sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Mudanças positivas e negativas.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, trecho do livro “Corações futuristas” “A camisa de Carlos”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, microcontos, “Pílulas literárias 133”.

Coluna No Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “A ponte”.

Coluna Porta Aberta – Jair Lopes, crônica “O ícone”.

Coluna Porta Aberta – Fernando Barreto, conto “Ou dá ou desce-V”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Mudanças positivas e negativas

As pessoas mudam ao longo do tempo e quase nunca sequer se apercebem dessas mudanças. Não raro, nem mesmo admitem que mudaram, mesmo que intimamente tenham a consciência plena que sim. Não me refiro às transformações físicas, as da fisionomia, decorrentes do processo natural e inevitável do envelhecimento. Este pode ser retardado, mas jamais evitado, a menos que se morra antes que ele comece. Mesmo estas mudanças tardam a serem percebidas, a despeito das pessoas virem, diariamente, e não raro várias vezes ao dia, sua imagem no espelho. As alterações a que me refiro são outras. São as de idéias, de sentimentos e de percepções da realidade.

Tenho convicção firmada a esse propósito, mas não sobre todas suas variantes. Por exemplo, quanto às mudanças de idéias, entendo que não apenas posso, como devo mudar minha opinião a propósito de qualquer uma delas, desde que me comprovem que determinada coisa que penso não é bem aquilo. Convencido do erro, seria óbvia estupidez permanecer nele. Mudo, pois, sem nenhum constrangimento ou problema. Mas, reitero, desde que me provem, sem sombra de dúvidas, que eu estava errado.

O mesmo raciocínio vale para sentimentos. Mas nem todos. A fidelidade a uma pessoa, causa, entidade ou ideologia somente é imprescindível e indispensável se for comprovada sua correção e/ou eficácia. Em caso contrário... Por exemplo, se alguém em quem confio e amo me for infiel, não defendo ação idêntica, o conhecido “troco” (um erro nunca justifica outro), mas a separação. Que cada qual vá para o seu canto e viva sua vida em paz.

Caso perceba que determinada causa, por cujo sucesso me empenho, não é positiva, correta e nem construtiva, como julgava, entendo que me sinto liberado a não somente deixar de apoiá-la, como, até, a combatê-la com vigor. O mesmo vale em relação a alguma entidade ou ideologia. O que acho inadmissível é permanecer no erro depois de convencido de tal, apenas por receio de ser infiel. A fidelidade tem que andar, sempre, de mãos dadas com a verdade e a justiça. Caso contrário descamba para a cumplicidade, mas no pior dos sentidos.

Victor Hugo, em determinado momento da sua vida, mudou de opinião a propósito de coisas importantes. Durante muito tempo, por exemplo, foi favorável à monarquia, convicto que era a forma de governo ideal para a França. Contudo, à certa altura, convenceu-se que esta não era o melhor caminho para seu país. E abraçou, então, ideais inicialmente liberais e, posteriormente, socialistas, face às injustiças e desigualdades que via por toda a parte.

Uma dessas suas tantas mudanças foi de cunho, digamos, moral. Casado, apaixonou-se por outra mulher, que não a sua (óbvio). Não porei a mão nessa cumbuca e não farei juízo de valor a propósito. Aqui entra em cena um conflito entre fidelidade conjugal e amor, sentimento que é incontrolável e imprevisível. Há que se pensar, porém, na outra parte, na que se vê traída em sua confiança. Cada qual tem comportamento próprio face a situações tão complicadas. Da minha parte, me manteria fiel ao compromisso original que jurei, perante Deus e a sociedade, cumprir, “até que a morte nos separasse”. Mas... Como se vê, é um assunto delicadíssimo.

Essa mudança na vida de Victor Hugo se deu a partir de 1833, quando tinha 31 anos de idade e já era famoso e respeitado como escritor. Foi quando conheceu Juliete Druet, por quem passou a nutrir devastadora paixão. Embora fizesse dela sua amante, não se separou de Adele, a esposa. Agiu certo? Agiu errado? Recuso-me a julgar!!

O fato é que, conforme sugere a mínima lógica, sua vida doméstica se deteriorou, transformando o lar em “sucursal do inferno”. Brigas e mútuas recriminações tornaram-se coisas rotineiras no dia a dia do casal. E cessaram, tão somente, quando outro fato dramático ocorreu na vida do escritor: o seu exílio. E este deveu-se à sua mudança na forma de encarar a vida social do seu país, envergonhado com a pobreza e as injustiças que via a todo instante ao seu redor.

Hugo mudou de posição política diversas vezes, conforme as circunstâncias e arcou com as conseqüências advindas dessas mudanças. A princípio, esteve apegado ao conservadorismo católico, defendendo teses monarquistas, principalmente a do direito divino dos reis ao trono. Entretanto, à medida que foi amadurecendo, como homem e como intelectual, passou a abraçar teses liberais, especialmente em relação às reformas sociais que entendia indispensáveis, visando conceder pelo alguns direitos às classes absolutamente desprotegidas, exploradas e espoliadas, que não tinham nenhum. Coerente, aliás, com os ideais e postulados da Revolução de 1789, baseados no tripé: liberdade, igualdade e fraternidade.

Na década de 1840, vários acontecimentos viriam a mudar radicalmente a vida de Victor Hugo, ora para o bem, ora para o mal. Um deles, por exemplo, ocorreu em 1841 e significou grande vitória pessoal. Nesse ano, após três tentativas anteriores frustradas, o escritor foi, finalmente, eleito para a prestigiosa Academia de Letras Francesa, ganhando, assim, o direito de ostentar o “habit-vert”, o tradicional fardão acadêmico que até hoje os chamados “imortais” ostentam com orgulho e galhardia.

Quatro anos depois, Hugo viria a obter outra vitória, desta vez no campo político. Conseguiu ser feito “par da França”, título equivalente ao de “sir” na Inglaterra. Ou seja, tornou-se conselheiro do governo, uma espécie de senador. Entretanto, no auge do prestígio e da realização pessoal, o país passou pela Revolução de 1848. Hugo, então, em vez de manter suas convicções monárquicas (se fosse oportunista, manteria), tornou-se republicano convicto. E mais, arriscou todas suas conquistas e seu crescente prestígio, se opondo, tenazmente, ao príncipe Luís Napoleão, que em 1851, deu um golpe de Estado, restaurou a monarquia e tomou para si a coroa francesa, acabando com a nascente e ainda incipiente República, ostentando o título de Napoleão III. Tanto o escritor se opôs a essa reviravolta institucional, que o novo monarca resolveu se livrar de seu indigesto adversário. Exilou-o do país, em 1852.

Expulso da pátria, Victor Hugo instalou-se no Marine Terrace, em Saint Helier, na ilha britânica de Jersey, onde montou seu quartel-general, disposto a comandar a oposição a Napoleão III e ao seu governo, que considerava retrógrado e ilegítimo. De lá saíram livros ácidos, vigorosos e, por que não dizer, até panfletários contra quem o escritor chamava de “o usurpador”, tais como “Napoleon, Le Petit” e “Les Chatiments”. A despeito de todos seus esforços, todavia, seu exílio foi longo, muito prolongado, quase uma eternidade: durou 18 sofridos e aflitivos anos. Foi quando se reconciliou com a esposa, Adele, e restabeleceu, dessa forma, seu abalado e comprometido casamento

Boa leitura

O Editor.

