a letra da música.
Para preparar o desfile, os diretores da escola, que em 2010 tornou-se vice-campeã, estiveram em Cuba colhendo informações. Se encantaram com o país e se convenceram do tema. Chegaram a convidar uma das filhas de Che Guevara, a médica cubana Aleida Guevara, para a festa.
De acordo com o carnavalesco da escola, Jaime Cezário, o enredo será dividido em quatro setores, quatro alegorias e uma média de 18 alas. A história da ilha está presente nos vários elementos do desfile. As fantasias remetem desde à ditadura e à dominação do Tio Sam, até à nacionalização das empresas estrangeiras, aos tradicionais charutos cubanos e ao culto na Santeria.
"Aproveitando essa data mágica (do bicentenário), quando muitos países irmãos começaram a sonhar em ser livres de dominadores estrangeiros, encontramos um em especial, Cuba, que nos dias de hoje ainda é notícia por seus ideais de liberdade, lutas e conquistas sociais, assim como pelo preço que paga por querer administrar suas terras sem influência de nenhuma potência estrangeira, principalmente da maior delas, os Estados Unidos da América, que além de vizinho, sempre sonhou em fazê-la um paraíso de ricos e milionários", diz a escola.
Veja abaixo o resumo do enredo, que tenta clarear um pouco da visão embaçada que muitos têm sobre Cuba. E, ao final, a letra do samba enredo.


SINOPSE DO ENREDO

Cuba sim! Em nome da verdade

O desejo de liberdade ocasiona histórias admiráveis de homens e nações que sonham em ser livres para conquistar uma sociedade mais equilibrada e justa, sem tantas diferenças entre as classes sociais, onde quase sempre, o povo faz parte da classe dos miseráveis e os que detêm o poder, a dos ricos.

Num cenário como esse, nasceu na ilha de Cuba, no final do século XIX, um poeta que sonhou com liberdade, e através de suas idéias de uma sociedade mais justa, usou a literatura como uma flecha certeira para atingir mortalmente o “poder” que estava sempre alheio aos interesses populares, e iniciar o processo que levará o povo, anos mais tarde, a administrar seu próprio destino: José Martí.

“A liberdade custa muito caro e temos ou de nos resignarmos a viver sem ela ou de nos decidirmos a pagar o seu preço.” José Martí

O poeta fundará o Partido Revolucionário Cubano, plantando sementes importantes no coração do povo, mas que num primeiro instante não consegue atingir seu principal objetivo: um governo livre de interesse de forças estrangeiras. Cuba liberta-se da dominação espanhola, mas obtém essa liberdade com a ajuda dos Estados Unidos da América, seu vizinho mais próximo que sorrateiramente se envolve na guerra pela independência contra Espanha. A independência é conquistada, mas a liberdade lhes é roubada.

Os americanos camuflam atrás dessa nobre atitude, interesses em transformar a ilha de Cuba num grande paraíso para suas empresas e milionários. Começam a apoiar ditadores que sorriem para seus interesses, mas não se preocupam com o bem-estar da população. Cuba se torna a menina dos olhos do Tio Sam, chegando ao ponto de Havana, sua capital, tornar-se o destino mais requintado das Américas e do mundo nos anos 40 e 50, ditando modas e modismos.

“Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno de ser homem” José Martí.

O país que se torna destino mais requintado dos anos 40 e 50, paraíso de ricos e milionários, possui uma população que sofre com os desmandos do poder, vivendo em condições precárias nos centros urbanos, o mesmo acontecendo no campo, onde agricultores e camponeses sofrem com as condições de trabalho.

Um paraíso para poucos e um sofrimento para muitos. Este clima faz surgir no seio do povo o antigo sonho de conquistar um país de justiça social e livre de interferências, mas a ação impiedosa da ditadura tenta abafar esse clamor com mãos de ferro. A insatisfação só aumenta e nos meios estudantis um novo líder surge com idéias de lutar contra a tirania dos governantes e por uma nova sociedade cubana: Fidel Castro.

“Os poderosos podem destruir uma, duas, até três rosas, mas jamais poderão deter a primavera.” Che Guevara.

Em 1952 mais um golpe de estado fez tomar o poder o ditador Fulgêncio Batista. Fulgêncio governará com mãos de ferro e fará aumentar cada vez mais o desejo de mudanças. Fidel se destacará rapidamente entre os insatisfeitos, organizará a resistência contra a ditadura e fará movimentos para derrubá-la. Por essas tentativas, será perseguido, preso e exilado. No exílio no México, será apresentado ao médico argentino Che Guevara que se tornará o maior símbolo da revolução cubana.

Fidel organiza e lidera o movimento guerrilheiro 26 de Julho ou M26, em referência a tentativa de assaltar a maior prisão de presos políticos da ditadura em 26 de julho de 1953. A tentativa é um fracasso e os obrigam a se refugiar na Sierra Maestra. Os rebeldes lentamente se fortalecem, aumentando seu armamento e angariando apoio e o recrutamento de muitos camponeses, intelectuais, estudantes e trabalhadores urbanos insatisfeitos com o rumo da Nação. A luta se intensifica, e mesmo contando com o apoio americano, o ditador Fulgêncio Batista é derrotado em 1959 e foge de Cuba.

“Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.” Che Guevara.

A vitória do grupo revolucionário surpreendeu o mundo, pois à época era inimaginável que um grupo de “sonhadores” derrotassem a grande potência econômica e militar. Mas os ideais revolucionários contagiaram o povo cubano. E as idéias e os sonhos venceram as armas.

“Sonha e serás livre de espírito... luta e serás livre na vida.”Che Guevara.

A vitória da revolução faz surgir um governo de orientação socialista e uma das primeiras medidas do novo governo foi nacionalizar as empresas estrangeiras, inclusive as norte-americanas. Esta atitude desagrada o seu poderoso vizinho capitalista que corta relações diplomáticas, facilitando o alinhamento de Cuba com o seu mais temido rival, a União Soviética. Essa aproximação irá gerar muitas confusões diplomáticas, o que culminará no bloqueio vigente até os dias de hoje.

“Os grandes só parecem grandes porque estamos ajoelhados!” Che Guevara.

Apesar do bloqueio e de alguns problemas sociais encontrados pela revolução, as conquistas sociais foram contabilizadas. A maioria da população recebe energia elétrica e tem acesso à água potável e saneamento básico. Os que não são ainda donos de sua moradia pagam aluguéis simbólicos. A taxa de analfabetismo é praticamente zero, assim como a taxa de evasão escolar e o cubano tem acesso a um ensino – desde o fundamental ao universitário – de qualidade e totalmente gratuito. Mas, além de oferecer educação gratuita ao seu povo, o governo cubano acolhe estudantes de mais de 34 países latino-americanos, africanos e do caribe, tanto nos cursos universitários como nos cursos de mestrado e doutorado.

“O conhecimento nos faz responsáveis.” Che Guevara.

O sistema de seguridade social, cujos princípios são os da solidariedade, universalidade e integridade, é um dos mais abrangentes do mundo.

A assistência à saúde em Cuba é comparável aos países mais desenvolvidos. Segundo dispositivo constitucional, o cubano tem direito a prestação gratuita de serviços médicos, hospitalares e odontológicos.

Hoje, mesmo reconhecendo que o país passa por dificuldades econômicas e possui deficiências em alguns setores como as telecomunicações e transportes, os cubanos se orgulham da revolução e dos seus resultados, que vão mais longe do que as medalhas conquistadas nas olimpíadas e nos jogos pan-americanos. O cubano tem grande amor ao seu país e faz questão de registrar que mora no único país latino americano sem favelas.

“A melhor maneira de ser livre é ser culto.” José Martí.

A economia cubana sofreu grande revezes. Com a nacionalização das empresas privadas e o bloqueio americano ficou contando apenas com o apoio da sua grande parceira comercial, a União Soviética que veio a desaparecer nos anos 90, deixando Cuba sem nenhum apoio internacional.

O produto de maior destaque na economia cubana é o açúcar, seguidos pelo tabaco (com destaque para os charutos cubanos que são valorizados no mundo inteiro), a extração do níquel, a pesca, a indústria farmacêutica e a biotecnologia. Na última década o governo vem priorizando o turismo que se tornou grande fonte de divisas e empregos. Os turistas vêm atraídos por suas maravilhosas praias de águas verdes cristalinas e o encantamento das suas cidades que mantêm o clima “retrô” dos anos 50.

“O importante não é justificar o erro, mas impedir que ele se repita.” Che Guevara.

Na cultura, Cuba encanta por sua diversidade. A mistura do africano com o espanhol gerou uma riqueza cultural raramente vista. A música e a dança cubana rompem fronteiras desde o início do século XX, tornando-se conhecida mundialmente. Com a presença marcante na percussão da conga (tambor), destaca-se a rumba, a salsa, o bolero, o chá-chá-chá e a habanera.

Dois terços da população cubana é negra e mestiça. São descendentes de escravos africanos, que levaram para a Ilha suas tradições religiosas, que foram passadas para seus descendentes ao longo da história. O culto mais importante é a Santeria, que funde crenças católicas com a religião tradicional Iorubá. Inicialmente praticada por escravos, ganhou popularidade e se difundiu pelo seu caráter festivo, suas cerimônias e seus Orixás.
Ao longo de 400 anos, a cozinha cubana experimentou sabores que combinavam produtos e costumes de diferentes culturas. Não há como negar a importância da influência espanhola na culinária desta parte do Caribe, assim como o peso das sucessivas levas de escravos africanos. Um prato típico da cozinha tradicional cubana é moros y cristianos, “mouros e cristãos”, que é o arroz com feijão. Outro destaque fica por conta do rum cubano e seus drinks especialíssimos e muito apreciados como a Cuba Libre e o Mojito.

A festa mais popular e animada da ilha de Cuba é o carnaval, com destaque para os de Havana e o de Santiago de Cuba. O carnaval é uma festa espontânea, com música ditada pelo ritmo das congas que são tambores artesanais. Uma música para ser sentida e vivida até o êxtase, um frenesi coletivo. No carnaval cubano o povo participa de diversas maneiras, nas comparsas (blocos), participam integrantes dos bairros e de organismos que se preparam com muito interesse durante o ano todo na confecção de fantasias e de alegorias.

No final dos anos 30 surgiu em Havana, a casa de espetáculos que iria ditar, nos anos 40 e 50, um novo conceito de apresentação de grandes shows, que vai ser imitado por todos: O Cabaré Tropicana. No seu palco os maiores artistas internacionais se apresentaram, dentre essas estrelas, Carmem Miranda.

“Uma pitada de poesia é suficiente para perfumar um século inteiro!” José Martí.

É claro que Cuba tem os seus problemas e não é nenhum paraíso socialista, ainda mais por conviver há cinco décadas com um bloqueio econômico. Entretanto, não podemos deixar de ressaltar e, por que não, admirar esse povo que transformou um país com grande índice de analfabetos e miséria em uma nação que hoje é referência mundial nas artes, nos esportes, na medicina, entre outras áreas, e respeitada pela defesa intransigente de sua soberania e que, apesar de todas as dificuldades, não capitulou e permanece firme em seus ideais revolucionários.

Após os avanços e conquistas sociais alcançados nessas últimas cinco décadas, o povo cubano nunca mais será submisso a qualquer interesse externo, tão pouco abrirá mão dessas conquistas, pois os alicerces sociais estão fincados. Um povo alfabetizado e consciente politicamente não se dobra à força das armas, mas sim à dos ideais.

“Endurecer sem perder a ternura!” Che Guevara.

Em 2011, Cuba comemora 52 anos da Revolução. Aproveitando esta oportunidade, é importante exaltar a luta do povo cubano pela liberdade. Existe uma Cuba que poucos conhecem, e quando descobrem sua cultura, seu povo e principalmente suas conquistas sociais, se encantam. Por este motivo nós, da Escola de Samba União da Ilha da Magia, escolhemos este enredo para o nosso carnaval. Desejamos mostrar ao Brasil e ao mundo que Cuba precisa ser vista com um olhar livre de preconceitos!

Cuba sim! Em nome da verdade.

Jaime Cezário
Carnavalesco


Veja abaixo a letra do samba de enredo:

Cuba sim! Em nome da verdade

Compositores: Júlio Maestri e Vinícius da Imperatriz

Uma forte emoção,
No meu coração...
Liberdade!
Eu sou União
A voz de um povo pela igualdade

Sonhos... de um poeta ecoam no ar
Cuba... o desejo de se libertar
Conquistou a independência
Do Tio Sam sofreu influência
Momentos de luta estão na memória
Fidel e Che fizeram história
Me levam na busca por um ideal
Que vai embalar, nosso carnaval!

Guerreiros unidos na Revolução
Pelo bem de uma Nação
Um preço a pagar, não vou negar
Mas a Comunidade em primeiro lugar

Os sonhos se tornam verdade
Trazendo pra muitos a felicidade
Com saúde, educação
A base pra um cidadão
Esporte, cultura, na arte... mistura
Riqueza, o Mundo se encantou
No Cabaré Tropicana,
Carmem Miranda deu um show!
Ilha de pura Magia
Vem sambar...
Verde, Branco e Ouro
Na Avenida vai brilhar


• Jornalista e escritor

domingo, 27 de fevereiro de 2011




Leia nesta edição:

Editorial – Fim de jornada.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Um toque de letra”.

Coluna Direto do Arquivo – Ruth Barros, crônica “Homens (quase) impossíveis”.

Coluna Clássicos – Mário Quintana, crônica “No ano passado”.

Coluna Porta Aberta – Guilherme Sardas, conto, “Uma simples passagem da vida de Nicolau”.

Coluna Porta Aberta – Guilherme Scalzili, artigo “O esterco ideológico”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Fim de jornada

O mundo literário nacional e, por que não dizer, também o mundial e, sem nenhum exagero, sobretudo o Planeta Terra ficaram mais pobres, neste domingo de sol (pelo menos na minha cidade), calorento e abafado de 27 de fevereiro de 2011, com a morte, em Porto Alegre, de um dos escritores mais lúcidos, éticos, competentes e criativos: Moacir Scliar.
Termina, para ele, portanto, uma jornada exemplar por esta aventura fascinante, e única, que é a vida, iniciada em 23 de março de 1937, na mesma cidade em que ficou “encantado” (para recorrer à metáfora usada por Guimarães Rosa para qualificar a morte). Sua memória será cultuada por milhões de seus leitores (entre os quais, este Editor). Ele é, portanto, um dos que têm chance de sobreviver ao esquecimento ditado pela passagem do tempo.
Escrevi muito a respeito desse médico sanitarista e, sobretudo, desse notável homem de letras, meu conterrâneo, por identificar-me com suas idéias e estilo. Mesmo jamais cruzando meus caminhos com os dele (o que lamento) e tendo absoluta certeza de que ele nem sabia da minha existência, sempre o considerei um “amigo”. Por que? Simples! Porque foi enorme a sua influência na minha forma de encarar o mundo e de fazer literatura. E só os amigos muito diletos têm essa capacidade de nos influenciar para o bem.
Dos mais de 70 livros que Moacir Scliar nos legou, devo ter lido, seguramente, pelo menos a metade. Só não li mais por não dispor de recursos para comprar tudo o que gosto e preciso. Mas creio que o tanto que li não é nada desprezível. Ademais, já escrevi muito a seu respeito e não apenas um texto, mas vários. Portanto, este meu pífio, mas honesto testemunho não é daqueles oportunistas, dados, apenas, em ocasiões como esta, de morte de alguma personalidade, para compartilhar do prestígio que quem morreu ostentava.
Está de luto, também, a augusta Academia Brasileira de Letras, a casa de Machado de Assis, com a morte de um de seus maiores expoentes e mais ativos membros. Afinal, Moacir Scliar obteve, por inegáveis méritos literários, sua cadeira na ABL em 2003. Entendo que esse ingresso demorou muito. Mas... antes tarde, do que nunca.
Quando digo que a perda é grande para a literatura mundial, estou longe de incorrer em exagero. Exageraria, e mais, cometeria tremenda heresia se não burrice, se afirmasse o contrário. Afinal, trata-se de um dos raros escritores brasileiros conhecidos (e apreciados) no Exterior, já que várias de suas obras foram traduzidas para pelo menos doze idiomas. Quem é do ramo sabe o quanto é complicado “sair da toca” no mero e acanhado âmbito doméstico. É verdadeira aventura, autêntica saga de persistência, mais conhecida como teimosia. Imaginem além fronteiras!
A morte de Moacir Scliar, e nas circunstâncias que ocorreu, suscita-me idêntico sentimento que tive quando do falecimento do meu pai, há três anos, ou seja, um misto de raiva, frustração, saudade antecipada e outros tantos sentimentos concretos, mas indefiníveis. Vem-me a memória um texto do escritor e psiquiatra Roberto Freire (não confundir com o político), que citei na ocasião, para homenagear a memória do meu genitor.
“A morte é feia, burra, medíocre, suja, desleal, grossa, parcial, desonesta, arbitrária, injusta, covarde, chata, indecorosa, infiel, premeditada, viciosa, incômoda, óbvia, incomunicável, cafajeste, ladra, assassina, extorsiva, ingrata, irresponsável, pretensiosa, caloteira, agressiva, mentirosa, imoral, amoral, torpe, pérfida, cretina, reacionária, antipática, lúgubre, atrevida, alienada, gulosa, quadrada e pornográfica! Enfim, o que a gente pensa sobre a tinhosa, não fosse a necessidade de atendermos a certas imposições de ordem moral da lei de imprensa, poderia ser simplesmente resumido no mais eficiente e definitivo dos palavrões. Aquele, vocês sabem!”.
Estas palavras foram escritas na crônica “O Post último S. S. Show”, publicada na coluna “Cidade Aflita”, da extinta “Última Hora” de São Paulo, em 25 de novembro de 1964, sobre a morte do jornalista e notável homem de televisão Silveira Sampaio (de quem também fui fiel admirador e ainda sou, pois na minha memória ele continua e continuará sempre vivo).
Escrever sobre um homem de letras e não mencionar nada do que escreveu é, na minha avaliação, tremenda mancada, falta de educação e até mesmo heresia. Tenho, diante de mim, em minha mesa de trabalho, uma das milhares de crônicas de Moacir Scliar, das tantas que me ilustraram e emocionaram, intitulada “Síndrome do ninho vazio”. Passo por essa situação, atualmente, com meus quatro filhos já criados e encaminhados na vida e, por isso, não mais “debaixo das minhas protetoras asas”.
Em certo trecho, Moacir escreve: “Em algum momento os filhos têm de sair do reduto paterno-materno. A época para isso varia de acordo com as culturas, com as famílias. Nos Estados Unidos, a independência tradicionalmente ocorre no momento em que o jovem vai para o college, que mais ou menos equivale à nossa universidade. A regra é que isso se faça com a mudança de cidade (quanto mais distante melhor), e a partir daí o rapaz ou a moça terão de tomar conta de si mesmos”.
E Scliar prossegue: “Na classe média brasileira a coisa sempre foi mais flexível, e essa flexibilidade aumentou na medida em que cresceu a expectativa de vida e na medida em que a independência, cada vez mais dependente do diploma, do mestrado, do doutorado, foi sendo adiada. Uma adolescência prolongada, portanto, mas não infinita (ou, parafraseando Vinícius, infinita enquanto dura). De qualquer modo, a ideia da família extensa , que até era uim costume no período colonial (entre os ricos ao menos) foi ficando coisa do passado”.
E Scliar conclui essa magnífica crônica assim: “Voar É com os Pássaros era o título de um antigo e clássico filme. Não, voar não é só com os pássaros. Nós também voamos, seja nos aviões (quando os voos não são cancelados), seja através de nossa imaginação. Cada ninho, onde quer que esteja, é uma base para os sonhos. Entre eles, claro, o sonho de nossa própria casa”.
Caso algo nosso, imaterial, nos sobreviva, (além da mera lembrança) em algum lugar do cosmo, ouso dizer que Scliar acaba de regressar à sua “própria casa”, da qual saiu apenas no curto espaço de tempo de quase 74 anos em que viveu entre nós. Nunca me esqueço de uma declaração do cientista alemão Werner Von Braun (responsável pelas viagens espaciais da NASA), que disse: “A natureza desconhece a extinção. Só conhece a transformação”. E Moacir Scliar não se extinguiu de fato e jamais se extinguirá. Transformou-se e regressou à condição original, de “poeira de uma estrela”, e das mais brilhantes.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Um toque de letra

* Por Pedro J. Bondaczuk

A literatura, que se propõe a ser um ato de criação em cima da realidade, ou que pelo menos tem, em geral, nela seu parâmetro de verossimilhança, peca por não abordar, com a freqüência desejável, um dos fenômenos de massa mais representativos do mundo atual: o futebol.
Aliás, não é só ela. À exceção do cinema, e da música popular, que vez por outra traz canções homenageando, ou pelo menos citando, um clube ou outro ou um ídolo aqui, outro ali, outras formas de arte raramente exploram esse filão quase que inesgotável.
Contudo, o tema presta-se, e muito bem, a diversas expressões artísticas. Por exemplo, que riqueza plástica o pintor e o escultor deixam de aproveitar, nos movimentos dos jogadores, no momento do chute, na explosão do gol e até numa jogada de bola dividida!
Para a dança, então, é um campo vasto. Basta que os coreógrafos deixem a imaginação trabalhar à solta. Muitos poderão me contestar por abordar, neste espaço nobre da internet, destinado à opinião e à reflexão, um assunto considerado “não sério”. Afinal, podem argumentar, trata-se de um jogo, de um espetáculo, de um lazer, de uma forma de diversão. Mas isso não é importante?! Depende do critério adotado para definir “importância”.
Raros são os contos, em nossa literatura, que exploram o futebol. Conheço dois ou três em que a modalidade é enfocada, aliás, subsidiariamente, não como tema principal. Poemas só são compostos e divulgados em épocas de Copa do Mundo, isto quando são. Em 2002, a “Folha de S. Paulo” publicou (não me lembro se na editoria de Esportes, ou se na Folha Ilustrada ou se no caderno Mais), alguns textos no gênero, muito bons, por sinal.
Mas foi só. Passada essa competição internacional, que mobiliza em torno de dois bilhões de pessoas ou mais (dizem que desperta a atenção de metade da humanidade), o assunto é prontamente esquecido, embora freqüente, com enorme assiduidade, nosso cotidiano. João Cabral de Mello Neto foi um dos raros poetas que incursionaram pelo tema. Compôs um antológico poema em homenagem ao supercraque Ademir da Guia.
Romance, que eu saiba, não existe nenhum que se passe num clube ou que envolva jogador, diretor ou treinador de algum time. Isso sem falar no torcedor, em especial nos integrantes das torcidas organizadas, que vivem freqüentando manchetes policiais pelas estripulias que causam, notadamente nas grandes cidades, em dias de grandes clássicos. Pode até ser que existam, mas são tão poucos, e tão mal divulgados, que pouca gente conhece. Eu, pelo menos, não conheço.
E por que esse preconceito, ou, pelo menos, omissão? Não se trata de uma realidade, onipresente, do mundo contemporâneo? Não é uma atividade que movimenta somas de dinheiro incríveis e que desperta tantas e tão contraditórias paixões mundo afora?!
No caso dos cronistas, até que se entende. E no dos articulistas, entende-se mais ainda. Nestes tempos bicudos, onde faltam líderes e abundam os canalhas e os corruptos, as pessoas usam o futebol como mera válvula de escape das tensões do dia-a-dia, como uma forma de catarse coletiva, uma espécie de fuga da realidade. O pior é que acabam se fanatizando. Muitos encaram, por exemplo, a paixão pelos seus times, como uma religião. Aliás, dão mais importância a eles do que às denominações religiosas a que dizem pertencer. O que fazer? O errado, no caso, não é, evidentemente, o futebol, concordam?
Gosto pelo esporte, aliás, muitos escritores têm e tiveram e sempre fizeram questão de não esconder de ninguém. Foram os casos, para citar apenas dois, de Mário de Andrade e de Nelson Rodrigues (especialmente este último, torcedor ferrenho e apaixonado do Fluminense do Rio de Janeiro). Mas poderíamos mencionar muitos e muitos outros que, no entanto, ficaram nos devendo obras-primas tendo o esporte bretão (que se diz nascido no século XIX na Grã-Bretanha) como tema.
Aqui em Campinas, onde resido, se algum cronista quiser publicar, nas colunas dos jornais da cidade, fora da editoria de Esportes, algum texto leve, abordando Ponte Preta e Guarani, por exemplo, dificilmente vai conseguir. E caso a crônica seja publicada, será, certamente, com reservas. Afinal, o assunto não é considerado “sério”. E, no entanto, raros são os campineiros, que gostem de esporte, que não torçam para um desses dois times. A mesma coisa ocorre em outras grandes cidades em relação aos seus grandes clubes. Preconceito estranho e, sobretudo, bobo, não é verdade?

