quinta-feira, 31 de maio de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Equilíbrio adviria da espionagem.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Para o resto da vida”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica,“Revanche dos suicidas”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Mundo Livre, Ltdo”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, microcontos “Namorados”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema “Pés”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Equilíbrio adviria da espionagem

O complexo de pesquisas nucleares russo localizado na bucólica cidadezinha de Sarov que, embora tenha sido “rebatizado”, continua conhecido pelo nome original, ou seja, Arzamas-16, é o maior e mais importante da Rússia. Claro que não é o único. Há vários outros espalhados pelo vasto território desse país gigantesco. Para alguns, rivaliza com seu congênere norte-americano, que é um pouco mais antigo, o Laboratório Nacional de Los Álamos, no Estado do Novo México.

Embora uma comparação entre ambos, principalmente ao leigo, seja até impossível de se estabelecer, por causa da natureza secreta dos dados referentes a ambos, não creio na equivalência deles, quer em termos de métodos, quer de modernidade ou quer de tecnologia. Suponho que o centro de pesquisas dos Estados Unidos esteja muito à frente, no cômputo geral. É até possível, se não provável, que Arzamas-16 detenha a dianteira em um ou outro aspecto particular. Todavia, no geral, entendo que há uma disparidade enorme entre esses dois complexos nucleares, com vantagens óbvias para o norte-americano.

A pergunta que se impõe é: o que levou Josep Stalin a fazer um investimento desse porte, numa União Soviética em escombros após o término da Segunda Guerra Mundial e não em outros setores mais prioritários, de retorno garantido em termos econômicos, como, por exemplo, em centros de pesquisa agrícolas, ou de tecnologia industrial, ou de comunicações etc.? É certo que a maior parte das instalações foi construída com mão de obra escrava, de prisioneiros políticos, portanto sem custos. Ainda assim, o investimento, certamente, não foi dos menores, num país em que escasseavam capitais. Bem, é aí que entra a tal doutrina do “equilíbrio do terror”, que abordei em texto anterior.

Em 16 de julho de 1945, às 5 horas, 29 minutos e 45 segundos da manhã, uma bola de fogo gigantesca iluminou os céus de Trinity, localidade desértica do Novo México, erguendo para o espaço um cogumelo de milhares de metros de altura. Os seres humanos, naquele instante fatídico, acabavam de abrir a “Caixa de Pandora”, aquele recipiente que na mitologia antiga guardava, em seu interior, todos os bens e todos os males da Terra. Só que, neste caso, havia, somente, estes últimos. Em 16 de julho de 1945 era testada, com sucesso, a primeira bomba atômica do mundo. E ela era dos Estados Unidos. Portanto, havia a necessidade de equilibrar as coisas, para que a parte detentora dessa superarma não se visse tentada a utilizá-la sempre que se julgasse ameaçada.

A tentativa de obter esse equilíbrio possivelmente foi a principal motivação para Josep Stalin investir o que tinha e o que não tinha em Arzamas-16. Diz-se que a bomba atômica soviética não foi fruto das pesquisas dos seus cientistas. O segredo da arma teria sido repassado por um dos membros do Projeto Manhattan. Aliás, o casal Rosemberg (Julius e Ethel Rosemberg) foi julgado, condenado à morte e executado nos Estados Unidos por suposta espionagem em favor da URSS. Mas, se Arzamas-16, ou outro complexo semelhante, não existisse, não haveria como os soviéticos construírem e testarem sua bomba.

O relacionamento entre as nações, especialmente as que mantêm um antagonismo entre si (quer de caráter ideológico, quer militar ou econômico) é feito, há séculos, em dois planos. Um oficial, diplomático e normal, fartamente divulgado e que deveria ser o único caminho para a discussão e busca de solução das desavenças. Outro, subreptício, ilegal e encoberto, traduzido por espionagem, apoio a facções internas que se opõem ao regime vigente no país desafeto, e outras formas até mais imorais e condenáveis. Dado o seu caráter nada ortodoxo, este último procedimento raramente vem a público. Não, pelo menos, de forma oficial, embora todos saibam que ele existe.

A espionagem, quer em tempos de paz, quer nos de guerra, é uma das atividades mais desenvolvidas e concorridas entre países adversários (e até entre aliados) e, também, das mais antigas. Em 1480 AC, por exemplo, quando os hebreus estavam às portas de Canaã, após uma peregrinação, de 40 anos, por desertos, Josué levou, a mando de Moisés, um grupo de 11 espiões para a terra que manava leite e mel, para conhecer as fraquezas e pontos fortes dos povos que então a habitavam.

Em 344 AC, Alexandre, o Magno, inaugurava nova forma de espionar adversários: interceptando sua correspondência. E em 878 de nossa era, o rei Alfredo, o Grande, resolveu, ele próprio, agir como espião. Disfarçou-se de menestrel e vagou, livremente, pelos acampamentos militares dinamarqueses, observando tudo o que podia da força do inimigo. Esse seu ousado ato valeu aos ingleses a vitória na batalha de Edington, poupando muitas vidas de seus súditos.

Hoje, mais do que nunca, se espiona de todas as formas. E, para esse fim, os serviços secretos dos principais países usam de tudo. Desde ultra-sofisticados aparelhos eletrônicos, que a maior parte das pessoas desconhece que até já tenham sido inventados, a redes de corrupção, explorando fraquezas humanas, como a prostituição, o homossexualismo e o vício de drogas. Tudo é válido nessa guerra suja, movida nas sombras. Melhor diríamos, que acontece nos esgotos da sociedade.

Exímios novelistas têm feito fortunas usando como temas para suas histórias ações mirabolantes, desenvolvidas no campo da espionagem internacional. Filmes, tendo tais assuntos por tema, esgotam bilheterias e prendem as pessoas junto às telas de televisão. E as artimanhas utilizadas pelos espiões da ficção são de tal ordem, que ninguém acredita serem sequer próximas da verossimilhança. Quem pensa assim, todavia, se engana.

Na maior parte das vezes, a realidade, com as inconfessáveis motivações que a escudam, é infinitamente mais aética e criminosa do que a imaginação dos mais maquiavélicos dos novelistas pode conceber. Basta, por exemplo, uma rápida passagem de olhos no noticiário do dia a dia, e se ler da maneira correta nas entrelinhas, para se perceber a manifesta ilegalidade da qual se valem respeitáveis governos para obter informações que lhes interessam ou para subverter situações, criando fatos políticos que as beneficiem.

A ação dos espiões, todavia, reitero, não é um fato recente, nem restrito apenas ao pós-guerra. Diríamos que é algo que pontilha a História universal, desde quando os homens começaram a se agrupar em países, com realidades, costumes e motivações diversos. Nunca faltaram, no correr dos séculos, celerados que colocaram a cobiça, a ganância e mesquinhos interesses pessoais (sempre transitórios e efêmeros) acima dos coletivos. Os anais de quase todas as civilizações registram seus traidores, seus oportunistas e seus quintas colunas.

Entre a visão romântica, que todos temos, do relacionamento internacional e a realidade dos fatos, vai distância imensa. Uma comunidade mundial, baseada apenas no Direito e na ética, é um ideal que beira as raias da utopia. Vez ou outra, alguém comete uma falha e para que todo o esquema não seja desnudado à luz da opinião pública, o elo fraco da corrente de ilegalidades é sacrificado, para que o status quo possa ser mantido.

Freqüentemente, alguns tentam justificar essas mazelas, dando a entender que os “fins justificam os meios”. Para que alguns “iluminados” testem alguma idéia elucubrada num instante de ócio, não importa que uma, cinco, dez, cem ou mil vidas sejam ceifadas. Ou, quem sabe, uma cidade como Hiroshima. Talvez, até mesmo, um país. Que importam as pessoas para esses paranóicos, que se arrogam em deuses, em senhores dos destinos de seus semelhantes? A lei? Ora, a lei... Voltarei ao tema.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Para o resto da vida

* Por Pedro J. Bondaczuk

O vigor de determinada sociedade depende, em grande parte, da faixa etária predominante no poder. Se a maioria é moça, abundam idéias inovadoras e revolucionárias, contudo, nem sempre há bom-senso nas ações. Os líderes jovens confundem, não raro, coragem com temeridade.

Se o predomínio é o das pessoas maduras, a sociedade se importa mais com o progresso material do que espiritual e a busca por status, riqueza e poder quase sempre se transforma em competição feroz, selvagem e sem piedade para com os vencidos, em detrimento dos ideais.

Finalmente, se o poder estiver nas mãos dos idosos, a característica é o conservadorismo, o que, em geral, resulta em estagnação. O ideal é que haja uma distribuição equilibrada e racional entre as várias faixas etárias. As sociedades que conseguem esse equilíbrio, têm, simultaneamente, o idealismo dos jovens, a capacidade de realização dos maduros e o respeito pelas tradições dos idosos.

Quem é mais importante para o mundo, para o equilíbrio social e o progresso dos povos: o moço ou a pessoa que já passou dos 65 anos? No meu critério de avaliação, ambos. Não por acaso, a natureza, em sua eterna sabedoria, permite a existência simultânea tanto de um, quanto do outro.

A juventude caracteriza-se, lembremos, pela força, pelo vigor, pelo idealismo e entusiasmo. É a força propulsora do progresso de toda e qualquer sociedade. Todavia, carece de algo essencial: o bom-senso, a capacidade de análise, o planejamento meticuloso e racional e, sobretudo, a experiência, que só se adquire com o muito viver.

Já o idoso é, como se sabe de sobejo, vulnerável em termos físicos. Não se pode exigir dele força, já que esta lhe mingua, inexoravelmente, com o passar dos anos. Seu papel ideal nas sociedades, portanto, é o de guia, de orientador, de moderador do entusiasmo dos jovens, direcionando-o para o foco correto. Como se observa, mesmo que as partes não admitam, um precisa do outro.. Enquanto o idoso ilumina o caminho que ambos seguem, o moço aquece os dois com as chamas da sua paixão.

A partir de determinada idade (que varia de pessoa para pessoa, de acordo com seus hábitos e sua realidade de vida), aparecem determinados sintomas que nos alertam que estamos envelhecendo. Isso, todavia, não precisa ser motivo para pânico. Se quisermos chegar, digamos, aos cem anos, vigorosos e produtivos, devemos adotar determinadas cautelas que, aliás, sequer são difíceis de serem adotadas.

Uma delas, por exemplo, (que reputo fundamental) é não querer realizar façanhas físicas que realizávamos quando tínhamos, digamos, trinta anos, inclusive para evitar acidentes que, quando não são fatais, tendem a ser incapacitantes. Precisamos rever determinados hábitos e cortar, sem hesitação, os nitidamente nocivos. Devemos manter a mente sempre ativa, o corpo em atividade compatível com a idade e não perder o interesse no mundo.

Como se vê, o envelhecimento não é, necessariamente, tragédia, se utilizarmos a nosso favor nosso grande e principal trunfo: a experiência. E quando uma pessoa pode ser considerada “velha” (sem levar em conta o sentido pejorativo que esta palavra sugere)? Ao completar 65 anos, tomados como referência para caracterizar o que se convencionou chamar de “terceira idade”? Aos 70? Aos 75? Aos 80? Aos 90?

Oponho-me a essas preconceituosas convenções. Ficamos “velhos”, apenas, quando nos sentimos dessa forma, não importa se aos 18, aos 40, aos 50 ou aos 100 anos. São vários os casos de pessoas centenárias que, contrariando toda a lógica, chegaram a essa fase da existência vigorosas, entusiasmadas e produtivas.

Em contrapartida, há muitos moços, de 25 anos ou menos, que já não vêem sentido e perspectiva para as suas vidas e se entregam ao tédio, à preguiça e ao desalento, quando não buscam uma fuga no álcool ou nas drogas.

Raras são as pessoas que têm a exata noção da importância de cada etapa da vida pela qual poderão passar (muitas não passam, pois morrem prematuramente, em plena “flor da idade”). A criança, por exemplo, aprende a respeitar os mais velhos, mas nem sempre o faz, encarando o idoso com desprezo e um certo desdém, embora não manifeste esse comportamento para não ser castigada pelo adulto.

O jovem, então, assume a atitude de quem tudo sabe e tudo pode, sem se lembrar que a juventude não é eterna e que, quando menos esperar, estará igual, ou pior do que aqueles aos quais menospreza. E as pessoas de maior idade, em vez de se colocarem em seus devidos lugares, tentam imitar os adolescentes nas roupas, nas falas e nas atitudes e, sem que se apercebam, se infantilizam e se tornam ridículas.

Se a morte não nos colher antes, de maneira prematura, porém, todos passaremos pelas três etapas, pelas três estações, pelas três condições da vida. Millôr Fernandes, com seu humor inteligente, sadio e, no entanto, crítico na medida certa, escreveu o seguinte a respeito: “A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice, sim: quando um cara fica velho é para o resto da vida”. Há qualquer dúvida a respeito?

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Revanche dos suicidas


* Por Marcelo Sguassábia


Assis Valente, aquele gênio nem sempre lembrado da MPB, era o ídolo e a inspiração deles. Tinha um quadro em lugar de destaque na sede da associação, da qual era patrono oficial.

Para quem não sabe, Assis Valente tentou suicídio em 1941, saltando do morro do Corcovado. Na queda, quicou na copa de uma árvore, frondosa o suficiente para amortecê-lo e livrá-lo do sono eterno. O ex-futuro morto teve que administrar o próprio chabu, que rendeu-lhe não mais que umas costelas quebradas. Foi um caso único no até então 100% fatal cartão postal do Rio. Não bastasse ser uma figura conhecida na cena carioca de sua época, ganhou as páginas dos jornais no dia seguinte como o único sujeito a escapar da morte pulando do famoso morro. Viveu mais algum tempo, o suficiente para legar à humanidade mais algumas dezenas de obras-primas. Após nova empreitada cortando os pulsos, igualmente fracassada, partiu para a terceira tentativa em 1958 - esta certeira, ao pôr do sol na Praia do Russel, se contorcendo sob o efeito de um gole de guaraná batizado com formicida.

Como o autor de "Camisa Listada", aqueles homens, ali reunidos, carregavam o infortúnio de terem tentado e não conseguido dar fim à existência. Dividiam o peso da humilhação suprema: retornar do gesto abominável com o rabo entre as pernas. Situação constrangedora. Não bastasse o fracasso na vida, tinham fracassado também na morte.

Era vergonha demais, precisavam lavar a desonra com sangue, mostrando aos amigos e parentes que não mudaram de ideia e não se acovardaram. Longe disso: eram duplamente corajosos para buscarem, outra vez, o tão sonhado paletó de madeira.

Naquela assembleia ordinária, deliberaram um revide à altura. E bota altura nisso: os 324 metros da Torre Eiffel. Partiriam em excursão para Paris, os 21 frustrados suicidas, e saltariam de algum ponto menos vigiado do monumento em 3 grupos de 7 - de mãos dadas e no melhor estilo "um, dois, três e já!". Só não teriam muito tempo para ensaiar a coreografia macabra, sob risco de descobrirem e interceptarem o seu intento com o ostensivo esquema de segurança da torre.

Seria o primeiro suicídio sincronizado da história. Os saltos seriam filmados pelo guia turístico do grupo, também simpatizante da prática suicida mas ainda não suficientemente apto à derradeira atitude. A este caberia, ao fim do espetáculo, entregar a filmagem à imprensa, bem como os 21 envelopes com as últimas palavras dos herois aos remanescentes da raça humana.

Porém, o destino foi de novo caprichoso. Ao se afastar andando para trás, procurando um melhor ângulo para a foto, o guia acabou despencando sem querer, antes dos 21. Pronto: soou a sirene, a polícia foi acionada e a turma toda convocada para interrogatório, no inquérito para apurar a causa do acidente. Ficou adiada a revanche, e com ela a lavagem da honra.

Em tempo: já que falamos dele, fica a dica para conhecerem a fantástica obra de Assis Valente. Um legado que vai muito além do "Brasil Pandeiro", sua música mais executada. Grande Assis. Imortal, ainda que suicida.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

Mundo livre, Ltdo.


• Por Fernando Yanmar Narciso


Ela já foi uma calça azul desbotada, e agora é um caixote inteiro de roupas velhas, pronto para a campanha do agasalho. Sinto desapontá-los, mas cheguei à conclusão que a liberdade continua sendo apenas uma fábula. Aos ouvidos de qualquer um é agradável a idéia de que o homem nasce e morre livre, seguramos as rédeas do nosso destino e podemos tomar as decisões que bem entendermos, blábláblá...

Ironicamente, quanto mais liberdade nós conquistamos, menos a sentimos. Os mais poderosos constantemente tomam todas as decisões importantes por nós. Todos os dias nós vemos por aí indícios que não querem que tenhamos liberdade ou responsabilidades. Há não muito tempo, as pessoas não passavam da marca dos 50 anos. Os motivos nunca mudam: Bebida, cigarros, libertinagem... Mas os nossos avôs e até nossos pais desfrutavam de liberdade maior que a que temos hoje. É uma insanidade, mas no tempo deles, quando completavam 18 anos tinham que escolher qual marca de cigarros fumariam daquele momento até baterem o último prego do caixão. Não era uma boa escolha, mas ainda tinham o direito à responsabilidade de fazê-la.

As indústrias do álcool e do tabaco praticamente mandavam no planeta, anunciavam uísque Natu Nobilis no intervalo da Sessão da Tarde, as empresas de cigarro faziam os comerciais mais premiados da telinha. E agora cigarros foram banidos da mídia, fumantes os pedem no balcão em voz baixa, como se estivessem comprando bolinha pra pôr na sopa da sogra. Tanto comes como bebes só podem ser anunciados em horários muito específicos, quando não tem muita criança na frente da TV, e anúncios de doces, nem pensar.

A mídia vive de vender a imagem que só os magros e bombados são felizes. Tentam nos forçar a querer uma alimentação mais saudável, com mais fibras, menos sódio, 0% de gordura trans, 0% de açúcar. São capazes até de dizer que salada de alfafa faz bem à saúde. Mas, na real, não é todo mundo que gosta de bancar o poser da boa forma. Não, por exemplo, nos Estados Unidos, com uma população de 30% de obesos. Somos hipoteticamente livres para sermos como quisermos, podemos até adoçar o café com um naco de toucinho se der na telha. Afinal, tá no inferno, abraça o capeta.

Por muito tempo vivemos numa ditadura militar. Foram tempos difíceis e também irônicos. O engraçado é que naquele tempo os programas humorísticos desfrutavam de mais liberdade que, por exemplo, as novelas de Janete Clair. Perguntem ao Renato Aragão.

Ainda nos tempos da TV Tupi, ele e os outros trapalhões tiravam de letra o humor escrachado e autodepreciativo que sempre foi a cara do Brasil. O franzino espertalhão cearense, o galã modernete paulistano, o negro cachaceiro e malandro carioca e o capiau ingênuo mineiro. Somos nós!

O programa deles estreou na Globo em 1977 aos domingos às 19:00, e por quase 20 anos trouxeram, através dos estereótipos dos quatro astros, sátiras cruéis mas hilariantes à nossa sociedade. Hoje o programa deles quando muito só conseguiria aval para ser exibido de madrugada. Os afro- pobrezinhos de agora ficariam com os cabelos alisados e oxigenados em pé ao ouvirem chamando o Mussum de “fumaça”, “pé-de-rodo”, “urubu”, “macaco”, entre outros apelidos piores. Mas a graça do personagem é que podiam até curtir com a cara dele, mas ele levava na esportiva e respondia sempre à altura. Não era necessário partir pra ignorância ou enfiar um processo na cara dos colegas como todos fazem hoje, bastava fazer rir. Isso sem falar do coitado do figurante anãozinho que vivia sendo trolado, de quando insistiam em dizer que personagem tal “camuflava”, entre outras piadas que fariam os censores de hoje pedirem pelotão de fuzilamento para os redatores do programa.

E Chico Anysio, então? Ele criou a personagem Salomé durante o governo do Figueiredo com o intuito de dar puxões na orelha do governo, mas sempre cheio de graça. A velhinha amiga do peito do presidente deu tão certo que até o próprio JB falava bem dela em seus discursos, afastando um pouco a fama dele de anta truculenta.

O que a polícia moderna do humor não consegue entender é que os humoristas faziam essas piadas preconceituosas, mas sem intenção de massacrar o próximo. O que não é o caso de hoje, em que “mestres” do stand-up brasileiro como Rafinha Bastos abusam do direito à liberdade de expressão, falam uma pá de grosserias sobre famosos desavisados, são processados e têm seus contratos rasgados na cara.

Em mãos erradas, a ilusão de liberdade pode ser muito perigosa.

*Designer e escritor. Site: HTTP://terradeexcluidos.blogspot.com.br

Namorados


* Por Gustavo do Carmo


PRELIMINARES


Eliminou o namorado nas preliminares depois que ele a jogou para escanteio por causa da Copa do Mundo.

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REDE NACIONAL

Beijou uma jornalista na boca ao vivo em rede nacional. Levou um tapa na cara em rede nacional porque não era sua namorada. Foi acusado com provas de assédio sexual.

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ALIANÇA

Tentou tirar a aliança, atendendo aos apelos da nova namorada. O dedo saiu junto. Praga da ex-mulher.

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NOTEBOOK

Namorou o notebook na loja. Noivou-se com ele quando começou a efetuar o processo de compra. Casou-se quando o comprou. Enviuvou-se quando ele pifou. Divorciou-se do fabricante.

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CARNE SECA

Ao namorar uma top model conseguiu ficar pela primeira vez por cima da carne seca.

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BAIANA

Rodou a baiana. Sua namorada soteropolitana ficou tonta e vomitou.

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AGORA

— Agooora! Que faço da minha vida sem você? — Já cansei de te ensinar a me esquecer! Discutiu o ex-casal de namorados. (Inspirada na canção de Caetano Veloso)

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CANIVETES

Foi se encontrar com a namorada mesmo chovendo canivetes. Chegou todo ensanguentado.

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MISTURE TUDO

Preferiu misturar tudo a cuidar bem do seu ex-namorado.

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SONHO DE VALSA

Ganhou apenas um bombom Sonho de Valsa. Esperava uma serenata de amor do namorado, que trabalhava na Lacta. (microconto premiado no concurso do blog Bordel Bordado)


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

Pés


* Por Flora Figueiredo


Conheço minhas pegadas, de tanto ir e vir.
Às vezes pisam fundo
como carregassem o peso do mundo;
às vezes ficam amassadas
sob o descuido das outras pegadas.
Sobre elas, a lua nova desdobra sua saia
em cena de nudez no chão da praia.
Só perco meus passos na maré cheia:
essa mania do mar de tirar seus sapatos sobre a areia.
Conheço bem minhas pegadas.
Sou capaz de identificá-las em qualquer lugar.
Se ao menos eu soubesse aonde vão me levar...

(Livro “Chão de Vento”)

• Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Insanidade renitente.

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica, “Os embalos de sábado de manhã”.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, conto, “Susto”..

Coluna Personalidade e Atitude – Sayonara Lino, crônica “Tudo muda de lugar”.

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema, “Enfim”.

Coluna Porta Aberta – Edir Araujo, poema “Cisne Negro”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Insanidade renitente

O complexo nuclear russo – hoje conhecido pelo nome oficial de Centro Nuclear Federal da Rússia – apesar da mudança de nomenclatura, continuará sendo conhecido, mundo afora, pela denominação original que ostentou desde sua criação, em 1946, até 1991, ou seja, a de Arzamas-16. Em texto anterior, com base no livro de Zhores A. Medvedev e Roy Medvedev, “Um Stalin desconhecido”, informei que ele foi construído por prisioneiros do regime soviético. Por muitos anos teve duplo papel: o de imenso campo de trabalhos forçados, um dos tantos “gulags”, que foram tão comuns na extinta URSS e o de sofisticado centro de pesquisas. Portanto, era secretíssimo, e pelos dois motivos apontados.

Era tão secreto que os que cumpriam pena ali, mesmo depois de findas suas sentenças, não tinham como recuperar a liberdade. Ou eram mantidos nesse local sinistro pelo resto das suas vidas ou eram transferidos para campos de prisioneiros similares, mais distantes e inacessíveis ainda em relação às grandes cidades, mesmo que nominalmente “livres”, para que jamais pudessem revelar a quem quer que fosse o que viram e ouviram em Arzamas.

A dupla Medvedev cita, em seu livro, trechos da autobiografia de Andrei Sakharov em que o notável físico e eminente dissidente do regime soviético (a que serviu por décadas, frise-se, antes de se rebelar contra ele), descreve o que testemunhou naquele local. Num dos trechos transcritos, informa: “Arzamas-16 encerrava uma curiosa simbiose entre um instituto de pesquisas ultramoderno, com suas oficinas experimentais e campos de testes, e um imenso campo de trabalhos forçados”. E ele não inventou nada a esse propósito, como muitos chegaram a insinuar. Foi testemunha ocular de tudo o que aconteceu ali. Estava lá. Vivia nesse complexo.

Em outro trecho da sua autobiografia (citada, amiúde, pelos Medvedevs), Sakharov escreve: “As oficinas, os campos de testes, as estradas e até as casas dos empregados das instalações haviam sido construídos por prisioneiros. Eles, por sua vez, viviam em barracas e eras acompanhados até o trabalho por cães de guarda. (...) Toda manhã, longas filas cinzentas de homens, usando jaquetas acolchoadas, passavam por nossas janelas”. Devia ser um espetáculo deveras deprimente para qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade.

Para se entender o que levou Josep Stalin a determinar a construção de Arzamas-16 – embora não se justificasse o fato de fazê-lo, simultaneamente, campo de trabalhos forçados – faz-se necessária sua devida contextualização. É indispensável recorrermos à História de um dos períodos mais tensos e politicamente instáveis do século XX, ou seja, o que se convencionou chamar de “Guerra Fria” e seu subproduto mais insano, a corrida armamentista nuclear, numa tentativa das duas superpotências de então de romperem o “equilíbrio do terror” e, dessa forma, deterem a hegemonia militar do mundo. Mas, vamos por partes.

Em 1949, um dos cientistas do Projeto Manhattan, achando que a melhor forma de evitar nova guerra seria os dois lados se armarem igualmente, cedeu os segredos da fabricação da bomba atômica à União Soviética. A esta altura, Arzamas-16 já existia há três anos e seus cientistas faziam de tudo para igualar as coisas com os Estados Unidos. Foi a partir daí que começou a insana corrida armamentista nuclear, que na sequência envolveria não somente mais as duas,todavia as quatro potências mundiais de então (Estados Unidos, URSS, Grã-Bretanha e França), responsáveis pela derrota das potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

Mais tarde, esse “Clube Atômico”, o dos detentores da bomba, ganhou as adesões da China e da Índia, ao qual veio se juntar logo o Paquistão, com cada um dos participantes querendo superar o outro em termos de arsenal bélico. Surgiu, assim, a teoria resumida pela sigla "MAD" (de Mutual Assured Destruction, ou seja, destruição mutua assegurada). Sintomaticamente, a sigla forma uma palavra que em inglês significa "loucura". E não é uma coisa louca?!! É insaníssima, sem dúvida!!! Tratava-se (ou trata-se, pois essa estupidez ainda não acabou) do equilíbrio do medo. A lógica, por trás de tudo isso, é a de que, se todas as partes envolvidas tiverem a capacidade de destruir as oponentes, a paz persistirá, de acordo com essa teoria, a menos, claro, que entre elas haja alguma com instintos suicidas. Será que não há? Tenho lá minhas dúvidas.

Mas a verdadeira origem de todo esse “imbróglio” é anterior a tudo isso. Vou tentar resumi-la. Apesar dos Estados Unidos terem sido os primeiros a explodir uma bomba atômica, em 16 de julho de 1945, no deserto de Alamogordo, no Novo México, muita gente, procedente de vários países e épocas variadas, foi responsável para que se chegasse a ela. Como, por exemplo, William Conrad Röentgen, que em 1885 descobriu a eletricidade negativa dos raios-x. Ou o casal Pierre e Marie Curie que, acidentalmente, acabou topando com um novo elemento químico, de comportamento um tanto estranho: o rádio. Ou como Albert Einstein, com suas conclusões de que matéria e energia são a mesma coisa. Ou ainda Ernest Rutheford e sua descrição de como age a radioatividade e a enunciação de “como é”, na verdade, um átomo.

Até mesmo um japonês (que ironia!) participou da descoberta do processo, da montagem do quebra-cabeças, que acabou conduzindo à construção da bomba. Foi o físico Shimizu, que com seu colega russo Piotr Kapitza, trocou informações com o italiano Enrico Fermi, permitindo a este que realizasse a primeira reação controlada em cadeia no urânio.

Muita gente mais contribuiu para que o homem detivesse o segredo dessa arma, capaz de destruir, em segundos, o que a natureza levou milhões de anos para construir. Como o alemão Otto Hahn, descobridor da fissão nuclear. Ou o dinamarquês Niels Böhr, que produziu a “água pesada”, capaz de estimular a radioatividade e assim acelerar a reação em cadeias no urânio natural sob o lento bombardeio de nêutrons. Ou, ainda, o norte-americano Lawrence, que separou os isótopos em propagação térmica.

Dificilmente outro projeto, de caráter civil, mereceu mais atenção dos pesquisadores, do que esse, de ordem militar, que visava à obtenção da superarma. Ou seja, do artefato bélico decisivo em caso de conflito, para quem o detivesse.

Não tivessem sido lançadas as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki e o cidadão comum de hoje sequer acreditaria até mesmo em sua existência, tão terrível é seu potencial de destruição. Como muitos ainda não crêem, por exemplo, que o homem tenha pisado na Lua, atribuindo as imagens das odisséias do Projeto Apolo, da Nasa, a meras montagens. Honestamente, ciente das “maracutaias” que os políticos engendram amiúde, também, às vezes, chego a duvidar, a despeito de toda a carga de informações de que disponho dada minha profissão de jornalista. O leitor mesmo já deve ter ouvido, em diversas ocasiões, manifestações de ceticismo desse tipo, notadamente de pessoas menos instruídas e, por isso, supostamente mais ingênuas. Há, até, quem não acredite ainda na existência da bomba atômica. Mas... Infelizmente ela existe.

O super-secreto Projeto Manhattan reuniu, em Los Álamos, no Novo México, as maiores cabeças pensantes que o mundo conhecia. Gente como o Prêmio Nobel Niels Böhr, como os irmãos Oppenheimer, como Arthur Compton e como Klaus Fuchs, entre tantos outros.

Esses foram os verdadeiros “pais” da mais arrasadora arma já construída pelo homem. Mas, antes mesmo que ela fosse obtida, esses cérebros brilhantes denotavam enorme preocupação com as implicações políticas e morais que ela traria.

Em fevereiro de 1944, Böhr escreveu ao presidente Franklin Delano Roosevelt e Winston Churchill mensagens exprimindo seus temores: “Está sendo criada uma arma de potência destruidora sem precedentes. A menos que seja instituído um controle internacional sobre o uso de novos materiais ativos (urânio, plutônio, etc.), qualquer vantagem temporária, por maior que seja, será, invariavelmente, superada pela ameaça permanente à sociedade humana”. Tanto Roosevelt, quanto Churchill, discordaram do cientista. Políticos... sempre os políticos!!! Ambos estavam errados, óbvio. E como!!! Voltarei, certamente, ao assunto.

Boa leitura.

O Editor.

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Os embalos de sábado de manhã


* Por Mara Narciso


Como um forte estrondo e poucos segundos de tremor e terror podem mudar a vida de uma cidade? Pessoas que dormiam nuas estão vestindo-se antes de se recolher. Os quartos antes trancados agora passam a noite abertos. Numa imaginária rota de fuga, muita gente altera seus hábitos. Um bater de portas de carro, meninos chutando a bola de futebol contra o muro, um retumbar de carro de som, um caminhão caçamba que cai num buraco ou até um coro de cães latindo serve de alerta, afinal os cães ouvem um som que gente não escuta, e pressentem que algo irá ocorrer. Galinhas enlouquecidas ficaram gritando durante vários minutos depois do acontecido. Surpreende por ser um animal tido como pouco inteligente.

Amamos essa terra com uma força descomunal, mas não esperávamos uma recíproca tão verdadeira e ao contrário. A terra não sabe que existe, e nós, os 361 mil insignificantes habitantes, contados em 2010, sabemos dela e fomos sacudidos feito pulgas. Felizes foram os tempos em que os compêndios diziam que não existiam vulcões, ciclones e terremotos no Brasil. Essa verdade mudou. O epicentro dos sismos está a 16 km de Montes Claros, a 418 km de Belo Horizonte.

Sábado, dia 19 de maio, lua crescente, às 10h43min aconteceu um estrondo refletindo o desprendimento de uma energia de muitos megatons vindo de dentro da terra. O chão rugiu e fugiu levemente dos pés, as janelas trepidaram freneticamente como se um helicóptero passasse sobre a casa, o lustre se desprendeu do teto e se espatifou. As crianças da casa vizinha berraram aterrorizadas. O sismo durou poucos segundos. Corremos para o jardim, e quando entendemos ser um tremor de terra, já tinha acabado. Foi o mais forte terremoto até aqui registrado, alcançando 4,5 pontos na escala Richter.

Casas apresentaram rachaduras, telhados de varandas desabaram, portas de guarda-roupas se abriram, panelas caíram de armários, garrafas pularam das prateleiras, quadros saltaram das paredes, televisores caíram, vidraças se romperam, e outras avarias. Poucos indivíduos tiveram ferimentos leves. Estamos temerosos, pois, de acordo com a Defesa Civil, seis casas foram condenadas e duas interditadas, sendo que 18 pessoas estão desabrigadas e 10 desalojadas. Se vivêssemos no tempo das vitrolas, a agulha teria deslizado sobre o disco.

No centro da cidade, no Shopping Popular, as câmeras de segurança filmaram correria imediata. Lembrava ratos fugindo de um navio indo a pique. Havia cerca de 1500 pessoas no local. Durante o barulho do supertrovão, as pessoas correram para a rua, e outros locais também registraram a mesma atitude. Pessoas tentavam explicar o barulho como batida de trens, de carros ou alguma outra situação de estrondo.

Têm acontecido abalos sísmicos por aqui há algum tempo, estando registrados 15 tremores desde 2008, variando entre dois e três graus. Como curiosidade, a magnitude de um terremoto é uma escala logarítmica, e para cada ponto existe um multiplicador de 10, ou seja, um terremoto de 8.0 é dez vezes mais forte do que um de 7.0. Quando a minha mãe era jovem, aconteceu num município vizinho, atual Alto Belo, um evento parecido ao nosso de agora. Em 9 de dezembro de 2007, no distrito de Caraíbas no município de Itacarambi, norte de Minas, morreu Jessequele Oliveira Silva, de 5 anos, vítima da queda da sua casa após um terremoto de 4.9 graus.

A geofísica e presidente-interina do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília Mônica Von Huelsen falou que a cidade de Montes Claros está numa área de atividade sismológica devido a uma falha geológica na região, e novos tremores acontecerão. Afirmou que esperava que os próximos terremotos fossem menores. Desejar tremores mais fracos ou nenhum a população leiga também está querendo, o que não deveria ser prerrogativa de especialista. Depois do maior, já aconteceram outros cinco tremores. O último foi no dia 22 de maio.

Pouca graça e muito medo percorrem a cidade. Quem perdeu o terremoto de ontem, poderá pegar o próximo (?). Requentar tema sombrio deixa no ar um gosto amargo de café velho. O chacoalhão, como meu filho denominou o tremor, traz insegurança, e está vívido na memória de cada um. Montes Claros, o antigo Arraial das Formigas está neste solo gentil há cerca de 250 anos. É preciso mudar conceitos, afinal o que significa “firme como uma rocha?”

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

Susto


* Por Marco Albertim


- Fecho a porta?

- Não precisa.

- Mas está fazendo frio!

- Não precisa! Não estamos em nossa casa.

Mundinho temera ser morto pelo outro, mas não tinha quase nada no corpo, na sacola com o zíper estropiado. Deitado sem a camisa, com a calça que usara durante o dia e coberto com o único lençol tirado da sacola. Não seria roubado, não por Sansão, mesmo sabendo que ele tinha apenas a roupa do corpo.

- Tenho muito frio.

- Mesmo assim, rapaz! O que vão pensar de dois machos trancados numa casa abandonada, com vizinhos a poucos metros?! Nem pensar!

Deitados, cada um num banco de madeira, comprido, sem caber a largura do corpo. Uma única sala, a casa tinha. Cadeiras quebradas, pés de bancos, de cadeiras, tudo solto, espalhado; num canto, um birô de madeira, o que restara dele.

- O que você está fazendo? - Desconfiado, Sansão.

- Procuro um lenço na sacola. Estou resfriado.

Sós, no escuro, os dois olhando para a porta aberta, para a janela com vidros quebrados. Distraindo-se no que a noite não escondera, não escondia, no distante ruído de vozes, de veículos, caminhões pesados. Um não recusando a companhia do outro, sem ninguém mais para trocar palavra, inda que desconfiados, com suspeitas mútuas.

Mundinho, 25 anos; Sansão, 30. Conheceram-se ali, na margem da rodovia, descarregando caminhões para a vistoria dos fiscais. No fim do dia, com as gorjetas, alimentaram-se com a sopa preparada numa birosca com balcão e paredes de madeira. Enquanto havia gente, conversaram, assuntaram sobre a rotina no posto fiscal; as chances de ganhos.

- Pra onde você vai? - quis saber Sansão.

- Pra São Paulo; se não der, fico no Rio de Janeiro.

- Estou vindo de lá.

- De São Paulo! Aqui não tem trabalho.

Madrugada, os ruídos dos automóveis rarearam. A cancela do posto fora levantada, suspensa. Os dois, com o sentido no mundo, distinguiram um meio de se defenderem das recusas do dia.

- Não posso voltar para lá.

- Por quê?

- Cumpri pena. Já sou conhecido dos homens.

- O que você fez?

- Matei um cara. Ele quis me enrabar. Foi em Santos, no cais.

- Cumpriu a pena toda?

- Não. Me comportei bem na cadeia.

- Como é a vida na cadeia?

- Aqui é melhor. Estou com sono. Vamos dormir.

Deram-se uma trégua nas suspeitas. Dia seguinte, moídos nas costas mas descansados dos pressentimentos, tomaram café juntos; café e pão seco, do dia anterior.

Na rodovia, a cancela fora reposta, os caminhões, parados, sendo vistoriados. Mundinho e Sansão, atentos, a poucos metros dos fiscais. Até o meio da tarde, nenhum fora descarregado. Os dois não almoçaram, não tinham conseguido dinheiro. Antes de a noite chegar, um caminhão carregado de toros de madeira serrados, retangulares, compridos, parou; parou sem que os fiscais fizessem sinal. O motorista desceu, perguntou aos fiscais onde contrataria dois homens para descarregar a madeira; não ali, mas na cidade, no armazém que comprara a madeira. Os fiscais apontaram para Mundinho e Sansão. Os dois subiram na carroceria. Na frente, na boleia, o motorista tinha de seu lado sua mulher.

O caminhão saiu da avenida, entrou num portão ao lado de uma loja, estacionou nos fundos. O armazém tinha trabalhadores de braços grossos, acostumados na lida dura. A encomenda não previra o uso de seus trabalhadores no descarrego da madeira. Sansão e Mundinho, desgarrados da família, da rotina com refeição em horário certo, diária, tiraram a camisa. O motorista julgara-os incapazes de cumprir todo o trabalho, mas entrevira a chance de lhes pagar pouco. Um trabalhador do armazém, quando os viu suados, rostos incendidos, não calou a impressão:

- Vou fica só pra ver..

Ás 18 horas, rogando ajuda sem nada dizer, Sansão e Mundinho tinham fome muita, sede e vontade de desistir.

- Vão aguentar? - perguntou o motorista já impaciente.

O trabalhador do armazém riu, riu com os braços cruzados para enrijecer a musculatura do corpo. Mundinho mirou-o com ódio, com ódio e inveja. Já se deparara com homens como aquele, vira-os tão ou mais suados quanto ele; votara-lhes pena, julgara-se fora do risco de se tornar peão. Agora tinha ódio àquele homem por ter-lhe inspirado inveja.

O motorista se deu conta de que teria que jantar com sua mulher; os dois, moços, recém-casados. Impacientou-se para ser gentil com a esposa. Chamou o trabalhador do armazém, pediu que também ajudasse no descarrego das madeiras, a troco de um dinheiro.

Às 19 horas o serviço teve fim. Mundinho e Sansão foram pagos com a metade do dinheiro que o motorista separara para eles; o trabalhador do armazém recebeu a mesma quantia, inda que tivesse começado do meio em diante.

Voltaram para o posto fiscal, para a birosca com a sopa gordurosa, fumegante. Antes, tomaram banho nos fundos da moradia improvisada, com água num balde, tirada do poço nos fundos da birosca.

Tarde da noite, a birosca vazia, a cancela suspensa, apenas um fiscal sentado sob a guarita na margem da rodovia. Sansão viera de São Paulo, carregara-se do modo de dizer do paulista. O cearense de Aquiraz, ouvindo-o falar, urdia-o conhecedor do mundo. A eloquência de Sansão, lesionando a gramática, impressionara-o.

Mundinho seguiu Sansão rumo à guarita. Sentaram-se numa das aberturas que havia nos dois lados do abrigo. No centro, o fiscal sentado numa cadeira trazida do escritório do posto, afastado da rodovia. Era um fiscal pobre, não concursado, mais ajudante que um fiscal. Os seus chefes, sabendo-o necessário, não tinham confiança nele; nele e nos iguais.

Suspeitavam que, ganhando pouco, recebiam propinas de caminhoneiros sem a nota fiscal da mercadoria.



- Salve, Sansão! - o fiscal cumprimentou. Mundinho não foi cumprimentado, só Sansão sabia o seu nome. No plantão, o fiscal passaria a noite e a madrugada ali. Os dois foram bem-vindos.



- Salve, xará! - Não tinha o seu nome, o fiscal, mas conveio que a palavra faria bem à imaginação do cearense. - Fica até que horas?

- Cinco da manhã.

- Quem vai lhe render?

- Não sei. É uma equipe de fiscais, vem de Fortaleza. A gente só fica de noite, de madrugada, quando não há movimento.

- Por que vocês não ficam durante o dia?

- Porque não confiam na gente...

O homem tinha uma voz arrastada, os cabelos ralos sobre o rosto escuro de feições finas. Vestia um fustão comum, calça cáqui, aparentando pouco mais de quarenta anos. Nos pés, um par de chinelos de borracha. Sobressaía o contraste com os homens do posto, operando rádios, telefones, calculando impostos.

- Por que não botam uma luz aqui? Fica no escuro à noite toda.

- É ordem da chefia. Pode passar algum motorista com raiva da apreensão, da multa... E atirar na guarita.

- Huum..

Mundinho não sabia o que dizer para cevar a conversa. Contentou-se em ouvir, mostrar interesse nos rumos de cada raciocínio.

As palavras de Sansão eram ouvidas pelo fiscal como um aluno absorvendo o palavreado do professor. Mundinho tinha noção disso, mas não dera, não dava a entender de que também se submetera ao jeito do paulista. Ali, é bom dizer, havia igualação entre os fiscais da base da hierarquia, carregadores como Mundinho e Sansão, o dono da birosca que os tinha como fregueses; e um soldado de polícia ou outro, trabalhando no Presídio Paulo Sarasate, nos fundos, recuado de tudo.

O fiscal bocejou sono. Não havia ninguém no escritório. Sansão, percebendo que o homem queria dormir sem a presença deles, levantou-se, despediu-se. Mundinho seguiu-o. Não havia barulho na rodovia. O céu juncara-se de estrelas. Ninguém para olhar. Ouvia-se, quem tivesse os ouvidos atentos, o estrídulo de grilos, o pio raro de uma coruja. Em volta, coqueiros, cajueiros e um vasto canavial.

Os dois deitaram-se nos bancos. Não trocaram palavras, não tinham o que dizer; não depois do malogro no armazém de madeira.

Na noite seguinte, o mesmo fiscal estava no plantão. Um soldado de polícia, fardado, liberado de seu turno, parou na guarita. Conversou com os três, discorreu sobre a rotina no presídio.

- O sargento passou um mês detido no quartel. Punição braba para um sargento. Ele me fez trabalhar três turnos seguidos, sem descanso. Fui falar com o tenente. Teve uma corregedoria. Ele foi punido. Sabe o que é isso? Abuso de autoridade!

- Aqui não tem abuso de autoridade, tem só desconfiança entre os chefes e a gente - completou o fiscal.

Sansão e Mundinho calados; inda que entre o militar e eles houvesse afinidades. O soldado estava fardado, tinha direito a viajar de ônibus sem pagar. Mundinho e Sansão mourejavam... Quando havia no que mourejar.

O encontro e a conversa se repetiram por três, quatro noites. Até Mundinho já arriscara um arremedo de conversa com os relatos do soldado. Sansão, já falante com o soldado, também o impressionou.

No primeiro domingo, o soldado daria plantão a partir das cinco da tarde. Passou na birosca, viu Sansão e Mundinho sentados, mudos, olhando desatentos para a rodovia.

- Já comeram?

- Não. - Os dois responderam ao mesmo tempo.

- Venham comigo.

Seguiram o soldado até o presídio, uma construção com apenas um pavimento, grande, cercada de cajueiros, jaqueiras, palhas de cana.

- Vamos jantar no presídio, no meio dos presos. Mas não tem problema. São todos mansos.

Na entrada, os dois foram revistados; rotina.

- O que é isso? - quis saber o soldado que revistara Mundinho.

Mundinho levantou a camisa, solta sobre o cinturão da calça. Mostrou o cabo de uma escova de cabelo, no bolso de trás, os fios dentro do bolso.

Sansão não estranharia a comida. Mundinho estava com fome, muita fome. Os soldados, alguns deles, também se juntaram aos presidiários, sentando-se junto às mesas dispostas no refeitório. Garfos e facas de mesa para dar conta do macarrão servido em travessas, macarrão com bife, tudo rosado no colorau. Os presos, vestidos com o uniforme cor-de-rosa, a mesma cor das paredes do presídio, dentro e fora. Dois deles percorrendo as mesas, com a travessa de comida, servindo a quem quisesse repetir. Sansão e Mundinho repetiram a refeição. Havia mangabeiras em volta do presídio. Serviram-lhes suco de mangaba.

Os dois voltaram para a birosca. O dono não fez comentário, olhando-os com os olhos cheios de perguntas.

A noite transcorreu fria, muda.

- Amanhã não vou procurar serviço. Vou pedir carona. Vou chegar a São Paulo pulando de cidade em cidade. Nem que demore um mês - adiantou Mundinho.

- Tem todos os documentos?

- Tenho.

- Boa sorte.

- É cedo pra gente se despedir. Vamos esperar até amanhã.

- A gente tá sempre se despedindo, sem dizer nada. Ninguém sabe o que vai ser do dia seguinte.

O dono da birosca fumava um cigarro feito ali, com cheiro forte, babando no papel. Sentado, olhando para o lado, com um braço sobre o balcão. Não tinha os sentidos na conversa dos dois, ou não dava a entender isso. Chegara ali para alimentar, vender cachaça a carregadores, a fiscais pobres, soldados, uma prostituta ou outra. Não sairia dali nunca.

Mundinho pegou carona no começo da noite do dia seguinte. Passara toda a tarde no lado da guarita. O caminhão estacionou sem nada na carroceria. Com a cancela impedindo a passagem, tivera que parar. Mundinho, com a sacola na mão, pediu-lhe a carona até onde pudesse ir, quanto mais longe dali melhor.

- Vou pra Russas. Mas se você dormir, boto pra baixo da boleia - Tinha medo de dormir, o motorista, não queria alguém dormindo de seu lado.

Russas, ainda no Ceará, deixaria Mundinho distante de Fortaleza, da moradia improvisada, da companhia impróspera de Sansão. Não teve tempo de se despedir dele, que se afastara para mijar. Não deixou recado com o fiscal, visto que estava em companhia de seus chefes.

O caminhão entrou em Russas quase meia-noite. Mundinho ficou na rodovia, num restaurante prestes a fechar as portas. Sentou-se num canto. Quando tudo ficou no escuro, foi para perto da porta fechada, deitou-se junto à parede, fez da bolsa o travesseiro. Passou dois dias ali catando uma carona que o levasse para mais longe, perto de seu destino. Alimentou-se com a comida dada pela dona do restaurante, em troca da limpeza do banheiro, do sanitário. Na manhã do terceiro dia, com restos da madrugada sumindo, foi acordado por soldados da polícia. Na direção, o soldado que o chamara para comer no presídio, olhando-o constrangido. Um sargento desceu do veículo:

- Onde está seu amigo?

Mundinho não tinha amigos.

- Sansão, rapaz! Diga onde ele está!

- Ficou no posto...!

- Ele matou o dono da birosca.


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.