quinta-feira, 19 de julho de 2018

Adamor e a patrulha da cidade - Euclides Farias


Adamor e a patrulha da cidade


* Por Euclides Farias


Fui repórter de polícia no começo da década de 1980 e o tema do suicídio no noticiário sempre foi preventivamente abandonado. Uma convenção não escrita, espécie de acordo de cavalheiros entre jornalistas e jornais, decretou que suicídios - atos brutais de arbítrio individual - não eram notícia de interesse público e não seriam publicados.

Não se sabe, precisamente, quando, como, por que e onde o pacto profissional começou. No tempo em que percorri as ruas de Belém nos fusquinhas azul e branco do Liberal como repórter policial, dizia-se que as notícias de suicídios turbinavam a ânsia de suicidas à beira do abismo. Por isso, o freio de arrumação. O batalhão de repórteres setorizados chegava ao PSM ou ao IML e os próprios servidores se encarregavam de estancar a avidez. “Tem um aí, mas foi suicídio”.

Havia exceções, porém. O radialista Adamor Filho, um dos maiores nomes do radiojornalismo policial do Pará, não se importava muito com essa convenção da profissão em torno do suicídio. Ressuscitei Adamor ao lembrar que hoje, em algumas regiões do país, coleguinhas e empresas sensacionalistas estão atirando o acordo na lata do lixo.

Adamor e o seu “A Patrulha da Cidade”, da Rádio Marajoara, eram um escândalo de audiência no rádio. Bem na hora do almoço. Durante o dia, desde a madrugada, ele entrava com matérias sobre o submundo da cidade sempre que a morbidez do fato justificasse uma nova notícia.

Teste para cardíaco, o programa dele mantinha grudados no rádio ouvintes cativos, de qualquer idade. Os mais velhinhos se agarravam às últimas forças para chegar vivos ao fim do programa de uma hora de pura tensão, altíssima tensão. Eu mesmo tinha uma tia idosa que ficava a ponto de um AVC, mas não perdia um programa.

O suicídio que Adamor noticiava, quando não havia “notícias melhores”, era anunciado ao longo do programa por teasers (aperitivos) pensados para aumentar a audiência. Subiam, por tabela, a adrenalina e a angústia do ouvinte.

Narrado dramaticamente, com a voz que Adamor artificialmente impostava para ficar ainda mais grave, o suicídio era o prato principal. Naquele tempo, em Belém, dez entre dez suicidas escolhiam o edifício Manoel Pinto. Era o cenário perfeito para a novela que Adamor criava para contar o gesto mais capital da fraqueza humana. Certamente sádico, ele noticiava para seus masoquistas ouvintes o suicídio em capítulos! A tortura para uns e o completo deleite para outros demorava uma hora de programa.

Ao microfone, com música fúnebre vibrante subindo sempre para preencher as longas pausas do radialista, Adamor justificava o apelido de “O Danado” e deixava o programa do jeito que o diabo gosta.
- O corpo...(sobe som de terror)...se projetou no vácuo...

Entre o arremesso e o desfecho fatal, no asfalto da Serzedelo Corrêa ou do início da avenida Nazaré ou, ainda, alguma pedra de marquise no meio do caminho, Adamor fazia o escambau ilustrado ao microfone. Ia da tragédia ao humor negro e à evidente invasão de privacidade do morto, tudo em nome da concorrência e, claro, do interesse público expresso pelo altíssimo índice de audiência.
-...e se estatelou...numa poça de sangue rubro no asfalto negro!!

Aí, o controlista da rádio subia o som total, fazendo uma barulheira infernal, enquanto as velhinhas se seguravam nas cadeiras das mesas da cozinha e nos sofás da sala, a um passo do cataclisma e de virarem notícia no programa predileto.

Dono de um faro incomum para a reportagem policial, Adamor entrou para a história do radiojornalismo como um fenômeno de audiência, fato que o levaria a quatro mandatos de vereador em Belém nos anos 1970 e 1980. Começou no rádio em 1963, como radioator. Então, para ele, romancear um suicídio era fichinha.

Depois de mais de 40 anos no rádio, percorrendo quase todas as emissoras para retornar no fim da carreira à Marajoara (cada emissora daria um livro), o hipertenso Adamor morreu no dia 31 de julho de 2006, na praia do Caripi, em Barcarena, onde passava as férias. Foi alcançado em pleno sono por um infarto. O corpo veio por ironia para um lugar que, modo de dizer, testemunhou silenciosamente todos os dias a brilhante carreira do radialista: o IML.

Que a terra lhe seja sempre leve


* Jornalista, com brilhantes passagens pelo O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.


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