sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: dez anos, seis meses e dois dias de criação.

Leia nesta edição:

Editorial – A morte dos pássaros.

Coluna Contrastes e Confrontos – Urariano Mota, crônica, “Grandezas de Pernambuco”.

Coluna Do Real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto, “A onda”.

Coluna Clássicos – Noam Chomsky, trecho de ensaio, “O estado de vigilância nos países livres”.

Coluna Porta Aberta – Dinovaldo Gilioli, crônica, “O lugar da poesia”.

Coluna Porta Aberta – Glória Salles, poema, “Carência insana”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


  

A morte dos pássaros



O mundo vive, há já certo tempo, a apavorante expectativa de um desastre catastrófico, de conseqüências imprevisíveis, que tendem a ser muito mais graves do que o tsunami da Ásia, de dezembro de 2004; o terremoto do Paquistão, de 2005; o furacão Katrina, que quase varreu do mapa a cidade norte-americana de Nova Orleans, enfim, de todos os desastres naturais ou provocados pelo homem dos últimos (alguns dizem que de todos) os tempos.

A ameaça não vem do espaço, de um possível choque de algum gigantesco meteorito, ou de um cometa, com a Terra. Nem da possibilidade, sempre presente, da explosão de algum artefato nuclear, dos milhares que estão estocados nos arsenais dos detentores dessas armas, acidental ou intencional. Muito menos da ocorrência de algum acidente em uma das centenas de usinas atômicas existentes no mundo – algumas mal-conservadas, arcaicas e com normas de segurança ultrapassadas – como o ocorrido em Chernobyll, em 1985, que espalhou terror e morte na Ucrânia, então território da extinta União Soviética.

A ameaça em questão não provém, igualmente, do aquecimento global, do derretimento das geleiras dos pólos (a maior delas, situada na Patagônia, Sul da Argentina, sofreu, há dez anos, um gigantesco desmoronamento), que quando ocorrer, tende a destruir centenas de pequenas, médias e grandes cidades litorâneas e, até mesmo, países inteiros.

O “vilão” que vem tirando o sono das autoridades nos últimos tempos, e mobilizando pesquisadores dos mais diferentes lugares, é pequeno, minúsculo demais, microscópico, quase invisível até nos mais potentes microscópios eletrônicos, cujo diâmetro é oito mil vezes menor que o de um fio de cabelo. Mas seu potencial destrutivo... É aterrorizante! Refiro-me ao H5N1, o vírus da gripe aviária, que tende, conforme garantem especialistas, caso sofra mutação que o torne transmissível de pessoa a pessoa, a produzir uma pandemia que, caso seja configurada, seria incontrolável, com os recursos que a Medicina dispõe hoje.

Quem fez essa sombria previsão, há já algum tempo (em 2005), e garantiu, até, que a catástrofe iria ocorrer de fato e em poucos meses (claro que não precisou quantos, mas graças a Deus errou nisso), foi o ainda hoje diretor do Centro de Pesquisa sobre Doenças Infecciosas dos EUA e professor da Escola de Medicina da Universidade de Minnesota, Michael Ostherholm. Como se vê, não foi um maluco qualquer, atormentado por visões apocalípticas, pregando que os homens se arrependam dos seus pecados para não serem destruídos pela ira divina, que fez esse dramático alerta. Foi um cientista de peso, que sabe (presume-se) o que diz.

Outros especialistas afirmaram na ocasião que a pandemia iria acontecer em no máximo 18 meses, e que, provavelmente, iria matar em torno de 50 milhões de pessoas! Até o momento, esta catástrofe não ocorreu, mas isso não garante que não possa acontecer. Até pode e sem qualquer aviso prévio! Assustador, não é mesmo? As estimativas eram de que o vírus (cujo nome deriva das proteínas que o formam, com a letra “H” significando “hemaglutinina”, a “N”, “neuraminidase” e os números, a quantidade de moléculas de cada uma delas) chegaria ao Brasil, o mais tardar, até setembro de 2006. Se chegou (e creio que sim) não fez os estragos potenciais que poderia ter feito. Mas... nunca se sabe. Que Deusm pois, nos ajude e faça com que nenhuma previsão apocalíptica como essa se concretize!

Na tentativa de impedir o avanço da gripe aviária, relativamente frustrada, mais de 100 milhões de aves foram sacrificadas, notadamente frangos, sobretudo na Ásia, mas não só lá. Fosse mantido esse ritmo original, elas seriam os primeiros seres vivos da nossa era a serem extintos por completo, como teria ocorrido com os dinossauros e todos os outros grandes sáurios, há 65 milhões de anos, mas por razões diferentes das atuais. Ou seja, em virtude do choque de um gigantesco meteorito, ou de um cometa, com a Terra.

