terça-feira, 31 de agosto de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Perda da identificação.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Pronta?”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica “Telegrafia e os erros de português”

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, poesias “Toque de poesia”

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Quarto canto suicida para Narciso”.

Coluna Porta Aberta – Maura Soares, crônica “Cerrado Desterro”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Perda de identificação

Caros leitores, boa tarde.

O técnico Carlos Alberto Parreira renovou a seleção, mas manteve um esboço de espinha dorsal, na convocação para a Copa do Mundo de 2006, na Alemanha. Chamou dez jogadores que haviam sido pentacampeões em 2002, na Ásia e treze “novatos” (nem tão novatos assim, já que a maioria disputou, e ganhou, as eliminatórias sul-americanas). Muitos deles ganharam a posição de titulares da equipe-base, com todos os méritos.
Os “veteranos” convocados foram: Dida, Rogério Ceni, Cafu, Roberto Carlos, Lúcio, Gilberto Silva, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Ronaldo e Ricardinho. Dos que não estavam na Copa de 2002, fizeram parte dessa renovada seleção: Júlio César, Cicinho, Juan, Luisão, Cris, Gilberto, Emerson, Mineiro, Juninho Pernambucano, Robinho, Zé Roberto, Adriano e Fred.
Há já algum tempo, vinha ocorrendo um fenômeno, que se acentuou em 2010, mas que ficou claríssimo na Alemanha, que foi a perda de identificação dos jogador4es que compunham a equipe com a torcida brasileira. Dos 23 selecionados, por exemplo, apenas dois jogavam em clubes do Brasil ou, mais especificamente, em um único deles, o São Paulo: Rogério Ceni e Mineiro, ambos reservas.
Todos os outros 21 atuavam no exterior, a imensa maioria em times europeus. Esses atletas perderam de tal sorte a identificação com a torcida a ponto de serem chamados de “estrangeiros” até pela imprensa. Além disso, o futebol que passaram a praticar pouco ou nadas tinha a ver com aquele alegre, veloz, vistoso, talentoso e objetivo que nos acostumamos a ver em outras seleções, como as de 1950, 1958, 1962, 1970, 1982 e vai por aí afora. Vestiam a camisa amarelinha, mas nem pareciam “brasileiros” de fato.
Na cabeça do torcedor, esses astros da bola, financeiramente bem resolvidos, realizados, com salários milionários, bem distantes da nossa realidade interna, passaram a ser vistos como mercenários. Sem citar nomes (por motivos óbvios), convenhamos, muitos mereceram de fato essa classificação por sua postura e atitudes. O que não se pode, contudo, é generalizar para não se cometer injustiças.
Vários e vários atletas selecionados davam a impressão de estarem mais preocupados com suas carreiras (o que não deixas de ser legítimo) do que com a Seleção. Ficava a impressão que, vestir essa vitoriosa camisa era um sacrifício que faziam e não o orgulho que deveriam ter.
Essa impressão acentuou-se ainda mais com a sanha, o esforço, a obsessão de muitos jogadores em estabelecer marcas pessoais, recordes de jogos ou de gols, em detrimento do conjunto. E como todos sabem, um barco em que os barqueiros remem para direções diferentes, não chega a lugar algum.
Tomara que o trabalho de Mano Menezes, profissional inteligente, organizado e bem-articulado, mude isso, com vistas a 2014, e restabeleça a cumplicidade entre a equipe brasileira e a torcida, que então deverá ultrapassar a casa dos 205 milhões. Esse fator pode ser decisivo para a conquista do tão sonhado hexa, porque, se acontecer, ocorrerá em nossos domínios. E em caso positivo, certamente apagará a má lembrança e a mágoa deixadas pelo Maracanazo de 1950.
Falou-se muito de indisciplina e de falta de comprometimento (e de comando) da seleção de 2006. Muitos jogadores, recorde-se, apresentaram-se visivelmente fora de forma, vários deles (e essenciais para o sucesso na Copa), escandalosamente acima do peso e o tempo para mudar essa situação era muito escasso, de apenas duas semanas, até o início da competição.
Não bastasse isso, o clima criado na Suíça, na tal e malfadada Wegis, foi o mais inadequado possível. Houve excesso de exposição da seleção. Aquilo tudo transformou-se numa espécie de circo, com a tietagem rolando solta, suprimindo qualquer possibilidade de concentração no objetivo, que era a conquista do hexa. Parecia que aquele grupo de jogadores era composto por astros de rock, e não por atletas profissionais.
Atletas que deveriam estar concentrados exclusivamente em seu trabalho eram constantemente flagrados em boates da moda, quando não em bordéis, fazendo madrugada, abusando da bebida e fazendo sabe-se mais o quê.
A torcida, reitero, não confiava nesse grupo por considerá-lo integrado por “mercenários” (e sequer discuto se com ou sem razão) e multiplicou sua revolta e seu descrédito antes mesmo da bola rolar, do Mundial começar. Não toda ela, óbvio. Mas cada vez mais em número maior.
Para mim, confesso aborrecido, aquela não era a seleção brasileira dos meus sonhos, a que sempre amei e pela qual torci com orgulho e vibração, mesmo nos piores momentos, como nas copas de 1966, 1974 ou 1990.
Com todas as mazelas citadas, seu “favoritismo” era, ainda assim, exaltado por determinada parcela da imprensa, comprometida não com a informação exata e verdadeira, mas com outros interesses, não raro inconfessáveis. Todavia, para mim, havia um forte – diria que insuportável – (mau) cheiro de fracasso no ar. Não deu outra. E, ironicamente, o algoz daquela seleção não identificada com a torcida não foi outro senão um adversário “asa negra” (de novo!!!): a França.

Boa leitura.

O Editor
.



Pronta?

* Por Evelyne Furtado



Acho que nunca estou pronta. Toda hora constato que falta alguma coisa ou que tem algo sobrando em mim.
Às vezes saio de casa com a sensação de que esqueci de pôr batom, que não trouxe o celular ou que estou sem dinheiro.
Nessas horas faço um check list para me tranqüilizar e muitas vezes constato que esqueci algo. Se der para voltar, ótimo. Caso contrário vou sem lenço, sem documento, ou sem os brincos.
Em outras ocasiões sinto que carrego peso demais. Bolsa abarrotada de quinquilharias, mala cheia de roupas que não usarei, lembranças volumosas ou excesso de expectativas. È o momento de retirar itens dispensáveis, embora tudo me pareça essencial.
Quando é o coração que pesa uma tonelada o trabalho para torná-lo suave é penoso. Haja oração, meditação, razão e lágrimas, enquanto busco novas conexões neuronais para suavizar a bagagem.
Na verdade creio ninguém está pronto. Estamos continuamente nos adaptando ao presente e nos preparando para o próximo movimento da vida, para o qual, de forma a evitar ansiedades desnecessárias, usarei um pretinho básico, que pode até ser o vestido estampado, contanto que me deixe à vontade comigo mesmo.

• Poetisa e cronista de Natal/RN



Telegrafia e os erros de português

* Por José Calvino de Andrade Lima


Ultimamente estive em Gravatá, no centro da cidade, e percebi que o equívoco a respeito da grafia da palavra "ruças" é grande. A confusão começou há muito tempo, na época em que os telegrafistas das Estações de Gravatá e de Vitória de Santo Antão eram semi-analfabetos. Então quando o profissional da Estação de Vitória indagava sobre o tempo nas serras, seu colega de Gravatá informava, em Código Morse, que "as serras estão russas", isto é, "nevoentas", "ruças".

Com o tempo, surgiram comentários que o Código Morse, invento do século 19, foi o responsável pelo troca-troca, porque teria sido criado para ser usado em inglês. O telegrafista de Gravatá, não encontrando o cedilha, usou o "s" dobrado! Pura invencionice, dando surgimento a mais um barbarismo gramatical. Será que eles transmitiam "Estassão de Gravata" (o "ç" e o "á" acentuado constam naquele Código)?

A verdade é que muitos ferroviários não sabiam direito o alfabeto Morse. Aprenderam somente a licenciar trens através de números e prefixos. Quem foi profissional da arte da comunicação da velha telegrafia, particularmente do aparelho Morse, sabe disso... e sentiu com a despedida do invento que ocorreu através da televisão. Foi um adeus pobre, frio e mais que breve. O incrível computador disse ao Morse: "Vai-te embora, ninguém mais precisa de ti. Fizeram-me tomar o teu lugar. Sou eu, agora, o mágico da comunicação. Adeus e boa viagem". Isso aconteceu à noite de 31 de dezembro de 1997, numa cena rápida (sic).

Nos anos 50, eu era praticante de telegrafia na então estação do Arrayal (Casa Amarela). Aprendi telegrafia com o meu pai, que era chefe da referida Estação. Para um estudo mais detalhado, o alfabeto Morse consta no livro de minha autoria, Trem Fantasma.

* Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor, membro da União Brasileira de Escritores, UBE-PE e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 11 títulos publicados, todas edições esgotadas. Em 2007, integrou-se nas Antologias (Poetas Independentes).



Toque de poesia

* Por Risomar Fasanaro


Felicidade:
gaivota de crepom
contra a tempestade


**

a vida inteira cavei
o chão em busca de estrelas
sem saber que me bastava
olhar o céu para vê-las

**

de pássaro são teus passos
ainda assim eu sigo
teu vôo
teus rastros

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.





