domingo, 31 de janeiro de 2016

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos e dez meses de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – “Ressurreição” da memória por conta do acaso.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Criatividade do ostracismo”.

Coluna Direto do Arquivo – Ronaldo Bressane, crônica, “Morre a bailarina Maria Ester Stocker”.

Coluna Clássicos – Manuel Bandeira, poema, “Epígrafe”.

Coluna Porta Aberta – Adair Dittrich, crônica, “Em terras de Espanha”.

Coluna Porta Aberta – Marco Vasques, poema, “Flauta sem boca à procura de música”.

@@@

Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

“Ressurreição” da memória por conta do acaso


O economista italiano do século XVIII, Ferdinando Galiani, afirmou, em certa ocasião, em indisfarçável tom de desabafo: “A imortalidade é apenas um terreno disputado ao esquecimento, mas bem fracamente disputado”. Ele estava errado? Claro que não!! Ele próprio, que no seu tempo foi celebridade, personalidade reconhecida e citada nos meios econômicos, hoje está esquecido. Poucos sabem que sequer existiu. Só tomei conhecimento de sua existência por puríssimo acaso. Quanta gente (e levo a questão para a minha “praia”, a Literatura), não passou por isso? Quantos escritores, famosos enquanto vivos, que todos acreditavam estar “imortalizados” em suas obras, não foram completamente esquecidos? Quantos foram os que não sobreviveram, sequer, a uma única geração após sua morte? Alguns, contudo, contam com a ação positiva do acaso e, subitamente, acabam “ressuscitados” (não fisicamente, óbvio).

É o caso do poeta peruano César Vallejo. Até há mais ou menos três anos (não estou seguro quanto ao tempo exato), jamais havia lido ou ouvido a mínima menção ao seu nome. E quando ouvi, não me passou pela cabeça a mais remota suspeita que se tratasse de um poeta e, mais do que isso, de um ícone da hispanidade, ombreado a um Pablo Neruda e a uma Gabriela Mistral, mesmo não tendo um Prêmio Nobel de Literatura em seu currículo, como essas duas glórias literárias chilenas. Soube dele (aliás não propriamente dele, mas de seu nome), porque gosto de futebol e busco estar informado sobre tudo o que ocorre neste que é o esporte das multidões. Ouvi falar do time peruano “Club Deportivo Universidad César Vallejo”, da cidade de Trujillo, que há três anos (se não estou enganado) iria representar o Peru na Copa Libertadores da América (que, de fato, representou).

Curioso, como sou, quis saber quem era essa pessoa que emprestara nome a esse time de futebol, relativamente novo (fundado em 6 de janeiro de 1996 e que completou, portanto, há alguns dias, vinte anos de fundação). Pensei, inicialmente, que se tratasse de um dirigente esportivo. Ou, quem sabe, de um professor ilustre, já que nessa cidade há uma universidade chamada assim e o tal time está vinculado a ela. Nunca me passou pela cabeça, porém, que se tratasse de um poeta, e muito menos com a importância que teve. Casualmente, um amigo sugeriu, na base de puro palpite, que talvez fosse um escritor. Meio que por intuição, desconfiei que pudesse ser um poeta, por que não?

Decidi conferir. Acessei o site de Antonio Miranda, um dos mais completos espaços de poesia que conheço tratando de autores brasileiros, hispânicos, africanos e vai por aí afora. E... bingo! Acertei na mosca. Fiquei sabendo que o sujeito que dá nome ao time que iria (ou irá) enfrentar o São Paulo na fase inicial da Copa Libertadores da América, foi um poeta. E não um poeta qualquer, mas um inovador, um mágico das palavras, um escritor que, se a exemplo do seu conterrâneo Mário Vargas Llosa, ganhasse um Prêmio Nobel, ninguém iria estranhar. Aliás, iria aplaudir. O acaso, portanto, pelo menos para mim (e creio que para milhares e milhares de outras pessoas) tirou César AbrahamVallejo Mendoza (nascido em Santiago de Chuco, no Peru, em 1892 e que morreu em Paris, em 1938) do ostracismo a que estava injusta e estranhamente relegado. Foi uma descoberta que não somente enriqueceu minha cultura literária, mas proporcionou-me enorme prazer estético, pois tive, também, acesso à sua bela poesia.

Antonio Miranda diz o seguinte desse escritor: “César Vallejo é o grande poeta da hispanidade, talvez o mais contido entre os mais produtivos — sem a excessividade magnífica de Neruda, sem o radicalismo experimentalista de Huidobro. Genial em todas as suas frases, desde Los Heraldos Negros (1919) e Trilce (1922), quando exercita um modernismo com ressábios simbolistas e um certo hermetismo sensual e auto-flagelador. Mas é na temporada européia, confrontando as correntes revolucionárias desde o dadaísmo e o surrealismo que ele conjuga um certo automatismo verbal com sua veia telúrica e social, executando um praxismo frasístico com os paradoxos da reflexão crítica, às vezes prosaica e irônica”;

Antonio Miranda cita esta deliciosa (e polêmica) indagação de César Vallejo: “O que há de mais desesperador na terra, que a impossibilidade em que se acha o homem feliz de ser infeliz e o homem bom de ser malvado?” A seguir, reproduz a paradoxal resposta do poeta ao próprio questionamento: “Distanciar-se! Parar! Voltar! Partir! Toda a mecânica social cabe nestas palavras”. E não cabe?! Entendo que sim! Voltarei a tratar, oportunamente, César Vallejo, agora com relativo conhecimento de causa, pois tive a oportunidade de ampliar minhas pesquisas sobre sua vida e sua obra, consultando várias outras fontes.