Interessante é que, em 10 de julho de 1965, há quase 41 anos dessa manifestação aguda da gripe aviária, escrevi um soneto, que até hoje me intriga, descrevendo situação parecida com essa. Desconheço o que o motivou. Simplesmente comecei a escrever e saiu isso aí, que intitulei de “A morte dos pássaros”:

“Morreram pássaros! Cessou poesia!
O mundo inteiro se tornou silente...
A catástrofe deu-se de repente
tornando a Terra árida e vazia...

A vida cessou...Nada mais existe!
Nem os meus versos isentos de metro.
Eu não existo! Sou simples espectro
imóvel, inútil, vazio e triste!

Desde o Brasil ao longínquo Laos,
da alta Sibéria até a Argentina
e desde os Alpes à região andina

nas negras sombras todos se perderam!
Tudo vazio... Pássaros morreram...!
Cessou a poesia...! Já reina o caos!”

Seria premonição? Seria mero acaso? Seria delírio? Não sei. Tomara que não seja nada disso.  O que será que me motivou a escrever estes versos, que hoje soam proféticos, embora, convenhamos, sem nenhum valor literário? É arrepiante! Felizmente, por enquanto, não ocorreu a propalada mutação do vírus H5N1 e o contágio do vírus se dá, somente, por contato direto com as aves contaminadas.

Tomara que todos os especialistas estejam errados, que o agente patogênico seja erradicado da Terra antes de se tornar um mutante e que a morte dos pássaros não passe de um delírio de um poeta, normalmente equilibrado, mas que pode ter sido vítima de uma dessas fantasias absurdas, frutos de medos secretos, mas sem a mínima possibilidade de ocorrer. Tomara!!!


Boa leitura!


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk  


Grandezas de Pernambuco

* Por Urariano Mota


O leitor perdoe o título ufanista, uma forma de ser do Recife. Mas esse modo recifense não é o motivo. A explicação vem do Brasil destes dias. A gente anda tão abatido pelo golpe, tão cabisbaixo pela crise da recessão a que a política reacionária da Lava Jato nos levou, que é preciso levantar os olhos para a luz da grandeza mais perto de nós, que muita vezes não vemos.

Todos sabem, e nunca será demais repetir que é do Recife a primeira sinagoga das Américas, levantada pelos judeus recifenses que depois criaram Nova Iorque. Todos sabem que neste chão fértil vingou uma árvore de poetas que honram a poesia brasileira, de Manuel Bandeira a João Cabral, passando por Solano Trindade, Mauro Mota, Joaquim Cardozo, Carlos Pena Filho, Ascenso Ferreira e Alberto da Cunha Melo. Esses poetas vêm sem consulta ao google, basta a invocação da memória afetiva, maior e mais segura. E não quero nem me lembrar do carnaval de maior participação popular do planeta, ou do cinema de Kleber Mendonça Filho. Nem mesmo falar do genial João do Caldíssimo, que de Água Fria atraía para o seu caldinho de feijão e cachaça os artistas de todo o Brasil.

Penso agora em Nova Jerusalém, em Fazenda Nova, na encenação monumental da sua Paixão de Cristo. Penso no resultado de forças vindas do pioneirismo de Plínio Pacheco, que era apaixonado pelo teatro, que mergulhou nessa paixão Diva Pacheco e ampliou o coração no agreste seco de Pernambuco, criando o maior teatro ao ar livre do mundo.

As informações gerais num piscar de olhos informam que Nova Jerusalém é o maior teatro a céu aberto do mundo, com nove palcos, muralha de 3.500 m, 70 torres em 100 mil metros abertos para a encenação anual da Paixão de Cristo. Mas eu prefiro falar do que vi há mais de um ano. A memória da gente é seletiva, isso todos sabem. Mas antes dela, a seleção é feita pelos olhos, que dirigem a nossa câmera íntima para o particular, nunca para o todo. Na verdade, no detalhe, no que nos impressiona e se guarda é que está o reflexo do total. Assim, em Nova Jerusalém primeiro me impressionou a pessoa de Robinson Pacheco, mais conhecido por Robinho, o filho que herdou a obra de Plínio Pacheco. Não pelas características físicas de indivíduo louro, olhos claros, atarracado, comandante e organizador do espaço imenso de Fazenda Nova. Esses exteriores, creiam, em mim não geravam uma aproximação.