Quarto canto suicida para Narciso

* Por Talis Andrade

Frente a frente
consigo mesmo
que será permi-
tido conhecer

O corpo coisa
vista e tocada
A alma nenhum
espelho mostra

(Do livro “Cavalos da Miragem”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Cerrado Desterro

* Por Maura Soares



Palavras para Emanuel

Iniciei a leitura de Cerrado Desterro na manhã de 4 de abril de 2010, domingo de Páscoa. Sem querer fiz uma leitura, digamos, em conta-gotas, lendo à noite ao deitar ou pela manhã, ao acordar.
Fechei o livro nesta manhã, sem querer ler os depoimentos ao final do livro, pois tenho comigo que se fosse ler poderia me influenciar no quero dizer e até repetir o que os amigos e familiares disseram. Fica para depois, com calma, degustar as palavras daqueles que se dispuseram a dar seus testemunhos.
Se fosse ler poderia perder um pouco a emoção que a obra encerra.
Emanuel, mais uma vez, enviou-me um filho seu para ser acarinhado.
Já havia degustado “Olhos azuis – Ao sul do efêmero” e lhe enviado minhas modestas considerações, pois ainda não tenho o volume de leitura de escritores como Emanuel, e a amiga acadêmica Urda Klueger, pois são pessoas dedicadas quase que 24 horas à literatura e eu cheia de afazeres em três instituições culturais em que presto colaboração, não consigo ter o volume de leituras que eles têm.
Emanuel pede lá pelo meio da obra que seus leitores não a lessem apressadamente, no afogadilho, mas que a cada página meditassem sobre tudo o que estava ali estampado – parodiando o autor – num coração despedaçado em folhetins.
Quando um ser tem sua convicção política e não esmorece diante das adversidades, fatalmente encontrará barreiras a transpor, feras a domar.
Ainda luta após tantos anos com seus demônios interiores, ainda tenta exorcizar o que a fé católica em que foi criado, incutiu em sua mente, o pecado, o sentimento de culpa.
Desprendida que sou deste sentimento, pelo menos não fico me provando a toda hora, tentarei dizer palavras para Emanuel que brotarem a partir daqui, diretamente do meu coração de uma pretensa poetisa para um poeta nato, um poeta em que até nas adversidades transforma sua narrativa em poesia, até num simples e-mail que me envia, entrega seu sofrido coração.
Mudou o Natal ou mudei eu?
Onde ouvi esta frase? Creio que de uma peça de teatro, de quem não sei, só sei que a fala foi do amigo irmão ator Édio Nunes.
Mudou o Natal ou Emanuel mudou?
Não, Emanuel não mudou, apenas as circunstâncias da vida fizeram com que ele adormecesse suas convicções políticas pra não se machucar mais, para que sua amada Clarice não sofresse ao ver o sofrimento do amado pai.
Agora, na plenitude de sua vida, Emanuel revê seu Cerrado e seu Desterro “com olhos lassos, com ironias e cansaços” e até com certa amargura. Mas ele foi “treinado” para amar o próximo, nele foram imbuídos os sentimentos cristãos de um pai amoroso, de um pai trabalhador que seguia a fé católica como deve ser, desprendido de apego a bens materiais, embora muitos “doutores” da Igreja Católica vivam nababescamente invocando o nome de Deus.
Cerrado Desterro. Este é o foco das minhas palavras.
A obra é dedicada aos amigos, àqueles que com ele empreenderam a jornada da vida, que o ampararam quando de suas internações hospitalares, quando em dolorosa peregrinação como o Cristo em direção ao Calvário, ele sofreu.
A obra em seu desenvolvimento é dedicada àqueles que ao seu lado saíram às ruas enfrentando o poder político, o militar, o golpe de 64.
64 ainda não terminou. Os porões da ditadura não foram devidamente devassados.
“Encerra este papo”, pode alguém querer me dizer. “Os tempos são outros”. “Aquelas frases de efeito “ o povo unido jamais será..” “ abaixo” “fora FMI” não existem mais, não vês como eles estão hoje colocando dinheiro nas meias e cuecas?” “Pra que reviver isto, pra que mexer em velhas feridas”?
Pois é. Soltaram o Arruda. Podem ter certeza: nosso povo não tem memória. O homem vai dar um tempo e vai se candidatar de novo, ganhar a eleição e continuar o que deixou antes de “sofrer” na prisão.
Não, mas o foco é Cerrado Desterro em que Emanuel se desnuda, exorciza seus demônios, escancara suas veias, derrama seu sangue ao mesmo tempo em que seu coração de menino não se desprende da Ilha-terra natal-capital.
Não se desliga da casa da Avenida Rio Branco, do Grupo Modelo Dias Velho – onde também eu e meus irmãos estudamos – não se separa, ou não quer se afastar, da casa na praia, dos seus passeios com pés descalços nas areias da Ilha onde tantas vezes meditou sobre sua vida, tantos papos tantas bebidas, qual o sentido da vida que se apresentava.
Pouca foi a minha experiência hospitalar diante do sofrimento de Emanuel.
Após acidente sofrido em janeiro de 2009 – um simples atropelamento em que um irresponsável com o celular ao ouvido me colheu com um pé na calçada – e me deixou no “estaleiro” por sete meses, peregrinando por hospitais em Florianópolis e Blumenau. Também como Emanuel as veias para soro e retirada de sangue para os devidos exames se esconderam causando mais sofrimento. É grande a dor quando enfermeiros procuram a veia boa para o exame. A dor é imensa, mas passa. A dor passa. Não o sentimento que dela emana.
Me recuperei pois a minha dor foi física, no entanto, a de Emanuel foi a dor da alma e por mais que ele a exorcize, um quê de tristeza ainda fica guardado lá no fundo, no escaninho de sua memória.
Quem passou pela vida e não sofreu, simplesmente não viveu, já disse alguém. Não sou muito pródiga em citações embora colha em diversos PPS e obras e as guarde para ler antes das reuniões do Grupo de Poetas Livres, de Florianópolis, cuja presidência exerço desde 2000 e irei até 2012, se Deus assim o permitir,pois mais uma gestão – ou gestação como digo – se me apresenta.
Pois bem, tenho que parar de fazer digressões e ir ao que interessa: as minhas impressões sobre o livro que o autor me dedica com as palavras que não posso deixar de citar: ”Para Maura, generosa amiga e sensível colega de ofício, seguem umas evocações desse longo sofrido; mas sempre adorável andar, com o carinho sincero do Emanuel”.
Cerrado Desterro impressionou-me por sua narrativa memorialista.
O quarto do hospital palco de seu sofrimento, mas também de suas recordações, de seus devaneios trouxe-lhe o cheiro do mar da Ilha-capital, trouxe de volta os seus discursos, a sua voz inflamada contra os que torturaram, os que seviciaram, os que tentaram abortar a fé em dias melhores para a nação brasileira.
Não costumo fazer isso, mas nesta obra peguei uma lapiseira, depois um lápis, pois o grafite havia acabado e comecei a fazer pequenas chaves em parágrafos, sublinhar em quase todas as páginas nos trechos que me tocaram e me ajudariam a reler para dar este testemunho.
Ressalto Elliot que disse que autor, o poeta, escreve para se livrar das emoções e já na página 42 Emanuel cita Elliot quando diz que as palavras se movem.
Assim se move o livro: anos 60 anos 90, anos 70 , 2004 e nesse vai e vem a memória do autor passeia por sua história, de um quarto de pensão, à casa dos pais, da cela de prisão à outra prisão, o leito do hospital.
Seu sofrimento no leito hospitalar conseguiu em parte botar pra fora neste livro. Só quem sofreu pode avaliar o sofrimento alheio.
Aquele senhor nascido em 1945 quer voltar pra casa, ganhar o beijo do pai, virar novamente menino, passear na região da Avenida Rio Branco, sei lá, empinar pandorga no Campo do Manejo, caçar passarinho, brincar no rio da Avenida Hercilio Luz, roubar fruta no pátio do Colégio Catarinense.
Lembro-me quando no Dias Velho, na hora do recreio, ia para a parte de trás do Grupo e roubava amora do pé, enquanto os auxiliares de disciplina não me pegassem.
Diz Emanuel “A memória é elemento nuclear de toda a minha escrita: modesto memorialista; sou desta tribo”.
Sua prodigiosa memória dá saltos do Golpe de 64 em que o Brasil mergulhou num regime de exceção, vai à faculdade de Direito em Porto Alegre, retorna à Confeitaria Chiquinho, ao Campo da Liga, ao Roda Bar onde meu irmão Saulo tantas cervejas deve ter tomado, onde minha mãe designava um dos pequenos para chamar o irmão dizendo que o almoço já estava na mesa e todos tinham que comer na mesma hora, pois família grande tudo tinha que ser repartido irmamente.
Enquanto falo de Emanuel também cito coisas minhas, contemporâneos que fomos freqüentando quase os mesmos lugares da Ilha formosa.
Não vou seguir capítulo por capítulo de Cerrado Desterro, nem pretendo fazer análise crítica, não é esta minha intenção de momento. Nem tampouco analiso a obra. Falo, sim, com o coração degustando o livro como pede o autor no decorrer da obra.
Pensar a vida, revivê-la quando a plenitude chega dando-nos a oportunidade de contar, de deixar para a posteridade seu relato, fase de uma vida, espaço-tempo da memória em que tudo o que foi relatado não foi ficção, foi uma realidade nua e crua em que a alma do poeta dourou a pílula, deixando para o leitor imaginar cenas de tortura e dada sua bondade, até se enternecer com um dos algozes, homem bruto sem cultura, admirando aquele jovem alto e magro escritor, poeta nascido na Ilha de encantos, de casos e ocasos raros.
O que lhe valeu foram as boas leituras que teve ao longo de sua trajetória, que ficaram gravadas em seu subconsciente; o que lhe valeu foi a sua inquebrantável força interior em receber sua cota de sofrimento na OBAN, a grande sucursal do inferno no Brasil, como diz.
Machucaram o nobre amigo, mas não lhe impediram de pensar, de raciocinar, isto tortura nenhuma apaga.
Emanuel além de desnudar-se arranca “pedaços de sua pele, e esses pedaços não acabam nunca, puxando, puxando, tantas camadas superpostas”.
Quem sofreu tortura sabe avaliar o sofrimento alheio, repito. E diz Emanuel – para exorcizar os demônios – “é preciso escrever. Para lembrar. Para deixar exposto para os que vierem. Isso aconteceu. Os demônios voltam, como cadáveres mal enterrados, cujos braços e pedaços acabam aparecendo, vindo à superfície, à terra. Uma chuva, uma tempestade, e lá estão eles”.
Emanuel escreve. E Emanuel com sua prodigiosa memória que o sofrimento debaixo da pata do governo, não eliminou, escreve. Escreve dourando a pílula para que o leitor viva com ele, mas que como bom cristão, não quer que o leitor chore como ele chorou com o abuso do poder, não quer que seus amigos, aqueles que com ele empreenderam a jornada não sejam esquecidos, mas também não se revoltem com o que passou não da forma de vingança pois estariam fazendo a mesma coisa que eles, mas que após tanta dor que venha o amor, o amor de Clarice estampado em muitas passagens, o amor por Lucas que se percebe no olhar como se uma câmera estivesse focando quando Emanuel olha Lucas ao completar um ano, 24 de maio.
O olhar do pai de coração a gente vê, aquele olhar compassivo daquele homem que sofreu, mas que continua a escrever para deixar aos que vierem depois dele, um pouco da história que viveu, para que futuros historiadores revirem o baú de suas memórias, tentem imaginar a Ilha-Capital dos anos 60 – em que éramos felizes e não sabíamos – citar as passagens da obra na tentativa de reconstruir a época porém quem viveu sabe o que aconteceu; tenha seus encantos, suas alegrias, suas dores, suas revoltas, suas lágrimas.
Quem viveu a época do golpe de 64 a 79 – anos 80, sabe o quanto a vida foi dura, o quanto teve que amargar, mas no fim, o Brasil ficou o mesmo, pois “sempre haverá um habeas corpus para os grandes ladrões”.
O que a ditadura não tirou e nem vai tirar tanto de Emanuel quanto de Adolfo, Pedro, Gerônimo, companheiros de infortúnio, é a fé inquebrantável num país sem desmandos, num país onde o bem perdure, onde a economia favoreça a todos.
O que “eles” tentaram e não destruíram foi a alma do menino, aluno do Grupo Modelo Dias Velho, a alma do jovem inconformado que bebeu todas e hoje se contenta com água mineral, a alma do menino que andava nas ruas de sua cidade natal despreocupadamente, que observava a praia, o vai vem das ondas.
A alma e o Amor, aquele que vence qualquer batalha, aquele que dá forças para continuar, aquele amor de Clarice e de Lucas, perpetuações do Amor Divino.
Mais não posso dizer. Que os leitores que vierem após sintam também a emoção ao apreciar, com vagar, as páginas de Cerrado Desterro.
Que os leitores sintam que Emanuel foi um daqueles seres, uma daquelas crianças que nasceram na geração das crianças traídas, mas que sobreviveram a tudo, pois há em seus corações o toque da esperança.
Um beijo em teu coração tão despedaçado, meu amigo Emanuel Tadeu, aquele que está no coração dos homens puros louvando a Deus.


NOTA: Aos 15 de abril de 2010, madrugada, quinta-feira, como sempre escrevendo sobre o travesseiro, com o barulho da feira de hortaliças a se organizar debaixo de sua janela.


• Maura Soares, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, Academia Desterrense de Letras e Grupo de Poetas Livres.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Por uma vaga, mesmo campeão

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Ao mestre Cunha, com carinho”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema “Desapego”

Coluna Sensibilidade e sutilezas –Aliene Coutinho, poema “Ciclo vicioso!”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, crônica “Na terra do Minotauro”.

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, poema “Replicante”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Por uma vaga, mesmo campeão

Caros leitores, boa tarde. Esta série de reminiscências das várias copas do mundo que tive o privilégio de acompanhar, que em princípio estava prevista para ser três vezes menor do que acabou sendo, está prestes a terminar. Tive, em relação à Seleção Brasileira, muito mais alegrias e motivos de orgulho do que tristezas e razões para lamentar. Afinal, nosso futebol é o único a conquistar cinco das 19 competições já realizadas e, principalmente, foi o único a disputar a totalidade dos mundiais realizados.
O Brasil, a despeito de ter se sagrado campeão em 2002, na Ásia, teve que disputar as eli8minatórias para a Copa do Mundo de 2006, na Alemanha. Isso ocorreu por causa de uma nova determinação da Fifa, que passaria a vigorar nas competições seguintes (e é válida, óbvio, para 2014).
Desde então, apenas o país promotor do mundial tem vaga assegurada. Isso é certo? Isso é errado? As opiniões a respeito variam. Alguns estranharam a medida, pois havia (e há) o risco do campeão da copa anterior não se classificar e não poder, destarte, defender seu título. . Outros tantos, todavia, gostaram. Entenderam que a medida permitiria que a seleção vencedora, detentora da Copa Fifa, permanecesse em atividade, mas encarando jogos oficiais e não amistosos tipo caça-níqueis, que em termos técnicos não significam coisíssima alguma.
O Brasil passava por uma reformulação forçada em sua comissão técnica. Luís Felipe Scolari, sabiamente, capitalizou o sucesso conseguido na Ásia e resolveu torná-lo profissionalmente lucrativo. Firmou contrato com a federação portuguesa para comandar a seleção de Portugal, tanto na Copa da Uefa, que esse país iria sediar, quanto no Mundial da Alemanha.
A dupla Carlos Alberto Parreira e Zagallo voltaria a trabalhar junta. Estava entrosada, se conhecia e se entendia muito bem. Os dois experientes e ultravencedores treinadores tinham, agora, o desafio de lutar pelo hexa. Esse passou, então, a ser uma espécie de “mantra” (na verdade, ainda é), recitado a todo o instante tanto pela imprensa esportiva, quanto pelos torcedores.
O Brasil disputou uma eliminatória que classifico de discreta. Se não foi brilhante, esteve muito longe de ser vexatória. Pelo menos foi condizente com as tradições e o reconhecidamente elevado potencial do futebol brasileiro. Perdeu somente dois jogos, ao contrário da disputa anterior por vaga, quando havia perdido para quase todo o mundo. Todavia, a Seleção de Parreira empatou muito: sete vezes. Contudo, comprovou, em campo, sua condição de favorita ao hexa, assegurando a vaga em primeiro lugar. Nada mau, não é mesmo?
A Seleção brilhou, de fato, nas Copas América e das Confederações, vencendo, com folga e jogando muito, as duas competições. Essa performance fez com que o Brasil chegasse à Alemanha como favoritíssimo, o que, quando acontece, sempre é perigoso, se quem comanda (e quem joga, claro) não tiver os pés no chão. Havia consenso em torno desse favoritismo brasileiro, tanto no País, quanto pelo mundo afora. Mas... Aí é que morava o perigo.
As vitórias brasileiras nas eliminatórias foram as seguintes: Colômbia (2 a 1 em 7 de setembro de 2003); Equador (1 a 0 em 10 de setembro de 2003); Argentina (3 a 1 em 2 de junho de 2004); Bolívia (3 a 1 em 5 de setembro de 2004); Venezuela (5 a 2 em 9 de outubro de 2004); Peru (1 a 0 em 27 de março de 2005); Paraguai (4 a 1 em 5 de junho de 2005); Chile (5 a 0 em 3 de setembro de 2005) e Venezuela (3 a 0 em 11 de outubro de 2005).
A sucessão de empates do Brasil começou, ainda, em 2003 e foi esta a sua relação: Peru (1 a 1 em 16 de novembro de 2003); Uruguai (3 a 3 em 19 de novembro de 2003); Paraguai (0 a 0 em 31 de março de 2004); Chile (1 a 1 em 6 de junho de 2004); Colômbia (0 a 0 em 13 de outubro de 2004); Uruguai (1 a 1 em 30 de março de 2005) e Bolívia (1 a 1 em 8 de outubro de 2005).
Apenas o Equador (que estabeleceu o placar de 1 a 0 na altitude de Quito, em 17 de novembro de 2004), e a Argentina (que fez 3 a 1 em Buenos Aires, em 8 de junho de 2005), conseguiram nos vencer nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2005.
Mal sabíamos que estava montado o cenário ideal para um grande fracasso, um maiúsculo vexame do nosso vitorioso futebol, que ora se deixa levar pelo clima de “já ganhou”, ora pelo de “já perdeu”, sem conseguir manter o equilíbrio e a cabeça devidamente no lugar.

Boa leitura.

O Editor.



Ao mestre Cunha, com carinho

* Por Eduardo Murta


Tantas foram as histórias de como o Mestre Cunha se despediu desse plano, que nelas enxergo pouco além de singelas miragens. De todas desconfio e reafirmo em convicção: Mestre Cunha anda mais vivo do que nunca. Soa até candura ouvir do que descreviam no café da esquina que tudo se deu quando lia Mário Quintana, cruzando a faixa de pedestres, e nada viu além do clarão o colhendo súbito. Imitando passeata de anjos...