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

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O que comprar:

Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). –
Preço: R$ 23,90.

Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. –
Preço: R$ 20,90.

Como comprar:

Pela internet
WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.



Homens (quase) impossíveis

* Por Ruth Barros

Quem é que nunca teve tesão em homens inatingíveis? Por homens inatingíveis Anabel não quer dizer o Brad Pitt, o Harrison Ford ou mesmo os brasileirinhos Walter Moreira Salles ou Davi Moraes (ai, ai), deuses que só se corporificam para as pobres mortais nas telas ou nos palcos. Homens inatingíveis, queridos leitores, são aqueles que existem, estão por aí na nossa vidinha besta e a gente nunca vai chegar perto, a não ser na hora do oi e do tchau, isso é, caso a sorte nos sorria com algum tipo de intimidade com o desejado.

Há três categorias básicas de inatingíveis. A primeira é composta pelos já amarrados por outra e, para complicar, outra que nos seja muito próxima – o namorado da amiga, o marido da amiga, o chefe charmoso e casado (rolo e encrenca na certa), enfim, a lista de obstáculos é longa.

O terapeuta, o pediatra do filho, o advogado bacana, o dentista bonitão também fazem parte de uma longa lista que a compostura adverte para manter distância. Caso outro valor mais alto se alevante, a compostura, já batendo em retirada, alerta para que pelo menos se providencie a troca de terapeuta, pediatra ou qualquer outro serviço básico até então prestado pelo promovido à nova categoria, para que não se configure acúmulo de função.

A terceira categoria é especialmente dura para o ego de qualquer garota. É aquela muita-areia-para-o-meu-caminhãozinho, formada por sujeitos contra os quais não haveria qualquer problema, exceto o fato de aparentemente eles não enxergarem a gente. Os super disputados também estão nesse mesmo barco – a gente pode até pegar senha e esperar na fila, mas nossa vez nunca chega, tem sempre uma mais esperta ou mais gostosa na frente.

Reza a lenda que a Marta Suplicy conseguiu capturar a atenção do Eduardo jogando-o na piscina durante uma festa (ele pegou uma gripe super forte), mas acho esse método arriscado, assim como atirar-se na frente do carro dele. No caso do senador porque ele acabou trocado por um franco-argentino que não caiu na piscina e no caso do carro porque você pode se machucar seriamente ou estragar a viatura, coisa que deixaria qualquer homem furioso.

A resposta para esse tipo de problema pode estar nas voltas que o mundo dá. Minha amiga loura, bonita e esperta conta que, durante muitos anos, freqüentou o mesmo clube e secou um sujeito que nunca reparou que ela existia ou respirava:
-Eu era mocinha, lourinha, gordinha, classe média e ele era lindo, alto, moreno, rico e fazia faculdade de engenharia. Eu e minhas amigas babávamos por ele, que simplesmente não nos enxergava. Cresci, casei, mudei e a vida continuou. Um dia uma amiga me levou a uma festa de fim de ano de uma empresa. Fui toda loura e linda, com um vestido branco deslumbrante, que tinha comprado em Paris. Eu estava conversando com um grupo quando chegou um bonitão e pediu para me conhecer. Quase desmaiei de susto, mas respondi firme: “Já te conheço faz quase 20 anos”. Era ele, o esnobe do clube.

O final da história? Volto a bola para a protagonista:
- Fiquei meio tentada, mas não ia arriscar meu casamento (que já era o segundo nessa altura do campeonato) por um sonho do passado que nem me parecia mais isso tudo. Resolvi me divertir – contei quem eu era (ele custou a lembrar, é verdade), o tanto que já tinha arrastado de bonde por causa dele e caí fora, deixando o sujeito com um dos queixos mais caídos que já vi na minha vida.



Nota: Coluna Diário da Perua. Anabel Serranegra acha que um dos maiores encantos dos homens inatingíveis reside no fato de eles continuarem inatingíveis


* Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra.



No ano passado

* Por Mário Quintana

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem... Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados"

Ótimo! O meu ímpeto, modesto, mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.

Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.

• Poeta, tradutor e jornalista



Uma simples passagem da vida de Nicolau

* Por Guilherme Sardas



Ele tinha um defeito. Mas sua qualidade como vendedor era inquestionável. De tanta paixão que tinha por automóveis, vendia cada um deles com uma naturalidade de dar inveja. Era capaz de fazer um milionário colecionador de máquinas importadas comprar um fusca de tanto tesão que tinha ao falar do que o carrinho era capaz. Modificava, alterava, trocava peças, instalava etc. e o fusquinha que veio da sucata saía da loja como uma relíquia.
Nicolau tinha o primeiro grau completo, mas não era de falar errado. E ele tinha um defeito. Ninguém entendia muito bem, mas ele tinha. Imagina que ele só conseguia vender os carros que ele tanto amava, peça por peça, aliás, um bem que ele nunca teve, ele só conseguia vendê-los quando estava apaixonado! Pelos carros? Não, por mulheres!
Ninguém sabia disso, até o dia em que ele tomou um pé da Dalva, uma mulatinha maliciosa e deliciosa lá do bairro. Todos os caras do bairro queriam pegar a moça, achavam que ela era pra poucos, para homens de atitude, meio cafajestes e tal, mas não. Todo mundo ficou boquiaberto no dia que o Nicolau, depois de tomar umas no boteco, revelou: “Tô comendo a Dalvinha!”. E ele não falava com desdém, ele falava com carinho e, claro, com o desejo à flor da pele só de lembrar o rebolado da morena.
Os dois nunca saíram juntos, sequer para dar uma volta no bairro. Ele tocava a campainha do casebre e adentrava a “flor” da Dalvinha. Assim ela chamava sua casinha, “flor”. Toda arrumadinha, cheirosa. E ia o Nicolau adentrar a "flor" da Dalvinha. Não é preciso nem dizer que o apelido deixava os caras malucos, motivo de brincadeira geral. “E aí pessoal, quem vai entregar o leite hoje pra Dalvinha? Quem vai entrar na “flor” da Dalvinha”? Bobagem de homem agrupado.
Mas o problema não era esse. Afinal, faturar a Dalvinha não era um problema, mas a solução. O problema foi quando a moça começou a visitar o Jotinha no presídio. Alguns diziam que era o antigo namorado dela que foi preso por dar uma surra na coitada num dia que o seu rebolado causou problemas demais. E o Jotinha ninguém sabe direito quem era. Não deu nem tempo pro Nicolau se tocar. Dalvinha falava pouco, mas "na lata": “Olha, Nicolau, não tô mais a fim, gosto muito de você, mas vou começar a sair com outro cara”. Ele nem reclamou, sabia que coisa boa dura pouco. Enfim, um pé na bunda direto e sem rodeios.
E o Nicolau, que quase nunca tava sozinho – ele sempre se arranjava com as empregadas da região e tinha um rolo com a mulher do Alvinho, dono do bar –, e por isso não deveria se magoar tanto com um pé na bunda previsível, demorou demais pra arranjar outro rolo. Ele disse pro Carica, um carioca sangue bom que vivia de bico e morava no bairro há alguns meses, que a Irene, a morena primeira-dama do boteco, resolveu ser fiel ao Alvinho – parece que o colega tava percebendo onde o Nicolau tava se metendo. As empregadinhas tavam escassas. O “mercado” oscilava muito, ora surgiam dois ou três rabos-de-saia de uma vez só, uma mais ajeitada que a outra, ora tudo ficava cinza e a melhor companhia passava a ser a loira gelada em cima da mesa, e assim ia se divertindo o grupo dos “Nove”. Eram nove os que tinham o boteco do Alvinho como religião.
Mas o Nicolau tinha aquele problema. Quando ele levou o pé da Dalvinha, a ficha logo caiu, como de praxe: “Meu emprego, Deus me ajude!”. Na segunda-feira pós-pé na bunda, o Nicolau foi cabisbaixo pro emprego. Ainda no domingo ele já tinha ligado pra Irene – no fim de tarde, horário que o Alvinho jantava na casa da mãe, que era brigada com a nora –, pra Rosa, empregada evangélica que de santa só tinha a saia cumprida e o meião preto por debaixo e pra Carlinha, ainda menina, vinte anos no máximo, pele branquinha, toda vaidosa, mas ela também cansou: “Nicolau, você não toma jeito, quando eu queria algo sério com você, você só pensava em farrear, agora você vem com esse papo de namoro na véspera do meu noivado?!"
A loja era uma das mais tradicionais do ramo automotivo. Era cliente antigo e novo saindo pelo ladrão. Não parava, ritmo intenso até as dez da noite. E o Nicolau era o “chapa” da maioria dos clientes fixos. Eles adoravam o jeito com que ele falava dos carros, a maneira romântica com que ele idealizava o resultado final de uma reforminha de nada que o dono pedia. Mas daquela vez a coisa foi séria, a Dalvinha mexeu demais com ele. Não tinha motivação nem pra supervisionar a pintura, a transformação de latas velhas em carrocerias lindas, o que ele mais gostava. Já sabendo que o problema não desapareceria enquanto ele não faturasse alguma outra, ele inventou uma gripe pro patrão, o Cezinha filho – o pai já tava se aposentando, trabalhava no escritório – e deu um jeito de se esconder atrás do caixa até o próximo rebolado que aparecesse.
Mas se passaram dois meses e ele não saía da fossa. E não saía da fossa porque não arranjava ninguém, e olha que ele era de paixão fácil! Uma vez ele se apaixonou por uma funcionária da Zona Azul, mais uma moreninha que o encantou. Não tocou na moça, mas aquela paixão platônica lhe garantiu vendas sensacionais, por puro tesão, literalmente. Só que o estrago que a Dalvinha fez foi sem precedentes na sua vida.
“Ô Nicolau, dá um pulo aqui!” O Cezar pai, que o tinha como o seu vendedor preferido, tava na loja no dia. “O que tá acontecendo com você, hein? O Cezinha me falou que as vendas diminuíram bastante e que você não sai do caixa... Como assim? Você nasceu pra vender carro, rapaz!” Ele olhou pro lado, disfarçou, deu de ombros e balbuciou qualquer justificativa vaga, o que aliás lhe caiu muito estranho: “Ô doutor, você sabe, né?! Eu tô com uns problemas em casa, a coisa tá difícil, a relação com a minha mulher não tá das melhores, as crianças...”. “Péra, Péra, Péra, xiuuuuuuu”, o patrão o calou no mesmo segundo. “Nicô, péra lá! Eu tô fora da loja, mas não sou burro! Você se separou da Marina faz um ano. E as crianças ficaram com ela!” Nicolau até se sentiu mal em mentir pro patrão, mas não tinha como abrir o jogo. Pediu desculpas e voltou a trabalhar na hora, nas vendas.
A semana passou difícil, tinha que trabalhar com a sombra do seu passado recente ecoando pela loja. “O Nicolau sempre foi o nosso melhor vendedor, mas não tem o prazer de antes”, ouviu de mais de um colega. Não passou um mês e o Cezar pai voltou à loja. Sem hesitar, entregou um cheque de 20 mil na mão dele, agradeceu com um abraço forte e se desculpou sem ter culpa alguma: “As vendas caíram pela metade. E o mercado tá bom pra gente. Não dá pra explicar, Nicô... Pega esse dinheiro e vê se levanta a cabeça, rapaz!" O dinheiro era muito mais do que o devido. Nicolau se despediu e foi embora.
No boteco dos “Nove”, ele encheu a cara, falou como nunca, brincou, deu risada, esqueceu o mundo. O Carica, o Alvinho, a Irene e todo o resto ficaram perplexos, não acreditavam que ele havia sido demitido. Ele deu o coração pela Dalvinha, pela Rosa, pela Carlinha... Deu o coração pela loja, pelos clientes, pelos carros. Seu coração tava sempre dividido, é verdade, mas sempre sobrava uma bom quinhão pra ele entregar aos seus gostos. Agora ele tava sozinho e sem emprego. Isso definitivamente era novo pra ele.
No dia seguinte, Nicolau acordou cedo, tinha uma pasta de couro na mão. O Carica e o Dudu cumprimentaram de longe. Ele fez uma saudação e seguiu reto. Quando virou a esquina do bar ouviu a gargalhada da Dalvinha, ela carregava uma mala grande e, à frente, o tal do Jotinha tinha o corpo estirado na calçada e olhava o céu, como se fosse uma dádiva. “Tô vendo o sol redondo, redondinho, hahahaha, aahhhhhhhhhh! Obrigado meu Deus!”, gritava ele. O Jotinha levantou a moça pela perna, encaixando sua cara nos seios, enquanto a mulata gargalhava com um prazer indescritível. Nem quando tava fazendo o que mais gostava ela tinha o semblante tão forte, de felicidade tão plena. “O Jotinha é o amor da vida dela”, já havia dito a Irene. Nicolau seguiu adiante.
Algum tempo depois, no bar dos "Nove", já sentiam sua falta. Era raro ele não aparecer no horário do almoço pra jogar um papo fora e tomar uma cerveja... O papo da mesa entre os oito era o Nicolau. Quando dispersaram um pouco, esquecendo o colega, ele chegou. Demorou um pouco até que os amigos o percebessem. Ele não vinha subindo a ladeira a passos tranqüilos e com o sorriso leve na face, como de costume. O Carica olhou e, esperto, matou a charada na hora, assobiou pro Dudu e pro Bigode para que eles atentassem...
Nicolau vinha num Chevrolet lindo, capota bege, estofado reformado todo branco, o carro brilhava com um vermelho candente, do jeito que ele sonhou a vida toda. A paixão pelo carro tava estampada na cara atrás do brilho do pára-brisa, fazia tempo que não viam o seu sorriso se estender preguiçoso por alguns minutos. Os oito saíram com a buzina. Abraçaram o colega numa comunhão de berros, risos e empurrões. Ele mostrou todo o carro com orgulho. E enfatizou: “Vermelho, vermelho! Carro tem que ser vermelho”! Carro pra ele era paixão, até na cor.
Aquilo certamente merecia uma bebedeira de pelo menos um dia inteiro pra comemorar. Mas, ele entrou no carro, estacionou na frente de casa e fechou a porta como se não quisesse visitas. Os oito acharam estranho, mas deixaram pra lá, imaginando que alguma dor ainda existia no ex-braço-direito do seu Cezar.
“Alô, Marina?” A moça respondeu com voz frágil e serena: “Oi Nico! Fala! o que foi?” Ele chorou calado no telefone, em seguida entonando uma voz forjada, segura e tranqüila: “Você tá ocupada? Posso ver as crianças?” Marina assentiu. Nicolau pegou o carro e partiu apressado.
Ao chegar na casa de Marina, buzinou, nem entrou, e chamou para um passeio os dois filhos que saíram correndo da casa. ”Vai com o papai, vai passear no carro novo”, disse Marina, enxugando uma lágrima que desceu de repente. Marina foi mulher de um homem só, amou Nicolau e ponto. Ela sabia o que aquele carro significava para ele. Era uma paixão conquistada, uma paixão definitiva. Os moleques se acomodaram no banco de trás, enquanto a moça limpava outra lágrima rebelde com o avental, já subindo a escadinha do casebre geminado. Nicolau berrou: “Marina, vem também!” Ela foi. No caminho, Marina evitava qualquer desconforto com o ex-marido. Entretinha os filhos mostrando detalhes do carro. E Nicolau dirigia calado, num silêncio cheio de verdade, de uma felicidade que nunca havia sentido. O carro, agora, na companhia dos três, parecia ser um universo feito sob medida pra ele, uma célula de paixões preenchidas, o núcleo de uma nova família que se formava.


* Jornalista e redator publicitário

O esterco ideológico


* Por Guilherme Scalzilli

Mentes autoritárias poderiam enxergar indícios conspiratórios na edição de 18 de fevereiro (de 2010) do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Afinal, em plena discussão do Projeto de Lei 29, que sofre ataques das operadoras de TVs por assinatura, o caderno publicou três páginas inteiras contendo elogios a elas. O pretexto da iniciativa foi uma crítica do assessor especial de Lula, Marco Aurélio Garcia, que qualificou o conteúdo televisivo importado dos EUA como "esterco cultural".
Entre os muitos depoimentos coletados pela jornalista Ana Paula Sousa, não há sequer uma ponderação favorável ao ponto de vista do assessor. Apenas um trecho de coluna resume de forma superficial o complexo PL, associado a um suposto dirigismo xenófobo. O resultado é uma matéria inexplicavelmente extensa e laudatória, que beneficia abertamente os adversários da regulamentação. Estes, aliás, anunciantes regulares do jornal.
O idiossincrático Marco Aurélio Garcia é ótimo bode expiatório de causas subitamente libertárias. Qualquer contraponto rasteiro a seu "esterco ideológico" ganha ares de cosmopolitismo esclarecido. O assessor não tinha o direito de fazer "top-top" em caráter privado, quando a imprensa tentava exercer sua "liberdade" de culpar o governo federal por um acidente aéreo. E quem é esse petista barbudo e preconceituoso para expor suas opiniões? Só um burocrata muito despótico ousa profanar tesouros culturais, que nos ensinam tanto sobre nós mesmos. Ele merecia ser jogado às galés.

Uma elite com interesses coincidentes

Os argumentos utilizados para defender a TV paga são constrangedores. Fala-se em livre-arbítrio numa relação irregular de consumo (venda casada), que impede o assinante de escolher os canais, forçando-o a pagar por pacotes indesejáveis. E pagar muito caro, recebendo imensidões publicitárias que suplantam a da própria TV aberta. Elogia-se a diversidade num universo monoglota, dominado por uma subcultura estadunidense de folhetim, com exibições defasadas e reprisadas exaustivamente. E, absurdo maior, comemora-se a pífia inserção de produções nacionais, relegadas a nichos irrelevantes, enquanto nossos filmes são boicotados no mercado exibidor, controlado pelos mesmos cartéis corporativos da TV por assinatura.
Parece esperto reduzir o debate aos fãs de Lost e aos poucos profissionais que desfrutam de espaço "independente" no ramo. Afinal, trata-se mesmo de uma elite com interesses coincidentes. Mas logo parecerá novamente moderno e progressista exigir que o governo financie a sobrevivência da indústria televisiva. Democraticamente, é claro, e com dinheiro público.


• Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.

sábado, 26 de fevereiro de 2011




Leia nesta edição:

Editorial – Carência afetiva..

Coluna Direto do Arquivo – Rosana Hermann, crônica “Artistas sem arte”.

Coluna Clássicos – Arnold Toynbee, ensaio “A biosfera”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “Melado com farinha”.

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, poema “A lesma”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo “Se não vos converterdes, todos perecereis”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Carência afetiva

A carência afetiva é uma das sensações mais universais que existem, atingindo todas as classes sociais, de todos os lugares, posto que com duração e intensidade variáveis, de acordo com as circunstâncias e as características psicológicas de cada um. Varia desde a desconfiança de se ser menos amado do que gostaríamos, até a percepção de ser mal amado, ou não amado ou, no extremo, ignorado ou, pior, odiado. Para quem se sente assim, ou seja, para o carente de afeto e de atenção, esse é um sentimento horrível. Para nós, escritores, todavia, é virtualmente o cerne de toda literatura, foco das nossas análises e atenções.
Exagero? Nem tanto! Basta ler, por exemplo, um poema com olhar analítico. Via de regra o poeta queixa-se, em versos ora líricos, ora irônicos, ora amargos (mesmo que apenas nas entrelinhas), de um amor que não prosperou, de alguma traição que sofreu, do menosprezo do objeto amado e vai por aí afora.
Relacionamentos sadios e bem-sucedidos não fornecem base para boa literatura. Há, até, uma letra do cancioneiro popular brasileiro, consagrada pelo cantor Nelson Gonçalves, que diz, em determinado trecho, que o poeta “só é grande se sofrer”. E esse sofrimento a que se refere é o da tal carência afetiva.
Em romances, contos, novelas, peças teatrais e enredos de filmes, é essa condição, mesmo quando não explicitada pelo autor, que está subjacente da primeira à última linha dessas produções e que está por trás dos dramas, comédias, tragédias e circunstâncias que compõem a aventura humana narrada pelo escritor.
Não há quem nunca não tenha se sentido carente de afeto, mesmo que não admita ou sequer identifique essa sensação. São raras as pessoas, por exemplo, que em alguma fase da vida, em geral na adolescência, nunca tiveram alguma paixão “impossível” (ou que caracterizaram dessa forma) e não se frustraram por não lograr a conquista do objeto desse amor (quase sempre platônico). Há exceções? Talvez sim! Não posso assegurar. É impossível de saber.
Conhecemos (e isso quando conhecemos) apenas o que se passa em nossa própria mente e até isso se constitui em conhecimento apenas parcial. Muita coisa que nos aflige e incomoda está restrita ao inconsciente e subconsciente, sem que, portanto, sequer saibamos, embora não deixemos de sentir.
Claro que o tema é vastíssimo e complexo. Esclareço que não é minha intenção me aprofundar nele. Até porque, não sou psicólogo e muito menos psiquiatra. A minha visão do problema é a do escritor, atento a tudo e a todos, para fazer farta colheita da matéria-prima virgem das minhas produções. Só posso tratar do que testemunho sob as lentes aguçadas da observação; do que tomo conhecimento mediante a leitura e do que ouço nos desabafos dos carentes que alugam, amiúde, o meu ouvido.
Ouço, volta e meia, que a carência afetiva é maior na atualidade e quem afirma isso justifica dizendo que nós, desta geração e desta estação do tempo, somos mais egoístas, egocêntricos e indiferentes ao próximo do que nossos antepassados. Discordo. Ouso dizer, até mesmo, que estamos em vantagem em relação às pessoas que viveram em séculos anteriores, quer dos mais próximos, quer dos remotíssimos. Aqueles não contavam, por exemplo, com os espetaculares recursos de comunicação (computador, internet, celular etc.etc.etc.) que contamos.
A possibilidade de contatarmos pessoas que estão, não raro, um continente inteiro distantes de nós, que provavelmente jamais iremos encontrar algum dia, supre, em boa parte, nossas carências afetivas. Vejam o caso das redes sociais, como o Orkut, o Facebook e outras tantas menos conhecidas, em que formamos vastos círculos de “amigos”. Há quem conteste este tipo de amizade, entendendo que sequer mereça tal caracterização. Discordo. Há, de fato, muitos desclassificados, desajustados e mentecaptos que buscam se valer da carência dos incautos para aplicarem golpes de todos os tipos usando esse recurso. Esses idiotas e tarados sempre existiram, com e sem a internet.
Houve caso recente, em Montes Claros, em que uma “fera” doida e sanguinária assassinou uma senhora que acreditou em sua manifestação de amizade e afeto. Esse triste episódio não foi o primeiro, nem o único e provavelmente não será o último, infelizmente. Mas esses celerados arrumariam sempre um jeito de praticar suas estripulias e atrocidades com ou sem a internet e as redes sociais. Estamos todos sujeitos ao azar de cruzar nossos caminhos com o de gente desse tipo, em geral com conseqüências desastrosas, quando não trágicas.
Tomando as cautelas mínimas de praxe, participo, com inegável prazer, sempre que tenho algum tempo, dessas redes sociais. Prezo muito essas amizades virtuais. Enquanto não tenha motivo sequer ditado pela intuição para desconfianças, confio, sem reservas, nesses amigos, da mesma forma que confio nos que freqüentam a minha casa, por exemplo (selecionados a dedo e que, ainda assim, não raro, me decepcionam).
O tema é muito amplo e minha intenção não foi, em momento algum, a de esgotá-lo, mas somente a de fornecer um gancho para a sua reflexão, leitor amigo. É provável que eu volte ao assunto se e quando julgar oportuno.

Boa leitura.

O Editor.

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Artistas sem arte

* Por Rosana Hermann

O programa popular do momento é o show de calouros revisitado do SBT, chamado Ídolos. A medida de sucesso, claro, está no fato do programa ter ficado durante bons minutos em primeiro lugar de audiência, ou seja, na frente da Globo.

Independente do formato ser estrangeiro, dos componentes dramáticos e humorísticos, de detalhes de direção e redação ou até mesmo dos critérios de seleção inicial, Ídolos é um programa que premia as pessoas que têm talento para cantar. Quem não tem voz, afinação, ouvido, não passa. Só fica quem, entre outras coisas, tem o dom de cantar, quem tem uma arte.

Mas a pergunta que fica é... por que então o Brasil tem tantos ídolos sem talento? Cada um de nós é capaz de apontar pelo menos dezenas de cantores que não têm voz, apresentadores que não nasceram para comunicar, escritores que escrevem mal, atrizes sem nenhum conhecimento de interpretação. A lista é interminável, de categorias e representantes sem vocação. São centenas de celebridades que vivem de uma fama artificial construída pela repetição de um nome e pela exposição recorrente de uma imagem. E olha que isso acontece desde antes da invenção dos reality shows, um dos maiores provedores de artistas sem arte da nossa mídia.

E a culpa é de quem? Do famoso? Da mídia? Do público? O mais cômodo seria responsabilizar o mercado ou melhor, a indústria da fama, que movimenta incontáveis veículos de mídia impressa e eletrônica. Mas o maior vilão de todos é mesmo o marketing. O marketing não é uma ciência, ou uma arte, mas uma técnica. A técnica de fazer acreditar não em um objeto, fato ou pessoa na ilusão atribuída a ele. As mesmas regras de marketing que sempre venderam poder e não automóveis, sensualidade e não sabonete, liberdade e não calça jeans, são aplicadas na venda de celebridades. Cantoras, por exemplo, não precisam cantar contanto que tenham corpos perfeitos. O mesmo é válido para atrizes, apresentadores e em alguns casos, até repórteres e jornalistas. Hoje, pessoas também são produtos e, se tiverem atributos aspiracionais que todos queiram imitar certamente farão sucesso.

Deve ser por isso que o programa Ídolos agrada e comove tantos milhões de brasileiros. O programa cumpre seu papel de lembrar como é bom ouvir o talento, ser testemunha do dom.

E fica a lição: um mercado que aceita que o marketing produza cantores sem voz, certamente vai gerar cidadãos que não exigirão que seus políticos tenham honestidade ou compromisso com o povo.

*Rosana Hermann é Mestre em Física Nuclear pela USP de formação, escriba de profissão, humorista por vocação, blogueira por opção e, mediante pagamento, apresentadora de televisão.



A biosfera

* Por Arnold Toynbee



O termo "biosfera" foi criado por Teilhard de Chardin. É um termo novo, exigido por nossa chegada a um estágio mais avançado no progresso de nosso conhecimento científico e poder material. A biosfera é uma película de terra firme, água e ar que envolve o globo (ou globo virtual) de nosso planeta Terra. É o único habitat atual — e, tanto quanto podemos prever hoje, é também o único habitat jamais viável de todas as espécies de seres vivos que conhecemos, a humanidade inclusive.
A biosfera é estritamente limitada em seu volume e, por isso, contém um estoque também limitado dos recursos de que as várias espécies de seres vivos têm de lançar mão para se manterem. Alguns desses recursos são renováveis; outros, insubstituíveis. Qualquer espécie que utilize demais seus recursos renováveis ou esgote os insubstituíveis condena-se à extinção. O número de espécies extintas que deixaram vestígios no registro geológico é assombrosamente elevado em comparação com o número das ainda existentes.
A característica mais significativa da biosfera é seu tamanho relativamente pequeno e a exiguidade dos recursos que oferece. Em termos terrestres, a biosfera é fantasticamente delgada. Seu limite superior pode ser comparado à altitude máxima, na estratosfera, em que um avião pode permanecer no ar; seu limite inferior é a profundidade, abaixo da superfície de sua porção sólida, até onde os engenheiros podem perfurar e abrir minas. A espessura da biosfera, entre esses dois limites, é mínima, como uma película delicada, se comparada ao comprimento do ralo do globo por ela coberto. Este globo está longe de ser o maior dos planetas de nosso sistema solar, e também está longe de ser o planeta mais distante do sol, em torno do qual todos os planetas do sistema "giram" em órbitas que, na verdade, não são circulares, mas sim elípticas. E mais, nosso sol é apenas um dentre o número quase incrível de sóis que formam nossa galáxia, e nossa galáxia é apenas uma, dentre uma multidão de galáxias cujo número é desconhecido (o número de galáxias que se conhecem cresce a cada aumento no alcance de nossos telescópios). Assim, comparadas às dimensões da porção conhecida do cosmos físico, as dimensões de nossa biosfera são infinitesimalmente mínimas.
A biosfera não é tão antiga quanto o planeta que ora envolve. É uma excrescência — poderia também ser chamada de halo ou crosta — que começou a existir muito tempo depois da crosta do planeta haver esfriado suficientemente para que partes de seus componentes, originariamente gasosos, se liquefizessem ou solidificassem. Quase com certeza, é a única biosfera ora existente em nosso sistema solar, e é possível que, dentro deste sistema, nenhuma outra biosfera já tenha existido ou venha a existir. Naturalmente, nosso sistema solar, como nossa biosfera, é apenas uma parte ínfima da porção conhecida do cosmos físico. É possível que outros sóis — talvez vários outros — além do nosso possuam planetas e que, entre esses outros planetas possivelmente existentes, possa haver alguns que, como o nosso, girem em torno de seus sóis a uma distância em que, como nosso planeta, possam criar biosferas em volta de suas superfícies. Mas se, de fato, há outras biosferas em potencial, não se pode pressupor que sejam realmente habitadas por seres vivos, como a nossa. Num habitat em potencial para a vida, essa potencialidade não se realiza necessariamente.
A configuração física da matéria organicamente estruturada foi descoberta agora mas, como já foi observado, o contingente físico da vida, da consciência e do propósito não é a mesma coisa que a própria vida, consciência e propósito. Não sabemos como ou por que a vida, a consciência e o propósito começaram a existir sobre a superfície de nosso planeta. No entanto, sabemos atualmente que os constituintes materiais de nossa biosfera foram redistribuídos especialmente e recompostos quimicamente como resultado da interação entre organismos vivos e matéria inorgânica. Sabemos que um efeito da gênese de organismos vivos "primitivos" foi fornecer um filtro através do qual a radiação que bombardeia constantemente nossa biosfera, provinda de nosso sol e de outras fontes externas, é atualmente admitida em nossa biosfera com urna intensidade não apenas tolerável, como também hospitaleira para formas "superiores" de vida (o termo "superiores" com o significado de mais próximo à forma assumida pela vida na espécie homo sapiens um uso relativo e subjetivo do termo "superior").
Também sabemos que a matéria contida em nossa biosfera foi e está sendo constantemente permutada ou "reciclada" entre as porções dessa matéria que, num dado momento. são inanimadas e animadas e que, na porção animada, no dado momento, algumas seções são vegetais e outras são animais e ainda que, na seção animal, alguns espécimes são não-humanos e outros são humanos. A biosfera existe e sobrevive através de um delicado equilíbrio de forças, auto-regulador e autopreservador. Os constituintes da biosfera são interdependentes e o Homem é exatamente tão dependente de sua relação com o resto da biosfera quanto qualquer dos outros atuais constituintes da mesma. Por um ato de pensamento, um ser humano pode destacar-se do resto da humanidade, do resto da biosfera e do resto do Universo físico e espiritual. A natureza humana, porém, inclusive a percepção consciente e a consciência moral, bem como a compleição humana, também só se encontra localizada na biosfera, e não temos qualquer prova de que seres humanos individuais ou a humanidade tenham - ou possam ter qualquer existência além de sua vida na biosfera. Se a biosfera deixasse de ser um habitat possível para a vida, o destino da humanidade, tanto quanto sabemos, seria a extinção que se estenderia então a todas as demais formas de vida.
Além disso, a biosfera potencial mais próxima da nossa (se é que, além da nossa, existe outra em algum ponto do cosmos físico) pode estar a centenas de milhões de anos-luz de nosso planeta. Em nossa geração, uns poucos seres humanos foram levados à superfície da lua de nosso planeta e, após uma rápida permanência ali, foram novamente trazidos à Terra, ainda vivos em quase todos os casos. Foi um feito magnífico da ciência aplicada à tecnologia, mas foi um feito ainda mais notável de sociabilidade, considerando-se que, até o presente momento, os seres humanos tiveram muito menos sucesso em suas relações uns com os outros do que em dominar a parte não-humana da Natureza. Esse feito deu-nos algumas lições de importância prática para a avaliação de nossas perspectivas e escolha de nossa política de ação na Terra.
A Lua está muito mais próxima da Terra do que qualquer outra estrela; é o satélite de nosso planeta. Mandar alguns homens à Lua por umas poucas horas, porém, exigiu o trabalho precisamente coordenado e entusiasticamente cooperativo de várias centenas de milhares de seres humanos. Também exigiu um grande gasto de recursos materiais e considerável utilização de coragem e capacidade, que são os bens mais raros e preciosos da humanidade. Mesmo que a Lua provasse ser tão rica em recursos para a vida humana quanto as Américas, a exploração dos mesmos não seria economicamente lucrativa. Uma colonização permanente da Lua por seres terrenos seria impraticável. Os corpos humanos possuem urna estrutura física que lhes permite suportar, sem esforço, a força gravitacional peculiar à massa da Terra e a pressão peculiar ao revestimento de ar da Terra. Têm necessidade de alimento sob a forma de outras substâncias orgânicas, vegetais ou animais. Todas essas características e necessidades da vida humana estavam presentes nas Américas para os europeus que lá chegaram, atravessando o Atlântico no século X da era cristã, partindo da Escandinávia e, no século XV, oriundos da Espanha. O fato de encontrarem outros seres humanos que se haviam antecipado aos europeus na chegada e ocupação das Américas era uma prova de que essas outras partes de terra firme no planeta também eram habitáveis.
A Lua não é habitável para forma alguma de vida. A única matéria lunar que poderia ser um recurso para os seres humanos seria matéria inanimada, que jamais foi orgânica, mesmo temporariamente. Para se tornar útil, essa matéria lunar teria de ser transportada da Lua para a Terra por seres humanos acampados e trabalhando na Lua, com a desvantagem de condições extremamente duras. Isso não compensaria, como compensou trazer fumo da América para a Europa e cultivar, na Europa e na Ásia, também outras plantas — a exemplo do milho e da batata — - que haviam sido tornadas domésticas, na América, pelos predecessores dos europeus, que lá haviam chegado pelo extremo oposto.
Embora nem a Lua nem os planetas irmãos da Terra, que estão muito mais afastados da Terra do que a Lua, sejam habitáveis para os habitantes de nossa biosfera, é possível imaginar que algum outro sol, talvez numa outra galáxia, possa ter um planeta que seria habitável para nós; mas, mesmo que pudéssemos localizar um outro planeta habitável. não seria viável, para viajantes partindo de nossa biosfera, atingi-lo. Suponhamos que descobríssemos como dirigir a rota sem sermos atraídos, pelo caminho, para uma das escaldantes fornalhas. dos inúmeros sóis que se movem pelo espaço: a viagem poderia levar cem anos. Assim. teríamos que criar uma nave espacial onde os passageiros pudessem gerar filhos que pudessem viver a bordo e, por sua vez, gerar filhos e netos antes de o veículo poder pousar e desembarcar a terceira ou quarta geração. E mesmo que essa geração ao chegar a aterrisar pudesse ter certeza de encontrar ar respirável, água potável e alimentos comestíveis, além de uma pressão atmosférica e força gravitacional toleráveis nessa réplica hipotética de nossa biosfera, o veículo (urna Arca de Noé modernizada) em que fizessem a viagem de uma a outra biosfera habitável teria que carregar rações de ar, alimento e bebida que mantivessem vivas gerações sucessivas, a bordo, durante um século. Parece extremamente improvável que essa viagem fabulosa venha realmente a ser feita.
Assim, nosso conhecimento e experiência atuais levam à conclusão de que o habitat dos naturais da biosfera localizada sobre a superfície do planeta Terra continuará confinado a essa cápsula. dentro da qual surgiu a vida, na forma como a conhecemos. Embora seja possível que existam outras biosferas habitáveis para os naturais da nossa biosfera, é tão improvável que possamos jamais alcançar e colonizar qualquer delas que não seria razoável levar essa possibilidade em consideração. De fato, é uma fantasia utópica.
Se concluirmos, então, que nossa biosfera atual, que até agora foi nosso único habitat, é também o único habitat físico que temos probabilidade de ter, essa conclusão irá exortar-nos a concentrar nossos pensamentos e esforços nesta biosfera: estudar sua história, prever suas perspectivas e fazer tudo o que a ação humana puder fazer para garantir que esta - que, para nós, e a -— biosfera permaneça habitável até que, com o passar do tempo, se torne inabitável em virtude de forças cósmicas além do controle humano.
O poder material da humanidade aumentou agora em tal grau que poderia tornar inabitável a biosfera e, realmente, irá produzir esse resultado suicida num período de tempo previsível, se a população humana do globo não empreender agora ação conjunta e vigorosa para conter a poluição e espoliação que estão sendo infligidas à biosfera pela ganância cega da humanidade. Por outro lado, o poder material da humanidade não bastará para garantir que a biosfera continue a ser habitável, na medida em que nos abstenhamos de destruí-la pois, embora a biosfera seja finita, não é auto-suficiente. A Mãe-Terra não gerou a vida por partenogênese. A vida foi gerada na biosfera através da fertilização da Mãe--Terra por um pai: o Aton do faraó Aquenaton, o disco solar, que é "o Sol Inconquistável", "Sol Invictus" dos imperadores romanos ilírios. de Aureliano a Constantino, o Grande.
A reserva de energia física da biosfera — que é a fonte material de vida e também a fonte da força física presente na natureza inanimada, que o homem agora dominou — não se origina na própria biosfera. Essa energia física foi e é constantemente irradiada para a biosfera por nosso sol e também por outras partes cósmicas e o papel da biosfera, nessa recepção vital de radiação provinda de além de seus confins, é meramente seletivo. Já foi mencionado que a biosfera filtra a radiação que cai sobre ela. Admite os raios que geram a vida e repele os que são letais. Esse jorro benéfico de radiação sobre a biosfera a partir de fontes externas, porém, só continuará a ser benéfico enquanto o filtro não for retirado de ação, e enquanto essas fontes de radiação permanecerem invariáveis; e nosso sol, como todos os demais no cosmos estelar, está-se modificando constantemente. É concebível que, numa data futura, algumas dessas modificações cósmicas, em nosso sol ou em outras estrelas, possam alterar de tal forma a incidência de radiação recebida por nossa biosfera que tornem inabitável o que é hoje urna biosfera e, se e quando nossa biosfera for ameaçada por essa catástrofe, parece improvável que o poder material da humanidade seja suficientemente grande para conseguir neutralizar uma alteração mortal na influência de forças cósmicas.
Consideremos, agora, os componentes da biosfera e a natureza de suas relações uns com os outros. Há três componentes na biosfera: em primeiro lugar, matéria que ainda não se tornou viva pela aquisição de uma estrutura orgânica; em segundo lugar, matéria orgânica viva; e em terceiro, matéria inanimada que já foi viva e orgânica e que ainda mantém algumas qualidades e poderes orgânicos. Sabemos que a biosfera é mais nova do que o planeta que envolve; também sabemos que, dentro da própria biosfera, a vida e a percepção consciente não estão presentes há tanto tempo quanto a matéria com a qual vieram a associar-se. A película de matéria que, atualmente, é uma biosfera, já foi inteiramente inanimada e inconsciente, como ainda o é a maior parte da matéria do globo. Não sabemos como ou por que uma parte da substância material da biosfera se tornou finalmente animada, nem como ou por que, num estágio ainda posterior, uma parte dessa matéria viva se tornou consciente. Podemos formular a mesma pergunta inversamente: como e por que a vida e a percepção consciente vieram a se encarnar? Mas também dessa forma inversa a resposta ao enigma ainda nos escapa.
O componente exorgânico da biosfera é surpreendentemente vasto e forneceu à humanidade alguns dos recursos mais importantes para a manutenção da vida humana. Atualmente é do conhecimento geral que os recifes e ilhas de coral foram produzidos por miríades de animais minúsculos, cada um acrescentando seu incremento ínfimo de rocha artificial sólida e resistente. No curso de milênios, o trabalho realizado por esses minúsculos animais aumentou notavelmente a área de terra firme na biosfera, habitável para formas de vida não-aquáticas. Esses seres vivos minúsculos, mas inúmeros e infatigáveis, construíram uma área adicional de terra firme insular habitável maior do que a proveniente da poderosa força inanimada da ação vulcânica, que rivalizou com os minúsculos animais autores do coral, ao empilhar matéria sólida sob a água até emergir uma ilha acima da superfície do mar.
Também é do conhecimento geral, atualmente, que o carvão é um produto dos troncos de árvores que já tiveram vida, e que o solo fértil deve parte de sua fertilidade ao fato de haver sido atravessado por minhocas e haver sido povoado por bactérias de espécies que lhe intensificam a capacidade de sustentar a vegetação; o leigo, porém, ainda se surpreende se um geólogo lhe sugerir que a pedra calcária, ora visível nos picos recortados de algumas das atuais cadeias de montanhas da biosfera, é produto de depósitos das conchas ou ossos de animais marinhos no fundo de mares desaparecidos há muitos e muitos anos, e que esses depósitos horizontais de matéria orgânica que já teve vida foram dobrados - recentemente, em termos da escala de tempo dos geólogos - por uma contração da crosta da Terra, e redobrados, até serem impulsionados para cima, adotando suas formas contorcidas atuais. O leigo irá surpreender-se ainda mais se lhe for dito que os vastos depósitos subterrâneos de óleo mineral também podem ser matéria ex-orgânica — isto é, que podem ser semelhantes ao carvão, e não ao minério de ferro ou granito: substâncias que jamais passaram por um estágio orgânico na configuração de suas moléculas constituintes.
A magnitude surpreendente da massa de matéria ex-orgânica na biosfera chama nossa atenção para alguns aspectos desconcertantes da história da vida (chamada erroneamente de "evolução", um termo que significa não uma alteração genuína, mas o "desdobramento" de alguma coisa que sempre existiu naquele lugar em estado latente). A vida diferenciou-se numa quantidade de gêneros e espécies distintos e cada espécie é representada por uma quantidade de espécimes. A multiplicidade de espécies e espécimes foi a condição que permitiu a progressão da vida, de organismos relativamente simples e fracos para organismos relativamente complexos e potentes, mas o preço dessa progressão, através de divisão e diferenciação, foi a competição e a luta. Cada espécie e cada espécime de cada uma das espécies compete com as demais pela posse dos constituintes da biosfera, inanimados e animados que, para uma determinada espécie e para seus espécimes, sejam recursos, no sentido de serem meios efetivos de manutenção da vida. Em alguns casos a competição foi indireta: uma espécie, ou um espécime de uma espécie, extinguiu outra ou outro não por ato de rapina ou extermínio, mas ganhando para si a parte do leão de algum recurso que, para ambos os competidores, é uma das necessidades vitais. Quando os espécimes de espécies não-humanas de animais lutam por alimentos, água ou acasalamento, os perdedores têm a fama de pedir clemência e recebê-la dos vencedores em troca de sua rendição. Os seres humanos têm a fama de ser os únicos animais que lutam entre si até a morte e que massacram as mulheres e crianças "do inimigo", bem como os velhos e combatentes masculinos. Essa fonte de atrocidade distintamente humana estava sendo perpetrada no Vietnã no momento em que eu escrevia essas palavras em Londres, e tem sido celebrada — e dessa forma, embora não intencionalmente. abominada — em famosas obras de arte criadas nos últimos 5.000 anos; por exemplo, a paleta do Rei Narmer, o baixo-relevo de Eannatum, a estrela de Naramsin e os monumentos de seus imitadores assírios subsequentes, as epopéias gregas de Homero e a coluna de Trajano.
Assim, a progressão da vida foi parasitária, em seu melhor aspecto, e predatória na pior das hipóteses. O Reino Animal tem sido um parasita do Reino Vegetal; os animais (pelo menos os animais não-marinhos) não poderiam vir a existir se a vegetação já não existisse como fornecedora vital de ar e alimento para os animais; algumas espécies de animais se mantêm matando e devorando animais de outras espécies, e o homem tornou-se um desses carnívoros desde a época em que saiu de seu abrigo anterior, no alto das árvores, e aventurou-se no solo, arriscando-se a ali matar ou morrer. As vítimas da progressão da vida são as espécies que se tornaram extintas e os representantes de espécies sobreviventes, que são continuamente massacrados. O homem domesticou algumas espécies de animais não-humanos para roubar-lhes seus produtos - leite ou mel - enquanto vivos, e matá-los implacavelmente para usar sua carne como alimento, e seus ossos, tendões, couro e peles como matérias-primas para a confecção de ferramentas e roupas.
Os seres humanos também têm feito presas entre si. O canibalismo e a escravatura têm sido praticados em sociedades altamente sofisticadas - ambas essas enormidades na Meso América pré-colombiana, por exemplo, e a escravatura nas sociedades greco-romana, islamita e ocidental moderna. Um escravo é um ser humano tratado como se fosse um animal doméstico não-humano e o caráter revoltante do tratamento dispensado pelo homem a animais não-humanos foi confessado implicitamente no movimento, durante os dois últimos século, em prol da abolição da prática de se escravizarem seres humanos. Além disso, a emancipação jurídica de escravos pode não liberá-los de fato, pois um homem juridicamente livre pode ser explorado servilmente. Um colono romano nominalmente livre no século IV de nossa era, bem como um decurião romano da mesma época, eram menos livres de fato do que um pastor romano, administrador de terra ou oficial escravo do imperador no século 1 de nossa era, ou do que um mameluco islamita (este termo árabe significa "reduzido a ser uma peça de propriedade"; no entanto, para um mameluco, a escravidão jurídica era o meio para se tornar amo e senhor de uma multidão de camponeses juridicamente livres). Nos Estados Unidos, os negros, emancipados juridicamente em 1862, percebem agora, mais de um século depois, e com justa razão, que a maioria branca de seus concidadãos ainda lhes nega direitos humanos plenos.
A atrocidade especificamente humana que vem desaparecendo mais depressa é o assassinato sob a forma ritual de sacrifício humano. O assassinato foi amplamente condenado quando o motivo era ganância ou ódio pessoal. O assassinato como punição para crime igual também vem sendo progressivamente abolido. Em alguns estados de hoje, foram abolidos não apenas feudos privados com derramamento de sangue, como também as execuções oficiais. Também o assassinato ritual foi abolido nos casos em que o deus ao qual se sacrifica a vítima humana é uma deificação deste ou daquele recurso natural necessário à manutenção da vida humana — por exemplo, a chuva, as colheitas ou o gado. Todavia, desde a época em que o homem obteve o controle da natureza não-humana, Os deuses adorados com mais devoção, fanatismo e ausência de remorso foram deificações do poder humano coletivo organizado, através do qual o homem venceu a natureza não-humana.
Os estados soberanos têm sido os objetos supremos de adoração da humanidade durante os últimos 5.000 anos; e são divindades que têm exigido e recebido hecatombes de sacrifícios humanos. Os estados soberanos fazem guerra uns contra os outros e, na guerra, cada um deles exige da elite de seus súditos masculinos que assassinem os súditos do estado "inimigo", arriscando-se a serem assassinados por suas pretensas vítimas. Até onde nos leva a memória, todos os seres humanos. à exceção de algumas pequenas minorias a exemplo dos membros da Sociedade de Amigos — consideram o fato de matar e morrer na guerra como não apenas legítimo, mas também meritório e glorioso. Matar na guerra, bem como matar para executar uma sentença de morte, tem sido paradoxalmente desculpado como "não sendo assassinato".
A progressão da vida na biosfera tem valido seu preço em angústia? Um ser humano vale mais do que uma árvore, ou esta vale mais que uma ameba? A progressão da vida produziu uma série ascendente de espécies apenas se calcularmos a ascendência em termos de poder. A humanidade é a espécie mais poderosa que surgiu até agora, mas é, por si só, má. Os seres humanos são inigualáveis em sua capacidade de serem maus, porque são inigualáveis em terem consciência do que f azem e em fazerem escolhas deliberadas. O poeta William Blake, considerando as criaturas vivas em termos tradicionais, como obra de um deus criador semelhante - ao homem, aterrorizou-se, com justa causa, com a criação do tigre. O tigre, porém, ao contrário do homem e de um deus criador hipotético, é inocente. Quando um tigre satisfaz sua fome matando e devorando sua vítima, não é atormentado pela consciência. Por outro lado, seria um ato sem propósito, desnecessário e supremamente mau se um deus houvesse criado o tigre para matar o cordeiro, o ser humano para matar o tigre, e o bacilo e o vírus para que mantivessem sua espécie matando seres humanos em massa.
Assim, à primeira vista, a progressão da vida parece má - objetivamente má, mesmo se afastarmos a crença de que esse mal foi deliberadamente criado por um deus que, se realizou sua obra intencionalmente, deve ser pior do que qualquer ser humano jamais teve o poder de ser. No entanto, esse primeiro juízo acerca das consequências da progressão da vida testifica que, além do mal, há, na biosfera, uma consciência moral que condena e abomina o mal.
Essa consciência reside no homem. A revolta da consciência humana contra o mal é prova de que o homem também é capaz de ser bom e sabemos, por experiência, que os seres humanos podem agir e às vezes agem — altruística e desinteressadamente, a ponto de se sacrificarem inteiramente por seus companheiros. Também sabemos que o auto-sacrifício não é uma virtude exclusivamente humana. O motivo clássico de auto-sacrifício é o amor de uma mãe por seus filhos, e as mães humanas não são as únicas a se sacrificarem por esta causa. O amor materno que se auto-sacrifica é encontrado em outras espécies de mamíferos e também entre os pássaros.
Além disso, todas as espécies que se mantêm em existência pela reprodução obtêm de seus espécimes vivos uma cooperação entre representantes dos dois sexos, a qual não representa um benefício direto para os próprios indivíduos, mas sim um serviço que prestam à espécie. Numa visão panorâmica, também podemos verificar que a intenção das várias espécies de vida não toma apenas a forma de competição e conflito. Embora a relação entre o Reino Vegetal e o Reino Animal seja, sob um aspecto, uma relação entre um hospedeiro explorado e um parasita predatório, sob outro aspecto os dois remos agem como parceiros trabalhando pelo interesse comum de manter a biosfera habitável, tanto para as plantas como para os animais. Essa interação cooperativa garante, por exemplo, a distribuição e circulação de oxigênio e dióxido de carbono num movimento rítmico que torna a vida possível.
Dessa forma, a progressão da vida na biosfera parece revelar em si duas tendências antitéticas e contrárias uma à outra. Quando um ser humano estuda a história da biosfera até o ponto atual, verifica que essa história produziu tanto o bem quanto o mal, e tanto a maldade quanto a virtude.
Esses conceitos, naturalmente, são exclusivamente humanos. Somente um ser que possui percepção consciente pode distinguir entre o bem e o mal, e escolher entre agir com maldade ou virtude. Esses conceitos são não-existentes para as criaturas vivas não-humanas, e estas são consideradas boas ou más segundo juízos humanos.
Isso significa que os padrões éticos são impostos arbitrariamente por uma sanção humana e que essa sanção é irrelevante para os fatos da vida e, portanto, utópica? Poderíamos ser levados a essa conclusão se o homem fosse simplesmente um espectador e censor, observando e avaliando a biosfera, de seu exterior. O homem é, com certeza, tanto espectador quanto censor. Esses papéis que desempenha são corolários de sua faculdade de percepção consciente e de seu consequente e inevitável poder e necessidade de fazer escolhas éticas e emitir juízos éticos. A humanidade, porém, também é um ramo da árvore da vida; somos um dos produtos da progressão da vida e isso significa que os padrões e juízos éticos do homem são inerentes à biosfera e, portanto, à realidade total de que faz parte a biosfera. Assim, vida e percepção consciente e o bem e o mal não são menos reais do que a matéria à qual estão misteriosamente associados na biosfera. Se supomos que a matéria seja um constituinte primordial da realidade, não temos razão alguma para supor que essas manifestações não-materiais da realidade não sejam também primordiais.
Todavia, na progressão da vida da biosfera, a percepção consciente surgiu na época, relativamente recente, em que surgiu o homem e, atualmente, tomamos consciência, tardia e abruptamente, de que a presença do homem está apresentando agora uma ameaça à habitabilidade da biosfera para todas as formas de vida, inclusive a própria vida humana. Até agora, competição e conflito, que foram um aspecto da progressão da vida, causaram a extinção de numerosas espécies de seres vivos e também mortes prematuras, violentas e dolorosas a inúmeras espécimes de todas as espécies. A humanidade cobrou uma taxa de sacrifício humano a si própria, além de causar a morte de espécies rivais de predadores e de extinguir uma quantidade de espécies de plantas. Até mesmo os tubarões, bactérias e vírus já não estão à altura de seus adversários humanos. Todavia, até o momento atual, essa destruição de determinadas espécies e de espécimes individuais de certas espécies não pareceu representar, em si, uma ameaça à sobrevivência da própria vida. Até agora, a extinção de algumas espécies de vida deu oportunidade ao florescimento de outras.
O homem tem sido a mais bem sucedida de todas as espécies em dominar os demais constituintes da biosfera, animados e inanimados. No despertar de sua percepção consciente o homem encontrou-se à mercê da natureza não-humana; decidiu-se a fazer de si o senhor da natureza não-humana e avançou progressivamente em direção à consecução desse objetivo. Nos últimos 10.000 anos, desafiou a seleção natural, substituindo-a pela seleção humana na medida de suas possibilidades. Promoveu a sobrevivência de plantas e animais que domesticou para suas próprias necessidades e empreendeu o extermínio de algumas outras espécies que considerou nocivas. Rotulou essas espécies indesejáveis de "ervas daninhas" "vermes" e, ao lhes dar esses rótulos pejorativos, informou que fará todo o possível para exterminá-las. Na medida em que o homem conseguiu substituir a seleção’ natural pela seleção humana, reduziu o número de espécies sobreviventes.
No entanto, durante o primeiro estágio de sua carreira, que até agora foi, indubitavelmente, o estágio mais longo, o homem não deixou na biosfera marca tão profunda quanto a deixada por alguns de seus companheiros vivos de outras espécies. As pirâmides de Gizé e Teotihuacán e as montanhas feitas pelo homem em Cholula e Sakai tornam minúsculos os templos, catedrais e "arranha-céus" de épocas posteriores; contudo, os maiores monumentos feitos pelo homem são insignificantes quando comparados à obra dos minúsculos animais que construíram as ilhas de coral. Por volta do despertar da civilização, há cerca de 5.000 anos, o homem havia tomado consciência da preeminência do poder que adquirira na biosfera; antes do início da Era Cristã ele havia descoberto que a biosfera é um invólucro finito em torno da superfície de uma estrela que é um globo; desde o século XV da era cristã os europeus vêm ocupando e povoando as porções da superfície terrestre da biosfera, antes esparsamente povoadas. Até a geração atual, porém, a humanidade continuou a se comportar, na prática, como se o suprimento dos recursos não-substituíveis da biosfera, como os minerais, fossem inesgotáveis e como se o mar e o ar fossem não-poluíveis.
De fato, até recentemente esses constituintes da biosfera pareciam virtualmente infinitos quando mensurados em termos da capacidade humana de exauri-los ou poluí-los. Em minha infância (nasci em 1889), ainda parecia fantástico imaginar que o homem jamais teria o poder de poluir toda a atmosfera circum-ambiente, embora em Londres, onde cresci, e também em Manchester, St. Louis e num número crescente de outras cidades, naquela época, a fumaça gerada peia queima doméstica e industrial de carvão produzisse névoa que interceptava a luz do sol e sufocava os pulmões humanos dias a fio. Essa ameaça à pureza da atmosfera não era levada em conta, mas considerada nada mais do que um aborrecimento local e ocasional. Quanto à possibilidade de que as atividades humanas pudessem poluir o mar, teria sido considerada uma fantasia ridícula.
A verdade é que, até o terceiro quartel do século XX d.C., a humanidade havia subestimado o seu recente aumento no poder de afetar a biosfera. Esse aumento foi produzido por duas novas perspectivas: primeiro, o empenho deliberado e sistemático na pesquisa científica e a aplicação desta ao avanço da tecnologia; em segundo lugar, o controle, para aplicação a propósitos humanos, da energia física patente ou latente nos constituintes inanimados da biosfera — por exemplo, a energia da água perpetuamente fluindo para baixo, em direção ao nível do mar, depois de haver sido elevada do nível do mar para a atmosfera. Desde o início da Revolução Industrial na Grã-Bretanha, há duzentos anos, essa força hidráulica gravitacional, que anteriormente fora aplicada a pouco mais que moer o grão, foi controlada de modo a fazer funcionar maquinaria para a manufatura de muitos tipos de bens materiais. A força hidráulica também foi elevada a graus mais altos de potência ao ser convertida em força a vapor e energia elétrica. A eletricidade pode ser gerada a partir da força física de quedas d’água naturais ou artificiais, mas a água não pode ser convertida em vapor sem ser aquecida pela combustão de elementos combustíveis, e estes foram usados não apenas para converter força hidráulica em força a vapor e energia elétrica, como também para substituir com vantagem o uso da força hidráulica, mesmo em sua forma mais potente. Além disso, o carvão vegetal, combustível substituível derivado da madeira, foi suplantado por combustíveis não-substituíveis: carvão mineral, petróleo e, finalmente, urânio.
O urânio, o combustível de exploração mais recente, liberta energia atômica mas, ao aventurar a manipulação dessa força titânica, o homem, desde 1945, embarcou na mesma aventura que teve um fim trágico para o semideus mitológico Faetonte, quando roubou a carruagem de seu pai divino, o Sol. Os corcéis da carruagem de Hélio abandonaram o caminho, quando sentiram que as rédeas haviam sido tomadas pelas fracas mãos de um mortal. Abandonaram seu curso normal e a biosfera ter-se-ia transformado em cinzas se Zeus não a houvesse salvo da destruição, matando sumariamente, com um raio, o presunçoso remplaçant mortal do Sol. O mito de Faetonte é uma alegoria do risco a que o homem se expôs ao brincar com a energia atômica. Resta saber se o homem será capaz de utilizar impunemente essa poderosa força material. Seu poder não tem precedentes, mas também não tem precedentes o veneno de sua ação de destruição radiativa. Agora o homem interferiu no processo pelo qual a biosfera — a Mãe-Terra da vida — foi impregnada de radiação solar em termos que dão vida, e não em termos letais. Esse feito portentoso da tecnologia científica humana, conjugada às consequências dos feitos prévios e menores da Revolução Industrial, ameaça agora tornar a biosfera inabitável.
Assim, estamos agora num, ponto decisivo da história da biosfera e da história mais curta de um de seus produtos e habitantes, a humanidade, O homem foi o primeiro dos filhos da Mãe-Terra a subjugar a mãe da vida e a subtrair às mãos do pai da vida, o Sol, a força terrível da energia solar. Agora, o homem deixou essa energia solta na biosfera, nua e crua, pela primeira vez desde que a biosfera se tornou capaz de abrigar a vida. Hoje em dia não sabemos se o homem estará disposto ou será capaz de evitar trazer para si e para os demais seres vivos o destino de Faetonte.
O homem é a primeira espécie de ser vivo em nossa biosfera que adquiriu o poder de destruí-la e, ao assim fazer, de liquidar a si mesmo. Como organismo psicossomático, o ‘homem está sujeito, como todas as outras formas de vida, a uma lei inexorável da natureza, O homem, como os demais seres vivos de outras espécies, é parte integrante da biosfera e. se a biosfera se tornasse inabitável, o homem, bem como todas as outras espécies, seria extinto.
A biosfera tem podido abrigar a vida porque tem sido uma associação auto-reguladora de componentes mutuamente complementares e antes do aparecimento do homem, nenhum componente da biosfera — orgânico, ex-orgânico ou inorgânico — jamais obteve o poder de perturbar o equilíbrio delicadamente ajustado do jogo de forcas por meio das quais a biosfera se tornou um lar hospitaleiro para a vida. As espécies pré-humanas de seres vivos, que eram incapazes ou agressivas demais para se manterem em harmonia com o ritmo da biosfera, foram liquidadas pela ação desse ritmo muito antes de sua incapacidade ou agressividade chegarem perto de ameaçar perturbar o ritmo de que dependia sua vida e a vida de todas as outras espécies. A biosfera era muitíssimo mais potente do que qualquer de seus habitantes pré-humanos.
O homem é o primeiro dos habitantes da biosfera a ser mais potente que ela própria. A aquisição de percepção consciente pelo homem permitiu-lhe fazer escolhas e, portanto, conceber e pôr em prática planos que possam impedir a natureza de liquidá-lo como liquidou outras espécies que se tornaram um estorvo e uma. ameaça à biosfera como um todo. O homem pode conseguir sobreviver até destruir a biosfera se resolver destruí-la mas, se tomar essa decisão, nã3o poderá fugir a seu merecido castigo. Se o homem destruir a biosfera irá exterminar a si mesmo, bem como a todas as outras formas de vida psicossomática sobre a superfície da mãe da vida, a Terra.
A partir deste ponto, portanto, podemos fazer um exame retrospectivo, até o presente, do encontro entre a Mãe-Terra e o Homem, o mais poderoso e enigmático de todos os seus filhos, O enigma reside no fato de que o homem, e só ele, entre os habitantes da biosfera, também é habitante de outro reino — um reino espiritual, não-material e invisível. Na biosfera, o homem é um ser psicossomático, agindo em um mundo material e finito. Neste plano de atividade humana, o objetivo do homem, desde que se tornou consciente, tem sido tornar-se senhor de seu ambiente não-humano e, em nossos dias, tem à vista o sucesso deste esforço — possivelmente para sua própria destruição. Mas a outra morada do homem, o mundo espiritual, também é parte integrante da realidade total; difere da biosfera por ser não-material e infinito; e, em sua vida no mundo espiritual, o homem acha que sua missão é buscar não um domínio material sobre seu ambiente não-humano, mas um domínio espiritual sobre si mesmo.
Esses dois objetivos antitéticos e os dois ideais diferentes que os inspiram foram expostos em textos famosos. A diretiva clássica para o homem tornar-se senhor da biosfera é dada no versículo 28 do primeiro capítulo do Livro do Gênese:
Crescei e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movam sobre a Terra.
Essa diretriz é clara e enfática, mas também o são as rejeições a ela. "Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal" soa como uma resposta direta à diretriz do Livro do Gênese e o Novo Testamento foi precedido pelo Tao tê Ching ao declarar que as realizações tecnológicas e de organização do homem são uma armadilha.
Quanto mais "armas aguçadas" houver,
Mais incivilizada crescerá a terra inteira.
Quanto mais artífices engenhosos houver,
Mais instrumentos perniciosos serão inventados.
Quanto mais leis forem promulgadas,
Mais ladrões e bandidos haverá.’
Entesa um arco ao máximo,
E desejarás ter parado a tempo. (2)
Ele poderia fazer com que, embora houvesse entre o povo instrumentos que exigissem dez, cem vezes menos trabalho, o povo não os usasse. (...) Poderia ainda haver barcos e carruagens, mas ninguém entraria neles; poderia ainda haver armas de guerra, mas ninguém as usaria.(3)
Essas passagens do Tao té Ching têm seu correspondente no Evangelho segundo S. Mateus:
Olhai os lírios do campo como crescem: não trabalham nem fiam. Digo-vos que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles,(4)
Trata-se de rejeições à solicitação para nos dedicarmos a aquisição de poder e riqueza. Abrem caminho ao apelo para que abracemos um ideal oposto.
Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida perdê-la-á, e quem perder a vida por mim e pelo Evangelho, esse a salvará. E que aproveita ao homem ganhar o mundo todo e perder sua alma? Pois que dará o homem em troca de sua a1ma? (5)

Se um ser humano perdesse sua alma, deixaria de ser humano, pois a essência do ser humano é ter consciência de uma presença espiritual por trás dos fenômenos e é como alma, e não como organismo psicossomático, que o ser humano está em comunicação com essa presença espiritual ou mesmo se identifica com ela, na experiência dos místicos.
Vendo corno vive, na biosfera e no mundo espiritual simultanearnentc, o Homem é na verdade um anfíbio, como foi habilmente chamado por Sir Thomas Browne e, cm cada um dos dois elementos em que vive, possui um objetivo. O homem, porém, não pode atingir os dois objetivos inteiramente, ou servir a dois senhores. Um de seus objetivos e um de seus senhores deve ser considerado supremo ou até mesmo receber dedicação exclusiva, caso os dois demonstrem ser incompatíveis e irreconciliáveis. Qual das duas alternativas deve ser escolhida? O debate acerca dessa questão tornou-se explícito na Índia, na geração de Buda, por volta da metade do último milênio a.C. Era explícito no Ocidente, na geração de S. Francisco de Assis, no século X~1II d.C. Em ambas as ocasiões, a escolha de alternativas opostas levou a uma separação entre pai e filho. Provavelmente o problema tem estado implicitamente em discussão desde o despertar da percepção consciente, pois uma das verdades fluas por ela reveladas ao ser humano é a ambivalência moral da natureza humana. Todavia, na maioria das vezes e no maior número de lugares até os dias de hoje, as pessoas têm evitado trazer à baila o problema que levou Buda e 5. Francisco a cortarem os laços naturais que os prendiam às respectivas famílias. Foi somente em nossa própria geração que a escolha tornou-se inevitável para a humanidade como um todo.
Em nossa geração o domínio total que o homem obteve sobre toda a biosfera está ameaçando derrotar as intenções do homem, destruindo a biosfera e exterminando a vida, inclusive a própria vida humana. Desde o século XIII o homem ocidental tem venerado abertamente Francesco Bernardone, o santo que renunciou à herança de um lucrativo negócio de família e foi recompensado com os estigmas de Cristo por haver esposado a Pobreza. O exemplo que o homem ocidental vem realmente seguindo, porém, não é o de S. Francisco; o homem ocidental tem imitado o pai do santo, Pietro Bernardone, o bem sucedido negociante de tecidos por atacado. Desde o início da Revolução Industrial, o Homem Moderno tem-se dedicado, de forma mais obsessiva que qualquer de seus antecessores, à busca do objetivo que lhe foi apresentado no primeiro capítulo do Livro do Gênese.
Parece que o homem não conseguira salvar-se da destruição de seu poder e ganância materiais diabólicos, a menos que passe por uma mudança em seu coração, a qual o leve a abandonar seu objetivo presente, adotando o ideal contrário. Sua situação presente, imposta por ele mesmo, apresentou-lhe um desafio peremptório. Poderá o homem vir a aceitar, como regras práticas necessárias de conduta para pessoas de estatura moral comum, os preceitos pregados e praticados por santos, que até agora têm sido considerados conselhos utópicos de perfeição para l’homme moyen sensuel? O debate sobre este problema — que já vem de longe e parece estar-se aproximando de um clímax em nossos dias é o tema da presente crônica acerca do encontro da Humanidade com a Mãe-Terra.


NOTAS:
1Tao tê Ching, cap. 57, citado na tradução de Arthur Waley, The Way
and its Power (Londres, 1934, Allen and Unwin), p. 211.
2Op. cit., cap. 9, p. 152.
3Op. cit., cap. 80, p. 241.
4Mateus, 6, 28-29.
5Marcos, 8, 34-37. Comp. Mateus, 16, 24-26; Lucas, 9, 23-25.

Toynbee, A (1979) A Humanidade e a Mãe Terra, Uma História Narrativa do Mundo, Segunda Edição, p. 22-40.

• Historiador britânico, cuja obra-prima é Um Estudo de História (A Study of History), em que examina, em doze volumes, o processo de nascimento, crescimento e queda das civilizações sob uma perspectiva global.