Nele, guardei primeiro o justo orgulho que possui do pai, um intelectual gaúcho pernambucanizado que falava "a vida me colocou diante da pedra e da figura de granito que é o homem nordestino. Este é meu povo, cantando num cenário de sol". Em segundo lugar, vi a pessoa que gosta de fazer amigos, – logo eu, que não sou um primor de sociabilidade. Depois, a revelação de ver Robinho cantar aboio com um sentimento e voz de ir às lágrimas, ao entoar a tragédia do amor de um vaqueiro. Nesse ponto, já me encontrava esquecido do que era exterior da sua pessoa. E tanto, que no calor do entusiasmo lhe pedi o papel de Barrabás na Paixão de Cristo. Eu queria ser o bandido libertador contra a opressão de Roma, pensava. E Robinho, ao me ver de barba, com a pele de mulato da Palestina, aceitou. Mas diplomático propôs:

- Não é melhor você ver o espetáculo antes?

Assim foi. À noite, antes da magnífica ressurreição de Jesus Cristo, eu vi um indivíduo barbado, fedido e mal pago, que de braços abertos parecia mais espantar passarinho em roçado. Era Barrabás. E desisti de aparecer na Paixão de Cristo. Mas quem não pode ser bandido heroico, pode ao menos louvar o que é digno de ser louvado.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros


A onda


* Por Eduardo Oliveira Freire


Vem e destrói tudo que se construiu em anos. Sua irracionalidade ancestral assusta. Aparece, de repente, num dia tranquilo em que você passeia devagar a olhar as belezas muitas vezes ocultas pelo cotidiano e ela vem, engolindo-o.

Não tem para onde fugir, pois se esparrama violentamente e os destroços viram armas fatais. Depois de tudo terminado, surge a calmaria. Vai embora, aparentemente.

Na verdade, está adormecida em algum lugar ou até dentro da gente.

Até um dia acordar... Pode demorar eras e anos, porém, sempre desperta.

Vejam a História para perceber isso.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/


O estado de vigilância nos países livres

* Por  Noam Chomsky


Tradução de Mário Albuquerque (da tradução em espanhol de Jorge Majfud)


Nos últimos tempos, temos aprendido muito sobre a natureza do poder do Estado e as forças que impulsionam suas políticas, além de aprender sobre um assunto estreitamente vinculado: o sutil e diferenciado conceito de transparência.

A fonte de informação, por óbvio, é o conjunto de documentos referentes ao sistema de vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA, sigla em inglês) dados a conhecer pelo valoroso lutador pela liberdade, o senhor Edward J. Snowden, resumidos e analisados de grande forma por seu colaborador Glenn Greenwald em seu novo livro “Sem lugar para esconder-se” (No Place to Hide)

Os documentos revelam um notável projeto destinado a expor a vigilância do Estado informação vital acerca de toda pessoa que tenha a má sorte de cair nas garras do gigante, que vem a ser, em princípio, toda pessoa vinculada com a moderna sociedade digital.

Nada tão ambicioso foi jamais imaginado pelos profetas distópicos que descreveram  assustadoras sociedades totalitárias que nos esperavam.

Não é um detalhe menor o fato de que o projeto seja executado em um dos países mais livres do planeta e em radical violação da Carta de Direitos da Constituição dos Estados Unidos, que protege os cidadãos de perseguições e capturas sem motivo e garante a privacidade de seus indivíduos, de seus lugares, seus documentos e pertences.

Por mais que os advogados do governo tentem, não há como reconciliar esses princípios com o assalto à população revelado pelos documentos de Snowden.

Também vale a pena recordar que a defesa dos direitos fundamentais à privacidade contribuiu para provocar a revolução de independência desta nação. No século XVIII o tirano era o governo britânico, que se arrogava o direito de imiscuir-se na vida dos colonos destas terras. Hoje, é o próprio governo dos próprios cidadãos estadounidenses que se arroga este direito.

Todavia, hoje a Grã-Bretanha mantém a mesma postura que provocou a rebelião dos colonos, ainda que em escala menor, pois o centro do poder tem se  destacado nos assuntos internacionais.

Segundo The Guardian e a partir de documentos fornecidos por Snowden, o governo britânico tem solicitado à NSA analisar e reter todos os números de faxes e telefones celulares, mensagens de correio eletrônico e localização de IP de cidadãos britânicos.

Sem dúvida, os cidadãos britânicos (como outros clientes internacionais) devem estar cansados de saber que a NSA intercepta de maneira rotineira roteadores, servidores e outros dispositivos de computadores exportados pelos Estados Unidos para poder implantar instrumentos de espionagem em suas máquinas, tal como informa Greenwald em seu livro.

Ao mesmo tempo em que o gigante satisfaz sua curiosidade, qualquer coisa que escrevemos em um teclado de computador pode estar sendo enviado no mesmo momento a cada vez mais enormes bases de dados do presidente Obama em Utah.