Ah, puro delírio. Desdenho. Descreio também dos que o descrevem submerso em banheira de quarto de hotel. Os dedos ainda atados ao Neruda de “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada”, aberto à página 40. Tampouco me fiarei nos que sugerem atmosfera de realismo fantástico, em minúcias, sobre o momento em que, salão da biblioteca pública, flutuou.

Levitava e, lendo “A Procura da Poesia”, num Drummond robusto, foi se desintegrando, até que brotassem letras em bolhas de sabão por sua pele, numa metalinguagem que academia alguma tivesse como explicar. Mais: espocando, as bolinhas vinham derivando versos. Ficaram tão somente seu terno, o sapato marrom e um triste silêncio ao centro. Disso igualmente descreio. E reafirmo: vivo ele está.

Que perdoem os incrédulos, mas sou capaz de vislumbrá-lo logo ali. A voz grave embargada, contando do dia em que fundou pelos grotões dos bairros soando ainda coloniais e se pôs diante de uma plateia peculiar: a dos iletrados. Era doce provocação do destino, a de colocar frente a frente alguém que levava uma biblioteca no coração e os que tiveram as portas fechadas a cada instante em que tentavam decifrar o abecedário.

Instigante encontro. Começou num janeiro, transitando para um simplório “Vovô viu a uva”. E, véspera de Natal, mirem o presépio vivo na pracinha do lugar. Fizera trabalho de caprichoso relojoeiro com aquela gente, porque estavam ali, mágica, lendo Machado de Assis, Gregório de Mattos e, creiam, um Brecht escolhido a dedo.

Vejam Gumercinda, 78 anos, lavadeira, declamando “Para ler de Manhã e à Noite”. As rugas lhe repuxam, emocionado tom. Engasga nas sílabas, patina no ritmo, mas por inteiro se entrega: “Aquele que amo disse que precisa de mim/Por isso, cuido de mim, olho meu caminho/ E receio ser morta por uma só gota de chuva”. Se sente ao final como tivesse desatado as amarras de um piano desafinado que carregara vida afora feito fosse um fardo. Com Mestre Cunha quer partilhar desse contentamento, mas não o vê entre a multidão.

Só manhã seguinte lhe revelam o porquê. Eis Gumercinda, pernas cansadas e trêmulas, subindo a colina com um ramo de flores. Leva junto um bloco de folhas amassadas, das lições em que aprendera da perninha do Ó ao ch da chuva. Não fora lá para derramar lágrimas. Mas simplesmente revê-lo. Conversar. Rir de suas histórias. Dos nomes dados aos três filhos: Agá, Jota e Eme. E do jeito comezinho de dizer que era forma devotada de imortalizar o alfabeto.

Imortalizara mais que isso. Coisa de não se crer: a passarinhada fazendo ninho em torno ao túmulo. Jacarandá mimoso e ipê brotando assim ao léu. Bem-te-vi, sabiá, rolinha, beija-flor, papa-capim... Gumercinda pediu licença. Queria se aproximar, ler-lhe um poema. Antes, visitou-lhe a recordação. A historieta - da qual sempre duvidara – de que Mestre Cunha, raiando o dia, fazia pose de espantalho à Mata das Borboletas para os pássaros virem comer-lhe à mão. Agora punha fé. E como acreditava numa inocente sopa de letrinhas acendendo aquela fina comunhão. Esta imagem, não mais que esta, é que dele guardarei. Por todo o sempre.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.



Desapego

* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral

A bonequinha de porcelana
empoeirada.
O porta-jóias já sem cor.
Um espelho embaçado
que reflete almas
distorcidas.
De olhos fechados
deixo para trás o que
passou.
Fecho a porta e
travo o portão.
Com um gesto
deliberado
limpo a poeira
das mãos no
vento...
Que essa história
seja varrida
no tempo.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário



Ciclo Vicioso!

* Por Aliene Coutinho

No domingo, durmo.
Na segunda desperto ainda cheia de sono.
Na terça, perambulo por entre as horas.
Na quarta, quero um dia maior.
Na quinta, mais horas ainda...
Na sexta que o dia não acabe.
No sábado, começo a relaxar
para enfim dormir domingo!

* Jornalista e professora de Telejornalismo



Na terra do Minotauro

* Por Elaine Tavares

Era manhã cedinho quando chegamos a Heraklion, capital da famosa ilha de Creta, espaço bendito do deus Taurus. Tudo ali evoca o sagrado. Desde o mar, azul demais, morada de Posseidon, até os corredores labirínticos do palácio de Knossos. Mas, foi difícil a tarefa de conectar com toda esta história antiga, repleta de mitos e lendas, devido ao burburinho dos turistas que mal escutam a fala das gentes locais, preocupados em tirar fotos. Depois de certo desconforto com tanta gente, tivemos sorte. A guia, que falava um fluente espanhol, era uma senhora de quase 70 anos, de nome Catarina. Experiente na profissão, ela levou o pequeno grupo do qual eu fazia parte pelo caminho inverso. Assim, enquanto todos os barulhentos turistas começavam o passeio pela porta de entrada principal, nós começamos pelo final, no anfiteatro.

A ilha de Creta é a maior ilha da Grécia e a quinta maior do Mediterrâneo. Transformada hoje num Centro Mundial de Turismo, tem 260 quilômetros de comprimento, variando de 12 a 60 na largura, e 650 mil habitantes que se dividem por entre três grandes cordilheiras. Está ao sul do Mar Egeu e tem sua economia baseada no turismo e na cultura da vinha, da oliveira e dos cereais. Segundo a história, ela já foi habitada desde o neolítico, há cinco mil anos antes de Cristo. Mas foi já na Idade do Bronze, no ano de 3000 a.C que na ilha floresceu uma das mais antigas civilizações da Europa: a civilização cretense. Por volta do ano 2000 a.C começa o período minóico, no qual foram construídos palácios gigantescos. Havia um profundo conhecimento da engenharia, da astronomia e o povo cultuava um deus personificado na figura do Touro. Conta-se que no ano de 1.700 a.C aconteceu um terrível terremoto que colocou no chão quase todos os palácios, mas, sob o comando do rei Minos tudo foi reerguido, com maior pompa e riqueza de detalhes, em alabastro, pedra e madeira.

A cultura minóica é reverenciada na Grécia como um dos momentos de grande desenvolvimento dos povos antigos. O povo de Creta dominava os mares e tinha a maior frota da época. Seu declínio começou por volta do ano 1.400 a.C. quando o vulcão de Santorini cuspiu fogo, seguido de um forte terremoto. Naqueles dias, uma onda gigante atingiu a frota e abriu caminho para a ocupação grega, que chegou sem guerra, uma vez que quase tudo estava destruído.

A descoberta dos palácios

O tempo passou e a civilização minóica virou lenda. Entrou para a cosmogonia grega como o território de um mito: o do Minotauro, monstro metade homem, metade touro, que vivia nos labirintos dos palácios do rei Minos e que só era acalmado com o sacrifício de virgens. Conta a lenda que ele – que era filho de Minos - só foi destruído quando Ariadne forneceu a Teseu o segredo para entrar e sair do labirinto. Ele entrou, matou o monstro e saiu seguindo um fio que deixara preso à entrada do palácio. Na verdade, conta Catarina, o mito do Minotauro surgiu por conta de que, na ilha, o Touro era reverenciado como um deus e nas festas de primavera havia celebrações onde os jovens dançavam e brincavam com um touro. Estes afrescos podem ser vistos com detalhes no Palácio de Knossos.

Até 1890, os palácios do rei Minos eram considerados frutos da imaginação dos contadores de história. Foi nesta época que um morador da ilha, coincidentemente chamado Minos, encontrou algumas cerâmicas com inscrições e percebeu que ali poderia estar um tesouro. Ele tentou levar adiante a escavação, mas, naqueles dias, o território estava ocupado pelos turcos, que não permitiram a busca. Foi em 1900 que um inglês chamado Sir Artur Evans, atraído pelas histórias dos palácios veio para Creta e comprou a colina onde Minos havia encontrado as cerâmicas. Não demorou muito e os palácios estavam descobertos, tudo sob a tutela do Museu Britânico. Hoje, o palácio de Knossos é parada obrigatória de quem vai à ilha e uma caminhada por ele torna bastante óbvia a origem da lenda do labirinto. O lugar é gigante e suas edificações são cheias de labirintos de salas e corredores.

A civilização minóica, que floresceu sob o comando do rei Minos era festiva e alegre. Tanto os homens como as mulheres passavam grande parte do tempo em atividades lúdicas, ao ar livre. Gostavam de dança, canto e touradas. Tinham uma escrita própria que demorou muito a ser decifrada. Na verdade, boa parte permanece inacessível, apenas se decifrou uma que trazia dados sobre o palácio, tais como detalhes da construção e controle dos armazéns. As diferenças de classe eram quase inexistentes e havia um equilíbrio muito grande. Minos era considerado um rei muito justo e no seu trono de pedra – o mais antigo da Europa – está estampado um glifo que representa um animal com cabeça de águia, corpo de leão e serpente, representando os três elementos da cosmogonia cretense: o céu, a terra e submundo.

Andando no labirinto

Sob o sol de quase 40 graus o palácio de Knossos adquire uma luminosidade impar e fica difícil imaginar um monstro meio homem, meio touro andando por ali em busca de virgens. Mais fácil pensar numa comunidade simples e prosaica, vivendo feliz à beira do mar. A estrutura tem um grande pátio central e um outro na parte oriental, próximo aos aposentos da rainha. Há grandes buracos com vasos gigantes, sobras de rituais e cerimônias sagradas. A sala do trono é pequena e muito singela. Há um pequeno trono de pedra e uma cabaça ritual, onde Minos fazia suas oferendas. Nela eram colocados óleos sagrados que fluíam para debaixo da terra, onde reinava a serpente, deusa do submundo, controladora dos terremotos. O teto é baixo e com pouca luz, para deixar mais profundo o ar de mistério. Já os aposentos pessoais, tanto do rei quanto da rainha são altos, arejados e cheios de luz, com pátios internos por onde crescem plantas.

Há dezenas de corredores de armazéns onde se guardavam o óleo, o ouro, a prata e os mantimentos. As paredes são pintadas com afrescos cheios de delicadeza e graça. Os homens são representados em marrom e as mulheres em branco, sempre com roupas frescas e vaporosas. Também aparecem com muitas jóias e em cenas de brincadeiras com o touro, danças e jogos.

O touro era sagrado porque a comunidade acreditava na antiga lenda de que o principal deus daquelas terras, Zeus, disfarçado de touro, havia raptado Europa e com ela gerara um filho. Este filho seria o rei Minos, daí a sua fama de homem sábio e justo, uma vez que era um semideus. Por conta desta lenda, todos os anos, acontecia a “taurocatapsia”, uma espécie de brincadeira com o touro, que reunia os jovens em jogos, acrobacias e festas, tendo nascido daí a lenda do Minotauro.

O palácio de Knossos também tem um sistema hidráulico muito sofisticado. Pode-se perceber que os cretenses tinham vários banheiros e cultivavam o hábito do banho diário. Há um sistema de canais que dividiam as águas negras da água da chuva, esta última sempre seguindo o rumo do rio, para que fosse renovado o ciclo da água. É bom lembrar que os construtores de Knossos também estão imortalizados pela história grega: são os arquitetos Dédalo e Ícaro. Para quem não se lembra, foi de cima de uma das torres do palácio que, Ícaro – sonhando em voar como pássaro - alçou vôo com suas asas coladas com cera. Diz a lenda que tanto chegou perto do sol que a cera foi derretendo e ele caiu no lindo mar Egeu.

A saída do palácio fez-se pela entrada norte, que dá caminho para o mar. Era por aquele portão que entravam e saiam os trabalhadores que tornaram famosa a frota cretense. Não é sem razão que bem ali está um enorme afresco com a figura de um touro. É Taurus, o deus, guardando e vigiando a vida de seus súditos.

Pelo caminho de mais de dois mil anos, ainda bastante bem conservado, seguimos em direção ao porto com a profunda sensação de ter estado num lugar mágico. Apesar do buliço das gentes, as colunas pretas imitando o alabastro, os afrescos cheios de vigor e a figura do deus em todo o lugar, dão a oportunidade de um encontro único com um povo antigo que, há mais de cinco mil anos, ali viveu de maneira tão alegre e pacífica. A brisa fresca das árvores que margeiam a saída do palácio murmura bênçãos, o touro nos mira e nos despedimos com a certeza de que os deuses ainda guardam o lugar.


• Jornalista de Florianópolis/SC

Replicante

* Por Alberto Cohen

Por incrível que pareça, ainda estou aqui.
Pálido, disforme, transparente,
escondido nos becos e vielas,
soluçando um sorriso e um palavrão,
mas, inexplicavelmente, ainda estou aqui.
Sobrevivente de mim, sobrevivente
de tudo que sonhei e que não fiz,
gritando olás que ninguém mais escuta,
desmesuradamente além do tempo estou aqui.
Sou menino, juro sou menino
que não conhece vias transversais,
ao mesmo tempo um fantasma que não sabe
e se ocultou com medo de morrer.
Das minhas ruas não conheço o novo nome,
nem consigo meu nome soletrar,
faço caretas, pulo e me disfarço
tentando ser igual aos desiguais.
Os olhos não me vêem e, no entanto,
enxergo todos neste mesmo olhar
enternecido com folhas que caem,
com borboletas e com verbo amar.
Estou bem aqui, você que passa
e não me vê na minha transparência,
já sou de ontem, mas de forma incrível,
invisível, ainda estou aqui... Possivelmente...

• Poeta e advogado de Belém/PA

domingo, 29 de agosto de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Consagração no Japão

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Reinvenção do universo”.

Coluna Direto do Arquivo – Anna Lee, crônica “Nada de vontade, vontade de nada”.

Coluna Clássicos – João Cabral de Melo Neto, poema “Tecendo a manhã”.

Coluna Porta Aberta – Lêda Selma, crônica “Aqueles homens enormes”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Bórgia, crônica “Vidas inventadas”..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Consagração no Japão

Prezados leitores, boa tarde.

O Brasil iniciou sua brilhante campanha na Copa do Mundo de 2002 na Coréia do Sul, mas obteve a consagração nos estádios do Japão. Ambos os países, os leitores se recordam, co-promoveram aquele mundial, o primeiro disputado no continente asiático.
A seleção comandada por Luís Felipe Scolsari mostrava a regularidade que lhe faltara nas eliminatórias e, sobretudo, eficiência. Nada de firulas desnecessárias ou de improdutivos toques de lado. Era um futebol objetivo, dinâmico e eficaz.
Claro que havia destaques individuais, embora prevalecesse o aspecto coletivo. Alguns jogadores destacavam-se mais do que os outros. Quando a defesa, por exemplo, falhava, lá estava invariavelmente Marcos, um dos melhores goleiros de nossa história, para garantir o zero do adversário no placar.
Gilberto Silva, então no auge, era um paredão à frente dos três zagueiros – o Brasil jogava no esquema que então poucos clubes brasileiros adotavam, o 3-5-2 – enquanto Rivaldo era o maestro daquela orquestra bem afinada. Fez uma copa impecável. Compôs, ao lado dos dois Ronaldos, o trio “Ro-Ro-Ro”, que se constituiu num ataque infernal, agressivo, fulminante e inciso. O centroavante brasileiro, que fizera história na Europa em clubes como PSV, Barcelona e Internazionale de Milão, já era conhecido como “Fenômeno”
Para surpresa geral (e, confesso, da minha também), recuperou-se da série de contusões, principalmente nos joelhos, que vinha sofrendo e que ameaçara não somente deixá-lo fora da copa, mas, principalmente, do futebol. Em 2002, não parava de fazer gols. Como Romário, em 1994, Ronaldo foi um dos responsáveis por aquela surpreendente e memorável campanha na Ásia.
Ronaldinho Gaúcho, injustiçado por grande parte da imprensa brasileira, com raríssimas exceções, que nunca reconheceu devidamente sua importância para a seleção, era um coadjuvante magnífico, que a todo o momento roubava a cena e se tornava protagonista.
O Brasil estreou, em gramados japoneses, em 17 de junho de 2002, no Estádio Kobe wing, da cidade de Kobe, contra a Bélgica, pelas oitavas de final. Os “diabos vermelhos”, como os belgas eram chamados, estavam entusiasmados com a brilhante campanha que faziam, a sua melhor performance em todas as copas. E eles endureceram o jogo para a nossa seleção. Chegaram, em alguns momentos, a dominar nossa equipe.
Prevaleceu, todavia, a eficiência brasileira. A dupla que vinha brilhando desde a estréia, Rivaldo e Ronaldo, se encarregou de construir o placar. O primeiro marcou seu gol aos 22 minutos do segundo tempo. O “Fenômeno” deixou sua marca aos 42. O jogo, que terminou em 2 a 0 para o Brasil, foi arbitrado pelo jamaicano Peter Prendergast.
A Seleção Brasileira jogou com: Marcos, Lúcio, Roque Junior e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Juninho Paulista (Denilson), Rivaldo (Ricardinho) e Roberto Carlos; Ronaldinho Gaúcho (Kleberson) e Ronaldo.
O jogo seguinte, já pelas quartas de final, foi contra um adversário tradicional, sempre perigoso, mas que nunca nos venceu em jogos de copa: a Inglaterra. A partida foi disputada em 21 de junho de 2002, no Estádio Shizuoka, da cidade de mesmo nome, arbitrada pelo mexicano Felipe Ramos Rizo.
Quando o inglês Owen fez o primeiro gol, aos 23 minutos do primeiro tempo, numa falha escandalosa de Lúcio, parecia que o nosso sonho iria desmoronar. Mas o Brasil jogava bem. Não se abalou com a desvantagem no placar. No último minuto do primeiro tempo, Rivaldo empatou. E logo a 5 minutos do segundo, Ronaldinho Gaúcho fez um golaço por cobertura, selando o marcador. Agora faltavam somente dois degraus a serem galgados para que o penta se tornasse realidade.
O Brasil jogou, nesse dia, com: Marcos, Lúcio, Roque Junior e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Kleberson, Rivaldo e Roberto Carlos; Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo (Edilson).
O adversário da semifinal, caprichosamente, era o mesmo da estréia, a Turquia, e que nos havia dado tanto trabalho. Na ocasião, a dificuldade foi atribuída ao nosso nervosismo. A verdade era que os turcos haviam montado uma boa seleção e vinham se constituindo numa das tantas surpresas da competição.
O jogo, disputado no estádio da cidade de Saitama, em 26 de junho de 2002, com arbitragem do dinamarquês Kim Milton Nielsen, foi amarrado, brigado, tenso e às vezes até violento. As duas defesas prevaleceram sobre os respectivos ataques. Mas nós tínhamos uma arma que os turcos não tinham: o Fenômeno. E foi ele, Ronaldo, que decidiu a partida a nosso favor, com o gol marcado aos 4 minutos do segundo tempo, o que nos colocou na final.
O Brasil jogou com: Marcos, Lúcio, Roque Junior e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Kleberson (Belletti), Rivaldo e Roberto Carlos; Edilson (Denilson) e Ronaldo (Luizão).
Veio, enfim, o grande dia da decisão, 30 de junho de 2002. O Brasil teria, pela quarta vez na história, um ex-campeão mundial como adversário. A primeira vez que isso aconteceu foi em 1950, contra o Uruguai. Nas outras duas, em 1970 e 1994, havia sido a Itália. Agora era a vez da temida e disciplinada Alemanha.
Nossa seleção fez um jogo praticamente perfeito, no aspecto tático. Tecnicamente, não foi um grande espetáculo. Foram raros os lances de emoção. Mas o Brasil foi pragmático, exato, preciso e até cirúrgico. Deu os golpes fatais com precisão suíça e liquidou a fatura quando achou conveniente, sem sofrer maiores riscos.
Os heróis dessa memorável jornada foram: Marcos, Lucio, Roque Junior e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Kleberson, Rivaldo e Roberto Carlos; Ronaldinho Gaucho (Juninho Paulista) e Ronaldo (Denilson). Não era um time de craques, mas de competentes e eficientes “operários”.
Os dois gols brasileiros, que nos garantiram o título, foram do personagem dessa copa, Ronaldo, que mais do que nunca mereceu o apelido de “Fenômeno”, ambos no segundo tempo: o primeiro aos 22 e o segundo aos 34 minutos (neste último, com a colaboração do goleiro alemão Oliver Kahn). Depois... foi só partir para o abraço. Estava ganha a primeira copa do século XXI. À exceção da África, o Brasil tornara-se campeão em todos os continentes: Europa, América do Norte (duas vezes), América do Sul e, agora..., Ásia.

Boa leitura.

O Editor.






Reinvenção do universo


* Por Pedro J. Bondaczuk

O Jornalismo Científico é uma das mais complexas especialidades da nossa profissão e, seguramente, a área mais carente de profissionais que, de fato, dominem o assunto. Requer, dos que encaram esse desafio, muito estudo, muito preparo e, sobretudo, fundamento e bom-senso. Não admite, portanto, os meros curiosos, aqueles que são chamados nas redações de “pára-quedistas”, que se julgam ecléticos, capazes de escrever sobre todos os assuntos com a mesma desenvoltura, mas que, salvo raras exceções, não escrevem bem sobre nada.

Exige-se, de quem se especializa nesse tema, além das técnicas de uma boa redação (exigidas, aliás, de todo jornalista que se preze) um conhecimento pelo menos elementar das várias disciplinas científicas com que irá lidar, como Astronomia, Física, Química e Biologia, entre outras. Seu principal desafio é o de tornar inteligível a qualquer leitor (desde o engraxate, por exemplo, ao físico nuclear) teorias de extrema complexidade até para os que as elaboram. Terá, sobretudo, que “decodificar” o jargão científico e o transformar numa linguagem que todos entendam, sem contradizer nenhum aspecto que o autor original do estudo abordado apresente.

Em artigo que publiquei no início de outubro de 2008 no Comunique-se, intitulado “A poesia da ciência”, apresentei as considerações de uma das maiores especialistas em Jornalismo Científico da atualidade, a norte-americana Karen Christine Cole (que assina seus textos e seus muitos livros como K. C. Cole) – que prestou, durante anos, relevantes serviços na sua especialização ao jornal “Los Angeles Time” e que leciona essa disciplina na University of Southern Califórnia.

Abro, aqui, um parêntese, para agradecer à preciosa colaboração do colega Nei Duclós. No referido artigo, assinalei desconhecer o significado da abreviação K. C. no nome da referida jornalista norte-americana, que tem fortes ligações com o Brasil, já que viveu alguns anos da sua infância na cidade do Rio de Janeiro. Enfatizei que fiz várias pesquisas na internet, em vão, para descobrir o que essas iniciais queriam dizer. Nei, porém, mostrando que é um jornalista com muitas e preciosas fontes e preocupado (como todos deveriam ser sempre) com a exatidão, entrou em contato com a renomada companheira de profissão, que não se fez de rogada e respondeu de imediato. E esclareceu que K. era abreviação de “Karen” e C., de Christine. Pode parecer detalhe sem importância, mas jornalismo que se preze é (ou deveria ser sempre, reitero) detalhista.

Voltando ao artigo anterior, citei, na oportunidade, dois trechos de um dos tantos ensaios de Cole. Num deles, a jornalista afirma: “A ciência, com efeito, envolve, na maior parte dos casos, olhar para coisas que nunca poderemos ver. Não apenas quarks (subpartículas atômicas) e quasares (formações quase-estelares), mas também ‘ondas’ de luz e ‘partículas’ carregadas, ‘campos magnéticos’ e ‘forças gravitacionais, saltos quânticos’ e ‘órbitas’ de elétrons”. No outro trecho citado, ela justifica e complementa essa observação: “De fato, nenhum destes fenômenos é, literalmente, o que dizemos ser. As ondas de luz não ondulam através do espaço vazio da mesma forma que as ondas de água se propagam num lago calmo; um campo não é como um prado, mas antes uma descrição matemática da intensidade e do sentido de uma força; um átomo não salta, literalmente, de um estado quântico para outro; os elétrons não viajam, literalmente, em torno do núcleo atômico em círculos, tal como o amor não produz, literalmente, dor de cabeça”.

Hoje, trago ao paciente leitor as considerações de um renomado editor norte-americano, John Brockman, articulador do Reality Club – um clube informal de Nova York que reúne consagrados cientistas de várias disciplinas, cujos pontos de vista sejam divergentes, para confrontá-los. A partir dos acalorados debates ocorridos nesse cenáculo de notáveis, surgiu o seu livro, instigante e insólito desde o título, “Einstein, Gertrude Stein, Wittgenstein e Frankenstein – Reinventando o universo”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras (tradução de Valter Ponte, 1ª edição, 1989).

Logo na introdução, de cara, já no primeiro parágrafo, o autor lança sua polêmica tese, que desenvolve, meticulosamente, na seqüência da obra: “O homem cria instrumentos e depois molda-se à imagem deles. A realidade é fabricada pelo homem. O universo é uma invenção, uma metáfora”.

Mais abaixo, coloca mais lenha da fogueira, ao afirmar: “Seja qual for a linguagem descritiva a que tenhamos chegado, o compreender a realidade torna-se a realidade. Não dizemos que o coração parece uma bomba. Ele é uma bomba. A idéia de que a realidade não é mais que a rede imaterial e transitória de nossa linguagem descritiva já foi formulada de vários modos por vários pensadores importantes. Um dos mais eminentes dentre eles foi o físico alemão Werner Heisenberg que, em seu agora famoso princípio da incerteza, demonstrou que a realidade em seu nível mais fundamental, ou subatômico, é mais ‘criada’ do que ‘observada’ pelos físicos”.

Como se vê, é um livro fundamental não apenas para os especialistas em Jornalismo Científico (mas principalmente a eles), como para todos os jornalistas que se prezem, já que a nossa matéria-prima é o que chamamos de “realidade” que, na verdade, é mero fruto da imaginação humana, conforme Brockman demonstra, sem muita possibilidade de contestação (provavelmente, nenhuma). E a personagem central da sua obra, embora não pareça aos desavisados, é a nossa ferramenta de trabalho, ou seja, a linguagem, certamente a maior criação do homem em todos os tempos.

Encerro estas considerações com o seguinte trecho de um dos livros de Gertrude Stein, citado pelo autor, para a nossa reflexão: “A linguagem como coisa real não é imitação nem de sons nem de cores nem de emoções: ela é uma recriação intelectual e não pode existir nenhuma dúvida sobre isto, e continuará a ser assim enquanto a humanidade existir”. Todo o tempo, portanto, dedicado ao seu estudo e aperfeiçoamento, é, e sempre será, muito bem aproveitado, por se tratar de um salto evolutivo.


*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com
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O que comprar:

Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista).

Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte), uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro.

Como comprar:

Pela internet
WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.



Nada de vontade, vontade de nada

* Por Anna Lee


Dia 22 de abril de 2006. Comemoração dos 506 anos da descoberta do Brasil (a oficial, pois há controvérsias, mas isso é uma outra história). Na primeira página dos jornais e também nos sites de notícias na Internet, uma foto do presidente Lula, na qual exibe as mãos lambuzadas de petróleo – o “ouro negro”.

No dia anterior, ele participara da cerimônia de início da produção da P50, maior plataforma de petróleo brasileira, localizada na bacia de Campos, no Rio. Era feriado de Tiradentes – o Joaquim José da Silva Xavier –, considerado um dos grandes mártires da independência do Brasil porque morreu na forca, em 21 de abril de 1792, durante a Inconfidência Mineira.

Como convinha, Lula lembrou Tiradentes e fez um paralelo entre seu governo e a independência do país (com o funcionamento da P50, a Petrobrás, após 53 anos de história, torna o Brasil auto-suficiente na produção de petróleo). Ele também repetiu um ato do presidente Getúlio Vargas, em 1952: molhou as mãos no óleo e imprimiu as marcas em um macacão de funcionário da Petrobrás.

Por caminhos oblíquos, lembrei-me de Glauber Rocha. Coisa de uma semana atrás saiu a notícia do lançamento da versão de Terra em Transe em DVD duplo.

Em 1967, quando Glauber lançou esse filme, já havia três anos que o golpe militar acontecera no Brasil, em 1º de abril de 1964. João Goulart, o Jango, afilhado político de Getúlio Vargas, presidente deposto por conta do golpe, estava no exílio, entre o Uruguai e a Argentina, onde era proprietário de estâncias. No Brasil, estava impedido de entrar.

Neste 1967, articulava-se a aliança Frente Ampla entre a direita, o centro e a esquerda brasileiros, representados, respectivamente, nas figuras do ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda e dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, para tentar restabelecer a democracia no Brasil. Essa era uma aliança até pouco tempo improvável já que Lacerda tivera papel importante e ativo no processo que desembocou na queda de Jango. No entanto, sob a bandeira da luta pela democracia, um e outro se permitiram concessões, até porque era evidente que cada vez mais o governo dos militares endurecia. Tanto é que em 13 de dezembro de 1968 veio o AI 5 e o presidente Costa e Silva ganhou poderes para fechar o Parlamento, cassar políticos e institucionalizar a repressão, acirrando definitivamente a ditadura no país. Isso num contexto de situações semelhantes que se repetiam no Cone Sul, onde regimes militares também se instalaram entre os anos 60 e 80 no Uruguai, Argentina e Chile, com o apoio dos Estados Unidos que, por sua vez, estava inserido no contexto da Guerra Fria e da chamada ameaça do comunismo.

Dentro desse universo político, Glauber Rocha produziu grande parte de sua obra e mais especificamente Terra em Transe, onde, a sua maneira, reproduziu acontecimentos do golpe de 64.

Jango tornou-se uma espécie de obsessão para Glauber. Ele tinha a intenção de lançar o projeto Jango, no qual pretendia produzir um filme, uma peça de teatro e um romance – textos esses em que mexeu até a sua morte em 22 de agosto de 1981, e os quais encontram-se, hoje, no arquivo do Tempo Glauber, no Rio. Sendo que, dos três, somente a peça Jango, uma Tragédya chegou a ser encenada pelo diretor Luis Carlos Maciel, em 1996.

A justificativa “não quero derramamento de sangue” que o presidente deposto apresentou para não enfrentar os militares e fugir para o exílio aparece duas vezes em Terra em Transe na boca do personagem Vieira, que também afirma: “Já disse, o sangue das massas é sagrado”.

Em 1972, Glauber estava em Cuba e resolve, enfim, pôr em prática o projeto Jango, depois de ter estado com o ex-presidente em Punta Del Este – numa época sobre a qual, em carta ao cineasta Zelito Viana, diz: “curti os melhores momentos de minha vida exilada, reencontrando a minha família e Jango em Punta Del Este (...)”

No roteiro do filme Jango, Glauber escreve um diálogo do presidente Getúlio Vargas, na véspera de seu suicídio, em 24 de agosto de 1954, com Jango, então ministro do Trabalho de seu governo. Tal encontro realmente existiu e é relatado em livros de História, mas não aconteceu nas bases contadas por Glauber. Ele parte para uma linha explicitamente ficcional quando trata do debate entre os dois sobre os prós e contras do suicídio. É sabido historicamente (com todas as problemáticas que, hoje a definição de “histórico” e “não-histórico” pode gerar) que, apesar da crise instalada no governo, por conta do assassinato do major Rubem Vaz, da FAB, no lugar do oposicionista Carlos Lacerda, a morte de Getúlio foi um fato inesperado, até mesmo para Jango, que tinha estado no Palácio do Catete horas antes.

Glauber usou de irreverência poética para interferir no processo dialético da história.

E o que isso tem a ver plataforma P50? Bem, daria tudo por um diálogo imaginado por Glauber em que Lula, com as mãos lambuzadas de petróleo, tentando se fazer imagem populista e semelhança de Getúlio Vargas, explicasse ao próprio o processo engenhoso que faz agora o “ouro negro” ser bandeira de marketing da campanha de reeleição.

Nessa impossibilidade, mergulho na experiência do nada de vontade, que não me permite sequer acreditar que a escavação da democracia apodrecida do PT levará a um fundo, onde seja possível encontrar pelo menos uma vontade de nada.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.



Tecendo a manhã

• Por João Cabral de Melo Neto

1


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2



E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

• Poeta e diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras, teve o nome lembrado para indicação ao Prêmio Nobel de Literatura.



Aqueles homens enormes

* Por Lêda Selma


O Paulo...Que figura! Alto, pancoso e simpático. Mineiro radicado em Nova Iorque, exímio como guia turístico. Falador, paciente, divertido. Sempre empolgado, dava a tudo dimensão exagerada. Tão logo conheceu nosso grupo, catequizou-o sobre as noites novaiorquinas e seus perigos, as melhores opções de compra e os passeios imperdíveis. Disposição para acompanhar-nos, sobrava-lhe. Às vezes, nem nos cobrava os excessos de quilômetros e de horário. Um amigão, ganhamos, naquele novembro de 1995.

Apaixonado por sua Eva (bem mais tímida e recatada que a da maçã), voltou a Minas Gerais só para descarregar a solidão, recarregar os sonhos e carregar a amada. E os dois encheram de amor e obstinação os cantos do pequeno aconchego americano.

Em conversas informais, Paulo soube que eu me formara em letras vernáculas. E não se conteve:
– Letras o quê? Repete esse nome aí, please! Nunca vi palavra mais linda. Você é letrada... Só podia ser mesmo, pra falar bonito assim...
Disseram-lhe que eu era poeta. E ele não coube mais em si:
– Poeta? Vocês tão é brincando comigo. Quer dizer que tô conduzindo, nesta humilde Van, uma poeta? Uai, é importância demais pra mim! E eu chamando a poeta de, simplesmente, Lêda, assim, tão sem-cerimônia, Lêda...
O passeio virou a maior farra. E lhe falaram dos meus livros. Aí, sim, ele extrapolou:
– Livro? Quer dizer que ela escreve livros, feito intelectual? Ganhei a sorte grande: amigo de poeta, de escritora de livros. Nossa, a Evinha não vai acreditar! Vou ter de levar a intelectual-poeta lá em casa. Vai me dar este gosto honroso, não vai? E quero também um autógrafo, com ‘dedicação’ e tudo. Preciso comprar um filme pra foto oficial: eu, a Evinha e a poeta. Posso abusar? Faça uma lista com um montão de palavras difíceis que eu vou decorar cada uma e falar todas praqueles turistas esnobes, que fazem pouco da gente. Quero ver a cara dos metidos quando eu proclamar que sou amigo de poeta, de escritora de livros, de intelectual em carne e voz. Vou meter as letras vernáculas neles, me aguardem...
Fui ao apartamento do Paulo. Lanchei, “dediquei” autógrafos, tirei as “fotos oficiais”, respondi perguntas estranhas e ainda ouvi: “Evinha, você reparou como ela é simples? Ri igual a gente, come igual a gente e só não é mais normal, porque fala bonito. Nem podia ser, né? É poeta, uai!”
O caminho das compras instigava-nos aos excessos. Mas algo me incomodava: tantos homens grafite-escuro, esbanjando estatura naqueles metros quadrados de massa muscular, tiravam-me o fôlego e me açulavam o pânico. Cheguei a ser, preventivamente, alertada por uma da turma: “Prepare o psicológico: frente, verso, direita e esquerda. E cada um maior que o outro”. Eram quatro, espalhados em suas grandiosidades, e eu, feito ilha, cercada de homenzarrões por todos os lados.
Um dos passeios próprios do turista de primeira viagem, a austera Washington. E, claro! o Capitólio. Súbito, a Lêda (sim, eu), já traumatizada com a constante presença gigantesca de tantos homens de peles lustrosas e, no caso, seguranças, expelindo autoridade por todos os gestos, pois bem, “a escritora de livros”, após passar pela catraca de acesso ao recinto, vê as demais pessoas desfazerem-se de suas moedas. Atarantada, volta e deposita sobre a esteira giratória todas as que possuía. Intrigada com a cena, uma das amigas, veterana no assunto, de pronto, recolhe-as e pergunta:
– O que deu em você para voltar e colocar as moedas lá, sem mais nem menos?
– Você não viu? Passei sem pagar. Imagine se esses grandalhões pensam que sou trambiqueira a praticar o famoso “jeitinho brasileiro”...!?
– Ninguém pagou nada, “intelectual-poeta!”. Puseram as moedas na esteira, apenas, por causa do detector de metal. Ei, espere aí: por que você passou sem problema, com tantas moedas, hem!?
– Intrujice de Deus, só pode! Acho que Ele percebeu o risco de infarto que eu corria, com mais um susto, e resolveu agir em meu socorro: camuflou as moedas para evitar uma alteração, às pressas, em Sua agenda divina...


(Publicado no jornal “Diário da Manhã” de Goiânia em 21 de março de 2009)

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”,” Erro Médico”, “A dor da gente”,” Pois é filho”!” Fuligens do sonho”,” Migrações das Horas”,” Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não”,! entre outros.

Vidas inventadas

* Por Fabiana Bórgia

Muito difícil fazer mudanças drásticas em nossas vidas. Geralmente isso ocorre quando nos separamos de alguém, quando a vida traz uma dificuldade complexa no meio do caminho, quando passamos por doenças, morte na família, por exemplo.

Eu gosto de vidas inventadas. Acho uma tremenda chatice fazer tudo o que todo mundo faz, igualzinho, sem criatividade, dentro dos padrões. O fato de eu achar isso tudo uma mesmice, não muda o fato de que também faço o que todos fazem. Sigo este roteiro.

E quando menciono a palavra "mudanças", as pessoas escutam isso como se fosse uma bomba prestes a estourar. Como se fosse a coisa mais incerta do mundo, a atitude mais louca, mais insana, mais vazia. Por quê? Porque nem todos têm coragem de se aventurar.

Eu mesma admiro tanto assim as mudanças, porque me acovardo diante das possibilidades. No entanto, eu nunca critiquei pessoas ousadas. Quero ser uma delas daqui a algum tempo e ter quantas vidas inventadas eu desejar.

Quando isso acontecer, vou atrás da arte. E então posso ter todas as vidas possíveis.
Espelho não ensina nada a ninguém. A gente só cresce quando entende as diferenças. E quando busca os próprios significados para viver, sem experiências alheias. A experiência é vivência pessoal. Se não for minha, não vale para nada.

• Escritora por vocação e advogada por formação. Paulista por natureza e carioca por estado de espírito. Engenheira de sonhos: alguém em eterna construção. Autora do livro “Traços de Personalidade”

sábado, 28 de agosto de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Pouca técnica, mas muita eficiência

Coluna Direto do Arquivo – André Falavigna, crônica “Sobre Copa, imprensa e preguiça”.

Coluna Clássicos – Graham Greene, conto “O homem que roubou a torre Eiffel”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “Gentileza baiana”

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “História e Literatura em Oliveira Lima”

Coluna Porta Aberta – Samuel C. Costa, poema “Nota avulsa: ser negro hoje”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Pouca técnica, mas muita eficiência

Caros leitores, boa tarde.
A Copa do Mundo de 2002 foi a que mais me surpreendeu de todas as que tive a oportunidade de acompanhar. E olhem que só perdi três delas (as de 1930, 1934 e 1938), por não haver ainda nascido quando foram disputadas.
A surpresa, quero deixar bem claro, não se deveu à conquista do pentacampeonato pelo Brasil. Afinal, o futebol brasileiro, por tudo o que já fez nos últimos 80 anos, por mais fraco que seja o grupo na ocasião, tem que ser, sempre, considerado favorito em qualquer competição internacional que venha a participar, seja copa do mundo, seja copa América, seja Copa das Confederações ou seja que torneio for. Isso é ponto pacífico. Só um tolo, ou um sujeito totalmente desinformado, pensará de forma diferente.
A surpresa ficou por conta do “como” o Brasil foi campeão. Afinal, aquela não era uma seleção técnica, não, pelo menos, como as de 1950, 1958, 1962, 1970 ou 1982. Mas foi de uma eficiência a toda a prova. Sua campanha, a exemplo da de 1970, foi impecável, com sete vitórias em sete jogos. E aquela equipe de 40 anos atrás, que tinha cinco camisas 10 jogando simultaneamente, era muitos furos superior, em habilidade, à de 2002.
Não vou dizer, pois, que não confiava nos comandados de Luís Felipe Scolari. Tanto confiava, que essa foi a Copa que me exigiu mais sacrifícios para acompanhar. Por causa do fuso horário, as transmissões dos jogos eram de madrugada aqui no Brasil, com a maioria deles começando às 3h30. Ora eu ficava acordado ao término das partidas e só então me recolhia para as minhas oito horas regulares de sono, ora acordava minutos antes do seu início (com o auxílio do despertador), indo deitar bem mais cedo, claro. A primeira alternativa foi a mais comum.
Confiava, portanto, no sucesso da Seleção. Mas... com um pé atrás. Não era uma confiança absoluta. Ou seja, confiava, desconfiando. Por que? Porque aquele grupo que iria representar o Brasil havia feito péssima eliminatória, a pior da história do nosso futebol em todos os tempos. Além do que, tecnicamente, estava longe de ser a equipe dos meus sonhos.
Em 2002, eu vivia experiências novas, tanto profissionais, quanto afetivas. Há dois anos, em 2000, conhecera a delícia de ser avô pela primeira vez, com o nascimento do meu primeiro neto, do meu xará Pedro Luís. E posso assegurar que é uma emoção muito grande e saudabilíssima. Estava, na oportunidade, prestes a entrar na faixa dos 60 anos (para ser mais exato, tinha, então, 59 anos e meio).
Profissionalmente, vivia uma experiência também inédita: chefiava a redação de um pequeno jornal diário, às voltas com graves dificuldades financeiras, o “Roteiro”, que buscava afirmação junto aos leitores e seu espaço no competitivo cenário campineiro, em que dois gigantes, o9 “Diário do Povo” e o “Correio Popular” detinham (como ainda detêm e sempre detiveram) a liderança. Tinha, pois, como rivais, justamente as duas empresas onde eu havia desenvolvido a maior parte da minha carreira jornalística. Isso era novíssimo para mim.
Há já bom tempo, eu investia na imprensa segmentada, nos chamados “nanicos”, escrevendo para uma rede de pequenos periódicos da minha cidade, ou seja, Campinas. Era trabalho digno de Hércules. Entre esses jornais de pequeno porte, de bairros, de sindicatos e de paróquias, o mais conhecido era a “Folha do Taquaral”, com o qual colaborei por quinze anos, redigindo uma crônica quinzenal (essa era sua periodicidade), além de todos seus editoriais.
Ao deixar o Correio Popular, portanto, em vez de reduzir as carga de trabalho, como esperava que viesse a ocorrer, multipliquei-a, e muito. Nessa toada, a vida social foi para as cucuias. Ossos do ofício, claro. E como desgraça pouca é bobagem, nesse período comecei a dar os primeiros passos na grande e mais promissora das mídias do futuro, a internet, como colunista semanal de quase uma dezena de sites.
Mas... voltemos a tratar de futebol. A estréia do Brasil, na Copa do Mundo de 2002, ocorreu no dia 3 de junho, no Estádio Munsu Ulsan, na Coréia do Sul. O adversário, a princípio julgado fraco, e que iríamos enfrentar de novo, na sequência da competição, e numa semifinal, foi a Turquia. A arbitragem coube a um representante local, o sul-coreano Kim Young Joo.
Começamos sendo surpreendidos nesse jogo. Aos dois minutos de acréscimo do primeiro tempo, ou seja, aos 47 minutos, o turco Hassam Sas abriu a contagem. O empate ocorreria logo aos 5 minutos da segunda etapa, através de Ronaldo. Quase tudo indicava que esse seria o resultado final quando Rivaldo virou o marcador, fez 2 a 1, aos 42 minutos. Ufa! Foi um sufoco!
O Brasil jogou e venceu na estréia com: Marcos, Lúcio, Roque Júnior e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Juninho Paulista (Vampeta), Rivaldo e Roberto Carlos; Ronaldinho Gaúcho (Denilson) e Ronaldo. Registre-se que a Turquia teve dois jogadores expulsos, o que facilitou nossa tarefa.
O adversário seguinte, a China, era tido e havido como o mais fraco do grupo e provavelmente de toda a Copa. O Brasil não teve a menor dificuldade para derrotá-lo, e por goleada, ou seja, por 4 a 0. Poderia até ter construído um placar bem maior.
O jogo foi disputado em 8 de junho de 2002, no Estádio Jeju, Seogwipo, na Coréia do Sul, com arbitragem do sueco Anders Frisk. Os gols foram marcados por Roberto Carlos, aos 15; Rivaldo, aos 32 e Ronaldinho Gaúcho, aos 45 minutos do primeiro tempo e por Ronaldo, aos 10 do segundo.
O Brasil jogou com: Marcos, Lúcio, Roque Júnior e Anderson Polga; Cafu, Gilberto Silva, Juninho Paulista (Ricardinho), Rivaldo e Roberto Carlos; Ronaldinho Gaúcho (Denilson) e Ronaldo (Edilson).
Para encerrar a fase de classificação e começar as oitavas de final com moral elevado, nada melhor do que aplicar uma boa goleada. E foi o que aconteceu diante da Costa Rica. Os costarriquenhos até que endureceram o jogo, mas não eram páreo para nós.
O Brasil chegou a abrir 3 a 0 no marcador até os 38 minutos do primeiro tempo, mas Wanchope diminuiu para 3 a 1 aos 39 e Gomez fez o segundo, aos 11 do segundo tempo. A Seleção Brasileira, porém, retomou o controle do jogo e goleou por 5 a 2.
Os gols brasileiros foram de Ronaldo, aos 10 e 13 e Edmilson aos 38 do primeiro tempo, e de Rivaldo aos 17 e Junior aos 19 da segunda etapa. Felipe Scolari mandou a campo: Marcos, Lúcio, Anderson Polga e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Juninho Paulista (Ricardinho), Rivaldo (Kaká) e Junior; Edilson (Kleberson) e Ronaldo). O árbitro foi o egípcio Gamal Gandhour.
O Brasil classificou-se para as oitavas de final com 100% de aproveitamento. Marcou onze gols (mais do que a seleção do Dunga em toda a Copa de 2010) e sofreu três, com saldo posi8tivo de oito. Estava dada, pois, a arrancada para o penta. Sem firula, espetáculo, mas com eficiência cirúrgica.

Boa leitura.

O Editor.