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A camisa de Carlos *

* Por Urariano Mota

A pequena ascensão para o cargo de escriturário, que tornou possível a compra de uma bela camisa, não se fez sem grandes embaraços. O primeiro deles foi manter o emprego. Carlos achava, nos primeiros dias de escritório, que dele seria exigido somente trabalho. Sem medir esforços, afastando de si qualquer reflexão de como era desproporcional o seu talento para o que dele se esperava, atirou-se com fúria à máquina. Para quê?
- Seu Carlos - disse-lhe a figura única de chefe e patrão, tendo às mãos uma correspondência recém-batida. - Seu Carlos, isso aqui tá muito feio: é uma cagada só.
- Pois não... - ia dizer "chefe", mas se conteve, para não deixar impressão de servil - ... sim, o senhor quer que eu mude o modelo?
- Que modelo? Eu tou falando disso - e abanou o papel - , o senhor não consegue cagar mais bonito? Olhe o pedação de branco que sobrou na carta.
- Ah, é a estética. Eu bato outra.
- Se for igual não presta. Só me mostre se prestar. E isso é pra ontem, ouviu? Pra ontem.

O chefe, apesar de baixo, ganhava altura de lhe puxar as orelhas. Carlos recomeçava, querendo ser rápido. O diabo eram os tipos da máquina. Eles se abraçavam, grudavam-se, agarrando-se no ar sem atingir a impressão na fita. Carlos respirava fundo e procurava reproduzir, no que se lembrava, de um dos Cem Modelos de Cartas Comerciais. As palavras, unidas numa frente contra qualquer inteligência, vinham-lhe cheias, aglomeradas de letras. Não era à-toa que elas, as letras, se grudavam promíscuas nos tipos da máquina, no ar, e no ar do que nada expressavam: "prezado senhor, vossa senhoria, nesta, conceituada firma, protestos de consideração, atenciosamente". E isso era o mesmo que "prxsnh, awtyz rtw". Então Carlos rasgava a folha e rebatia-a. Isso não era o difícil. Difícil era organizar a margem direita, e, pior do que isso, distribuir a mancha, a nódoa do modelo na folha em branco. Daí a merda que o chefe e patrão Romualdo lhe via.

Para azar de Carlos, Romualdo era o que se podia chamar de um self-made-man. Ou seja, um produto do laboratório da selva, uma síntese de falta de escrúpulos, sorte e obsessão por crescimento na sociedade. Como todo homem que "veio de baixo", e não vem ao caso aqui zombar de sua crença de que chegou "em cima", como todo homem que ascendeu sem títulos universitários ou "perda de tempo com o rabo sentado no estudo", ele odiava os intelectuais, ainda que não os chamasse por esse nome. Reunia-os todos num saco, sob a denominação genérica de "cambada de doutores". Os seus escriturários, coitados, não passavam todos, sem exceção, de puxa-sacos dos seus escrotos, aspirantes que eram, com seus conhecimentos de bosta, a um futuro de doutores de merda. Quando lhes perguntava, na entrevista, a esses passa-fomes de camisa engomada e enfiada no cinto, se estudavam, e lhe respondiam que sim, ele retornava, com malícia e propósito: para quê você estuda? E se lhe devolviam, vou fazer vestibular para direito, ou para administração, ou para contabilidade, coitados, ele os expulsava lisos e com fome para o olho da rua. Ah, não lhe viessem fazer sombra. "Querem ser burros de canudo às minhas custas. Puta que pariu", dizia à massa escura de operários da oficina. Mas se lhe respondiam, e este foi o caso e acaso de Carlos, quando lhe respondiam com voz magoada, pesarosa, e olhos do Cristo na cruz fitando o céu, "pai, por que me abandonaste?", quando lhe respondiam, como Carlos, "já estudei. Não posso mais continuar meus estudos", ah, para estes ele decretava: "Muito bem. Eu preciso de meio-burros. Pode começar". E isso vinha numa entonação, que só mais tarde descobririam: "Tirem a roupa. Vou marcá-los. Eu lhes dou o privilégio de experimentar o meu chicote". Porque Romualdo era um homem prático. Sem entender uma só lei de Faraday, e virando o traseiro para isso, gabava-se de construir caixas para subestações elétricas cujos desenhos os doutores apenas assinavam. "Só têm teoria. Não sabem de nada".

Foi esse homem que Carlos começou a entender, à custa de muitos e desaforados e insultuosos esporros. À medida que os recebia, e calava, e com esse silêncio via a fera tomar atitudes que se assemelhavam a afabilidade, foi compreendendo que só o trabalho, e a fúria no bater à máquina, e os modelos de correspondência na memória, e a hora a mais, além do expediente, e o chegar mais cedo, não lhe asseguravam o emprego. Era preciso mais. Era preciso ouvi-lo, com um ar de aprendiz, ainda que tal disfarce muito lhe custasse. O problema não era tanto, e era também, mas não era o principal, o problema não era bem dobrar a cerviz. "Há necessidade de um embate de surdos? Quantas vezes ouvimos o que não concordamos? E como é que vou responder a quem me paga o salário? Só se fosse louco", Carlos se dizia, repetia-se, ainda que pílulas amargas Romualdo lhe empurrasse goela abaixo. Esse não era bem o problema. O diabo era a figura do patrão - repugnante. Pois Romualdo não passava de um sujeitinho a quem em outras circunstâncias Carlos não sopraria um cumprimento, sequer um gesto. Do alto dos ombros potencialmente hercúleos Carlos não o veria. Passou então, como defesa, a ouvi-lo balançando-lhe o queixo, enquanto por dentro ria-se dele, comentava-o. "Vá, eletricista, vá, analfabeto, fale. Mostre-se puro e total na sua brutalidade".
- Me diga uma coisa, - o chefe lhe dizia, ao fim do expediente, enquanto Carlos fingia não ver que suas 8 horas já estavam findas. - Me diga uma coisa, você come carne?
- Sim, como. Assim... O senhor conhece algum modo novo de se comer carne?
- Eu não como.
- Ah, entendo. O senhor está doente?
- Eu? Quantos anos você tem?
- Vinte e um.
- Pois eu tenho quarenta e cinco. Vamos ver quem tem mais saúde?

E antes que o chefe o chamasse para uma quebra-de-braço, e ele se visse convocado a perder, Carlos respondia, rápido:
- De maneira nenhuma, acredito. Então o senhor não come carne ... é impressionante!
- Me diga uma coisa: o boi come carne?
- Não, o boi não come carne.
- Aí está. Veja a saúde do boi. O boi não come carne. Entendeu?
- É interessante. Eu nunca havia observado que o capim ... não, eu nunca havia observado a saúde por esse lado.
- Então ... veja a força do boi. - E depois de uma pausa: - Nenhum doutor ainda lhe tinha dito isso, hem?

Carlos assentia. "E eu sou louco? " Estava começando a ganhar a sua camisa.

Carlos não percebia ainda, como uma lei geral, que no trabalho não se vende só o esforço físico. Ele não percebia que assim como existem na terra as categorias de metalúrgicos, industriais, comerciários, bancários, banqueiros, no inferno ou no céu também existem as categorias de almas de banqueiros, metalúrgicos, comerciários e industriais. Ele julgava, como uma lei geral, que no domínio de um ofício era possível manter a cabeça livre do espírito da gente desse ofício. Seria como se nos dedos que batiam aquelas asneiras protocolares, no corpo que se assentava nove horas batendo aquilo, nos ouvidos que digeriam os sons da oficina e o malho da voz do chefe, seria como se em meio a tudo a alma e o gosto não sofressem impressão, pois estariam resguardados de fé e concreto, bem ocultos. Essa crença, diga-se de passagem, cairia melhor em João, que acreditava na lenda de Spinoza polindo lentes, enquanto pensava em latim Sobre o Melhoramento do Intelecto. Em Carlos essa ilusão recebera a variante de uma astúcia ingênua, mas astúcia, que era o conforto de se enganar, como o indivíduo cansado e com muito sono e que tem uma tarefa inadiável para concluir antes de dormir, mas que se diz, "descansarei apenas 5 minutos". O indivíduo dorme a sono solto por 100 x 5 minutos, a pedido do corpo lasso.

