Adamor
e a patrulha da cidade
*
Por Euclides Farias
Fui
repórter de polícia no começo da década de 1980 e o tema do
suicídio no noticiário sempre foi preventivamente abandonado. Uma
convenção não escrita, espécie de acordo de cavalheiros entre
jornalistas e jornais, decretou que suicídios - atos brutais de
arbítrio individual - não eram notícia de interesse público e não
seriam publicados.
Não
se sabe, precisamente, quando, como, por que e onde o pacto
profissional começou. No tempo em que percorri as ruas de Belém nos
fusquinhas azul e branco do Liberal como repórter policial, dizia-se
que as notícias de suicídios turbinavam a ânsia de suicidas à
beira do abismo. Por isso, o freio de arrumação. O batalhão de
repórteres setorizados chegava ao PSM ou ao IML e os próprios
servidores se encarregavam de estancar a avidez. “Tem um aí, mas
foi suicídio”.
Havia
exceções, porém. O radialista Adamor Filho, um dos maiores nomes
do radiojornalismo policial do Pará, não se importava muito com
essa convenção da profissão em torno do suicídio. Ressuscitei
Adamor ao lembrar que hoje, em algumas regiões do país, coleguinhas
e empresas sensacionalistas estão atirando o acordo na lata do lixo.
Adamor
e o seu “A Patrulha da Cidade”, da Rádio Marajoara, eram um
escândalo de audiência no rádio. Bem na hora do almoço. Durante o
dia, desde a madrugada, ele entrava com matérias sobre o submundo da
cidade sempre que a morbidez do fato justificasse uma nova notícia.
Teste
para cardíaco, o programa dele mantinha grudados no rádio ouvintes
cativos, de qualquer idade. Os mais velhinhos se agarravam às
últimas forças para chegar vivos ao fim do programa de uma hora de
pura tensão, altíssima tensão. Eu mesmo tinha uma tia idosa que
ficava a ponto de um AVC, mas não perdia um programa.
O
suicídio que Adamor noticiava, quando não havia “notícias
melhores”, era anunciado ao longo do programa por teasers
(aperitivos) pensados para aumentar a audiência. Subiam, por tabela,
a adrenalina e a angústia do ouvinte.
Narrado
dramaticamente, com a voz que Adamor artificialmente impostava para
ficar ainda mais grave, o suicídio era o prato principal. Naquele
tempo, em Belém, dez entre dez suicidas escolhiam o edifício Manoel
Pinto. Era o cenário perfeito para a novela que Adamor criava para
contar o gesto mais capital da fraqueza humana. Certamente sádico,
ele noticiava para seus masoquistas ouvintes o suicídio em
capítulos! A tortura para uns e o completo deleite para outros
demorava uma hora de programa.
Ao
microfone, com música fúnebre vibrante subindo sempre para
preencher as longas pausas do radialista, Adamor justificava o
apelido de “O Danado” e deixava o programa do jeito que o diabo
gosta.
-
O corpo...(sobe som de terror)...se projetou no vácuo...
Entre
o arremesso e o desfecho fatal, no asfalto da Serzedelo Corrêa ou do
início da avenida Nazaré ou, ainda, alguma pedra de marquise no
meio do caminho, Adamor fazia o escambau ilustrado ao microfone. Ia
da tragédia ao humor negro e à evidente invasão de privacidade do
morto, tudo em nome da concorrência e, claro, do interesse público
expresso pelo altíssimo índice de audiência.
-...e
se estatelou...numa poça de sangue rubro no asfalto negro!!
Aí,
o controlista da rádio subia o som total, fazendo uma barulheira
infernal, enquanto as velhinhas se seguravam nas cadeiras das mesas
da cozinha e nos sofás da sala, a um passo do cataclisma e de
virarem notícia no programa predileto.
Dono
de um faro incomum para a reportagem policial, Adamor entrou para a
história do radiojornalismo como um fenômeno de audiência, fato
que o levaria a quatro mandatos de vereador em Belém nos anos 1970 e
1980. Começou no rádio em 1963, como radioator. Então, para ele,
romancear um suicídio era fichinha.
Depois
de mais de 40 anos no rádio, percorrendo quase todas as emissoras
para retornar no fim da carreira à Marajoara (cada emissora daria um
livro), o hipertenso Adamor morreu no dia 31 de julho de 2006, na
praia do Caripi, em Barcarena, onde passava as férias. Foi alcançado
em pleno sono por um infarto. O corpo veio por ironia para um lugar
que, modo de dizer, testemunhou silenciosamente todos os dias a
brilhante carreira do radialista: o IML.
Que
a terra lhe seja sempre leve
* Jornalista, com
brilhantes passagens pelo O Liberal, A Província do Pará,
Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou,
como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
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