Como sempre faço, ao tratar de algum poeta, reproduzo, abaixo, um de seus poemas, em ritmo de prosa, com tradução desse “expert” em poesia que é Antonio Miranda:

A violência das horas

“Todos estão mortos.

Morreu dona Antônia, a rouca, que fazia pão barato no burgo.
Morreu o padre Santiago, a quem prazia que o saudassem os jovens e as moças, respondendo-lhes indistintamente: “Bom dia, José! Bom dia, Maria!”

Morreu aquela jovem loura, Carlota, deixando um filhinho de poucos meses, que logo também morreu, oito dias depois da mãe.

Morreu minha tia Albina, que costumava cantar tempos e modos de herança, enquanto cosia pelos corredores, para Isidora, a criada de ofício, a honradíssima mulher.

Morreu um velho torto, seu nome nem lembro, mas dormia ao sol da manhã, sentado à porta do amolador da esquina.

Morreu Rayo, o cão de minha altura, ferido de uma bala perdida.

Morreu Lucas, meu cunhado na paz das cinturas, de quem me lembro quando chove e não resta ninguém em minha experiência.

Morreu em meu revólver minha mãe, em meu punho minha irmã e meu irmão em minha víscera sangrenta, os três ligados por um gênero triste de tristeza, no mês de Agosto de anos sucessivos.

Morreu o músico Méndez, alto e sempre bêbedo, que solfejava em seu clarinete toadas melancólicas, a cujo modulado adormeciam as galinhas de meu bairro, muito antes que o sol se fosse.

Morreu minha eternidade e a estou velando”.

Boa leitura.

O Editor.



Criatividade do ostracismo



* Por Pedro J. Bondaczuk



"A literatura brasileira, a exemplo do próprio país, passa por uma crise de criatividade", afirma-se, amiúde, com ares doutorais, em determinados círculos. Comenta-se, não apenas acerca das letras, mas também das artes plásticas, da música erudita e até da popular, que há hoje um vazio de qualidade.

Mas estaria de fato ocorrendo esta generalizada ausência de talento ou os críticos é que não estão conseguindo enxergar os bons trabalhos que se produzem por aí? Prefiro acreditar na segunda hipótese, diante da quantidade de originais de livros que me são encaminhados para apreciação e que acabam inéditos.

Há um preconceito indisfarçável contra o escritor novo. Ou contra aquele que se recusa a engessar seu talento com os modismos em voga entre pseudo-intelectuais.

Fala-se, freqüentemente, em modernidade, sem que ninguém defina com precisão o que venha a ser isto. A arte, todavia, quando autêntica, quando boa, quando praticada por artistas e não empulhadores, não é antiga e nem moderna. É atemporal. Adquire foros de eternidade.

As obras de William Shakespeare, por exemplo, mesmo se forem levados em conta a linguagem e o estilo de sua época, são lidas, relidas, pesquisadas e interpretadas todos os dias em várias partes do mundo. Caso fosse encarada pelo enfoque dos modismos, seria considerada absolutamente "demodé". Mas qual o intelectualóide que se atreveria a tanto?!

Dos originais que temos lido, em vários gêneros, como poesia, conto, novela e ensaio, a maioria é constituída por textos muito bons. Causa pasmo saber que os seus autores não conseguem editar esses trabalhos após estafantes e  frustradoras peregrinações pelas editoras.

Que não se diga, portanto, que a literatura e as artes em geral estejam em crise. Talvez esteja havendo, isto sim, excesso de arrogância por parte daqueles que são incumbidos de decidir se essas obras devem ou não vir a público. A argumentação para o veto da publicação de escritores jovens é sempre a mesma: o fator econômico.

Dizem os editores que, em virtude da crise e dos custos de produção, os lançamentos precisam ser muito criteriosos e que ninguém quer correr o risco de encalhes em prateleiras de livrarias. O argumento pode até ser válido. O que é inconsistente é a afirmação de "críticos" de que o País se encontra em um vácuo de criatividade.

Há, isto sim, autênticas "igrejinhas", fazendo com que as obras sejam selecionadas para publicação ou não por critérios que absolutamente fogem à sua qualidade artística.

Neste aspecto, os que mais sofrem são os poetas. É claro que no meio dos muito bons há os apenas razoáveis e uma infinidade de maus, senão péssimos "versejadores". Por isso, pesa uma espécie de anátema sobre a poesia contemporânea brasileira como um todo. Em geral, quem faz esse gênero de literatura e quer ver os trabalhos publicados, ou arca com os custos proibitivos de uma edição --- absolutamente inacessíveis para a maioria --- ou se contenta em mostrar seus versos em rodinhas de botequins.

Raros, raríssimos, conseguem furar a barreira das editoras para esbarrar mais adiante no preconceito dos críticos. Mesmo aqueles que, como Fedor Dostoievsky, entendem que "a missão da poesia é a de queimar com o verbo os corações".

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


Morre a bailarina Maria Ester Stocker


* Por Ronaldo Bressane


Vítima de câncer, a bailarina morreu no dia 24 de setembro (de 2006). Maria Ester foi casada com o cineasta José Agrippino de Paula (cujo livro PanAmérica inspirou Caetano Veloso na época do Tropicalismo) e, assim como ele, ajudou a contracultura nos anos 70 e 80. Stocker trabalhou também com a coreógrafa Maria Duschenes em sua trajetória pela dança moderna, especialidade de Duschenes.” (Folha de S.Paulo, 27 de setembro)

“A Maria Ester gosta de sair, passear por aí, ir a bares e teatros, se divertir, tomar sol na praia. Eu prefiro ir ao Amarelinho, conversar com o Jô Soares sobre literatura e jazz.” Bons tempos aqueles, sim, deviam ser. Tão bons que se colaram definitivamente ao prosear monolítico de Agrippino. Porque era isso, nesse tempo verbal, que ele contava pra gente, Joker e eu, quando o visitamos, uns quatro anos atrás, em sua casa no Embu. Sim: em pleno 2002 o autor de Lugar público e PanAmérica, pai fundador da Tropicália, a mesma do ministro Gil e do Cê, ainda permanecia com a fala entranhada no presente ano de 1970, quando ele e a bailarina Maria Ester Stockler formavam o casal de artistas paulistanos mais bonitos, enigmáticos e influentes do Rio de Janeiro.

Então, eu e o gerente do HellHotel pensávamos em escrever uma biografia de Agrippino. Entrevistamos várias pessoas, e o projeto, mesmo não abandonado, segue em forma de feto. Depois da entrevista com o panamericano – envolta em duas cassetes, que não verti ao papel até hoje –, conversamos com gente como Stênio Garcia (que estreou no teatro na mais revolucionária peça dos anos 1960, Rito do amor selvagem, de Agrippino), Gerald Thomas (que reconhece naquela peça, a que assistiu ainda adolescente, como fundadora de seu teatro multimidiático) e o jornalista contracultural Luiz Carlos Maciel. Era preciso falar com Maria Ester, mas não havia notícia de seu paradeiro – somente sabíamos que vivia em Paraty.

(Enquanto nossa entrevista com Agrippino fermenta em duas fitas, Terron apresenta sua memória do encontro em dois contos do livro Sonho interropido por guilhotina, a ser lançado 19 de outubro).

Na primeira Flip (2003), Joker e eu mandávamos uma Corisco em frente ao bar Toronto quando captamos o andar trôpego de um genérico do Agrippino, um barbudo cambaleando ali pelas pedras. Foi bem estranho. Quase no mesmo minuto, o intuitivo Joca orelhou a conversa de duas senhoras ao nosso lado – “Desculpe, mas a senhora falou em Maria Ester, é da Maria Ester Stocker que está falando?”. Era! “Sabe onde ela está?” Ela freqüentava um boteco ali perto, na rua do Sol. A tarde caía, pra lá fomos.

A ex-bailarina havia envelhecido bastante. Mesmo assim conservava certa altivez no porte e uma beleza antiga nos olhos verdes. No boteco, uns playboys cariocas tentavam emular, voz-flauta-violão-e-banquinhos, alguma bossanova que não viveram. Cantavam alto, mal ouvíamos os sussurros de Maria Ester. Esquisito: durante a conversa com Agrippino, a voz dele ia descendo, descendo, descendo, e Joca e eu quase caíamos hipnotizados, tentando acompanhar seu pensamento. No papo com sua ex-mulher, acontecia o mesmo – só que foi ela quem caiu no chão, escorregada do banquinho. Os playboys riram do tropico da famosa bailarina, ora virada em velha bêbada – que lhes lançou um olhar assustador.

E ela prosseguiu, por umas duas horas, contando sua vivência com o escritor. Os trabalhos em conjunto (como o famoso O planeta dos Mutantes, escrito por Agrippino e dirigido por ela, primeiro espetáculo multimídia brasileiro), as viagens, as drogas, o adeus à família rica (era herdeira da casa financeira Haspa), a casa maluca em que viviam no Pacaembu – onde certa vez a polícia deu uma violenta batida. O choque talvez tenha detonado o processo irreversível de esquizofrenia que levou Agrippino para longe da consciência: no ato ele quis sair do Brasil, sentindo-se perseguido. E então as viagens à África, a vida psicodélica na Bahia, os filmes perdidos da dupla de artistas que queriam trazer para o celulóide sua experiência com uma coreografia que se pretendia ponte entre vida e arte. Daí os surtos de Agrippino, suas fugas (era visto praticando yoga nu em Ipanema), as brigas, o nascimento da filha Manhã, o divórcio, a grana encurtando. E a morte de Manhã, num acidente automobilístico. Tempo depois, Maria Ester se estabelecia em Paraty.

“Agrippino nunca soube que Manhã morreu”, ela dizia, quando a levávamos a seu carro. “Talvez já nem saiba que ela nasceu um dia”, contava Maria Ester, os imensos olhos verdes enevoados em álcool. Havia algo de Agrippino naqueles olhos – algo que nem ele tem mais – mas também esse algo já se foi. “E assim vai passando uma época”, Joca comentava comigo. “E no jardim os urubus passeiam/ a tarde inteira entre os girassóis”, cantaria Caetano – aquele, de um outro tempo.


* Ronaldo Bressane é escritor (Céu de Lúcifer) e redator-chefe da revista Trip (www.trip.com.br); seu blog é o Impostor (impostor.wordpress.com).




Epígrafe


* Por Manuel Bandeira


Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria.

1917.


* Professor, poeta, cronista, crítico e historiador literário, membro da Academia Brasileira de Letras.
Em terras de Espanha


* Por Adair Dittrich


Desembarquei na estação ferroviária de Atocha, Madrid, Espanha, com a impressão de que o dia ainda não tinha acordado.

Multidões saindo de trens que chegavam, multidões entrando em trens que partiam, multidões na expectativa e eu ali tentando situar minha cabeça, procurando pelos pensamentos meus no emaranhado de neurônios onde eles se entrelaçavam.

Mesmo havendo dormido profundamente, ou pensado haver dormido profundamente durante o resto de viagem, durante o resto de noite, o sono não havia sido suficientemente reparador.

Não viajáramos em confortáveis leitos de um carro-dormitório. E embora estivéssemos apenas nós duas em uma cabine comum destinada a seis pessoas, o desconforto para dormir era imenso. Desconforto aumentado pelo climatizador do trem que deveria estar regulado para próximo de zero grau segundo o meu termômetro interior.

A algazarra cosmopolita envolveu-nos na plataforma da estação. Um dilúvio de idiomas jorrava ao nosso redor.

Língua diferente, moeda diferente, cultura diferente, música diferente, comida diferente e um diferente fuso horário … e a tudo se habituar em uma lenta transição.

Mesmo tendo estudado a língua espanhola, mesmo tendo dissecado, durante anos, inúmeros compêndios científicos em língua espanhola, o linguajar comum do povo, com seu vocabulário próprio, sua gíria, seus dialetos e seus sotaques tornaram-se um desafio após minha quase mal dormida noite.

Urgente era tudo naquela manhã.

Urgente era trocar alguns dólares e os escudos em papel moeda que sobraram por pesetas.

Urgente era irmos em busca de um café com leite e um pão com manteiga antes que a hipoglicemia se manifestasse.

E urgente era encontrar logo um hotel para um refrescante e revigorante banho e um breve repouso depois.

Foi rápido e fácil encontrar uma hosteria, local mais em conta para quem viaja com parcos recursos. Fácil e rápido. Fomos a uma banca de turismo onde já fizemos a reserva e onde já pagamos a diária. Onde um atencioso funcionário nos entrega um mapa da cidade explicando a localização de nosso destino, indicando o roteiro a seguir, qual metrô pegar e quantos metros a pé a percorrer.

E então, empurrando nossos carrinhos de viagem, com as malas sobre eles, fomos em direção à estação do metrô. Sim, malas acomodadas em carrinho, pois ainda não havia, entre nós, malas com rodinhas.

Ao chegarmos no exterior da monumental estação ferroviária de Atocha um deslumbramento nos surpreendeu. A sua imagem exterior, imensa, toda em ferro e vidro.

 E então, já refesteladas em nossa hosteria, pernas esticadas, chegada era a hora de estudar o mapa de Madrid. Que maravilha! O mapa nos dava todo o traçado a seguir, a pé, pelo centro da cidade, pela parte histórica, a Plaza Mayor e tudo mais e com explicações sobre o que havia para se ver.

Nosso primeiro destino, o Museu do Prado. Fiquei horas lá, a devorar, com os olhos, toda aquela magia de que as paredes se encontram impregnadas.

Olhar as telas de Velásquez de onde as mulheres pareciam eclodir num repente com suas saias voando em impressionante bailado. Dava para se ouvir o fru-fru das sedas esvoaçando. Dava para se ver o movimento dos longos vestidos, as finas rendas voluteando no ar


Muita arte de muitos artistas, de vários séculos, ali exposta, mas Velásquez é o que da minha memória não sai.

E o final do dia não poderia deixar de ser em outro local que não fosse a Plaza Mayor. A Plaza Mayor dos infindáveis espetáculos de música flamenca com seus sapateados e palmas, suas castanholas e seus dedilhados em guitarras plangentes, seus cantantes solando melodias que exalam sufocos da alma enchendo o ar de melancolia.

Ver as bailarinas salerosas rodopiarem suas enormes e multicoloridas saias rodadas com babados mil levantando multidões.

Conhecer o forte vinho espanhol que só consegui saborear mesmo em uma taça da famosa sangria, bebida tradicional daquela terra que somente ali, naquela noite, fiquei conhecendo.

No retorno ao hotel, em uma pequena praça encontramos Manuel e seu cavalete. Manuel, um artista plástico português que nos aborda, nos mostra seus trabalhos e pede para fazer nossos retratos.

E meu rosto cansado e insone ficou eternizado à creiom em uma branca folha de cartolina.

Posso não ter gostado da imagem que ali vislumbrei. Mas, o meticuloso trabalho do artista que, em instantes, no papel imprimiu, exatamente, a realidade de muitas horas de cansaço impregnadas em minha face foi algo surpreendente.


* Médica e escritora.


Flauta sem boca à procura de música


* Por Marco Vasques


ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia
da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco
morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo
para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa
para não comer o farnel das dores em outra mesa
sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo
e erguer um sanatório na tessitura da pele

agarra com os dentes a música durante o sono
porque a telegrafia dos sons dorme no antigo
retrato familiar onde o mutismo irônico da face
revela o mutuário parentesco em moratória
e no sorriso ancestral mais uma música perdida
porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade


na minha cama o desejo messiânico sufoca
a passagem do dia e o reinado dos lençóis
na isquemia absoluta de qualquer hedonismo
reduz a imagem da valsa dos corpos
à paralisia do timbre de uma voz que não ouço
de um corpo congelado que não reencontro
de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne
de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo
de um braço amputado que se debate numa tela de Modigliani
 [e que nunca foi pintado


na minha carne o desejo messiânico sufoca
a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos
daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum qualquer

e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos
a soarem nos nossos ouvidos
flauta sem boca à procura de música.

(2007, inédito)


* Poeta e bacharel em Filosofia

sábado, 30 de janeiro de 2016

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, nove meses e trinta e um dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Amor anda de mãos dadas com o temor.

Coluna Direto do Arquivo – Risomar Fasanaro, conto, “A menina e Deus”.

Coluna Clássicos – Machado de Assis, conto, “Cantiga de esponsais”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “Delírio azul”.

Coluna Porta Aberta – Tali Feld Gleiser, trecho de livro, “O muro de Belém”.

Coluna Porta Aberta – Yeda Prates Bernis, poema, “Diamantina”.

@@@

Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Amor anda de mãos dadas com o temor


O amor e o temor andam juntos? Entendo que sim, mesmo que não identifiquemos os medos que o acompanham, mas que nem por isso deixam de estar presentes. Diria, onipresentes. Tememos, quando amamos, por exemplo, não sermos correspondidos pela amada, por maiores demonstrações em contrário que ela nos dê. Nutrimos receio de que algo em nossa aparência, ou em nossa conduta, ou em nossa vida, ou sabe-se lá mais no quê, não seja apreciado por ela. E os temores se multiplicam, antes, durante e mesmo no pós-relacionamento amoroso. Aliás, nem mesmo sou o autor dessa constatação. Li-a, há algum tempo, meditei a propósito e não tive como discordar.

Quem escreveu isso, e há quatro séculos, foi um dos ocasionais e um tanto raros gênios da Literatura que a humanidade já produziu. Foi o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, cujo quarto centenário de morte irá se completar em 23 de abril deste ano de 2016. Curiosamente, ele morreu no mesmo dia, mês e ano que outro consagrado (e polêmico) ícone literário de todos os tempos. Refiro-me ao poeta, dramaturgo e ator inglês William Shakespeare. Se bobear, ambos morreram, até, na mesma hora (embora essa suposição seja somente minha, sem nenhuma base em fatos ou mesmo em evidências), sabe-se lá.

A afirmação exata de Cervantes a propósito foi esta: “Andam o amor e o temor tão unidos que, para onde quer que voltes o rosto, vê-los-eis juntos. E o amor não é soberbo, como alguns dizem, mas é humilde, agradável e manso. Tanto que costuma perder aquilo a que tem direito para não dar desgosto a quem quer bem”. Essas palavras constam do livro que Cervantes considerou sua obra-prima. Se vocês estão pensando em “Dom Quixote de La Mancha” (cujo título verdadeiro é “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha”) se enganaram. Embora se trate da obra que o consagrou e imortalizou na literatura mundial, o escritor espanhol não tinha, lá, grande apreço por ela. Tanto que levou quase dez anos para publicar a segunda parte e quase desistiu dessa continuação.

O livro pelo qual Miguel de Cervantes tinha maior apreço, que considerou, até o dia da sua morte, sua obra-prima, é o romance “Os trabalhos de Persiles e Sigismunda”. O irônico é que ele nem mesmo testemunhou sua publicação. Esse “romance bizantino”, como foi classificado na época, foi publicado em 1617, um ano após a morte do autor. O livro teve espetacular acolhida. Prova que foram impressas seis edições quase simultâneas, lançadas praticamente juntas em seis diferentes e importantes praças da Europa: Madri, Barcelona, Lisboa, Valência, Pamplona e Paris. Fico me perguntando: o que deu errado, o que aconteceu de fato com esse romance para que fosse esquecido quase que por completo, em reles par de anos, a tal ponto de ás vezes sequer ser mencionado quando as pessoas citam a obra de Cervantes? Vá se saber!

Coisa parecida com esta acontece, volta e meia, com muitos escritores. Aconteceu comigo. Nem sempre os livros que consideramos “perfeitos” (ou quase) têm boa receptividade por parte da crítica e, sobretudo, dos leitores, que preferem outras obras nossas (quando preferem, claro), justamente aquelas a que não damos a mesma importância. Talvez já tenha ocorrido o mesmo com você, caríssimo escritor, que me dá a honra da sua leitura. E nem precisam ser livros. Há dias, por exemplo, que escrevo crônicas “redondinhas”, que as pessoas ao meu redor consideram geniais, nas quais não detecto a menor falha, escritas com sentimento e paixão e... quando as divulgo nos vários espaços de divulgação que disponho, não geram o menor efeito. Passam batidas, quando não são criticadas exatamente por aquilo que considero sua maior virtude: por “falta de emoção”. Claro que é frustrante, mas...

Os “Trabalhos de Persiles e Sigismunda” é uma bela história de amor. Emocionei-me com sua leitura. Narra as peripécias de um príncipe e de uma princesa nórdicos, apaixonados, que decidem se casar, mas em Roma, para onde partem do Norte da Europa. Ambos fazem-se passar por irmãos. Ela veste-se de homem, para evitar alguns perigos a que as mulheres estavam submetidas na época. Os dois cruzam mares, repletos de ilhas, até chegarem a Lisboa. Da capital portuguesa, seguem a pé, em direção à Cidade Eterna, tendo que superar obstáculos mil. Seus nomes de batismo são Periandro e Auristela (que só após atingirem o objetivo, ou seja, depois do matrimônio cristão, e em uma igreja de Roma, mudam para Persiles e Sigismunda). Cervantes nos apresenta, além dos dois apaixonados protagonistas, grande número de personagens, alguns até bastante exóticos, que nos chamam a atenção. Sua pretensão, com esse livro, foi criar, para a narrativa espanhola, um modelo de romance grego de aventuras adaptado a uma visão de mundo católica.

O romance durou catorze anos para ser escrito e acabado e teve duas etapas de redação. A primeira foi entre 1599, quando iniciou a escrita, e 1600, quando interrompeu os trabalhos. Levou nove anos para retomá-lo, o que fez em 1609, completando-o em 1613, embora depois disso ainda fizesse alguns retoques. Como se vê, foi um livro pensado, refletido, “esmerilhado” e impregnado de muito realismo, característica que os críticos sempre destacaram na obra de Cervantes. O escritor tinha verdadeira obsessão pela verossimilhança, mesmo quando lançava mão do fantástico, o que era bastante frequente. Veja-se como Dom Quixote tratava moinhos de vento: como gigantes que tinha que vencer. Em suma, fico com a conclusão desse gênio, sobre o amor, com que iniciei estas reflexões. A de que esse magno sentimento anda, sempre, de mãos dadas com o temor. E não anda?!!

Boa leitura.


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk                     
A Menina e Deus



* Por Risomar Fasanaro



A mãe estava debruçada sobre a máquina Singer, costurando. Tinha alguns vestidos para entregar e nos últimos dias ficava até a madrugada para dar conta das entregas. A casa ficava entregue a Marinete, a empregada doméstica. Envolta em seus pensamentos, a mãe não se deu conta quando a menina, chegando bem perto dela disse em tom de segredo: “mamãe, eu descobri uma coisa...”

Ainda absorta em seus pensamentos, ela não ouviu, por isso a menina chegou bem perto do seu ouvido e repetiu: “eu descobri uma coisa...” A mãe então se deu conta da presença da pirralha:
- Descobriu o quê? Não me venha com mentiras, que senão dou-lhe umas palmadas...
- Não, mamãe, é uma coisa que ninguém sabe...
- O que é? Diga logo que tenho muito trabalho, ainda tenho três vestidos pra entregar  até o final da semana. E se for fofoca, já sabe, vai ficar de castigo. Vá dizendo logo!...
- Mamãe,  eu descobri que Deus não existe!

A mãe largou a costura e virou-se para ela com os olhos arregalados:
- O quê???! O que foi que você disse?!
- Eu disse que Deus não existe.
- Onde foi que você ouviu isso, menina desnaturada?
- Eu não ouvi, mamãe, eu descobri.
- Descobriu onde? Está ficando doida pra dizer um absurdo desse? 

A menina sentiu uma onda de felicidade invadindo-a. A mãe largara as costuras para  dar atenção às suas palavras, às suas descobertas. Então aquilo era realmente alguma coisa muito, muito importante.

A mãe levantou-se e, muito irritada, disse:
- Nunca mais repita isso, ouviu bem? Nunca mais! E responda: por que você está dizendo essas coisas? Com quem você está andando que está lhe botando a perder?
- Com ninguém, mamãe. Eu sei que Ele não existe. Porque se Ele existisse me dava uma bicicleta.
- Mas era só o que me faltava! Eu não tenho paciência pra ouvir uma asneira dessas. Marinete! me traz um copo d’água.

Ela notou que a mãe estava realmente muito abalada com suas palavras. Tomou calmamente a água, olhando-a fixamente.
- Essa menina tem uns mistérios que não são pra idade dela. A empregada ouviu e comentou: “será que ela não ouviu alguém dizer isso, dona  Januária?” E ouviu a mãe dizer baixinho, cochichando com a empregada, pensando que ela não ouviria:
- Não...essas coisas são dela mesma. Essa menina é cheia de cavilação. Você não vê com o que ela brinca? Ela não brinca com boneca, não brinca de comidinha, de casinha....ela é diferente...As brincadeiras dela são com gafanhoto...com sabugo de milho...Você não vê ela formando batalhões de gafanhotos? Brinca com cigarra, com caroços de jaca...

Virou-se outra vez , agora irritada, e disse à  filha:
- E nunca mais repita isso. Deus pode lhe castigar! Vá já brincar no quintal antes que lhe dê uma surra!

E continuou baixinho, como se pensasse alto:
- Era só o que me faltava...Uma filha comunista!!!

Tudo começara no dia que, embaixo da mangueira que havia no quintal, ela  tentava descobrir qual era a forma correta de pegar uma lagarta sem se queimar. Descobriu que bastava pegá-la com cuidado pelos pêlos. O que queimava era a barriga da lagarta. Depois achou um casulo. Pegou-o cuidadosamente entre as mãos e viu que a borboleta estava começando a rompê-lo. Olhou-o demoradamente, sentindo todas suas reentrâncias e de repente lhe veio um pensamento. Sim, era aquilo! Descobrira!

Levantou-se correndo soltando o casulo,  e correu para a mãe que naquele instante, como em todos os instantes em que sua infância precisou dela, estava debruçada sobre a máquina Singer, costurando vestidos para aquelas mulheres grã-finas, que podiam comprar cinco, dez, bicicletas para seus filhos se quisessem.

Depois da revelação do seu  segredo à mãe, a menina voltou pra debaixo da mangueira  e a lagarta já não se encontrava mais ali. Nem o casulo. Procurou, procurou, mas não os encontrou. Foi pra debaixo do pé de jurubeba e começou a formar um batalhão com os  gafanhotos. Que bonitos que eles eram... Iguaizinhos aos soldados enfileirados de manhã, no campo de futebol, em frente à sua casa. Continuou pensando na existência de Deus. Quer dizer que se Ele existe mesmo, além de não dar nada que se pede, ainda castiga a gente?

Aquela certeza começara pequenininha, quase invisível: do tamainho de uma semente de maria-sem-vergonha, que ela plantava no jardim e aos poucos ia crescendo, crescendo, até que não agüentava mais e aí explodia e de lá saía o rebento, uma pontinha de nada branca que aos poucos se tornava verdinha e subia pela terra, crescendo, tomando forma de folha, de caule e logo estava coberta de flores. Pois tinha sido assim a sua  dúvida. Nascera ali, escondida dentro dela, no escuro do seu serzinho  menino, sem que ninguém visse; e de repente ela sentiu que vinha crescendo, crescendo, tomando seu peito, inundando sua alma. Não dava mais pra esconder. Era preciso contar a alguém aquela coisa tão grande, tão importante que brotara dentro de si. E escolhera a mãe, a pessoa mais importante da sua vida para a ela revelar sua descoberta.

Lembrou dos tantos dias e noites em que, ajoelhada, rezava pedindo a Deus que lhe desse uma bicicleta. Estava cansada de esmolar uma volta, uma voltinha só às  filhas do capitão. O pai delas havia adquirido uma para cada filha.

Os dias se passavam e o pai não comprava. Ela lembrava-o, pedia e eram sempre as mesmas respostas: não posso, não tenho dinheiro...Mas e o pai de fulana? Ele além de ser capitão, só tem duas  filhas, eu sou sargento e tenho quatro, era a resposta do pai. Só posso comprar uma bicicleta pra você quando Getúlio der um aumento. Mas e as orações? E os pedidos que fazia a Deus, isso não resolvia? Decididamente, Ele não existia, concluiu. E se existia, não tinha poder. Quem tinha poder, quem decidia se a gente podia ou não ter alguma coisa era aquele homem do retrato pendurado na parede, com uma gravata feita com a bandeira brasileira.

Ah... Então essa era mais uma razão para não acreditar nas aulas de catecismo. O padre tinha dito que  Deus era o Todo Poderoso criador do céu e da Terra, mas na verdade  era aquele homem do retrato quem decidia se ela iria ganhar ou não uma bicicleta.
-Quem é Getúlio, papai?
-Getúlio é o presidente.
-E o que é presidente?
-É o homem que governa o país.
-Ahan...então governo não presta, não é papai?

O pai se assombrou com as idéias da filha. Onde ela andava aprendendo tudo aquilo? Ontem não acreditava em Deus, hoje achava que governo não prestava. Decididamente ele, um sargento do exército, morando em uma vila militar  onde  muito raramente entrava um civil, estava criando uma filha anarquista.

Realmente havia muita coisa no mundo que ela não entendia. Não encontrou a lagarta nem o casulo, mas achou uma cigarra no tronco da mangueira. Pegou a cigarra e começou a procurar pra descobrir de onde vinha o canto. Aquietou-se e procurou entender a existência de Deus. Sim, pode ser que Ele exista, pensou.

Por que as pessoas grandes não contam à gente o que elas sabem? Por que  mamãe não conta o que havia antes de haver o mundo? Se Deus existia, onde Ele estava antes de criar o mundo? E se criou tudo isso que existe, por que não lhe dava a bicicleta? Se existisse  e não lhe dava, é porque queria  lhe castigar. Mas castigar por quê? Porque ela não sabia a tabuada  de multiplicar  do  oito e  do  nove?  Mas se Ele existe,  isso não é coisa de Deus. O padre tinha lido direto do Catecismo: “quem é Deus? Deus é um Ser perfeitíssimo, criador do céu e da terra.” Ora, um ser perfeitíssimo não a castigaria porque não sabia as tabuadas do oito e do nove...

Ah... tinha tirado os sapatos e andado na lama. Seria por isso? Mas Deus teria tempo a perder olhando as meninas que andam descalças? Ora, esse Deus não combinava com o que o padre tinha ensinado. Além do mais, procurava ser uma menina tão piedosa. Ia aos terços de maio todas as noites, era uma das escolhidas para levar flores ao altar de Nossa Senhora... Nada disso valia?

Mas...se fosse mesmo o homem da gravata com a bandeira brasileira que mandava, conforme o pai havia dito, então Deus ou não existia ou não mandava mesmo. Era aquele tal de Getúlio quem decidia tudo. Era muito melhor a gente não ter governo. 

Quando voltava da escola, ouvia os soldados comentando: que meninas bonitas, já pensou quando crescerem? Mas a ela não interessava ser bonita. Só muitos anos mais tarde descobriria quantas portas a beleza abria. Via na revista “O Cruzeiro” do que a beleza era capaz. As atrizes de cinema – todas, todas – eram bonitas. Mas a ela aquilo não interessava. O que queria era a sua bicicleta. Será que se ela fosse bonita ganharia a bicicleta?

A mãe dissera que Deus não se ocupava com ninharias. Só se preocupava com coisas grandes.
-Que coisas grandes, mamãe?
-A guerra, por exemplo. Deus se preocupa com o que acontece com as pessoas que vivem na guerra. Que estão morrendo... Deus se preocupa com os que estão doentes nos hospitais...Com quem passa fome...Não vai se preocupar com coisas pequenas, com ninharias...

Ora, se Ele se preocupava com aquelas coisas, por que as guerras continuavam, as pessoas passavam fome... os hospitais estavam cheios de gente doente? Por que ele não resolvia tudo aquilo? E se a bicicleta era ninharia, porque Ele que era Todo Poderoso não lhe dava uma? Não era mais fácil atender às ninharias do que às coisas grandes? Foi o que se perguntou,  quando se sentou de novo embaixo da mangueira.

O paraíso de que o padre falava devia ser igual a Vila de Socorro. Era como se todo o resto do mundo fosse feito de escuridão, e ali, só  ali houvesse luz,  somente  ali habitasse a felicidade. O chão de barro vermelho, as árvores, o rio... Quando de lá se afastava, para passar uns dias na casa dos padrinhos em Areias, era como se tivesse saído da luz e mergulhasse na escuridão.

A casa dos padrinhos tinha um longo e escuro corredor, e a madrinha vivia reclamando de doenças. Toda semana ia ao médico. Ela e o irmão que já havia alguns anos morava com a madrinha, aproveitavam quando ela saía para ficarem sentados na janela cantando, vendo os trens que passavam. Ela gostava de ouvi-lo cantar “guriatã de coqueiro/ fugiu de sua gaiola/guriatã de coqueiro bateu asas e foi embora...”

Quando a madrinha apontava do outro lado da linha do trem, os dois saíam da janela e fingiam que estavam lendo, pra não levar bronca. Ficavam ali, naquele ambiente em penumbra, com  as  janelas apenas semiabertas. Uma casa sem cor, sem alegria.

Dias depois, quando voltava à casa dos pais, já no trem vislumbrava a claridão da Vila de Socorro. Ali podia andar descalça, escondida da mãe, sair na chuva e enfiar os pés na lama vermelha, na estrada que dava pra ponte do seu Alderico. Passar debaixo da cajazeira, que de tão grande parecia se debruçar sobre a estrada, para espiar as pessoas que por lá passavam. Ali tudo era luz, tudo era dia de festa.

Em Socorro não precisava almoçar. O bom mesmo era comer frutas. Quando crescesse só comeria frutas. Achava uma delícia comer jaca, sentir o brilho do néctar derretendo na boca, o gosto do caju, os fiapos de manga entrando nos dentes, os araçás da beira da estrada... Não, decididamente, só queria comer frutas.

A professora contara a história de uns monges que se alimentavam só com frutas. Eram homens santos, dissera. Pronto, descobrira: queria ser santa pra se alimentar só com frutas...
- Mamãe, eu quero ser santa.
- De onde vem essa novidade agora?
- É que nunca mais vou precisar comer arroz nem feijão, nem carne. Vou comer só frutas.
- Ah, é? E como é que a santa vai explicar a Deus que não acredita n’Ele?

Desistiu de ser santa. Passou a jogar o almoço no lixo. Fazia isso aos poucos, para  a mãe não desconfiar. Cada vez que chegava perto dela, a mãe notava que havia menos comida e, assim, pensava que ela estava comendo. O pão, ela atirava atrás dos móveis, Marinete, sua cúmplice, não contava nada, pegava o pão e jogava no lixo.

A mãe ficava verdadeiramente enfurecida com aquela menina estranha que só queria tomar café em canecos “de louça bem fininha, mamãe... a senhora compra pra mim?” Ela não sabia ainda a diferença entre porcelana e louça comum, das xícaras em que os irmãos tomavam café com leite sem reclamar.  Agora se achava, aos oito anos, com o direito de dizer que detestava leite. E se a forçassem, vomitava. A mãe desistira de contrariá-la.

Essa menina parece que é feita de alfenim, cheia de não-me-toques. Não era. Gostava de andar descalça, enfiar o pé na lama vermelha do barro da estrada,  de ficar no meio das meninas e moças que dançavam Pastoril. Gostava de ver as mulheres fazendo renda de bilro nos longos quintais de terra batida, varridos com vassouras de capim verdinho. Gostava de ficar sentadnha ali, ao lado de dona Maria benzedeira... Até aprendera toda a reza, e em casa com três folhas de pinhão benzia o cachorro, as galinhas...

A mãe não queria que andasse descalça. O pai saía de Socorro e ia até a feira de Jaboatão comprar alpercatas de couro cru pra ela e a irmã calçarem no dia a dia. Mas a mãe vivia debruçada na máquina de costura, não via nada do que ela e os irmãos faziam...

O sol começava a ficar menos forte. Levantou-se e foi pra casa. Tomou banho e sentou-se nos degraus da varanda, pra chupar uma manga.

Algum tempo depois, viu o pai que voltava do quartel, com um embrulhinho nas mãos. Atravessava a ponte sobre o rio Jaboatão que ligava a vila dos oficiais à dos sargentos ao mesmo tempo que separava as crianças que tinham os brinquedos que quisessem das que não tinham. Foi correndo ao encontro dele.
-Papai, a gente pode escrever pro presidente?
-Sim, pode sim.
-E ele lê?
-Bom, isso eu não garanto.
- Se eu escrever uma carta pra ele, o Sr. bota no correio?
- Boto sim. Mas você já sabe escrever carta?
-Sei sim, dona Cândida ensinou a gente. Eu até escrevi uma carta pra Doroty Lamour.
-Foi mesmo? E o que você escreveu pra ela?
- Ah... eu pedi a ela que se tivesse algum daqueles sarongs  que ela usa nos filmes, e que não quisesse mais, que mandasse pra mim...
- E você acha que ela vai mandar?
- Não, papai, a gente não pôs a carta no correio. A professora disse que era só pra gente aprender a escrever carta... Mas a que vou escrever pro presidente eu quero que o  Sr. coloque no correio. O Sr. coloca?
- E o que você vai dizer ao presidente?

A menina não ouviu a pergunta do pai. Uma borboleta amarela passou voando e ela, com o vestido todo sujo dos respingos de manga,  saiu correndo atrás da borboleta como se pudesse, com seus braços, agarrar  Deus.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. .