O trabalho que Carlos julgava ser um custo sem embate, adaptando-se fisicamente, por habilidades que de tanto serem feitas tornar-se-iam obra de um autômato, alheio à sua pessoa, somente deixando no trabalho o corpo, numa migração mecânica da alma, não se fez conforme a sua esperançosa astúcia. A alma regressou ao corpo, de onde nunca se havia apartado, e se entranhou nos dedos, e se fez carne, ou mais precisamente busca de carne, ao tempo em que ouvia histórias de bois que não a comem, e por isso têm muita força e saúde. O que ele não via como uma lei geral, percebia-o, no seu caso particular, embora disso não formasse conceito, porque lhe era pesaroso o nível de adaptação a que se via forçado. "E eu sou louco?", a pergunta, que se fazia, evoluiu sem rastros de percurso para um "é claro que não sou louco", até um "longe de mim a loucura", quando passou a ser convidado para almoços rápidos, de 15 minutos, na casa do patrão Romualdo. Ora, estava escrito que passasse a elogiar, e até mesmo a gostar (e não vem ao caso distinguir a fronteira entre o gosto verdadeiro, sentido, e o gosto por agradecimento), a gostar e fazer comentários judiciosos sobre legumes, frutas e verduras. Pois a fome é onívora. Se lhe servem um bife suculento, muito bom. Se lhe servem um arroz com salada, não é mau. É até ótimo, quando a digestão se faz de volta no carro do chefe, uma sólida Rural Willys. Vontade de cochilar lhe dava, cochilar e voar para longe, migrando, mas o matraquear de Romualdo não lhe dava trégua. Ele, Romualdo, tinha a consciência de que lhe pagara o almoço, não fosse agora o empregado, de rabo cheio, negar-lhe a dívida.
- O povo não gosta de trabalhar, viu, rapaz? Não querem trabalho não. Querem só, ó - e tirava uma das mãos do volante, agitando os dedos na boca aberta. - Esta é que é a verdade.

E Romualdo voltava a mão ao volante, firme, sério, cônscio da solidez do seu patrimônio, ele próprio se vendo forte como o granito. Contente e eterno. Carlos dirigia os olhos para a paisagem, que corria, de meio-fio, sol e gente. "Deixa pra lá", pensava, "isso passa. Vamos ao que importa". E o que importava? Vácuo como resposta. Arrotava o arroz com ponche de laranja. O arroto lhe era desagradável, um desagradável que era motor de empurrar mais os olhos para longe da janela estável da Rural. "Isso passa. Vamos ao que interessa". Desciam. Era emendar o segundo expediente sem descanso.

Ora, estava escrito que a lua-de-mel, como toda lua-de-mel, não podia durar sempre. A intimidade doada pelo chefe teve a contrapartida da quebra do respeito, ousemos esta palavra, respeito que ainda havia nos momentos do esporro. Antes, Carlos era um estranho, um objeto, podia ser executado com frieza. Agora o chefe lhe conhecia a fraqueza, tinha-o na mão como um devedor - pois não lhe pagava às vezes até a janta? -, media-o pela medida do seu almoço. Ora, era o diabo. Se Carlos houvesse tomado distância, já teria sido posto no olho da rua. Como não se distanciara, e aí residia a fina lâmina do equilíbrio, para se dar ao respeito em público, o que vale dizer, para evitar a descompostura com testemunhas, deveria viver com o chefe em permanente salamaleque. "A paz esteja contigo" deveria expressar em constante mesura. Ora, não se pode exigir de um jovem tamanha ciência. E de um jovem espiritualizado, o que é um agravante, muito menos. Um dos problemas de um caráter espiritualizado é que ele se envolve no encanto das formas. O que isso quer dizer: num edifício levantado, por exemplo, ele somente vê o acabamento, o desenho no resultado final, erguido. Pior, para ele é um choque descobrir lajes, e que uma planta do prédio pode ser reduzida a retângulos e semicírculos. Falando mais, digamos, concreto: o jovem espiritualizado acredita em Talento, Generosidade, Amor, Decência, como fenômenos puros. O que vale dizer, fenômenos vistos no seu exterior. Para ele as estrelas são luzes lácteas. Ora ora. Se ao descer da Rural, voltando do almoço na casa de Romualdo, Carlos não encontrasse ante os seus olhos os olhos da massa escura de operários, de macacão aberto, com o riso infame insinuado nos lábios grossos, ah, teria sido mais fácil atingir posturas próximas ao salamaleque, mas que não o seria, misturado que estava à tapinha, ao insulto recebido como uma característica jocosa, típica, de um patrão camarada. "O secretário do chefe", "meu chefe", começou a ouvir da oficina, e isso estava longe de ser um elogio. Tratavam-no como um rameiro, pelo menos na tradução que Carlos dava a essas irônicas antonomásias. "Inveja, é natural que sintam inveja", pensou a princípio. "Eles acham que a minha posição é importante. Como não podem estar aqui ... " E deu de ombros. Mas não se sentiu por isso liberado. A possível inveja acabou por constrangê-lo. E passou a ser cordato com Romualdo, quase pedindo desculpas à massa. O que quer dizer: às cobranças arbitrárias do chefe deu-se ao embaraço de fazer ponderações.
- Carlos, venha cá.
- Pois não...
- As guias de recolhimento do INPS de três anos. Eu quero elas.
- Hum... veja bem. Quando eu cheguei aqui, não me foi possível conceber a organização do arquivo - e a ponderação de Carlos era assim, cerimoniosa - sem um exame prévio das condições gerais ...
- Conversa mole, seu Carlos - o chefe o interrompe. - Quando o senhor chegou aqui não sabia nem um A. Me passe as guias, ligeiro.
- Certo. Mas veja bem. Não é totalmente justo que me seja imputado ...
- E quem chamou o senhor de puta? Vamos. O senhor sabe ou não sabe das guias?
- Sinceramente, de uns três anos para cá... O senhor tinha mesmo arquivo disso?

Aquilo acabou por queimar o pavio curto de Romualdo.
- Eu lhe pago pra me servir. Era só o que faltava! - Levantou-se, e se dirigindo ao armário, arrancou de lá, às braçadas, pilhas de papéis, que jogou para o chão. E varrendo com as mãos as prateleiras, ia exclamando: - Tá uma zona! Virou frege!

O chão ficou atapetado de cartas, algumas modelares, outras não, e mais notas fiscais, faturas, algumas presas por grampos, outras por clipes, e pastas, de guias amareladas, outras não.
- Quero tudo separado - o patrão lhe gritou - , com cada boi no seu curral. Hoje, daqui a pouco, até a minha volta do almoço.

E bateu a porta, saindo. Carlos ficou como um gigante faminto, sem almoço, com a multidão de papéis nos calcanhares. "Mártir quis ser, cuidei qu'eu era. E um louco fui, nada mais", eram os versos de que se lembrava. E se pôs humilde, franciscano, paciente e cristãmente a organizar os papéis sobre o birô.

Uma semana depois tinha camisa nova e, num protesto mudo, um tumor estourado no pé direito.

(*) Do romance "Os Corações Futuristas", Editora Bagaço, 1999

 
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Pílulas literárias 133

* Por Eduardo Oliveira Freire

"VOCÊ É SÓ MEU"

André ganhou de presente um gatinho.Um dia, ao chegar da escola, viu o filho da empregada com o bichinho no colo. O filhote aconchegou-se nos braços do outro, diferente quando André o pegava, arranhava-o. Disse que não o queria mais e quando voltou da natação, o filhote não estava mais lá. A mãe dera para o filho da empregada. No início ficou sentido, porém, se distraiu com a bicicleta nova e videogame de última geração que ganhou no dia das crianças.