Por outra parte, valendo-se de outros recursos, o constitucionalista da Casa Branca parece decidido a demolir os fundamentos de nossas liberdades civis, fazendo com que o princípio básico da presunção de inocência, que remonta à Carta Magna de quase 800 anos, tenha sido esquecido desde muito tempo.

Porém, essa não é a única violação aos princípios éticos e legais básicos. Recentemente, o New York Times informou sobre a angústia de um juiz federal que tinha que decidir se permitia ou não que se alimentasse pela força um prisioneiro espanhol em greve de fome, que protestava dessa forma contra seu encarceramento. Não se expressou angústia alguma sobre o fato de que esse homem está preso há 12 anos em Guatánamo sem julgamento, uma das muitas vítimas do líder do mundo livre, que reivindica o direito de manter prisioneiros sem julgamentos e submetidos a torturas.

Essas revelações nos induzem a indagar mais a fundo sobre a política do Estado e sobre os fatores que a impulsionam. A versão habitual que recebemos é que o objetivo primário de ditas políticas é a segurança e a defesa contra nossos inimigos.

Essa doutrina nos obriga a formular algumas perguntas: a segurança de quem e a defesa contra que inimigos? As respostas têm sido assinaladas, de forma dramática, pelas revelações de Snowden.

As atuais políticas foram pensadas para proteger a autoridade estatal e os poderes nacionais concentrados nas mãos de uns poucos grupos, para defendê-los contra um inimigo muito temido: sua própria população, que, claro, pode converter-se em um grande inimigo se não for controlada devidamente.

Sabe-se há muito tempo que possuir informação sobre um inimigo é essencial para controlá-lo. Obama tem uma série de predecessores nesta prática, embora em seu governo isso tenha chegado a níveis sem precedentes, como hoje sabemos graças ao trabalho de Snowden, Greenwald e alguns outros.

Para defender-se do inimigo interno, o poder do Estado e o poder concentrado dos grandes negócios privados, essas duas entidades devem manter-se ocultas, enquanto que, ao contrário, o inimigo deve estar completamente exposto à vigilância da autoridade do Estado.

Este princípio foi lucidamente explicado anos atrás pelo intelectual especialista em política, o professor Samuel P. Huntington, que nos ensinou que o poder se mantém forte quando permanece na sombra; exposto à luz, começa a evaporar-se.

O mesmo Huntington faz uma ilustração explícita. Segundo ele, “é possível que tenhamos que vender a idéia (intervenção direta ou alguma outra forma de ação militar) de tal forma, que se leve a crer na impressão errônea de que estamos combatendo a União Soviética.

A percepção de Huntington acerca do poder e da política de Estado é precisa e visionária. Quando escreveu essas palavras, em 1981, o governo de Ronald Reagan empreendia sua guerra contra o terror, que logo se converteu em uma guerra terrorista, assassina e brutal, primeiro na América Central, e logo se estendeu para muito além do sul da África, Ásia e Oriente Médio.

Desde esse dia em diante, para exportar a violência e a subversão ao estrangeiro, ou aplicar a repressão e a violação de garantias individuais dentro de seu próprio país, o poder do Estado tem buscado criar a falsa impressão de que estamos na realidade combatendo o terrorismo e outras variantes de inimigos: traficantes de drogas, mulás loucos empenhados em possuir armas nucleares e outros ogros que, nos dizem vez ou outra, querem atacar-nos e destruir-nos.

Ao largo de todo o processo, o princípio básico é o mesmo. O poder não deve ser exposto à luz do dia. Edward Snowden tem se convertido no criminoso mais procurado por não entender assim essa regra inviolável.

Em poucas palavras, deve haver completa transparência no que diz respeito à população, porém nenhuma para os poderes que devem defender-se desse terrível inimigo interno.

* Linguista, filósofo, cientista cognitivo, comentarista e ativista político norte-americano, reverenciado em âmbito acadêmico como "o pai da linguística moderna”.


O lugar da poesia

* Por Dinovaldo Gilioli


A vida passa rápido demais, às vezes como um voo rasante. E, a morte, quanto tempo leva? O poeta Manoel de Barros se foi há um ano. Quantos se lembram, além dos mais próximos?

A deslumbrante poesia de Manoel, que amava as coisas simples, nos remetia, quase sempre, à transcendência. Ele falava da fugacidade da vida, como quem sabia que viemos e voltaremos como um cisco. Na sua escrita direta, sem entrelinhas, botava mais que pingos nos is. Sem seguir modismos, fazia do poema um canto eterno.

Ele sabia sabiamente que o lugar da poesia é qualquer tempo e espaço. Manoel se encantava com um inseto, e dele fazia sua matéria poética. No mundo em que vivemos, quanto vale as coisas simples?

Para o poeta de palavras encantatórias e atemorizantes, o cu de uma formiga era mais importante que uma usina nuclear. Criticava criativamente os que endeusam a tecnologia, e não enxergam um palmo adiante.

Se foi Manoel como a vida queria, encharcado de poesia por todos os poros. Translúcido, feito vagalume, vagueia e alumia outros lugares. Com seu jeito faceiro de dizer, na lata, o que pensava, deve continuar assombrando os que fazem da vida um acúmulo de coisas imprestáveis para o deleite da alma.

Certamente, onde estiver, se nega a descansar em paz. A paz mórbida que não remove, e só espera a esperança. Manoel de Barros, feito carne e osso, se dissolveu no tempo. Seus poemas, porém, continuam ecoando feito cantar passarinheiro.

Quem saberá onde ele está agora? Como sua poesia, em qualquer lugar que a vida respira depois da morte!

Fragmentos de Barros:

Tem horas leio avencas. Tem horas, Proust. Ouço aves e beethovens.

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.

Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Escutei um perfume de sol nas águas.

Não tem altura o silêncio das pedras.

Eu queria crescer pra passarinho…

* Poeta, tem 6 livros publicados, entre eles,“Cem Poemas” (Editora da UFSC).



Carência insana

* Por Glória Salles


A verdadeira imagem,
o espelho não reflete
Nem os vultos de saudade
presentes aqui...
Ao coração ordeno
que silencie se aquiete
Os olhos camuflem
a luz que um dia refleti
Assim, penso minar
o desejo e a vontade
Escapo de ser enredada
em tua trama
Mas num só gesto,
grito minha verdade
Aflorando na pele,
essa carência insana...


* Poetisa.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos, seis meses e um dia de criação.

Leia nesta edição:

Editorial – Tudo se transforma....

Coluna Ladeira de Memória – Pedro J. Bondaczuk, poema, “Eu e você”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto, “Estranha máquina de devaneios”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto, “Cadê as minhas fichas?”.

Coluna Porta Aberta – Silvério da Costa, crônica, “Urda Klueger e seus bichanos”.

Coluna Porta Aberta – José Régio, poema, “Soneto de amor”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer – Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Tudo se transforma...


Na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”. Qualquer adolescente minimamente informado, com noção elementar de química e de física, conhece de sobejo esse enunciado, mesmo que não pense amiúde (ou mesmo nunca) nele. Trata-se do que a Ciência consagrou como uma das suas leis naturais, que rotulou de “Lei da Conservação da Massa”, ou de “Lei da Conservação da Matéria”, ou, ainda, de “Lei de Lavoisier”, em homenagem ao químico francês Antoine Lavoisier (que teve a cabeça decepada na guilhotina no chamado “Reinado do Terror” da Revolução Francesa). Apesar da paternidade dessa  “descoberta” (que, de fato, não passou de mera “constatação”), ter sido atribuída ao citado cientista, esse princípio certamente passou antes (muitíssimo antes) pela cabeça de milhares (sabe-se lá quantas) de pessoas, de tempos bastante remotos (sabe-se lá de quando), posto que ou era contestada, ou os que pensavam nela não ousavam expressá-la, ou talvez tivessem somente intuição a propósito, sem nenhuma convicção.

Se Lavoisier não houvesse estabelecido (na verdade “constatado”, pois mesmo se não fosse identificada por ele existiria à sua e à nossa revelia)  essa “lei”, certamente outro pesquisador qualquer o faria. Porquanto a mim (e provavelmente a você também, caríssimo leitor) ela parece ser absolutamente óbvia, embora os que se recusem a pensar no que os cerca (a maioria absoluta da humanidade), não se dêem conta de tal obviedade. Apesar desse conceito ser aplicável, sobretudo, à Química e à Física, ele é verdadeiro para tudo no mundo. E não apenas na Terra, mas em todo o Universo. Há quem argumente que matéria se transforme em energia (mas o vice-versa não ocorre). Isso, todavia, não derruba a lei, apenas a comprova. Não há, no caso, destruição e nem criação de nada. Só há transformação. Bem, não vou me aprofundar no tema, não pelo menos do ponto de vista científico, pois não sou cientista. Sou escritor (ou talvez mero “escrevinhador”, como costumo me auto-qualificar).

Trago, pois, a “Lei de Lavoisier” para um terreno mais chão, que me é mais familiar: o do “feijão com arroz”, ou seja, o do cotidiano. Nesse sentido, considero esse princípio natural sumamente positivo, para não dizer decisivo para a própria sobrevivência humana. Para justificar essa afirmação, vem-me de imediato à memória um exemplo, digamos, escatológico, certamente de mau gosto, nem por isso menos verdadeiro: o da produção diária de dejetos humanos. O leitor já pensou na quantidade de fezes e de urina gerados em um único dia por mais de 7,2 bilhões de indivíduos? Ascende a bilhões, quiçá a trilhões ou mais de toneladas. Já imaginaram se esse resíduo biológico todo não se transformasse, não se modificasse e não se degradasse de maneira natural? O Planeta estaria muito mais emporcalhado do que já está, que não é pouco, convenhamos.

Esses dejetos vêm se produzindo, dia a dia, sem cessar, há milhares de anos (sabe-se lá quantos), desde o surgimento da nossa espécie. E não é apenas o homem que os produz. Todos os seres vivos, sem exceção, também os geram. E estes ascendem a alguns bilhões de espécies, cada qual com número incontável de espécimes. Ainda assim... o mundo é razoavelmente habitável. Por que? Porque esses dejetos se transformam, graças à atuação de bactérias específicas, para as quais eles são “alimentos”. Sapientíssima natureza, embora em certos aspectos não deixe de ser cruel, posto que implacável! Tudo se transforma e o tempo todo. Nós nos transformamos a cada dia, a cada hora, a cada minuto, mesmo que tais transformações sejam imperceptíveis.

Transformamo-nos a vida toda, do nascimento à morte. Nossas obras se transformam, mesmo quando nos pareçam destruídas. Não são! São transformadas em algo diferente do que fizemos. Mas cada fragmento delas continua presente em algum lugar, posto que modificado. O mesmo ocorre com nossas idéias, que evoluem ou se degradam, de acordo com a natureza de nossas ações. O Sol, um dia, quando esgotar todo seu combustível, se transformará, provavelmente, numa anã vermelha. A Terra passará por essa transformação e virará cinzas ou algo que o valha. A Via Láctea irá se transformar. Mas nada novo será criado. E nada velho será destruído. Tudo, tudo será transformado. Pelo menos é o que a intuição me dita, com base nessa inflexível lei da natureza. Pensem nisso, mesmo que tal pensamento não sirva para nada prático, além de transformá-los um pouco mais, talvez em pessoas mais conscientes.

Boa leitura!

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk               


Eu e você


* Por Pedro J. Bondaczuk


Estrela brilhante do meu céu interior,
senhora dos meus pensamentos e atos,
fonte de ternura, minha redenção,
amante e amiga, cúmplice e parceira.
Somos unos, em nossa duplicidade.
Complementares: o côncavo e o convexo,
duas vidas compondo vida mais ampla,
para gerar (ó milagre!) outras tantas vidas.

Embalo em seu olhar meus castos sonhos,
bebo em seus lábios o néctar da eternidade
embriago-me em seu corpo dourado:
morro em seus braços para após renascer.

Ao seu lado, nenhum espinho me fere,
as pedras do caminho são tapetes de veludo
o ar é sempre puro e levemente perfumado
e até o mar é de água doce e refrescante.

Tanta ternura nenhum cético empedernido,
que sequer exista se convence, ou crê.
pois lhe revelo, em êxtase, e comovido:
você é eu e eu, certamente, sou você!!!

(Poema composto em Campinas, em 25 de agosto de 2011).


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Estranha máquina de devaneios

* Por Marcelo Sguassábia


Habituais ou esporádicos, todos somos lavadores de louça. Lúdico passatempo, esse. Sim, porque ninguém vai para a pia e fica pensando: agora estou lavando um garfo, agora estou enxaguando um copo, agora estou esfregando uma panela. Não. Enquanto a água escorre e o bom-bril come solto, o pensamento passeia por dobrinhas insuspeitas do cérebro.

Numa aula de história, em 1979. O professor Fausto e a dinastia dos Habsburgos, a Europa da Idade Média e seus feudos como se fosse uma colcha de retalhos. O Ypê no rótulo do detergente leva ao jatobazeiro e seu fruto amarelo de cheiro forte, pegando na boca. Cisterna sem serventia. Antiga estância de assoalhos soltos. Rende mais, novo perfume, fórmula concentrada com ação profunda.

A cidade era o fim da linha, literalmente. O trem chegava perto, não lá. Trilhos luzindo ao meio-dia. Inertes e inoperantes. As duas tábuas de cruzamento/linha férrea dando de comer aos cupins. Crosta de queijo na frigideira, ninguém merece. Custava deixar de molho? Arranco o pâncreas pela goela desse um.

O mingau de maizena vinha fumegando, polvilhado de canela. Nas mãos de Parkinson da velha Dita, que perigo. Agasalho doce antes de dormir, prêmio de quem fez lição direito. Diga às suas pernas que fico. E assim foi, ao me pedir para ficar só mais um pouco. Para mais uma. E outra. Torneira aberta e celular com toque baixo é jogo duro. Deixa fechar essa disgrama um pouco... Não, acho que é no vizinho. É, não tocou aqui, não. Fosse coisa séria ligavam no fixo também, notícia ruim chega logo.

Tanta briga por causa de um escroto de um patinho de borracha. Pensar que aquilo era o conflito, quando havia. Professor Fausto lá, traçando na lousa seu tabuleiro feudal, falando da colcha de retalhos e da monarquia de Habsburgo. Tá demorando muito pra escoar essa água, cadê o diabo verde? Só queria o segredo de lidar contigo, juro mesmo. Esse inquérito todo, pra quê... não ganharia nada te escondendo a verdade, procura compreender meu lado. Ah, dessa vez acho que é o meu celular.

A louça, agora seca. A alma, agora lavada.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Cadê as minhas fichas?


* Por Gustavo do Carmo


Me chamo Norma Célia. Sou professora de ensino fundamental. Dou aula de geografia e história para alunos da oitava série. Preparo as aulas de véspera, todos os dias, depois que eu chego da escola. Trabalho em uma pequena instituição particular chamada João Paulo II.

Logo que eu termino de preparar as aulas resumo tudo em fichas de papel, daquelas pautadas. Organizo tudo em ordem alfabética, de acordo com o assunto. Faço ficha de tudo: temas, bibliografia, personagens, exercícios, entre outros. Guardo tudo numa caixa de acrílico com chave e a protejo com uma frasqueira de couro.

Aprendi a fichar com a minha mãe, que era bibliotecária. Ela ainda está viva, graças a Deus! Só que está aposentada há quase trinta anos e bem velhinha.

Num desses dias de aula, estava lecionando em uma das escolas quando um aluno franzino, de óculos, veio me procurar para denunciar um grupo de colegas que o humilhava. Não era a primeira vez que ele reclamava. E também não era o primeiro aluno. Um menino gordo e outro afeminado já tinham feito as mesmas acusações.

Mandei que eles falassem com a diretora. Os três disseram que têm medo dela, pois era muito rigorosa e não tinham coragem para entregá-los. Pelo contrário. Tinham medo de represálias. Não que eu não quisesse ajudá-los, os coitados só confiavam em mim. Só que eu não me dou bem com a diretora Laura. E esta parece que é muito amiga do pai de um dos agressores. Nunca iria fazer nada. De qualquer forma, anotei a queixa nas minhas fichas.

Sou tão dedicada a elas que, às vezes, me sinto neurótica. E os alunos já perceberam isso. Tanto que alguns deles adoram me provocar. Deram para bagunçar as minhas queridas fichas.

Aff! Odeio quando tiram uma única ficha do lugar. Neste caso eu só fico puta e coloco na ordem. Mas quando bagunçam o arquivo todo, prendo todo mundo na sala na hora da saída ou do recreio, até que o culpado se apresente. Dependendo do aluno eu até não faço nada, a não ser dar um duradouro sermão. Não mando ele arrumar porque elas contêm algumas informações pessoais e gabaritos de provas. Não dou esse mole. Ou dou?

Tentei manter a calma até o dia em que o meu fichário sumiu. Meu mundo caiu. Toda a minha vida estava naquelas fichas. Entrei em depressão. Faltei pela primeira vez na minha carreira de professora. Consegui que a diretora Laura ficasse do meu lado e me ajudasse a procurar o fichário e punir os culpados.

Uma semana depois, a minha razão de viver reapareceu. Destruída. O fichário de couro estava sujo de lama. Metade das fichas estava rasgada. A outra metade, queimada. Se o meu mundo tinha caído quando elas sumiram, agora eu senti o impacto.  

Fiquei um mês em casa, sem sequer me levantar da cama. Foi só quando vi a minha mãe, fraquinha, tentando me ajudar e me dar comida na boca é que eu acordei e juntei forças. Me deu pena dela me olhar com pena. Eu que precisava cuidar dela e não ela de mim.

Fui até ao escritório do meu falecido pai. Revirei as gavetas do armário dele e encontrei uma caixa de couro. Me lembrava até a caixa onde eu guardava as minhas fichas.

Depois de chutar e acertar de terceira a senha de metal, abri e encontrei um revolver de cinquenta anos, que pertencia ao meu bisavô. As balas ainda estavam lá. Papai as tinha comprado uma semana antes de morrer.  

Restava saber se ainda funcionavam depois de vinte anos. Como eu ia testar? Se eu atirasse aqui em casa ia assustar a minha mãezinha. Decidi atirar sem testar, mesmo. Se falhasse e ninguém percebesse, talvez o meu ódio esfriasse.

Pela manhã, fui normalmente dar aula. Sem as minhas fichas, que ainda estavam sendo refeitas. Todos os meus alunos me aplaudiram. Ficaram felizes com a minha volta. Ouvi as mesmas queixas de bullying. Orientei os alunos mais tímidos. Dei bronca nas algazarras e expus as matérias.

Fiquei ouvindo a conversa dos baderneiros, nos intervalos, para saber onde eles iriam passar a noite. Era o início do meu plano. Tenho certeza de que foram eles que destruíram as minhas fichas.

Antes de começar a aula da oitava série, entrei escondida na secretaria e vasculhei as fichas dos alunos. Queria descobrir onde os tais suspeitos moravam. A João Paulo II tinha por norma não fornecer endereços de alunos para terceiros. Nem para os professores.

Já podia me sentir vingada ao mexer no arquivo alheio. Mas eu precisava me vingar dos alunos que roubaram as minhas fichas. Não da escola.

Descobri o nome dos alunos. Um se chamava Anderson Natalino de Jesus, morava no Méier. O segundo, Emílio Andrade Motta, da Barra da Tijuca. E o terceiro, Aparecido Nascimento do Carmo, residente em Duque de Caxias. Deu tempo de tirar Xerox de todas as matrículas antes de ouvir o ruído de alguém entrando na antessala da secretaria. Saí com a sensação de que esqueci alguma coisa. 

Dei aula normalmente até o final do expediente da tarde. Liguei pra minha mãe avisando que iria chegar tarde em casa. Disse que ia sair com uns amigos. Minha mãe disse apenas “Vai com Deus, minha filha! Se divirta! Você está precisando.”

Entrei no meu carro popular de segunda mão e comecei a seguir o Emílio, que foi para o ponto de ônibus. A escola fica na Tijuca. Tão logo ele pegou o ônibus, engatei a primeira e o segui.

Com tanta volta que o ônibus deu mais os engarrafamentos da hora do rush, já estava escuro quando chegamos à Barra. Ele saltou num ponto deserto. E caminhou na direção do meu carro. Tive que me esconder quando ele passou por mim. Ainda bem que ele não me reconheceu.

Fiz uma bandalha com o meu carro para mudar de direção sem perder tempo com aquele retorno enorme. Segui o jovem. Era o momento certo para atirar. Virei-me para pegar a arma.

Dei um tiro certeiro a três metros de distância. Varou o pescoço. O adolescente de camisa branca caiu abatido como um cervo. Fugi imediatamente, mas saí sem acelerar para não chamar atenção. Dei graças a Deus por ninguém ter me visto.

Segui o meu caminho até o próximo destino. Onde? Puta merda! Lembrei o que eu tinha esquecido: a ficha dos elementos. Ainda bem que eu lembrei que o Aparecido morava em Duque de Caxias.

Fui até lá. Meia hora depois, que sorte, vi o rapaz num churrasquinho numa praça da cidade. Estava movimentada, mas o local onde eu estacionei o carro estava deserto. Deu pra sair do veículo e ter a liberdade de descarregar a minha raiva sem ser percebida. Dei cinco tiros. Vi dois acertarem a cabeça e o peito do Aparecido. Fugi novamente, sem acelerar. Todos acharam que foi bala perdida.

Cheguei em casa no Méier e encontrei mamãe toda ensangüentada, parada na porta. Me desesperei. Corri para abraçá-la e perguntar:

— Mãe, o que houve?
— Dei cinco tiros num filho da puta que ficou zombando das suas fichas. Isso foi pela sua honra e pra esse vagabundo aprender que ninguém debocha de uma bibliotecária. 

À frente dela, sobre uma poça de sangue, estava o corpo do Anderson, o último baderneiro que eu ia matar. Mamãe usou outra arma de papai, uma pistola Magnum 44. Sujas de pólvora e sangue, abraçamos emocionadas - eu agradecida pelo gesto maternal – antes de sermos algemadas.

Além da brutalidade do crime, fomos condenadas porque matamos os alunos errados. Foram as vítimas de bullying: o menino gordo, o gay e o CDF quem destruíram as fichas. Descoberta pela minha impressão digital nas fichas esquecidas e por testemunhas em Duque de Caxias, peguei dezenove anos de cadeia. Mamãe, mesmo pega em flagrante, pelos seus noventa anos, apenas doze.

Ela ficou num asilo. Eu no Talavera Bruce, onde trabalhei como bibliotecária para reduzir a pena. Depois de ser solta e recomeçar a minha carreira de professora, troquei as fichas de organização de papel por um tablet. Até que um dia ele sumiu. 

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
 Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe -http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores