quinta-feira, 30 de abril de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Livro eletrônico.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica “Um para o outro”.

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Tarde de mais (II)”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “De homens e bois”.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk – crônica, “Adoradores da vida”.

Coluna Porta aberta – André Rosa, crônica “Quem é ela...”

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Livro eletrônico

Há quem entenda que o livro eletrônico, editado e distribuído apenas na internet (ou seja, o não-impresso), seja boa solução para uma estréia literária, face às dificuldades (que já foram muitíssimo maiores) de se conseguir uma editora que livre o escritor principiante do ineditismo.
Essa pode vir a ser, até, boa saída, mas no futuro (talvez até muito mais próximo do que se acredita).. A tendência é que, em mais algumas décadas, desapareçam todos os impressos (jornais, revistas, livros etc.), dada a crescente escassez de papel. A procura é cada vez maior e a oferta nem sempre é suficiente para atender toda a demanda. Ademais, esse produto, de tamanha utilidade nos tempos atuais, traz uma série de inconvenientes na sua produção. O maior, é a tremenda poluição ambiental que produz.
No presente, por maior que seja o seu círculo de amigos, o escritor principiante conseguirá vender um livro eletrônico (se conseguir, claro), quando muito o suficiente para recuperar o investimento (pois esse tipo de edição não é gratuito). É verdade que o valor despendido é relativamente baixo e acessível à maioria dos bolsos. A maior parte das pessoas, porém, ainda não se habituou a ler livros na telinha do computador. Um dia, certamente, haverá de se habituar.
O sonho de todo o escritor principiante, porém, é o de publicar sua obra em papel, em encadernação de luxo e, se possível, em uma grande editora, em que não tenha qualquer despesa com a edição. São muito raros, no entanto, os que conseguem isso, mesmo os que já tenham nome firmado no mercado editorial e gozem de amplo prestígio, não raro com cadeira cativa na Academia Brasileira de Letras que o torne “imortal” (enquanto dure, parodiando Vinícius).
Sugiro que em vez de partir para o livro eletrônico (embora não me oponha a ele), o escritor novato divulgue, isto sim, o máximo que puder, seus textos, quer no jornal da sua cidade, quer no do sindicato, quer na internet etc. Ou seja, que aprenda a “vender” sua imagem e, sobretudo, seu nome. Isso, sem dúvida, facilitará bastante suas futuras negociações com editoras, embora não sejam garantias de sucesso (essas sequer existem).
Se o escritor novato tiver perseverança, um pouquinho de sorte e, sobretudo, muito talento, conseguirá, quem sabe, que lhe abram as portas e talvez consiga se firmar na atividade. Se não tiver nada disso... De pouco (na verdade de nada) adiantará lanças um, dez, cem, mil livros eletrônicos, pois não conseguirá atrair leitores dada a imperfeição do seu texto. E sem estes...

Boa leitura.

O Editor.



Um para o outro

* Por Marcelo Sguassábia

Tá certo que ele não era nenhum conhecedor profundo do moderno cinema iugoslavo. Mas ela também não era nenhuma marchand francesa especializada na fase azul de Picasso ou nas esculturas de Rodin. Tá certo que ele não era nenhum master-franqueado do Instituto Kumon, com 25 unidades só no Centro-Oeste e ótimas perspectivas de expansão. Mas ela também não tinha propriamente onde cair morta, e se tinha não sabia o número da sepultura nem o cemitério.
Tá certo que ele não era nenhum prodígio musical, capaz de assobiar as 32 sonatas de Beethoven de trás para a frente e em ordem cronológica de composição. Mas ela também não arriscava nem o “Atirei o Pau no Gato” debaixo do chuveiro e sem ninguém em casa.
Tá certo que ele não era nenhum Tom Cruise, ainda que seu convênio médico cobrisse cirurgia para correção de astigmatismo congênito em grau severo. Mas ela também era um estrago natural à prova de photoshop, e estava a léguas de distância da última colocada no Miss Birigui 1978, edição do evento especialmente pródiga em mulheres corcundas e fora do peso.
Tá certo que ele não era nenhum espertalhão pronto a dar o bote, sendo notória sua semelhança fisionômica com Mister Bean – com a diferença que este último amealhou uma montanha de dinheiro com sua cara de idiota. Mas ela também não era nenhuma megera movida a terceiras intenções, e não consta na delegacia boletim de ocorrência envolvendo seu nome.
Tá certo que ele não era nenhum iogue indiano, evoluído espiritualmente a ponto de ingerir um basculante de estrume com um sorriso nos lábios, em piedoso sacrifício pelo bem da humanidade. Mas ela também não nascera Madre Teresa de Calcutá, e trocaria sem pestanejar sua alma por um naco de quebra-queixo, desde que com bastante gengibre.
Tá certo que ele não era nenhum exemplo de autoestima, se considerarmos as três ou quatro vezes em que foi encontrado com o gás ligado e a cabeça dentro do forno, além de outras tantas em que o flagraram ouvindo a Perla no volume máximo (e no banheiro, onde o perigo é maior devido ao eco). Mas ela também não tinha motivos para nutrir por si mesma a mais remota simpatia, tanto que uma não olhava para a cara da outra quando se cruzavam no espelho.
Tá certo que eles não eram nenhum casal modelo. Ainda assim apaixonaram-se, casaram-se e previsivelmente não foram nem um pouco felizes. Mas também, antes mal acompanhados do que sós.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”





Adoradores da vida

* Por Pedro J. Bondaczuk

“Os maiores romancistas da humanidade foram grandes adoradores da vida. É um erro pensar que o romancista inventa histórias para fugir da vida. Pelo contrário. O que o leva a escrever romances é o desejo tumultuoso de multiplicá-la!”. Quem fez essa lúcida e pertinente afirmação foi um dos meus escritores preferidos, Érico Veríssimo, no ensaio "Os problemas do romance" (publicado no jornal Folha da Manhã, em 13 de agosto de 1939 e reproduzido no livro "Figuras do Brasil - 80 autores em 80 anos de Folha"). Essa observação cabe como uma luva em uma das figuras mais controvertidas da literatura mundial da atualidade que tive a oportunidade e a honra de conhecer pessoalmente: o norte-americano Eugene Luther Gore Vidal.

Herói para alguns, vilão para muitos, trata-se de um sujeito que, acima de tudo, não tem papas na língua. Diz e escreve o que pensa, doa a quem doer. Mas não sai por aí a falar bobagens a torto e a direito. Não busca popularidade fácil, embora a tenha para dar e vender. Polêmico por excelência, aborda todo o tipo de tema, do mais sublime ao mais escabroso, com a mesma naturalidade e criatividade. Não foge de nenhum assunto e, para ele, não existe nenhum que seja tabu.

Conheci Gore Vidal – essa figura pitoresca e controvertida, este eminente “adorador da vida” – em meados dos anos 80. Mais do que isso, cumprimentei-o, toquei-o, cheguei mesmo a dar-lhe um cordial tapinha nas costas e troquei dois dedos de prosa com ele. Isso aconteceu na noite de 25 de março de 1987, uma quarta-feira (lembro bem), em que consegui licença para me ausentar do trabalho (era, na ocasião, editor de política internacional do Correio Popular de Campinas e comentarista político desse jornal, líder, até hoje, do interior brasileiro), pois não queria perder a oportunidade que sabia que seria única. E não me decepcionei. Valeu a pena.

A apresentação de Gore Vidal foi num dos auditórios da Unicamp, superlotado, com gente saindo pelo ladrão. Além de estudantes universitários, estavam presentes professores, escritores de várias partes do Brasil e a imprensa, não somente local, mas a nacional. Havia câmeras, microfones e fotógrafos de todos os tipos e para todos os gostos espalhados por todos os cantos. Afinal, convenhamos, não é todo dia que um mito internacional nos visita.

Escrevo esse testemunho com base nas minhas anotações. Muitas delas, porém, sequer consigo decifrar (e muito menos interpretar). A iluminação do auditório não era nenhuma maravilha. A pressa de transcrever tudo o que era dito fez com que minha letra, que já não é nenhum primor, ficasse pior ainda. E a emoção de estar frente a frente com um escritor de tamanha projeção mundial contribuiu decisivamente para que muito do que anotei naquela ocasião me soe, hoje, senão incompreensível, pelo menos incoerente. Sorte que tenho boa memória.

Gore Vidal, para minha frustração, falou mais de política do que de literatura. Afinal, era o que a maioria esperava dele. Foi sarcástico em alguns momentos, irônico, em outros, mas o tempo todo bem-humorado. E arrancou, várias vezes, espontâneas gargalhadas da platéia, com suas tiradas.

Disse, por exemplo, que estava próxima a decadência das duas superpotências mundiais de então, Estados Unidos e União Soviética. Isso, quando o gigante comunista ainda existia e disputava, palmo a palmo com Tio Sam, como que num diabólico jogo de xadrez, a hegemonia político-militar no mundo. “Os jovens verão a ascensão da China e do Japão, pois o dinheiro de Nova York já está se transferindo para Tóquio”, afirmou, em tom profético.

Disse, ainda: “No ano passado (1986), falei para os russos que eles se aproximarão dos Estados Unidos. Eles gostaram. Estão apaixonados por nós e nós os odiamos tanto!” Gore lamentou o tratamento que se dá aos pobres, “profundamente odiados, porque enfeiam as pracinhas”. Em determinado momento, em clara alusão à URSS, declarou, com certo sarcasmo: “Nos Estados Unidos também não temos classes sociais, a não ser as existentes. Temos muitas eleições e não temos partidos. O país tem uma dívida externa duas vezes maior do que o Brasil. A arte de governar envolve uma boa quantidade de ilusão. A moeda é como uma questão de fé, como a Santíssima Trindade: ou você acredita, ou não”.

Questionado por alguém da platéia sobre sua carreira literária, Gore respondeu: “Eu estava na guerra e comecei a escrever. Para vocês verem como eu estava ocupado e como fui herói”, acentuou, arrancando novas gargalhadas. “Mas, na época, o romance era o centro da cultura, círculo permitido, apenas, a quem tivesse iniciação em James Joyce, Marcel Proust e Thomas Mann. Aí... veio o cinema”, completou, reticente.

Indagado sobre a influência da televisão na decadência cultural daquele tempo, Gore Vidal observou: “A TV é como a chupeta para o bebê: o mantém calmo. Se uma pessoa não se interessa, aos 12, 13 anos pelos livros, nunca vai gostar de ler. Nos Estados Unidos, 60% das pessoas são analfabetas. O que podemos fazer? Quebrar todos os aparelhos de TV?!”.

Sobre a importância dos escritores em seu país, Gore Vidal comentou: “Nos Estados Unidos os escritores são menos importantes que os jogadores de futebol americano e mais importantes do que os jogadores de beisebol. Mas somos o 24º item de leitura per capita. Eu mesmo não tive efeito nenhum, a não ser chatear. E faço isso através da TV”.

Se fosse verdade (o que duvido), o norte-americano seria muito burro! Como ignorar o autor de best-sellers como “Em um bosque amarelo”, “A cidade e o pilar”, “À procura de um rei”, “O julgamento de Paris”, “Washington”, “Juliano”, “Era Dourada” e “Lincoln”, entre tantos outros?! Seria uma heresia ignorá-lo!

Tive a oportunidade de conseguir seu autógrafo, mas, por timidez, acabei sequer pedindo. Tolice, a minha. Mas nem foi necessário. Afinal de contas, mais importante do que sua assinatura em um papel qualquer foram os ensinamentos que Gore me transmitiu naquela noite memorável e nos tantos livros de sua autoria que tive a oportunidade de ler desde então.

Certamente, voltarei a escrever sobre este ácido, mas sábio “adorador da vida”. Tenho muita, muitíssima coisa a dizer sobre esta polêmica, fascinante e até um pouco assustadora figura. Afinal, Gore Vidal (primo distante do ex-vice-presidente dos Estados Unidos e atualmente um dos maiores ambientalistas do mundo, Al Gore) é tema não somente para uma crônica ou de um ensaio, mas para todo um livro. Quem sabe?!


*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. É membro, desde 1992, da Academia Campinense de Letras. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com





De homens e bois

* Por Talis Andrade



Às viçosas flores
em um único dia
toda uma vida
de perfume e beleza
que não há presteza
ou nobreza
nos que se matam
de trabalhar

Para que tanta canseira
quando não se pode mudar
o que está previsto
Boi ou homem
não conseguiremos
outro destino
Tudo foi escrito
nos mínimos detalhes
Tudo foi escrito


(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).




Tarde demais (II)


* Por Gustavo do Carmo

Pedro dá um caloroso abraço no pai, Seu Henrique. Eles se sentam à mesa. Ficam frente-a-frente. Henrique, um senhor de setenta anos, cabelos brancos e ralos, pele morena enrugada, principalmente nos olhos cansados, entrega uma carta amassada ao filho:
— Chegou esta carta para você. Eu nem quis ler.
— Mas ela está aberta.
— Foi preciso abrir na revista para que eu pudesse te entregar.
— Tudo bem, deixa pra lá.

Pedro lê a carta, escrita em alemão:

Berlim, 25 de novembro de 2007

O Deutsche Konsult avaliou a sua entrevista e comunica que você faz parte do perfil da nossa empresa. Já enviamos uma carta de recomendação para a embaixada do seu país. Compareça ao consulado alemão em seu estado para obter o visto de trabalho. No prazo de quinze dias enviaremos a passagem aérea para que possa vir à Berlim já como membro de nossa equipe com a remuneração líquida de oito mil euros. Seja bem-vindo!

Cordialmente
Franz Schneider
Gerente de Recursos Humanos - Deutsche Konsult


— O que diz a carta, meu filho?
— O que o senhor acha? Se eu não estivesse cumprindo pena por assassinato neste presídio eu daria pulos de alegria. Mas agora esta carta não tem mais validade nenhuma.
— Ah, meu filho! Pra quê você foi espancar o gerente do banco até a morte?
— Ele me humilhou muito quando me dispensou na entrevista, pai. Eu já estava cansado de não conseguir trabalhar em lugar nenhum. Não vou ficar mais chorando sobre o leite derramado. Matei e preciso cumprir a minha pena. Agora vai embora que o horário de visitas está acabando.
— Fique com Deus, meu filho. Encerrou Seu Henrique resignado, deixando a penitenciária com lágrimas nos olhos. A carta da empresa de consultoria alemã caiu amarrotada sobre milhares de outras correspondências sem finalidade, juntando-se a papéis de bala, maços de cigarros vazios, restos de comida e excrementos físicos no latão de lixo do pátio central.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.




Quem é ela...

* Por André Rosa


Quem é ela?
Que por algum propósito desta vida, surge primeiramente em uma foto meiga, com olhar angelical e ao mesmo tempo hipnotizador, que instiga a imaginação de quem a vê, despertando a curiosidade alheia...

Quem é ela?
Que entre um clic e outro, foto sobre foto, se descobre um mar de mistérios... como navegar por um rio estreito adentro rumo ao oceano...

Quem é ela?
Que desse mar de enigmas, surgem versos singelos, porém comoventes e desinibidos, frases reflexivas e textos mais do que magníficos... simplesmente apaixonantes!

Quem é ela?
Que de um simples bate-papo virtual, transmite o bem-estar na sutileza das palavras digitadas teclas sobre teclas... palavras que mais parecem serem ditas pessoalmente, pausadamente, olhos nos olhos... Até o doce perfume é possível sentir, bem como a suavidade dos cabelos castanhos claros, com mechas louras, que ofusca os olhos de quem a admira mesmo estando a distancia...

Quem é ela?
Que só com a voz no telefone é capaz de revelar outra mulher, muito mais interessante, singular e com um sex appeal pra lá de encantador...

Quem é ela?
Que em poucas horas de corpo presente, os mistérios e sentimentos mencionados nos versos anteriores, se concretizam e revelam outros segredos, mas estes, vistos e pressentidos pessoalmente, alma sobre alma...

Quem é ela?
Que de todas as poucas (e muitas) meninas-moças e mulheres de todas as faces, idades e perfis que este ser que vos fala já manteve contato, não se assemelha, pois se revela uma alma viva contagiante, uma alma ímpar, das poucas que ainda neste mundo habitam...


* André Rosa é jornalista ou contador de histórias, como gosta de se definir.

quarta-feira, 29 de abril de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Nossas dificuldades.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Grama do vizinho”.

Coluna Jornalista do Sertão – Seu Pedro, crônica “Por que não pára relógio?”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, conto “E Dora...”.

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica, “No Pasarán”.

Coluna Porta aberta – Cacá Medes, crônica “Em crises”

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Nossas dificuldades

É complicado ser escritor no Brasil. A primeira dificuldade já surge no acúmulo de atividades. Salvo raras (diria raríssimas) exceções, ainda não é possível (pelo menos à maioria esmagadora) viver exclusivamente de Literatura no País.
O escritor, para garantir seu sustento, precisa de outra profissão: ou é funcionário público, ou jornalista, ou advogado, ou professor etc. etc.etc. Com isso, despende suas melhores energias, dispersa esforços, se esfalfa em outras atividades, que não a criação literária.
Isso, contudo, ainda é o de menos. O escritor brasileiro é um herói. Concluído um livro, por exemplo, com entusiasmo de menino, mas com ingentes sacrifícios, ele precisa empreender uma humilhante e incerta romaria às editoras, se quiser que ele seja publicado.
No Brasil, ainda é bastante rara, quase inexistente, a figura do agente literário, que pode ser comparado (grosso modo) com o empresário de jogadores de futebol. Nos Estados Unidos e em vários países europeus, é ele que cuida de detalhes burocráticos da atividade do escritor. Contata as editoras, acerta contratos e não raro obtém até adiantamentos, antes do livro ter sido sequer escrito, para dar tranqüilidade a quem o irá escrever, entre outras funções.
E no Brasil? Infelizmente, não há nada disso. Mas esta também não é a maior dificuldade. Há outras, muitas outras no caminho do escritor. Uma delas, é a questão da distribuição de seus livros entre os livreiros. Tudo já começa com a dimensão do mercado editorial em relação ao tamanho e à população do Brasil. Pesquisas mostram que apenas pouco mais de cem municípios, dos mais de seis mil existentes, têm livrarias. É espantoso (ou calamitoso?), mas verdadeiro!
Se o escritor conta com uma certa simpatia do sujeito que irá vender seu produto, as coisas ficam um pouquinho mais fáceis. Seu livro é colocado em locais bem visíveis nas livrarias, os balconistas recomendam-no ao cliente e assim por diante. Via de regra, porém, não é o que acontece.
Aquela sua obra, que você se empenhou tanto em escrever, na qual depositou tantas esperanças e que teve tamanha dificuldade em encontrar editor, fica escondida em alguma prateleira de fundo, literalmente invisível, em meio a milhares de outras, quando não permanece meramente num depósito, sem que os livros sejam sequer desempacotados. Então, a conseqüência mais do que certa disso tudo será o encalhe. E, com ele, ou em decorrência dele, o fechamento de todas as portas das editoras para futuras publicações.
Estas, óbvio, não são todas nossas dificuldades, muito menos únicas e, provavelmente, nem mesmo as maiores. No curso das nossas edições, o Literário trará, certamente, à baila muitas outras e, claro, apresentando sugestões para, se não resolver, pelo menos driblar esses problemas. Provavelmente os colunistas darão sua contribuição ao debate, do qual você, querido leitor, destinatário dos nossos textos e do nosso talento, poderá participar. Pelo menos, será, como sempre, bem-vindo às discussões.