***

LUTO

- Aonde você foi? Não foi ao enterro da sua avó!

- Fui ao cinema assistir seu filme predileto. Senti sua presença ao meu lado.


***

CULPA

- Pai, vou para o inferno?

- Claro que não, de onde tirou essa ideia.

- É que joguei água nas formigas que estavam na pia. Todas morreram afogadas.


***

“PRUDENTE”

- Naquela esquina há um segredo que quer ser revelado. Está curioso? Vai lá e depois me conta o que viu.


* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, com Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

A ponte

* Por Rodrigo Ramazzini

Imagine uma cidade pequena. Ano de eleições municipais. Somente dois candidatos e suas coligações disputam o cargo de prefeito. No lugarejo, apenas um grande problema: o péssimo estado da ponte que liga os dois únicos bairros da localidade, o Sul e o Norte, que são cortados por um riacho.

Durante a campanha ambos os elegíveis prometem basicamente a mesma coisa: reconstruir a tal ponte. Com uma única diferença. O candidato “A” prometeu fazê-la no sentido Sul – Norte. O candidato “B” comprometeu-se a erguê-la no sentido Norte – Sul. Era o início de uma discussão que se perpetuou a campanha inteira e acirrou os ânimos entre os bairros.

A origem dos recursos para fazer a obra, segundo o candidato “A”, seria o governo do Estado, no qual seu partido fazia parte da coligação. Já o candidato “B” dizia que a verba para a construção sairia do governo Federal, onde seu partido tinha ótimo trânsito.

Dia da eleição. Por pouco mais de 100 votos, o candidato “B” ganhou a disputa, já que conseguiu convencer os eleitores do bairro Norte, que possuía maior eleitorado, sobre as vantagens da construção da ponte se iniciar pelo seu lado do riacho. Assim que assumiu ao cargo, o prefeito “B” mandou dar partida nas obras da ponte. Até uma pedra fundamental foi inaugurada para marcar o início de um novo tempo na cidade.

Nos primeiros dias, alguns homens chegaram a trabalhar no local. Depois sumiram e a ponte ficou do mesmo jeito.

Dois anos se passaram e o prefeito afirmava que a obra não saia do papel porque o governo estadual, que era de partido de oposição, estava trancando os recursos que ele conseguira junto ao governo Federal (seu aliado), porque era ano de eleições presidencial e estadual. O executivo do Estado rebatia as acusações dizendo que as verbas federais nem passavam por sua contabilidade e que nem projeto para a captação do dinheiro a prefeitura tinha elaborado. Estava gerada a crise e uma grande discussão, que durou até a realização do pleito eleitoral. Como resultado, inverteram a ordem. Quem era oposição no Estado passou a situação e, no âmbito presidencial, ocorreu à mesma situação. Agora vai, dizia o prefeito “B” pelas ruas dos bairros.

Transcorrido mais um ano e a obra continuava parada. O motivo era que agora, o governo Federal havia trancado os recursos, pois com o executivo Estadual estava tudo certo. Nova discussão e a promessa que a construção da ponte entraria no orçamento federal do ano seguinte por meio de uma emenda parlamentar de um deputado. Até uma carreata na cidade foi realizada para comemorar o feito. É uma questão de tempo, afirmava o prefeito “B”.

Novo ano de eleições municipais. E nos primeiros meses, o assunto ponte voltou às rodas de discussão entre a população. Em retaliação por ter perdido uma votação no congresso nacional, o governo Federal cortou todas as emendas parlamentares dos deputados. Inclusive a da ponte. Vendo que não faria a obra e que isso o prejudicaria politicamente, o prefeito “B” propõe uma coligação com o seu anterior adversário “A” para que juntos encarem o pleito contra o candidato “C”, que acabara de surgir. Ainda, encheu a prefeitura de pessoas em cargos de confiança do bairro Norte, com intuito de amenizar qualquer tipo de descontentamento.

Em troca de algumas secretarias e uma possível candidatura do prefeito “B” a deputado Estadual no próximo pleito, o agora antigo “adversário A” aceita o convite para ser candidato a vice-prefeito e juntos formam a coligação intitulada “Unindo diferenças apara fazer a diferença”.

A ponte continuaria sendo a grande plataforma de compromissos dos candidatos “B” e “A”. A discussão sobre o sentido da ponte literalmente perdeu o sentido. A estratégia seria outra dessa vez. Sabedores que o candidato “C” tinha a ideia de lançar a promessa de fazer a ponte de madeira, o que possibilitaria que a obra saísse mais rápido do papel e com menor custo, a dupla “B” e “A” não poupou esforços para espalhar a intenção do adversário e mostrar seu compromisso com a população: fariam a ponte de concreto, sim!

Pronto! Uma grande discussão foi gerada na cidade. Madeira ou concreto? Concreto ou Madeira? Foram meses tratando sobre o assunto até que o resultado das eleições revelou a preferência dos eleitores pela proposta da dupla pelo concreto. Enfim, eleitos!

A dupla “B” e “A” assumiu os cargos de prefeito e vice-prefeito e logo marcaram uma nova inauguração da pedra fundamental da ponte. No dia marcado, durante a cerimônia, o prefeito “B” declarou em meio ao discurso:
- Esse ato é o marco de início de uma nova era na nossa cidade. Uma obra que mudará a nossa cidade. É o futuro chegando!!!

Foi aplaudido com entusiasmo pela população e assessores que participavam da solenidade. Enquanto, a salva de palmas ecoava, o vice-prefeito “A” aproximou-se e cochichou ao ouvido do prefeito:
- Quero ver como nós vamos fazer essa ponte!

O prefeito “B” olhou fixamente para o vice-prefeito “A” e respondeu com um sorriso irônico:
- Ou não, meu caro! Até as eleições a gente vê!

E os dois caíram na gargalhada...

• Jornalista e contista gaúcho

O ícone

* Por Jair Lopes

Segundo o Huaiss, ícone pode ser: pessoa ou coisa emblemática, isto é, essa coisa ou pessoa ao ser mencionada não precisa de explicação, ela é a explicação. Assim, temos ícones na história, nas artes, nos negócios e em todas as atividades humanas. Mas eu quero falar de um ícone do cinema que representa a mulher sexy por excelência: Marilyn Monroe.

Marilyn Monroe recebeu o nome de Norma Jeane Mortenson, ao nascer em Los Angeles em 01 de junho de 1926. A mãe dela, Gladys Pearl Monroe trabalhava na edição de filmes dos estúdios RKO e o pai pode ter sido um dos três homens que ela se relacionava naquela época. Marilyn viveu em orfanatos e lares adotivos até se casar aos dezesseis anos. Em 1945, um fotógrafo do exército que fazia umas tomadas de mulheres que participavam da campanha da guerra viu-a trabalhando numa fábrica de pára-quedas e percebeu seu potencial como modelo. Ele teve um caso com ela e a encaminhou a uma agência de modelos. Seu êxito na profissão levou-a naturalmente a um teste para atriz e à assinatura de contrato com a Twentieth Century Fox, em 1946, pelo salário semanal de 125 dólares. Marilyn fez uma série de pontas em filmes até 1953, quando recebeu um papel de certa relevância. No mesmo ano, Hugh Hefner comprou uma foto de Marilyn nua, feita quando ela era modelo principiante, e a publicou na então sua nova revista Playboy. Marilyn virou celebridade e tornou-se ícone da mulher sexy, rótulo que parecia ter sido criado para ela. Casou-se com o grande jogador de beisebol Joe DiMaggio o qual, mesmo depois que ela morreu disse que jamais deixou de amá-la e até o fim de seus dias levava todo mês uma flor ao seu túmulo. Marilyn também casou-se com o dramaturgo e escritor Arthur Miller e frequentava com grande sucesso roda de intelectuais amigos de seu marido. Ao contrário do que alguns maledicentes insinuam, Miller, do alto de sua inteligência e fama, afirmava categoricamente que Marilyn era extremamente inteligente, o que lhe faltava era escolaridade, havia freqüentado apenas quatro anos de bancos escolares em decorrência das errâncias de sua sofrida infância.

Sempre a procura de um afeto inatingível que não tivera na infância, ela buscou consolo em comprimidos, no álcool e relacionamentos eventuais, passando a ser inconstante no trabalho e incapaz de manter relacionamentos sérios com os poucos homens que se esforçavam tremendamente para amá-la e serem amados. Apesar disso tudo, seu sucesso como atriz havia decolado e ela tornara-se famosa, rica e imitada por outras atrizes e por mulheres do mundo todo.

Em 1962, quando tinha 36 anos e continuava mais linda que nunca, Marilyn foi encontrada em seu apartamento, morta por uma overdose de Nembutal e hidrato de cloral, ambos barbitúricos vendidos sob receita médica. No seu obituário a morte consta como suicídio. Mas devido a supostas ligações dela com John F. Kennedy e Robert Kennedy; a inconsistências dos indícios encontrados no local da morte; e o desaparecimento das gravações de seus telefonemas, foram aventadas várias hipóteses de assassinato. O imaginário popular mundial ficou excitado com a possibilidade do relacionamento do presidente Kennedy com ela a partir do “Happy Birth Day” que ela cantou de modo extremamente provocante para ele na Casa Branca. No mais, perdeu-se um ícone e nasceu um mito.

• Escritor, autor dos livros “O Tuaregue” e “A fonte e as galinhas”.

Ou dá ou desce – V

* Por Fernando Barreto

Capítulo 5- The Power Guido

Quando voltou para casa naquela noite, Brito não estava tão bêbado. O conserto em seu banheiro tinha sido efetuado com sucesso. O conhaque tinha sido dividido por três caras que gostavam de bebida e por isso a quantidade de álcool ingerida até então tinha sido insuficiente para que a embriaguez de Brito chegasse ao ponto em que ele se considerava satisfeito. Brito tinha pego um cartão de Dema, com seu endereço e o número do telefone fixo e o do celular. Dema morava no centro da cidade, na Rua do Boticário. É uma viela imunda, cheia de nóias, próxima ao Largo do Paissandu.

No cartão dizia que Dema tinha um grande catálogo de rock e música em geral e que gravava cds piratas com encartes fiéis aos originais. Saber que aquele sujeito era eunuco fazia com que Brito se sentisse na obrigação de rever certas coisas em sua vida, especialmente aqueles setores em que se considerava infeliz, ou pelo menos, insatisfeito. Seu ego era tão colossal que esmagava a sua razão. Tinha passado uma tarde na companhia de outros dois homens que lhe expuseram suas agonias e seus pesares e que continuavam vivos.

Brito pensou que Guido talvez ainda estivesse com vontade de beber depois que os três se despediram. Só depois é que pensou que Guido não tinha nem ao menos onde dormir. Brito então serviu-se de um copo grande de uísque com uma pedra de gelo. Ainda estava chocado com as revelações de Dema sobre a castração e a saqueira. Foi tomar o primeiro gole em sua sacada e olhou para baixo, Guido não estava lá. Um motoqueiro entregador de pizzas passou pela rua. Brito deixou o copo no chão da sacada, entrou no apartamento, pediu pelo telefone uma pizza de aliche e uma de provolone. Acendeu um cigarro e voltou para o uísque na sacada. Terminada a dose ele pensou que mais um pouco de uísque seria o suficiente para que ficasse bêbado e realmente com fome, e quando terminasse de beber a pizza chegaria, o que de fato aconteceu e então o dia terminou sem mais desdobramentos.

Eram dez horas e quarenta e três minutos no relógio do microondas de Brito quando ele acordou na manhã seguinte e havia muita pizza para o café da manhã. Não havia reformas para serem feitas em seu banheiro. Ele liquidou a pizza e começou a ouvir os discos que tinha comprado de Dema. O plano era ficar à toa ouvindo aquele material para em seguida guardar os discos que ainda não tinha e em seguida separar os repetidos e dar início às negociações pela internet, visando vender os álbuns que ele já tinha. Na verdade Brito venderia as edições que ele já tinha em casa, pois os discos repetidos que comprara de Dema eram edições importadas, melhores e mais caprichadas.

Parecia ser um bom dia para não beber e não sair de casa. Seria bom ouvir música e fumar maconha. Quando Brito terminou de comer a pizza do dia anterior era quase meio dia e só teve fome de novo quando eram sete da noite, quando finalmente comeu sanduíches de atum com fatias de provolone e uma goiaba vermelha.depois de ter fumado alguns baseados nesse intervalo, além de ter feito barras e flexões e também de ter se masturbado. A leveza dos bagos era a receita contra a melancolia causada pela solidão. Brito não sofria dessa melancolia. Via e ouvia tanta gente reclamar da solidão que se sentia ainda mais deslocado socialmente.

Naquela noite Brito enviou um email a Dema pedindo que lhe fosse enviada a lista de discos que podiam ser copiados em CD com o encarte fiel ao original. Fez o pedido porque queria prestigiar o trabalho do novo amigo. Talvez houvesse naquela lista algum álbum que Brito não tivesse ouvido, mas que já tivesse ouvido falar. Afinal são muitos os discos que são comentados demais pelos especialistas e ouvidos de menos por todos. Enviou a Dema alguns arquivos antigos que tinha guardado de sua antiga revista PORRITE, e no dia seguinte recebeu como resposta a tal lista de discos e também a manifestação do interesse de Dema em relançar os exemplares antigos da revista e elaborar novas edições. Combinaram por email de se encontrarem no apartamento de Dema.na noite seguinte ao email de resposta de Dema, Poderiam então conversar novamente e tomar cerveja enquanto Dema trabalhava na confecção de CD's piratas anteriormente encomendados por seus clientes.

Na Avenida Ipiranga havia um estacionamento bem na esquina com a Rua do Boticário, onde Dema morava. Brito deixou seu carro no estacionamento e procurou pelo prédio de Dema. Vestia uma camiseta do Juventus da Mooca, calça jeans e all star azul escuro de cano baixo. O local sempre parecia um circo de horrores, especialmente quando escurecia, mas Brito já sabia disso. Como andava naturalmente despojado não se preocupou. Os nóias que não estavam empenhados em suas cachimbadas se deslocavam debilmente e mancando muito atrás da próxima pedra. Chegou ao prédio de Dema, que ficava do outro lado da Avenida Ipiranga sem ser tão importunado pelos nóias.O prédio era um meio termo entre cortiço e edifício residencial. Parecia haver todo tipo de gente vivendo ali. Resquícios de estrutura familiar padrão diluída numa bruma de agonia, abandono e desespero. O interfone na parte externa não estava funcionando e no instante em que surgiu senhora que possivelmente morava ali com sacolas de supermercado tentando abrir a porta do prédio, Brito a ajudou e aproveitou e perguntou a ela se conhecia Dema. "Ah, sim, jovem... Conheço o Dema há mais de 20 anos. Quando vim pra cá ele já morava aqui com a mulher dele. Você também é roqueiro, né? Entre comigo que te mostro onde ele mora."

Brito e a velha senhora subiram dois lances de escada. Cada andar tinha dez apartamentos cujas portas alinhavam-se apenas do lado direito do corredor que começava ao final de cada lance de escada. A velha senhora agradeceu pelo fato de Brito tê-la ajudado a carregar as sacolas quando chegaram ao número 23, que era o apartamento dela, que indicou o apartamento 28 como sendo o de Dema. Despediram-se brevemente, Brito agradeceu pela informação e foi até a porta de número 28 e tocou a campainha.
- Mas que grande satisfação tê-lo aqui, meu caro! Frequentando o centro sujo da cidade, não é? Não se preocupe com esses nóias, porque na volta eu te escolto até uma avenida segura! – disse Dema ao abrir a porta.

Dali Brito pôde ver a mulher que supôs ser a esposa de Dema. Era uma mulher muito hippie, com cerca de 40 anos, morena, magra, cabelos lisos muito pretos e compridos. Muito quieta e serena, pediu que Brito não reparasse na bagunça. Ela estava sentada no chão e recortava encartes de CD's piratas e os colocava nas caixinhas. Dema os apresentou e contou a ela superficialmente a forma como conheceu Brito. O nome da esposa de Dema era Joice. Extremamente simpática e educada, pediu que Brito deixasse sua mochila no sofá de dois lugares cujo forro imitava couro preto. Brito não conseguiu deixar de pensar nas modalidades sexuais alternativas às quais eles tinham que recorrer pelo fato de Dema ser eunuco. O apartamento era uma quitinete com cerca de 30 metros quadrados cuja janela para a rua se estendia por entre as duas paredes laterais. Essa janela era virada para a Rua do Boticário e podia se ouvir nitidamente o movimento dos nóias. Sentia-se o cheiro das pedras de crack sendo queimadas ali embaixo.

Brito pôde constatar que Dema estava com a mesma roupa que vestia na ocasião em que se conheceram. Ou talvez Dema tivesse dentro do seu armário várias camisas pretas de seda iguais. Dema abriu a geladeira alcançou uma cerveja long neck para ele e outra para Brito, que abriu sua garrafinha e dirigiu-se para a janela, da qual já estava a poucos metros. O acender contínuo dos isqueiros para se queimar as pedras de crack cerca de dez metros abaixo proporcionava um show de pirotecnia que naquele momento parecia ser equivalente a um show do Kiss. Dema então comentou:
- A cidade está infestada de nóias, meu amigo. Moro aqui desde 1983, numa época em que o centro já era decadente, mas o crack ainda não tinha feito tanto estrago. Muitos desses garotos que estão aí fumando pedra moram aqui mesmo pela região desde que nasceram. Alguns aqui nesse prédio. De vez em quando entram drogados aqui e cagam no corredor, causando um dano terrível. Deixam barradas colossais. Outros desses vieram pra viver na rua e ter acesso às pedras. Nós tentamos nos adaptar da melhor maneira. O centro inteiro já está repleto de nóias. Até mesmo na Santa Cecília e Higienópolis que são partes mais burguesas do centro. Aqui é meio baixo astral, eu sei. Vamos sair um pouco. Tenho um vizinho que você precisa conhecer. O nome dele é Djalma. – disse Dema com seu dente frontal superior mole e solitário balançando a cada palavra dita, para a alegria de Brito.

Antes de saírem, Brito pediu a Dema para usar o banheiro. Precisava urinar e já tinha deduzido que a única porta fechada naquele pequeno apartamento, que ficava muito próxima da porta de entrada, era o banheiro. Brito foi alertado por Dema para que não apertasse a descarga, porque isso faria com que ela disparasse e não parasse mais. Brito urinava e pensava que depois Dema ou Joice jogariam baldes d'água na privada para que a descarga não disparasse.

Joice ficou em casa terminando seu trabalho. Dema e Brito saíram em meio aos nóias. Andaram por cinco quarteirões até a rua Vitória, entre as ruas Guaianazes e Conselheiro Nébias. Na parte térrea do prédio de Djalma funcionava uma academia de musculação. Dema conhecia o porteiro. Conversou brevemente com ele enquanto esperava pelo elevador. O porteiro apenas confirmou que Djalma estava em casa e que eles podiam subir. O elevador era um velho modelo Atlas. Subiram até o quinto andar. Havia oito apartamentos em cada andar. Djalma morava no 504. Do corredor podiam ouvir um certo agito vindo lá de dentro.

Djalma era um sujeito de 41 anos, mas assim como Brito, aparentava ter menos idade. Não era alto. tinha um metro e setenta de altura e era magro mas com músculos salientes e definidos.Tinha um cabelo castanho claro , liso e comprido até os ombros. Era uma cabeleira vasta e bem cuidada, com alguns fios brancos começando a surgir. Usava uma camiseta regata preta e aparentemente não tinha tatuagens. Quando Djalma atendeu à campainha, deu um abraço em Dema, cumprimentou Brito com um aperto de mão e disse aos dois que estava se divertindo. O apartamento de Djalma tinha cerca de cem metros quadrados divididos entre uma sala, um quarto, um banheiro e uma cozinha. Havia uma certa rotatividade de pessoas na festa, mas com uma média constante de quinze pessoas. Algumas pessoas saíam e logo voltavam com mais latas de cerveja.

Trouxemos uísque, cocaína, maconha, cerveja... O único problema até agora foi com aquele cretino desmaiado no sofá. Não aguenta beber e faz esse papel ridículo na frente das meninas... – disse Djalma apontando para o sofá onde Braga estava deitado todo vomitado e quase dormindo.

Braga gemia algumas palavras que não podiam ser compreendidas. Haviam maquiado o infeliz com batom e jogado o que parecia ser serragem para que seu vômito grudasse. Por um instante Brito chegou a sentir certa compaixão de Braga, quase ao mesmo tempo em que soube que Dema também já o conhecia.
- Ah, é o Braga! Esse rapaz é um idiota! É um paspalho! Já o conhecia de outras festas aqui mesmo. Ele gostaria de poder estar onipresente. Não há nada que ele não faça pra chamar a atenção. Ele nunca conseguiu o respeito de ninguém. Esse cretino é blogueiro! Olhe, Brito, nós somos da velha escola, precisamos retomar a produção da sua antiga revista! É preciso fazer oposição a esse tipo de gente com a máxima urgência! Eu tenho um livro pronto que está na gaveta! Chama-se 'O LIVRO DOS FILHOS DA PUTA'. Fique tranquilo que não se trata de um livro de poesia. É qualquer coisa menos isso, Eu estava esperando um momento oportuno pra lançar, e hoje esse material está mais atual do que na época em que foi escrito! Eu considero que tanto a sua revista como o meu livro são pedidos de socorro! – disse Dema.
- Vamos lançar seu livro sim! Já que você falou nisso, devo dizer que por ironia do destino eu parei com a revista justamente por causa dos blogueiros... Esse engajamento mala me enoja de uma forma tão pesada que não consigo nem enfatizar o desespero que eu sentia quando essa gente começou a despontar na internet. E se eles acharem que estamos falando mal da inclusão digital e do direito de expressão, ouviremos ladainhas e certamente surgirá uma rodinha de violão com a música do Geraldo Vandré sendo cantada em coro.. – disse Brito.
- Descobri recentemente que o Guido é um poeta incrível, totalmente contrário a essa bundice mole desses poetinhas de internet que escrevem sobre borboletas campestres e passarinhos e flores. Poderíamos fazer uma coletânea do Guido no embalo dos nossos relançamentos. Ele rima Denise com marquise, rima Deise com rio laser e o contexto geral é sempre cafajeste e extremamente incorreto politicamente. Seria mais um reforço pra combater a frouxidão dos blogueiros juvenis. A urgência que esses moleques idiotas têm de impor a própria burrice em blogs com atualizações diárias me deixa nervoso. O Braga representa toda essa geração. A única razão pela qual eu ainda não dei na cara dele tem a ver com o fato de que toda vez que o encontro ele está sendo ridículo por iniciativa própria. E também tem a ver com o fato de ser apenas um moleque frouxo e bunda mole. Às vezes eu quase sinto pena, mas ele merece ser essa figura patética mesmo – disse Dema.
- Essa geração bunda mole existe porque esses moleques foram criados com mertiolate que não arde e com toddy de morango. Esses pequenos insetos foram criados com tv a cabo e são adeptos do politicamente correto. Eu odeio muito essa juventude... – disse Brito.