Boa leitura.

O Editor.



No pasarán!

* Por Daniel Santos

Chegou, afinal, a vez dos gordos. Alguma surpresa? Não, se levarmos em conta que este mundo oscilante entre obesidade e anorexia procura um inimigo, haja vista a quantidade de câmeras por toda parte!

Os tempos são de paranóia – a impossibilidade de comunicação. O próximo é um estranho, suspeito de algo terrível ainda a ocorrer. Pois, então, sorria, você está sendo filmado. Aliás, sorria sempre, conformista.

Não bastasse o agressivo cerco aos fumantes, querem pegar também os gordos. Mas é claro! Como suportar excessos num mundo que consagra o nanismo, a contenção, o três-em-um, o fast-food sem sabor?

No entanto, por outro lado, multiplicam-se programas culinários na tevê, receitas econômicas tipo vapt-vupt, dietas miraculosas. E tudo para o seu bem, que fique claro. Todos querem o seu bem-estar e tranqüilidade.

Daí, a promissora indústria da segurança: chaves, cadeados, fechaduras duplas, alarmes, câmeras sintonizadas ao celular que mostram tudo na net ... Mas não, não fique nervoso, senão você come e engorda.

Se engordar, perderá aquela imagem agressiva e não encontrará emprego. Ademais, pagará um extra na passagem de avião, embora sem direito a esse extra no seguro, porque você é gordo e não tem direitos.

Você é lento num mundo aflito, compulsivo. Você descende de Dioniso, que pregava o êxtase. Algumas taças do tinto, e pronto! Agora, ecstasy e viagra (quando não, crack!) – ícones da tal “modernidade”.

Agora, é sorrir, sorrir muito e obedecer, procurar se manter nos trilhos, cordato. A coerção está bem disfarçada, glamurizada até!, e reforçada por estatísticas médicas, pois todos querem o seu bem.

Emagreça, pois. Fácil. Repare na esbeltez dos soldados, terroristas, mercenários. Sua silhueta nem se deve tanto à rigidez da disciplina. Não, não. É que eles aprenderam a pegar em armas. Considere isso. Hein?

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Grama do vizinho

* Por Sayonara Lino

Sempre me dei bem com as palavras, aprecio a escrita, independente do que os críticos considerem válido. Respeito o cânone literário, tudo certo. Mas o bom mesmo é ver que tem muita gente bacana surgindo, com coragem de expressar o que pensa e sente.

Adoro beber nas mais variadas fontes, não me prendo a coisa alguma, busco sempre algo novo. Muitos talentos ficam perdidos, muitos escritores em potencial deixam rascunhos na gaveta por puro receio da rejeição, da crítica negativa. Eu não me abalo. Nesse aspecto sou muitíssimo resolvida. Não quero chocar nem agredir, apenas deixo acontecer. Minha escrita é intuitiva, se eu elaborar demais, travo.

Algumas pessoas mandam e-mails quando se identificam e já enviaram textos para que eu desse uma olhada, uma opinião. Eu incentivo, se vejo que tem potencial digo para procurar alguém que publique, ainda existe quem abra espaço quando percebe que o trabalho é sério. A internet pode ser uma espécie de mãe acolhedora para isso.

Hoje a crônica é um agradecimento aos editores dos portais para os quais colaboro e uma mensagem para que as pessoas não se intimidem por parecer que X, Y e Z são maiores, melhores, premiados, badalados.

Parabéns a todos, mas não quer dizer que os não contemplados sejam invisíveis, que não possam ser admirados e expor seu trabalho com dignidade. Chega de babar na grama do vizinho, vamos cuidar da nossa que já está ficando alta, precisando de reparos.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Diretora de Jornalismo e redatora da Revista Mista, que é distribuída em Governador Valadares, Ipatinga e Juiz de Fora, MG e colunista do portal www.ubaweb.com/revista.




E Dora...

*Por Marco Albertim

Dos pés molhados subiu o agouro de que a agonia daria lugar à demência dos sentidos, pior que moléstia de inverno. Ramiro não tinha nada, nenhum traço no rosto indicando costume novo. Zepelin chegara. Os dois se aquentavam sob a marquise. Nos pés de Ramiro os chinelos de borracha, tão encharcados quanto a bainha da calça. No rosto, o rogo de notícias juntou-se à parecença de dor.

Nenhuma suspeita podia dar conta de conjuras, porque a chuva grossa retinha qualquer propósito de desordem que não o do temporal. Ramiro notou o sapato de salto grosso de Zepelin, creu-se quase curado de toda doença. Mirou o ajuste da roupa do outro no corpo magro, com sobras de carne. Sentiu-se, Ramiro, favorecido para a sobrevida.

Com o fim da chuva, convinha saírem da avenida para se acoitarem na rua de trás, com pouca iluminação. O guarda-chuva de Zepelin aberto compôs uma cena de rotina sem carências. Os chinelos de Ramiro chapinhavam, colando aqui e ali.

Zepelin não sugeriu compra de chinelos novos. Ramiro não tinha dinheiro e ele, Zepelin, inda que com um dinheiro a mais no bolso seco, não podia abrir mão do custeio da próxima viagem. Disse, para sair do atrapalho: “Estourou a luta. Há carência de homens.” Tão preciso quanto a roupa no corpo, deu a notícia e incitou Ramiro. Ramiro ajuizou-se guerrilheiro, tocaiando, sem a atrapalhação dos chinelos na lama. Não estava debilitado, mesmo com a palidez sob os olhos. Até ali, não dera sinais de recuo no rumo da própria vida. Zepelin aparecia com regularidade, e cuidara para mantê-lo animado para a exigência de entrar na refrega armada. Era o meio de apear os milicos, e de se reencontrar com Dora. “Diga ao partido que estou pronto para a guerrilha.” Zepelin tirou os olhos dos pés dele, olhou-o de frente; teve vontade de abraçá-lo. A tensão do dia-a-dia forçou-o a um escasso aperto de mão no ombro. Olharam-se, mirando-se de igual para igual. Zepelin encheu-se de crenças.

A casa ficava num bairro vizinho à fábrica onde Ramiro trabalhava. Ele dormia numa rede com punhos atados nos caibros. Num vão de quatro paredes, janela sempre fechada e piso de areia socada. No chão úmido de goteiras, os chinelos zuniram até ele acender o pavio do candeeiro, sobre um banco de madeira.

Zepelin tinha sua própria rede numa sacola. Ramiro não compreendeu como ele a mantinha tão limpa. “Você vive abaixo da pobreza dos pobres. Isso pode dificultar sua convivência com a vizinhança”, ouviu do recém-chegado.

Um tambor percutiu na casa da frente. Um preto, de voz animosa, cantou para chamar o orixá. Ramiro distraia-se com o vozerio feroz. A vizinhança, curiosa, se assustava, e nenhum meganha viria assuntar no terreiro de um orixá inóspito.

“Não consigo me mudar para outro lugar. Ganho um salário como ajudante.” Deitados na mesma casamata de pobreza, o juízo de Zepelin forçou Ramiro a um grau inferior na hierarquia do conluio. Era operário, passava fome; e orgulhava-se de ser parte da vanguarda dos sofridos. Na fábrica, tinha que atrair outros como ele, de macacão oleoso, para o Partido. Não conseguira porque sendo ajudante, torneiros e ferramenteiros não o tinham como dono do ofício; inda mais com o propósito de lhes dizer como poriam fim à extorsão do trabalho de cada um.

Ramiro, sem dar mostras do cansaço, quis soprar o lume do candeeiro. Zepelin deu prumo à conversa. Os ouvidos maginavam estalidos de armas. Não se ouvia nenhum tiro no ermo da Mariúna. Ouviram o apito das 22 horas da fábrica próxima; a troca de turno.

Um operário se gabara de produzir acima da média dos outros, era estúpido com os amigos. Ramiro o tinha sob rancor. Quis entender-se com Zepelin sobre como evitar uma briga. Mas tinha os urdumes em Dora. Ela ficara para trás, prenha, impedida de ter fugido com ele. Fora presa uma semana. A polícia a soltara com medo de que abortasse no cárcere. Teria nascido a criança? Ou abortara, com o desgosto de não ter o parelho acompanhando a difícil prenhez?

Queria saber, ele, de minúcias. Se inquirisse, daria mostras de que um incidente pessoal podia interferir no percurso do guerrilheiro. “Há mulheres de arma em punho?” – quis saber, confessando malícia. “Há algumas mulheres segurando o fuzil e sem marido de lado. Elas não se queixam, não querem ter nome. Uma guerrilheira não tem nome para não ser identificada pelo inimigo.” Uma mulher de arma nas mãos, sem queixas de solteira... E ele, Ramiro, com um fuzil apontado para milicos, aninhando a virilidade a custo de uma lembrança feliz!? “Não são tão femininas quanto uma mulher ao lado do marido”, arriscou-se Ramiro. “Uma guerrilheira mata por amor ao povo. São capazes de amar tanto ou mais um marido quanto uma mulher comum.” Zepelin subjugou-o, talvez suspeitando de que Dora, longe dos pipocos, fosse a única capaz de sujeitar o desassossego de Ramiro.

Dormiram.

Acordaram com a luz do sol no telhado. Zepelin foi o primeiro a usar o banheiro nos fundos. Ramiro, só, ajuizou-se de Dora.

Os dois não tinham relógio. Zepelin se surpreendeu quando o outro disse que faltavam quatro minutos para as seis horas, e o locutor, no radinho portátil, confirmou. “Tem um relógio na cabeça.” Incensou-o na disciplina, na vigilância contra os sobressaltos. “A fábrica me ensinou.” Há dois anos, com um livro de Gorki sob o braço, urdindo-se em Pavel, Ramiro trocara caracteres seus com os do personagem. Supusera-se incapaz de ser tão modelar, inda que se moldando para viver como um réptil nas sombras. Agora, nutrindo-se em si mesmo, não queria se mirar no perfil de Pavel. A sorte o sobrepôs a Pavel, conferindo-lhe abonação entre os outros operários.

Na fábrica, passou a manhã desbastando um eixo de aço no torno mecânico. A peça afinou-se, como a cintura de Dora antes de emprenhar.

Os dois, Ramiro e Zepelin, reencontraram-se ao meio-dia para o almoço. O mercado se enchera de feirantes. Misturaram-se ao cheiro de cebolas, feito guerrilheiros encobertos. Ramiro almoçava na marmita trazida pela preta Nô, todos os dias. Boia de peão, fiada, paga no rigor do prazo, sem gorjeta. Dispensara a preta para continuar a conjura com Zepelin. Não tinha dinheiro, não quis confessar para não constranger o outro, forçá-lo a cobrir um almoço a mais sabendo-o com a obrigação de outros. Dissera que comia com a negra, supusesse pois que almoçara com Nô. Sacrificou-se a olhar no rosto de Zepelin sem baixar os olhos para o prato coberto de feijão, inda que a boca do outro não parasse de mastigar.

Dora mimara-o com um feijão nutriente de boa fortuna; uma celebração.

Ramiro não sabia se Zepelin tinha mulher, se a deixara em casa provendo a cama com a quentura dos quadris. Não dera sinais de que fora apartado. Não era um réptil como Ramiro, mas sumia na multidão com o trejeito comum de se vestir e andar. Procurado, com o rosto em cartazes afixados em terminais de ônibus, não se encolhia por isso mesmo, para não chamar a atenção. “Você é casado?” – aventurou-se Ramiro, presumindo uma notícia de Dora.

Insistir nas minúcias de outro era costume execrado, por ser mania de meganhas infiltrados.

Zepelin mirou-o, místico e inconfesso. Demorou quase nada para repor no juízo a vida que conhecera de Ramiro. Por conveniência, riu, desatou os ombros, cruzou as mãos sobre o prato. “Tenho minha mulher.” Admitiu uma mulher em sua vida, mas não confessou ter esposa com casa e filhos. Ramiro, flagrado no próprio enredo, encolheu-se. A silhueta de Dora desfez-se longe.

À noite voltou a chover.

Os dois se aninharam feito bandidos no covil. A percussão do babalorixá zuniu. Zepelin quis examinar o perfil da vizinhança. Ramiro animou-se.

O pai-de-santo encarnou um exu irado, rodopiou, foi sustido nos ombros, os olhos chispando raiva, o rosto empapado de suor. Comeu com prazer uma fatia de carne de boi, crua. Depois, para atender o rogo de uma doente que se queixava de uma ferida na coxa, fez a mulher levantar o vestido e lambeu a ferida com a língua suja de gordura.

Zepelin exorcizou-se da herança cultural dos bantos.

Os dois se recolheram. Deitados, não olhavam para o lado, posto que o escuro encobria as paredes. O lume fora posto ao lado da porta, na parede, e os dois entretinham a vista na dança da chama. O quarto era tão ermo que Ramiro se fixava na luz para se crer vivo. A pobreza de utensílios forçava Zepelin a examinar a rotina do outro.

Ramiro ligou o rádio. Zepelin queria ouvir o noticiário de rádios estrangeiras, alguém falando mal dos milicos. Não disse nada porque Ramiro calou-se, ouvindo uma música falando de mulher. Não era difícil adivinhar os pensamentos dele, fruindo o que a imaginação retivera do convívio com Dora.

O silêncio misturou-se ao escuro do vão.

Zepelin se levantou, perguntou se podiam conseguir uma garrafa com café quente. Ramiro conseguiu com a vizinha, prometendo devolver logo de manhã. Zepelin saiu, foi comprar o café numa venda próxima. Era o modo de compensar o escasso conforto com que fora acolhido. “Café para esquentar a alma”, disse. A alma de Ramiro sorveu cada gole com esperança de se redimir em alguma surpresa que a história com certeza lhe reservara. Queria distinguir a surpresa, mas a rotina da fábrica para o quarto forçava-o a palpar a cabeça como um nicho de agouros. Distraía-se com o alarde do relógio de ponto, engolindo a fila dos operários na marcha para a produção. Uma prensa enorme moldando peças em folhas de ferro. O ruído do aço embebido de óleo; chumpt... chumpt. Trabalho perigoso que já decepara os dedos de um operário. No pavimento de cima, protegido por um vidro transparente, o dono da fábrica calculava o lucro do rito ininterrupto; e fartava-se na vaidade que o operador ostentava com a hábil manipulação da máquina.

Os dois dormiram com o rádio ligado. Zepelin quisera desligar. Não tivera coragem, para não interromper a cisma de Ramiro, pálido, em seu quarto escuro.

Os dias se seguiram assim, sem tocaias nem tiros de escopeta. Zepelin sumia todos os dias para a conjura miúda. Ramiro, envergando um macacão encravado de óleo, espremia-se entre um torno mecânico e a parede tisnada. À noite se reencontravam para a conversa já familiar.

Num domingo reuniram-se noutro bairro, o populoso Pirambu, de ruas estreitas, labirinto de ruelas. Na casa de outro operário. A mulher, magra, preparara almoço para quatro: macarrão descorado, coberto com ovos fritos. Não tinha função militante, ouvindo tudo sem dar um pio, concordando mesmo sem entender. Orgulhava-se de o marido ter amigos com fala mansa, instilando palpites raros na vizinhança. Nenhum segredo era poupado na sua frente. “Ela não fala mas tem o instinto de operário revolucionário. É a reserva moral da classe”, sentenciou Zepelin.

Ouviu-se sem esperar, um barulho de brigas na rua. Dois homens se desentenderam no balcão de um boteco, trocaram ofensas, sopapos. Gritos, mulheres gritando o nome do marido, crianças chorando, cães latindo. Alguém sugeriu chamar a polícia. Foi o bastante para pôr fim à reunião. Saíram às pressas, correndo, atraindo a atenção dos vizinhos. Temia-se que Zepelin, com o retrato no fichário policial, fosse reconhecido. O marido da mulher ficou em casa, para não ser identificado como o homem que abrigara estranhos.

Zepelin dissera que se não houvesse boa-fé entre eles, seriam incapazes de infundir propósitos revolucionários entre os operários. Ramiro mirara-o, espremendo cada palavra para extrair um elixir com propriedades purgativas. A sorte dos revoltosos já o aliciara sem remédios; queria, sem confessar, apropriar-se de seu destino tendo Dora junto. Zepelin percebera sua inquirição muda, e não evitara olhar para ele.

A noite sem chuvas acolheu-os sem inspiração. Ramiro, com o rádio zumbindo uma música cuja letra era o que menos importava, dormiu. A tantas, sonhou com Dora mas não a teve em seu feitio inteiriço. Agonizou na inquietação de palpá-la. Zepelin, cujos sentidos se dividiam entre o sono e a precaução, ouviu o estertor: “E Dora... Onde está Dora?” O sonho sumiu de Ramiro, deixando-o livre para a fábrica logo cedo. Zepelin dormira como se estivesse vigiado por um sentimento de vindita.

Saíram juntos. Ramiro suspeitando que fora flagrado numa súplica em seu próprio santuário. Zepelin, com a mala de viagem numa das mãos, conveio ser a hora de dar em Ramiro o abraço que lhe recusara quando o ouvira dizer pronto para dar a vida. Abraçaram-se. Zepelin deu alguns passos na direção contrária, e virou-se devagar.
- Ela está casada... Comigo.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.




Por que não pára relógio?

* Por Seu Pedro

Ouvi-o apenas uma vez, mas sua voz, desde esse dia, me acompanha. Para onde vá meu computador, lá vai o CD de Carlão. Meu ouvido se apaixonou por aquela voz cristalina e agradável que cantou em uma “Feira do Luar”, evento promovido pela primeira-dama do município de Guanambi, Bahia, onde se reúnem artistas plásticos e artesões e outros expoentes da cultura popular, até as quituteiras. A cada um dos eventos, há o convite a um ou a dois expoentes da Musica Popular Brasileira, prevalecendo os artistas regionais. Carlão não é baiano, mas está bem próximo: é de Montes Claros, Minas Gerais. Como a gente diz, é “um tirico de revover”, só trezentos quilômetros!

No entanto Carlão não é estranho a Guanambi, onde seu irmão Edgard, há décadas, aqui vive. Dono de um dos mais potentes carros de som, Edgard é destes que fazem propaganda circulando nas ruas. Um “terror” para meus ouvidos! Mas estamos sempre de bem quando não brigamos. Já Carlão, com um repertório romântico, é paradoxal ao meu comportamento amoroso, eu que penso nunca ter vivido de “Aparências” como suhere a primeira faixa do CD, música de autoria de José de Ribamar Cury Heluy, sucesso em muitas vozes, mas na de Carlão, penso ser imbatível.

Volto o CD, como se estivesse atrasando “O Relógio” – El Reloj de composição do argentino Roberto Cantoral, com sua versão em português por Nely Pinto, e que me fazia deter o tempo com Trio Irakitan, sucesso dos anos sessenta, até que arrebentou na voz de Anísio Silva, nosso conterrâneo daqui pertinho, de Rio do Antônio. Anísio se revelou como uma das mais belas vozes no tempo da patriótica revolução das vozes. Filho deste sudoeste da Bahia, Anísio Silva nos deixou com saudades. Carlão não veio substituir nenhum dos interprétes anteriores de “O Relógio”, mas dar-lhe seu timbre!

Eu que em tempos passados já fui rei em Montes Claros, a terra de Beto Guedes, só vim conhecer a voz de Carlão aqui na Bahia. Mas de lá trago boas lembranças do Grupo Agreste, principalmente de Pedro Boi, que me leva a silenciar para melhor ouvir “Rapariga do Bonfim”, de Elthomar Santoro e Ismoro da Ponte, e vou matando saudades do meu reinado de cinco dias, de um sábado de carnaval a uma quarta-feira de cinzas. Encontrei Edgar, e lhe pedi que, estando com Carlão, peça que não esqueça de me mandar um novo CD, pois o de três anos atrás, já tem um buraco no meio de tanto tocar.

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.



Em crises

* Por Cacá Mendes

- O senhor é um grandíssimo...
- O senhor é mais ainda...
- Vossa excelência me respeite..
- Não, vossa excelência é que deve me respeitar...
- E aqueles capangas de vossa excelência...?
Bom, eu paro por aqui, porque se fosse o dizer do velho Joaquim Maria Machado de Assis, eu digo, digo, escrevo, esta semana não foi nada fácil, e as pessoas andam nos mesmos dos irritados todos. Nivelado neste por mim, à força, nem o queria assim. Testando minha energia sedutora, logo na segunda, em primeira hora da manhã, da outra semana, liguei para um amigo e o danado estava com duas pedras nas mãos... Não as lançou em mim, mas vergonhosamente, ameaçou-me com elas.
Outra, reencontrei um grande amor de quando jovem, na internet, ora, e ela me disse da sua desilusão com a vida. Amou perdidamente um homem, e durante vinte ou mais anos o filho de uma égua a traiu com aquela que se dizia sua melhor amiga... E tudo se acabou, justíssimo, nesta semana. Agora, ela, coitada, pra fazer ciúmes ao extinto, diz-lhe em fé viva, que o último filho deles (porque moram perto da fronteira Brasil com Paraguai) tem a cara do presidente do Paraguai, o Sr Fernando Lugo, ora! O grandessíssimo extinto, o tal do traíra, está nem aí. Achou mesmo foi curioso e sentiu, segundo a própria, até certa lisonja assim:
- Chifres católicos, e de bispo, são feitos para freqüentar igrejas, nunca reparou na altura das portas e tetos delas? Rá, rá, rá.

E o escárnio, em pessoa, saiu da piada assim como entrou, vencedor. Eu sei, hoje serei a própria crise, em justo realismo da minha vocação para o rasteiro, o miúdo, em pequenos porcos dessa vida em delicadeza e medidas colocadas dentro dos agoras, para os fatos se consumarem nos plenos do mundo.
E em memória minha, ainda meio curto das calças, me dei com Henry Miller, por via de um dos seus personagens que num ó diria: “o lance é criar patos, patos aqui e patos acolá”. E falando com um amigo outro dia, um grande gabaritado douto de academia (e o chamo de íntimo, mais por minha ousadia), me aconselhou que patos em tempos de crise seria fiasco, e que o melhor seria criar peixes. São mais limpos e não possuem aquele bico, e se por acaso vier o faltar de trato com eles, não gritam, não amolam. Logo, na iminência da fome, peixe se vira, está lá debaixo d’água mesmo, come barro e outros dejetos dessa natureza e é um bicho silencioso. Eu dei ouvidos a ele, e com razão, esse meu amigo entende mesmo é de literatura, mas no caso, dizíamos do ato de escrever, e nisso, num cochilo nosso, misturamos os assuntos e os tais dos peixes entraram no lugar dos patos, logo eu sei, queria mesmo era me aconselhar a ser mais ameno nas tragédias cotidianas. Por que afinal, a crise é com os outros e não é conosco, arre!
Aí, eu e ele com o versando, porque nascemos com o defeito da poesia na alma e na língua, discutimos:
- Você é foda...
- Não, você é mais, mais..
- Vê se me respeite, cara.
- O cacete, você é que é foda.
- Você e seus cacoetes capangas, que vivem a manchar a língua nas páginas...
- Alto lá, meu descomandante!
- Alto, tu! Acabas de cair fora do meu respeito, e quebrar a fuça, porque daqui já me sou um penhasco a ti.
Rá,rá, rá, rá. E nisso, toca o celular do amigo FODÃO e um jornalista lá do outro lado da linha, covardemente (me senti dentro):
- Vai pro inferno com esse negócio de blog, seu viado! !! Não me mande mais essas porras de spans!
No dito do assim, desligou secamente na cara do meu afável, digníssimo e afetuoso, dileto e mais completo amigo. Ploft.

* Jornalista – blog: www.cronicaseg.blogspot.com

terça-feira, 28 de abril de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Como tratar neologismos.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “A carta”.

Coluna Doces delírios – Fábio de Lima, conto “O trato e a reza”.

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro – conto, “O reencontro (1)”.

Coluna Porta aberta – Clara dos Anjos, poema “Impura”.

Coluna Porta Aberta – Emilson Pedro Zorzi, poema “Fim”.

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Como tratar neologismos

Este nosso espaço na internet destina-se a ser não apenas uma vitrine para que escritores e aspirantes a escritor exponham seus textos (o que, por si só, já é importante e válido) e os submetam à sempre saudável crítica e bem-vindo debate. Mas nossa pretensão é maior, muito maior, bem mais ambiciosa do que somente isso. O Literário objetiva, sobretudo, ser um canal de diálogo para os amantes da Literatura, redatores ou não, em que se exponham dúvidas, certezas, alegrias, tristezas, dificuldades e tudo o mais que se refira a essa fascinante atividade.
Uma das questões que dividem os escritores se refere à criação ou não de neologismos. Quando essa prática é válida? Quando é desnecessária e, portanto, dispensável? As opiniões a respeito se dividem, com as duas partes tendo lá suas razões.
Os que defendem esta prática argumentam que o idioma é dinâmico, vivo, em perpétua transformação. Que tem inúmeras palavras caindo em desuso e outras tantas tendo que ser criadas, para facilitar a comunicação.
Os que se opõem, por seu turno, apontam, principalmente, nossa responsabilidade com a preservação da pureza da língua. Nós, escritores, saibamos ou não, admitamos ou deixemos de admitir, somos guardiões do idioma que utilizamos para a nossa criação.
Como os gramáticos entendem que se deva proceder em relação a isso? Não há nenhuma norma específica (e nem poderia haver), a não ser a do bom-senso, que impeça, quem quer que seja, de “criar” novas palavras, caso sinta necessidade disso.
Na introdução de uma das edições do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, entre as várias regras que tratam do uso de maiúsculas, de galicismos, anglicismos e de outras tantas questões, há um item que determina como se deve proceder em relação aos neologismos. A recomendação é que estes sejam grafados, “sempre”, entre aspas, para evitar que o leitor desavisado recorra ao dicionário à procura de uma nova palavra que, certamente, não irá encontrar, pois que lá não consta.
Poucos, no entanto – ou por desconhecimento, ou por simples birra – utilizam essa regra. Há, por outro lado, quem exagere na criação de palavras novas, geralmente por carência de leitura, o que torna essas pessoas pobres, paupérrimas em termos de vocabulário.
Os que se valem mais dessa prática (geralmente de forma criativa e, portanto, pertinente) são poetas. Há, no entanto, neologismos, quase sempre emprestados de idiomas estrangeiros (notadamente do inglês e, portanto, “tecnicamente”, meros anglicismos, travestidos de novidade) que se transformam em autênticas pragas. Com isso, corrompem, sem necessidade nenhuma disso, o idioma, do qual nos cabe, reitero, o elevado papel de perpétuos guardiões.

Boa leitura.

O Editor.



A carta


* Por Evelyne Furtado

“Minha boníssima madrinha. Almejo ardentemente que estas minhas simples linhas, irão encontrá-la com toda prole em pleno estado de saúde”.

Assim, uma jovem de 20 anos, inicia sua amável carta. Acima, no lado direito da folha encontro as letras J.M.J e com ajuda da minha mãe, descubro tratarem-se das iniciais de Jesus, Maria e José, prática comum nas epistolas naquela época.

A gentil correspondência foi datada em 27 de setembro de 1934 e quem a escreveu relata à sua madrinha, os desencontros, as desilusões e as “ingrisias” do seu noivado, desculpando-se por aborrecer a destinatária com suas “tolices de moça”.

Imaginem que o noivo havia oferecido levar outra moça em seu cavalo para que esta se alistasse a votar nas eleições. Um rapaz que não é nomeado na missiva contara para a linda noiva (era linda mesmo) o sucedido e esta resolvera escrever ao amado “convidando-o” a terminar o noivado.

A carta que me chega às mãos tem um sabor especial. Através dela tenho contato com a maneira de viver naquela primeira metade do século passado, numa pequena cidade do interior do estado.

O voto feminino, por exemplo, era muito recente, mesmo aqui no Rio Grande do Norte, primeiro estado a estender o voto às mulheres, em 1928 e é interessante perceber que as duas senhoritas envolvidas naquele imbróglio amoroso estavam aptas a votar e exerciam seus direitos.

O alvo da disputa amorosa, o noivo, também parecia ser atuante politicamente, uma vez que ele as acompanhava nesse exercício da cidadania.

Chamou-me a atenção, também, que muito antes da Internet e até do telefone, naquela região onde o cavalo ainda era o meio de transportes mais usado, já havia quem fizesse o leva e traz entre os casais, ameaçando a felicidade destes.

Claro que não pude deixar de ficar triste com o aparente jogo duplo do noivo, que flertava com outra moça enquanto mantinha oficialmente o compromisso com a autora da carta. Como mulher, me identifiquei com esta noivinha decepcionada e brava, que chegou a ameaçá-lo com o rompimento sem mais “convite a desmanchar”, simplesmente devolvendo-lhe as cartas e “prompto”; ao que este reagiu dizendo que ela não deveria se impor; melhor seria pedir-lhe para que não voltasse a encontrar a outra moça, o pivô da delicada situação.

A carta tem um tom de suspense, pois a noiva avisava à confidente que já não acreditava mais nesse casamento e terminava gentilmente enviando lembranças a todos. Recomendava, também, para que rasgasse a cartinha após a leitura, pois não queria que esta chegasse às mãos de quem não a merecia lê-la.

Como vêm, o pedido acima não foi atendido, pois aqui estou 75 anos após, dando as minhas impressões sobre a correspondência que graças a Deus não foi rasgada. E o faço com alegria pela oportunidade de testemunhar os sentimentos de uma jovem mulher nos anos 30, escritos do próprio punho em letra bonita e texto limpo.

A alegria é ainda maior, pois conheci bem a autora da cartinha, que continuou bondosa, bonita e inteligente até a maturidade.Por fim, comemoro o bom desfecho do desentendimento entre aquele jovem casal, dos mais felizes que pude conhecer: meus avós paternos.


* Cronista e poetisa em Natal/RN



O reencontro (I)

* Por Risomar Fasanaro


E riam. Riam de tudo. Relembravam passagens engraçadas vividas no colégio de freiras. Todas cantavam no coral e em algumas ocasiões combinavam desafinar os hinos na hora da missa na capela, só para irritar as irmãs.

Na adolescência tinham estudado na mesma classe: Laura, Julia, Bárbara e Mariana. Havia muitos anos que não se encontravam, mas a vinda de Constancia de outro estado, onde morava desde que terminara o colegial, motivou o convite e o encontro na casa de Bárbara, onde a amiga estava hospedada.

Aquele encontro não tinha a feição de quem havia ficado tantos anos sem se ver. Era como retomar na terça a conversa iniciada na segunda-feira, interrompida pela parada do ônibus, no ponto em que uma delas desceu.

A marca das estações que tinham vivido se revelava no blush que se alojava entre as marcas do rosto e no batom que não apresentava o contorno nítido de quando tinham se visto no dia da formatura. Minto, em Mariana o tempo parecia não ter passado. Parecia a mais jovem de todas. E continuava alegre, despreocupada, falando pelos cotovelos, e rindo por qualquer motivo...

Conversavam sobre coisas sem importância: cremes para a pele, receitas culinárias, permaneciam na superfície, quem sabe com medo de entrar e encontrar a escuridão de um túnel extenso demais, até voltar a ver a luz

Não, não falariam do presente. Ou melhor, falariam, mas só sobre o que não lhes trouxesse tristezas: os cursos que os filhos estavam fazendo, o trabalho do marido, o bairro onde moravam. Isso. Os acontecimentos entre o dia em que deixaram de se ver e o daquela tarde, que exigissem o olho no olho em que a dor repercutisse na alma, desses não falariam. Permaneceriam ignorados. Pra que tocar em feridas, quem sabe não cicatrizadas, quem sabe ainda sangrando?

Ao falar da vida íntima, talvez aflorassem decepções, traições, assuntos que as levariam a perceber, que já não eram mais as adolescentes de saia azul-marinho pregueada e blusa branca de mangas compridas e meias 3/4 impecavelmente brancas. Aquelas mocinhas sonhadoras que iam às cartomantes, e sonhavam com Marlon Brando. Não, melhor não provocar o surgimento do escuro e sombrio sótão de Raskolnikoff de cada uma.

Mas, sem que conseguissem impedir, entre um gole de chá, e um biscoito caseiro, a coisa veio à tona. Foi Laura só poderia ser ela, com aquele jeito alegre e espontâneo que perguntou à Bárbara:
-E seu marido? Vocês eram tão apaixonados... Ainda são?

Bárbara demorou um pouco a responder, e naquele instante foi possível perceber que, se às outras não interessava falar sobre os problemas que tinham enfrentado ao longo daqueles anos, a ela não. Ansiava pelo instante de dividir o drama que vivia.
-Não. Não há mais paixão...

E Julia rindo completou:
- É... Depois de um tempo, a coisa fica mais calma. É quando surge o amor. Mais calmo, mas mais profundo, não é? Vocês dois estão nessa fase?
- Até parece – disse Mariana. – É justamente quando a paixão passa a ser amor que a coisa se complica...

Uma delas percebendo que a amiga queria desabafar, a interrompe:
-Deixa a Bárbara falar, Mariana!...

E Bárbara continuou:
-Ele é alcoólatra.
- Alcoólatra, Bárbara?
- Fica quieta, Mariana, vamos deixar Bárbara falar...

E ela continuou:
- Eu quero me separar. Não aguento mais vê-lo se destruindo. Já fizemos de tudo, eu e meus filhos, mas ele não quer se tratar...
- Por que você não o manda embora? – diz Laura
-Porque ele não vai. Já fizemos de tudo, e ele não vai...
- Sobre a separação: seus filhos apóiam?
-Apóiam.
-Ele bebe em casa ou na rua?
-Na rua, claro. Aqui em casa não temos bebidas alcoólicas de espécie alguma.
-Muito fácil, então – diz Laura. - Quando ele sair, vocês trocam a fechadura...
-Não posso fazer isso. Não tenho coragem.

Naquele instante, Julia que tinha parado de falar e agora só ouvia, disse brincando:
-Quando ele estiver bêbado, coloca ele num caixote com cordas e desce pela janela. Depois troca a fechadura da porta. Se separa desse homem. Você não acha, Constancia?

Constancia que desde o início tudo ouvia no maior silencio, se manifestou:
-Não sei, porque eu também sou alcoólatra.

(Continua na próxima semana)


* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.





O trato e a reza

* Por Fábio de Lima

Pedro Paulo chegou com passos curtos na indecisão de quem acredita, mas desconfia. Suas mãos nos bolsos da calça serviam para conter o frio e também a timidez. A garoa molhava devagar as paredes da Igreja Nossa Senhora dos Pecadores. Pedro Paulo entrou com o silêncio. Disputou lugar, também, com o barulho de seu sapato pisando o chão lustroso da igreja. O homem olhou as pinturas religiosas seguindo seus movimentos com olhar de desaprovação.

O banco da igreja estava gelado quando Pedro Paulo sentou. Não havia ninguém lá às 8h35 daquela quinta-feira de inverno em Maranguape, interior do Ceará. Pedro Paulo pensou que Madalena havia pedido para ele passar no supermercado antes de voltar para casa e comprar atum para ela fazer uma torta. Pedro Paulo pensou também que já devia fazer 15 anos que ele não entrava numa igreja.

Lá fora estava frio enquanto dentro da igreja estava quente demais para Pedro Paulo continuar de blusa. Ele tirou a blusa e a deixou dobrada ao seu lado. Também tirou os óculos, mas depois os colocou de novo. O relógio apertava demais o pulso. Os sapatos apertavam demais os pés. O cinto apertava demais a barriga. Pedro Paulo estava incomodado de estar ali. Mas sabia que a igreja serviria para colocar suas ideias em ordem na cabeça. Só havia um problema: desaprendera a rezar.

Como podia esquecer o Pai Nosso, pensava consigo mesmo. E também já não se lembrava da Ave Maria. Pedro Paulo não se lembrava de nada e ali na igreja começava a entender que sua vida estava errada demais para consertar tudo com uma simples reza. Lembrou da infância perambulando pelas ruas. Lembrou da adolescência se prostituindo em troca de comida. Lembrou da juventude roubando carros e matando gente se fosse preciso. Lembrou só das coisas que gostaria de esquecer.

Madalena havia pedido atum e cebola ou só atum? Seus trocados no banco seriam suficientes para pagar a conta do mercado e da farmácia no final do mês? Pedro Paulo coçou a cabeça enquanto olhou nos olhos de Santo Agostinho. Era filosofia demais a dor que o assolava. Então, Pedro Paulo ajoelhou-se e resolveu falar com Deus. Falaria do seu jeito, mas falaria tudo. Não deixaria para depois uma só palavra.

O relógio da igreja contou mil trezentas e trinta e sete batidas. Pedro Paulo se levantou. Seus joelhos já estavam dormentes. Foi para o corredor e fez o sinal da cruz. Saiu andando direto para casa e nem passou no supermercado. Entrou pela porta da cozinha porque a porta da sala estava fechada por dentro com um trinco. Entrou sem fazer barulho. Entrou e sentou no sofá. Ali ficou por quase uma hora.

Assim como na igreja, a casa de Pedro Paulo era um silêncio só. Na igreja ainda se escutava o zoado longe de umas crianças brincando na praça central. Em casa não havia zoado nenhum. Na igreja os santos falavam com os olhos. Em casa não havia ninguém para falar nada. Pedro Paulo olhou para o retrato de Madalena sobre a estante da sala. Pedro Paulo teria trazido o atum e a cebola se a mulher tivesse pedido a ele. Mas, por essas coisas do destino e da morte, fazia 15 anos que Pedro Paulo não ouvia a voz de Madalena.

O homem se levantou do sofá e foi à estante. Segurou com as duas mãos o retrato de Madalena. Olhou fixamente no rosto imóvel. Depois abriu a gaveta e lá colocou o retrato. No fundo da gaveta havia um livro preto e empoeirado pouco maior que uma mão. Era hora de cumprir o trato que fizera com Deus. Leria a Bíblia até aprender toda a história, incluindo as rezas. Em troca, Deus o faria esquecer Madalena que teimava em não morrer, mesmo 15 anos depois de morta. E a leitura, em voz alta, rompeu o silêncio daquela casa.

* Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.




Fim

* Por Emilson Pedro Zorzi

Talvez busque notas
Lágrimas
Que toquem
no piano da memória
No conserto que me sobra

Hoje a história abre o livro
Na página que marquei e não li
Medo
Do escuro
Do fundo
Da página
Rasgada
Enfim
Marcada
FIM

* Poeta e pintor de Jundiaí/SP

Impura

(*) Por Clara dos Anjos


A barba roçando o meu peito
A boca engolindo meu seio
E o olho a fechar
Pra não me intimidar
Delírios
Delírios do meu corpo
Delírios da mente
Carente, ardente
Sufoco meu desejo vão
Que explode em revelação
Quando o corpo grita
A lembrança castiga
A estranha entra em ação
E não controla a reação
O líquido vaginal
Desce torrencial
E molha a cadeira
Domina a fêmea
Envergonha a irmã gêmea
Santa, recatada
Que em nada lembra a maga
Seca teu corpo, mulher
Mata essa figura
Sensual, impura


*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas

segunda-feira, 27 de abril de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Escolas literárias.

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “Dervixe”.

Coluna Pessoas e Histórias – Eduardo Murta, conto “Há um punhal sangrando de amores”.

Coluna A vida como ela é – Celamar Maione, conto “O Pusilânime”.

Coluna Sensibilidade de sutilezas – Aliene Coutinho, crônica, “Vida sonífera”.

Coluna Porta aberta – Mara Narciso, crônica “Grave! Gravíssimo!”.

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Escolas literárias

Há muito aspirante a escritor (e até escritor experiente e rodado) preocupado em escrever de acordo com as normas que definem determinada escola literária, notadamente o Modernismo e suas diversas vertentes. Bobagem.
Um bom texto literário requer, sobretudo, absoluta liberdade, quer temática, quer de forma de expressão. Claro que é uma heresia redigir o que quer que seja eivado de erros – de grafia, concordância, regência ou qualquer outra agressão às normas gramaticais. Essa liberdade é a única que um escritor não tem. É a transgressão das transgressões que qualquer redator possa vir a cometer. Afinal, quem produz literatura sempre foi, é e deve ser “ad pertua” o guardião do idioma. Tem que protegê-lo e mantê-lo íntegro e saudável, sejam quais forem as circunstâncias.
O que impede, por exemplo, um determinado poeta de hoje de escrever versos rimados, metrificados e com ritmo, como faziam os parnasianos? “Ah! Isso é antiguidade!”, dirão alguns mal-informados ou que não são do ramo, mas acham que são. É coisa nenhuma! Se o tema assim exigir, não haverá problema algum em redigir seu poema utilizando esse padrão de produção. Ou por que não se pode escrever um conto com todos os ingredientes naturalistas? Por não ser moderno? Ora, ora, ora...
Escola literária é, pois, coisa para críticos e estudantes de literatura. Não deve nunca preocupar o escritor. A ele compete, somente, comunicar um pensamento, sentimento, fato ou criação ficcional de maneira clara, verossímil, correta e atraente. Não pode contrariar seu estilo (ou sequer não ter nenhum) ansioso por uma pretensa “modernidade” que, em questão de dias, tende a se tornar “antiguidade”.
Carlos Drummond de Andrade acentua, em um magnífico poema, que se inclui entre os melhores que escreveu e os mais originais e verdadeiros da literatura universal, que prefere buscar ser “eterno” através dos seus textos a ser simplesmente “moderno”. Portanto, caro aspirante a escritor, escreva como melhor lhe aprouver. Mas sempre respeitando a pureza e a correção do idioma. E jamais não permita que nada e ninguém engessem sua criatividade. O leitor, certamente, lhe agradecerá e o premiará com a sua fidelidade.

Boa leitura!

O Editor.



Vida sonífera

* Por Aliene Coutinho

Tenho sono. Mas eu sempre tenho sono. Vivo de olhos abertos, mas durmo. Durmo quando quero relembrar, durmo quando não quero ouvir, quando não quero falar, quando não quero sair de casa, quando não quero atender ao telefone. Durmo.

Não tenho a menor vergonha de confessar que passo a maior parte do tempo dormindo, mesmo que de olhos abertos. Percebo que com o passar dos anos isso está ficando muito evidente. Já não consigo fingir que estou acordada, e no meio de conversas chatas, desinteressantes acabo abrindo a boca e deixando o sono sair.

Outro dia chamaram minha atenção. Disfarcei, porém não convenci. Creio que com isso acabei arrumando uma encrenca. De quem cochilei, parou de falar comigo, talvez para me deixar dormir sossegada. Não me importo. Sou assim.

Desde que me entendo por gente sono para mim é sagrado. Não o troco por nada. Já tentaram me convencer do quanto perco em não ficar acordada... Dizem que são anos de vida. Será? Quando durmo fico tão bem, conheço tanta gente, viajo a tantos lugares, sou tão mais autêntica, reencontro tantas coisas e pessoas que me deram prazer.

Marco e remarco encontros que cumpro num fechar de olhos. Gosto de dormir. Gosto da sensação de sentir o corpo mole se entregando, dos olhos começarem a arder e se fecharem como cortinas, cerradas, pesadas, tão minhas e sob meu controle.

Não tenho mesmo problema em dormir. Seja em qualquer lugar, a qualquer hora do dia. Já dormi em pé no ponto de ônibus, já passei da parada porque dormi, já perdi a hora, a consulta marcada com um mês de antecedência. Já dormi esperando meu amor chegar, o telefone tocar, o avião embarcar, a dor passar... Nada tira meu sono. E eu sempre durmo em paz.

* Jornalista e professora de Telejornalismo





O pusilânime


* Por Celamar Maione


A família e os amigos comemoravam os 23 anos de Dedinha, no terraço da casa dela, com muita carne, cerveja e pagode. Havia umas 30 pessoas presentes rindo e dançando sem parar. Ás 5 e meia da tarde, os convidados e os donos da casa estavam enfastiados de tanto comer e beber. Depois do bolo da aniversariante, Arnaldinho, o noivo, fez um comunicado.

Ele subiu num pequeno palco improvisado no meio do terraço, pegou o microfone do karaokê e pediu a atenção de todos: “Queiram olhar para mim ... Seu José, por favor venha aqui na frente, faço questão....o senhor é o pai da aniversariante”.

Dedinha ficou vermelha de vergonha com aquela atitude do noivo. Fez cara feia e um sinal de longe para Arnaldinho descer do palco improvisado. A advertência foi pior. Arnaldinho, meio que trocando as pernas, depois de dúzias de cerveja, respondeu:
-Só saio daqui depois que falar com seu pai...quero que todos ouçam o que vou dizer...

Os parentes presentes, primos, tios e alguns amigos começaram a gritar, os mais chegados vaiaram Arnaldinho e outros em coro gritaram:
-Arnaldinho vai pedir a Dedinha em casamento!

E começaram a cantar: “Com quem será... com quem será que a Dedinha vai casar.... vai depender .... vai depender do que o Arnaldinho vai dizer......!?”

Arnaldinho aproveitou a deixa e respondeu:
- Então façam silêncio. Eu preciso falar . Seu José, por favor, do meu lado.

Seu José subiu ao palco e ficou pertinho do suposto futuro genro. Dedinha colocou a mão na cabeça e falou para a amiga de infância que acompanhava tudo, atenta e com cara de riso: :
- Eu vou entrar, Solange. Vou para o meu quarto. Não vou suportar ficar presenciando essa palhaçada. Lá vem merda. Arnaldinho só fala merda, ainda mais de porre..
- Espera. Deixa ver o que ele vai falar. Arnaldinho adora você. Eu acho até que ...

Foi interrompida pelo Arnaldinho:
- Psiu!.Silêncio! Vou falar.

Todos se calaram e ficaram olhando atentos para Arnaldinho. Enquanto isso, ele se ajeitava, limpava a garganta, encolhia a barriga.
- Seu José, o senhor sabe o quanto eu respeito a sua filha, o quanto eu amo a sua filha. Eu quero pedir a mão da Dedinha em casamento. Eu quero me casar com a Dedinha.

Assobio geral.. Seu José foi ás lágrimas. Se emocionou. Pediu um lenço à esposa. Enquanto isso, Dedinha rangia os dentes de raiva.
-Filho da puta! Esse babaca vai me pagar!
- Pagar o quê? - perguntou a amiga.
- Ele perguntou se eu quero casar com ele?!
- E não quer?
- Não! Boboca demais, fiel demais, telefona sempre,.vem me ver todos os dias. Enfadonho!
- E isso não é bom?!
- Gosto de homem cachorro. Nasci para ser cachorra. Hhomem comportado comigo não tem vez. Não dá tesão! E quer saber mais? Nós nunca transamos.
- O quê? – A amiga fez cara de espanto – Nada? Nadinha?
- Nada. Tenho até vergonha de falar. Acho que ele é broxa.

Nisso, Arnaldinho pede a presença de Dedinha no palco Os tios empurram a sobrinha:
- Vai lá! Seu noivo tá chamando. Anda. Deixa de ser envergonhada.

A prima solteirona e zarolha solta um comentário invejoso:
- Se fosse comigo eu já estava lá. Que romântico!

Dedinha, quase matando, Arnaldinho subiu ao palco e falou no ouvido do noivo:
-Eu vou matar você! Hoje mato você!

Arnaldinho deu um sorriso sem graça, puxou Dedinha com força e beijou a noiva na boca. Dedinha mandou a mão na cara de Arnaldinho. O burburinho foi geral.
-Ahhhhhhhhhhhhhhhh

A prima zarolha e solteirona murmurou:
- Tem gente que abusa da sorte.

Arnaldinho colocou a mão no rosto e ficou com a boca aberta sem acreditar no tapa que recebera. Dedinha, que até aquele momento teve uma atuação discreta, apesar de aniversariante, gritou:
- Reage!! Eu quero ver você reagir, seu frouxo! Você é um frouxo mesmo!

Arnaldinho desceu do palco, ainda sem rumo pelo que acabara de acontecer. Seu José brigou com a filha:
- O que é isso Dedinha?! Foi assim que eu criei você?!

A mãe gritava:
- Meu Deus, que vergonha!!!! Que vergonha!!!

Dedinha fez um muxoxo, balançou os ombros e respondeu:
- Eu tenho culpa se não gosto dele para casar?

Seu José foi até o microfone e sentenciou:
- Podem ir para casa, o churrasco acabou. Por hoje é só!

Os familiares recolheram seus pertences e tomaram o rumo da porta. Arnaldinho arrumou os espetos do churrasco, desligou a churrasqueira e foi falar com Dedinha.
- Dedinha, meu amor, vem cá – disse, segurando a noiva pelo braço.

O pai entrou em casa com a mãe e deixou Dedinha a sós com o noivo.
- Larga meu braço! Você não teve consideração, meu aniversário, minha festa de aniversário, e você apronta essa palhaçada!
- Você não quer se casar comigo? Você não gostou do pedido que fiz ao seu pai?

Com raiva, pela atitude impensada do noivo, Dedinha terminou o noivado com Arnaldinho. Ele ainda chorou, se ajoelhou aos pés dela, mas quanto mais ele fazia, com mais raiva ela ficava.
- Sai, seu frouxo! Eu não gosto de homem frouxo. Gosto de macho. De homem que tem pegada.

Arnaldinho chorava tanto que gania. Fez de tudo para convencer Dedinha. Foi inútil. Foi embora cabisbaixo. Durante dois meses ficou atrás de Dedinha. Ligou. Foi no trabalho dela. Na faculdade. Procurou as amigas. Até que encontrou consolo nos braços de Solange, a amiga de infância de Dedinha. Primeiro procurou Solange para desabafar. Depois ficaram íntimos. Aconteceu o primeiro beijo. Começaram a namorar. Quando Solange contou a Dedinha sobre o namoro, o mundo veio abaixo.
- O quê??!! Namorando meu ex?!! Sua traíra! Não quero ver mais você!!!

Com o orgulho ferido, Dedinha cortou relações com Solange. Voltou a procurar Arnaldinho. Depois de alguma insistência, conseguiu o ex de volta. Só que um mês depois, o jeito comportado de Arnaldinho, começou a lhe causar tédio. Voltou a maltratar o noivo, que não reagia, pelo contrário, se mostrava cada dia mais apaixonado.

Casaram assim: com Dedinha agredindo Arnaldinho com palavras. E ele, abaixando a cabeça para tudo. A primeira transa foi na noite de núpcias. Não era broxa. O casamento durou anos. Tiveram dois filhos e 4 netos. Alguns amantes também. Os dois. Dedinha morreu primeiro.

Arnaldinho ia todos os domingos levar flores no túmulo da esposa. Num domingo chuvoso, encontrou Solange. Foi levar flores no túmulo do marido. Se viram, se olharam e se abraçaram comovidos.

*Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.





Há um punhal sangrando amores

* Por Eduardo Murta

Os filetes leves, em vermelho, se desenham no punhal sobre a mesa. Mornos ainda. O tremor dominando-lhe as mãos, sustentava que fizera por amor. E, pela honra do coração, mereceria perdão de que ordem fosse. As minúcias não lhe saíam da cabeça. Percebam, o ar lhe salta ofegante, como confissão de culpa. Ela mira em dilema intermitente o telefone. Desvia o foco. Não quer se trair. Ligaria ou não ligaria?

Essencial, agora, era juntar os cacos dos acontecimentos. E tudo se movia em flashes tão miseravelmente incriminadores que, pudesse, subtrairia aqueles fragmentos e que se incinerassem no fogo das injustiças. Afinal, não haveria de se condenar. Buscou cumplicidade naquele instante, bêbada em desespero, e a cristaleira lhe salvou. Escolheu uma bebida a esmo. Whisky. Tomaria sem gelo, a que purgasse qualquer centelha de incerteza.

Logo ela, que faria mal sequer a larvas de alfaces. O desfecho daquela quarta-feira, julgava, é que se pusera incontornável. Começara a se desenhar num maio que lhe chegava fresco, cujas memórias poderia tocar, tão perenes eram. Se recorda de tê-lo visto por entre os vidros se desdobrando na loja do Mercado Central. E lhe chamou a atenção não exatamente a beleza – que era a conta do chá –, mas o jeito terno de conversar com os peixes. Sim, conversar.
Ela, que fora lá em busca de ameixas, damasco seco e verduras orgânicas, cairia por inocente encanto naquela rede. Fora involuntário, sublinha, mas fatal. Deixou os movimentos se congelarem na contemplação platônica. E desabou em desconcerto quando olhos dele e dela se encontraram. Foi lance de gol. Ambos ensaiaram súbita tentativa de desarmar as confluências. Vã. Porque tornaram a se fitar, jeito longo.

Foi dele o gesto inaugural. Acenou com as mãos, num oi hesitante. Notou que sorria, e caminhou em direção a ela. Falaria de quê, afinal? Do clima, das pernas que lhe faltavam, bambas, de como se encantara com a cena? Resolveu arriscar no jogo da sedução. Soletrou: Sonhava que um dia você viria. Viu a face da menina se corar por inteiro. Sentiu o desalinho da respiração. No que era desconjunto, enxergou reciprocidade.

Dois minutos, espíritos se desnudando, já falavam de preferências. Mais: de convergências. De autores que passavam por seus criados-mudos. Das canções que tinham lugar cativo no baú de sentimentos de cada um. E, creiam, até da bandeira do mesmo time que os unia. Vieram as noites memoráveis. Festas pagãs. Presentes de puro carinho. Peixes com nome e sobrenome. Viagens e, nelas, fotos que eram tradução-mor de um querer em dízimas periódicas.

Planejavam filhos para o ano seguinte. E, a sorte premiando, casa com vista para a montanha. Faltou combinar com o destino. E a ela as palavras varreram feito fossem barras de ferro quebrando-lhe os joelhos. Pôs-se abaixo, aos pés dele, num choro de desidratar esqueletos. Implorou que não, que se amavam ainda, que razões assim tão frias eram indefensáveis. Suplicou. Ouviu o toque leve da porta se fechando, definitivo.

E não fez coisa outra, dias à frente, que não fosse arquitetar um reencontro. Marcou, enfim, para a noitinha daquela quarta-feira. Perfumou-se. Deu cheiros à casa. Elegeu esmalte provocante. Decote generoso. Vinho. Velas. Eram 23h47, quando tomou o punhal às mãos. Alcançou Pepo pelas costas. E fez varar-lhe a ponta, de uma extremidade à outra. Sustentou, até que parasse de se debater. Se não podia estancar a sangria do amor – ele sequer telefonara para dizer que não viria - sangraria ao menos seus símbolos. E animaizinhos de estimação, peixes de Dia dos Namorados, como Pepo, eram começo perturbador, difuso, e talvez inútil, para romper com tudo aquilo. Mas já eram um começo.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.





Dervixe


* Por Daniel Santos



Nos primeiros combates, a bravura, o entusiasmo, a certeza de superioridade. Depois, a barbárie. Soldados e prisioneiros erravam pelas estradas como mendigos de olhar ausente. Mas houve quem se salvasse.

Viviam a véspera da insânia, mas a intuição encaminhou-os ao melhor endereço: um galpão de zinco no meio da mata, onde trocava-se a angústia pelo êxtase, porque podiam ali dançar à exaustão, sem censuras.

Dançar, sim, dançar. Dançar muito, rodopiar até expulsar de si a loucura, graças à força excêntrica. Desabavam, então, esgotados e podiam chorar o alívio de tamanha purificação. E, aí, voltavam a suas casas.

Nem desertavam. Ao perceberem neles o embaciamento do olhar, sintoma da perdição, expediam-nos. Além de inúteis para as iniqüidades da guerra, podiam contagiar os outros. Então, sobreviria a paz!

Nesse sentido, perigosos. Por isso, tomavam a estrada até darem naquele galpão que, na certa, um primeiro louco inaugurou. Alguns riram de tanta insensatez, mas salvou-se quem entrou na roda e dançou.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.