Brito não disse a ninguém que o conhecia, mas gostou de ver através de outras pessoas o reconhecimento pela paspalhotice de Braga quando a fagulha de compaixão que chegou a sentir por ele desapareceu. Agora ele parecia ainda mais ridículo do que antes. De uma certa forma Braga conseguiu a onipresença que parecia buscar. Ele estava onde Brito não imaginou que ele fosse estar, e num momento em que Brito já tinha esquecido dele. Mas Braga falhou em todo o resto. Seria fácil se o garoto quisesse ser ele mesmo. A sensação íntima de sermos o que somos não é algo que pode ser mudado.

Havia na festa um sujeito que só tinha o tronco e a cabeça. Não tinha pernas nem braços, e uma garota ruiva ajudava-o a fumar cigarro e baseado, tomar cerveja e ir ao banheiro, empurrando a cadeira de rodas do cara. A garota ruiva era belíssima. Uma beleza sensual e delicada ao mesmo tempo. Magra mas com seios grandes para seu porte físico. Tinha um metro e sessenta e cinco de altura e cerca de 52 quilos. Apenas uma tatuagem cujo desenho era uma cereja estava visível sob a alça esquerda do sutiã preto, que surgia debaixo de uma camiseta regata também preta com a estampa do disco 'Cure for Pain', do Morphine. A garota tinha um cheiro delicioso que lembrava iogurte.

Brito ficou ali por duas horas. Conversou com Djalma, que lhe contou sobre o fato de estar se despedindo do centro da cidade. Mudaria para o bairro da Saúde, porque sua namorada de longa data ficou grávida. A mãe de Djalma gostava da garota e da idéia de ser avó, então convenceu-os de se mudarem para uma casa que ela tinha alugado e cujo contrato do aluguel havia terminado, sem que houvesse interesse do inquilino em renovar. Braga não havia aprendido isso. Não haveria de aprender tão cedo, afinal não sabia que Brito o tinha visto naquela situação ridícula. Braga talvez deixasse de lado aquele grupo de amigos do centro por causa da vergonha, mas para ele Brito não esteve lá. Sendo assim, Braga poderia ressurgir a qualquer momento, e estaria ainda mais confuso.

Djalma, Dema e Brito conversaram e beberam até Brito sentir cansaço e uma embriaguez comprometedora para dirigir de volta pra casa. Saiu dali acompanhado de Dema, que já cambaleava, mas que estava perto de sua casa.

Leia o sexto capítulo deste conto na edição de amanhã.


• Escritor

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – A Academia dos Jogos Florais

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Radiografia das paixões”..

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica,“Por onde andará?”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Evolução da espécie”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Amadurecido”.

Coluna Porta Aberta – Fernado Barreto, conto “Ou dá ou desce-IV”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


A Academia dos Jogos Florais

Victor Hugo começou sua brilhante (diria fulgurante) carreira literária “por cima”. Ou seja, aos 17 anos de idade, conquistou, logo de cara, os três primeiros e cobiçados prêmios da “Academia dos Jogos Florais” da França. Certa ocasião, em uma das tantas palestras que proferi, citei esse fato como grande feito do futuro escritor e fui aparteado por alguém da platéia, que não via grande mérito nesse evento e, portanto, na conquista do poeta (seus primeiros passos no campo das letras foram na poesia). Claro que se tratava de falta de informação do caro aparteador.

Ele desconhecia – como tantos, e tantos e tantos e bons intelectuais desconhecem – a milenar história (na França é secular e existe até hoje, sendo evento dos mais prestigiados e seus prêmios dos mais cobiçados) da Academia dos Jogos Florais. Na ocasião, fiz questão de esclarecer, não apenas meu atento e participativo aparteador, mas a todos os presentes, sobre o que era essa entidade e qual a natureza dos torneios poéticos que promovia (e que promove até hoje). Gosto de ser questionado em minhas palestras. É sinal que meus ouvintes estão atentos e não sonolentos e bocejadores, o que é uma.tragédia para qualquer palestrante.

Como tenho a mania de tornar minhas exposições as mais didáticas possíveis, peço licença ao paciente leitor para fazer uma pausa no relato de algumas circunstâncias da vida de Victor Hugo, para tratar dessa entidade, cuja “inspiração” foi a congênere e antecessora da Roma Antiga. Os Jogos Florais originais não tinham, como os atuais têm, caráter competitivo. Não, pelo menos, no seu início. Tratava-se de uma das maiores festas populares da Cidade Eterna, realizada anualmente no início da Primavera. Devia seu nome a Flora, deusa das flores e dos jardins, à qual os romanos homenageavam com cânticos e com poesias.

Com o passar do tempo, essa festa foi se transformando, até adquirir caráter de competição, ou seja, de uma espécie de olimpíada, posto que não esportiva, mas artística. Na época dos imperadores, o evento se transformou em renhida disputa poética, cobiçadíssima pelos grandes poetas da época, porquanto a vitória conferia prestígio e às vezes fortuna ao ganhador, comparável (grosso modo) aos premiados atualmente com o Nobel de Literatura.

Esses torneios eram organizados por assembléias literárias e contavam com a participação de competidores procedentes das mais longínquas partes do vasto e poderoso império romano. Pudera! Os vencedores transformavam-se numa espécie de “superstars” e recebiam entusiástica aclamação pública, além de coroas de rosas, de mirto e de louros. Vencer os Jogos Florais, então, era a glória.

Na França, a Academia encarregada de organizar esse evento anual não tem, claro, a conotação religiosa que os romanos lhe emprestavam. Mas confere idêntico prestígio, diria até que maior do que em Roma, já que os vencedores ganham amplo espaço na mídia e, quem é escritor sabe o quanto a divulgação é importante para o sucesso na carreira literária. Os prêmios, a exemplo da antecessora romana, também são em flores, porém com importante diferença: estas são, respectivamente, de ouro, prata e bronze.

A Academia dos Jogos Florais da França é bem anterior ao século XIX, oportunidade em que Victor Hugo participou da competição e, aos 17 anos de idade, conquistou os três primeiros lugares. Foi fundada em 1323, por um grupo de poetas, em uma época em que se dedicar a compor poesias era tido como coisa de boêmios, de debochados, de parasitas e vagabundos. Creia-me, leitor, houve tempo em que esses mágicos “pastores de emoções” eram tidos como tal (pelo menos pelos detentores do poder político).

Tendo em vista essa conotação pejorativa da poesia na época, a entidade chamou-se, originalmente, “Colégio da Ciência Gaiata”. Em 1500, uma dama da cidade de Toulouse, Clémence Isaure, resolveu reabilitar o prestígio dos poetas, reformando a Academia e transformando-a no que é até hoje e dando0lhe o nome atual. Grande e esclarecida mulher!

Não é apenas a França, todavia, que promove, anualmente, Jogos Florais. Portugal, Espanha e Itália, por exemplo, há dois ou três séculos, também têm os seus. No Brasil, eles acontecem em várias localidades, embora não contem com a necessária e suficiente divulgação para se tornarem populares. Uma pena!

Gabriel Garcia Marquez, em seu romance “O amor nos tempos do cólera”, cita os Jogos Florais da Colômbia e sugere tratarem-se de concorrido e prestigioso evento artístico-cultural. Como se vê, o primeiro prêmio literário conquistado por Victor Hugo teve, sim, relevância, ainda mais sabendo-se que os poemas que inscreveu conquistaram os três primeiros lugares. Ou seja, como se diz no popular, “fez cabelo, barba e bigode”. Como conseqüência desse sucesso, as portas das editoras se lhe abriram pela primeira vez. Assim, em 1822 (ano da independência do Brasil), aos vinte anos de idade, pôde lançar seu primeiro livro, “Odes e Poesias Diversas”, alguns meses antes de casar-se com Adéle Foucher.

A partir daí, sua carreira literária estava lançada e seu prestígio estava em ascensão, apesar dos altos e baixos que todos temos em algum tempo na vida. Em 25 de fevereiro de 1830, três dias depois do 28º aniversário do escritor, estreava, num teatro de Paris, a peça “Hernani”, de Victor Hugo, cujo prefácio é considerado o Manifesto do Romantismo francês. Nessa época, ele já chefiava o famoso “Cenáculo”, reunindo a nata da intelectualidade da França. Como se vê, a Academia dos Jogos Florais foi, sim. importante e mais, decisiva na vitoriosa carreira do nosso ilustre e talentoso personagem.

Boa leitura

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Radiografia das paixões

* Pedro J. Bondaczuk

As pessoas que se julgam extremamente racionais agem como se o animal humano fosse um robô, capaz de ser programado para reagir aos estímulos com atitudes absolutamente lógicas e controladas. Os indivíduos até que são treinados para isso, mediante o processo que se convencionou chamar de “educação”. Acabam, no entanto, traídos por suas emoções.

Daí o conjunto de normas morais e de leis existentes no mundo ter sido impotente para acabar, ou sequer reduzir, a criminalidade, por exemplo. Pelo contrário. Apesar das punições serem cada vez mais severas, culminando com a pena de morte, os delitos crescem, por uma série de causas, entre as quais a impossibilidade de completo controle sobre as paixões.

Temos componente animal que está acima da nossa vontade. Alguns conseguem dissimulá-la, escondê-la, mantê-la sob vigilância. Mas ela sempre estará lá, no fundo da consciência, ou, mais propriamente, da inconsciência. Em determinado momento, essa bomba-relógio pode explodir, à nossa revelia e ou causar estragos irreparáveis, se for uma compulsão para a violência e ódio, ou determinar magníficas criações, obras-primas de causar espanto e inveja, caso seja positiva.

Dia desses um leitor criticou-me duramente porque defendi, numa crônica, que em tudo o que fizermos, devemos colocar paixão, e não somente razão. Argumentou que estas são “sempre” destrutivas e perigosas, conclusão a que chegou não sei por qual caminho e baseado no quê. Sua argumentação foi muito pobre, diria, até mesmo infantil.

O último livro do laureado escritor mexicano Octávio Paz (ganhador de um Prêmio Nobel de Literatura) – escrito praticamente no hospital, pouco antes da sua morte em abril de 1998 – foi exatamente sobre esse tema. Ou seja, trata-se de uma espécie de “radiografia das paixões”.

O título dessa obra, em espanhol, é “Um más allá Erótico: Sade”. Não sei como foi traduzida em sua edição em português (lançada no Brasil no segundo semestre de 1999 pela Editora Siciliano). Li-a no original, o que faço sempre que posso (quando conheço o idioma em que o autor escreveu), pois entendo que isso me possibilita valorizar determinadas nuances que, às vezes, o tradutor não capta e deixa escapar.

Em certo trecho do livro, Octávio Paz escreve: “Não sabemos nada sobre nossas paixões, exceto que elas nasceram conosco. Nossos órgãos as criam, mudam com as mudanças desses mesmos órgãos e morre com eles”. “Ah, mas determinadas paixões são anormais!”, dirão alguns, com ares doutos, como quem descobriu a pólvora. Ao que o escritor mexicano rebateria: “A natureza é singular, é uma fonte inexaurível de fenômenos. A normalidade é uma convenção social, não um fato da natureza. Uma convenção que muda com o passar dos séculos, dos climas, das raças, das civilizações”.

É comum ouvir-se por aí, ou se ler em livros, artigos e crônicas, que as paixões cegam as pessoas e as impedem de conquistar o que mais desejam, por falta de clarividência. Trata-se de mera generalização. Depende de qual tipo de paixão esses pseudo-especialistas se referem. As negativas, como ódio, cobiça e inveja, de fato têm a característica de ofuscar a visão dos que são possuídos por elas. Já no caso do amor (por uma pessoa, ideal ou causa), porém, ocorre o contrário.

As pessoas apaixonadas adquirem mais clarividência e enxergam melhor do que as que não amam. Nenhuma obra se aproxima da perfeição e adquire real valor se, na sua consecução, não houver forte dose de paixão. Claro que essa chama, esse entusiasmo, essa fúria de concretizar o que existe só em nossa mente tem que ser “temperada” com outros ingredientes, como razão, prudência e bom-senso. Ela, em si, em seu estado natural, é selvagem e muitas vezes incontrolável. Tende a alucinar quem não sabe dosar sua intensidade. Mas sem paixão, nenhuma das nossas obras parecerá, aos mais atentos (e, de fato, não o será), com alma, verdade e autenticidade. Mesmo que perfeita, na forma e na concepção, soará falsa, artificial e sem vida.

Por isso nunca canso de afirmar, de reiterar e de enfatizar que devemos pôr paixão em tudo o que fizermos, não importa o tamanho e a relevância da tarefa. Temos que ser, sobretudo, apaixonados pela vida e viver cada segundo com máxima intensidade e vigor. Somente assim conseguiremos explorar adequadamente nosso potencial, que é muito maior do que podemos imaginar.

Devemos colocar paixão em todos os nossos afazeres, quer se trate da administração de um lar, de um relacionamento afetivo, do cultivo de um jardim, da partilha de uma amizade ou de um amor, da confecção de algum objeto ou da composição de uma sinfonia ou epopéia. Nada é pequeno para quem tem grandeza de alma, para quem encara a vida como deve ser sempre encarada – com deleite e encantamento – e que põe chispas pelos olhos nos momentos de ação.

É equívoco comum considerar, porém, que se apaixonar é o mesmo que amar. A paixão pode ser (e em geral é) um princípio de amor, mas não é o próprio. É mera fagulha que, se não tiver combustível que a alimente, para que se transforme em chama, não passará de centelha que se consumirá.

O amor requer cuidado e atenção constantes e, ainda assim, dada sua fragilidade, nunca há certeza de que irá prosperar. Mas enquanto dura... Ah!, é o paraíso na terra! Por isso, valem a pena os esforços para que jamais venha a enfraquecer. Ainda assim, como flor perfumada, deixará, por muito tempo, embriagadora fragrância impregnada em nossa vida.

O tema é bastante complexo e, certamente, voltarei a abordá-lo com mais detalhes oportunamente. Por enquanto, deixo apenas ao leitor, como tema de meditação, esta conclusão de Octávio Paz: “Mais poderosas do que nosso caráter, nossos hábitos, ou nossas idéias, elas (as paixões) não são nossas: nós não as possuímos, elas nos possuem. Há alguma coisa mais antiga do que nós e que nos determina gostos, aberrações e caprichos. Têm sua origem comum na natureza”. E nós não passamos de “filhos da natureza” (ou de “Deus”, como queiram).

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk