Um lugar para ir antes de
morrer
*
Por Anna Lee
Numa entrevista que Clarice
Lispector fez com Jorge Amado, perguntou se de algum modo ele estava
ligado a uma religião, se já havia passado por uma experiência
mística. Ele respondeu que não era religioso, era materialista. E
também que nunca passara por qualquer experiência mística, mas já
tinha assistido a muita mágica, era supersticioso e acreditava em
milagres, achava que a vida é feita de acontecimentos comuns e de
milagres. Mesmo não tendo crença religiosa, ele detinha um alto
título no candomblé baiano, era Oba Otum Arolu, uma distinção que
os amigos conferiram a ele.
No mesmo livro em que essa
entrevista está publicada – De
corpo inteiro, que
freqüenta minha cabeceira desde que decidi ser jornalista –,
Clarice pergunta a Tom Jobim se acreditava em reencarnação.
Transcrevo a resposta:
“Não sei. Dizem os hindus
que só entende de reencarnação quem tem consciência das várias
vidas que viveu. Evidentemente não é o meu ponto de vista: se
existe a reencarnação só pode ser por um despojamento”.
Então, Clarice falou a Tom
sobre a epígrafe de um de seus livros, uma frase de Bernard
Berenson, crítico de arte: “Uma vida completa talvez seja aquela
que termina em tal identificação com o não-eu que não resta um eu
para morrer”.
Porque ando pensando sobre os
milagres da vida – dizem os cabalistas que este mês de dezembro é
o mês dos milagres –, de preferência os realizados nos
acontecimentos simples da vida, me lembrei da conversa de Clarice com
Jorge Amado e Tom.
E também me lembrei de uma
época em que ouvi dizer que, segundo o hinduísmo, o ser humano deve
buscar quatro dons durante a passagem pela vida terrena: dharma
(religiosidade), artha (riqueza material), kama (prazer sensual) e
moksha (salvação). E que Benares é a única cidade onde
Vishvanath, o Senhor do Universo, concede esses quatro dons aos
homens. Todos os hindus devem passar por lá pelo menos uma vez na
vida. Benares – ou Varanasi, como também é chamada – é um
lugar para ir antes de morrer.
Não tive dúvida. Parti para
Benares, mesmo sem ser hinduísta.
Eram cinco horas da manhã
quando deixei o hotel em direção ao rio Ganges. Na noite anterior,
o recepcionista advertira que era preciso chegar antes das seis aos
gaths
(escadarias nas margens do rio, formadas por muitos e enormes
degraus), se eu quisesse acompanhar desde o início o ritual que
moradores e peregrinos fazem a cada manhã nas águas do Ganges –
consideradas sagradas pelos hindus e, por isso, capazes de promover a
liberação de todos os pecados.
À medida que o dia surgia,
dezenas e mais dezenas de pessoas vinham das ruelas, escuras e sujas,
seguiam pelas vias principais e se juntavam aos que já estavam nos
gaths.
Homens e mulheres com roupas multicoloridas; de branco, apenas as
viúvas. O sol, que era uma bola de fogo, dava a impressão de que
emergia das águas, no outro lado do rio.
Cada devoto carregava uma
cesta de flores, bandejas com oferendas, velas ou mudas de roupa.
Alguns faziam o percurso até o rio de joelhos, em sinal de
agradecimento. Outros murmuravam orações que, num coro, ressoavam
como uma bênção.
Para os hindus, visitar os
gaths
não é um ritual que se cumpre apressadamente. Nada é mais
importante do que estar aos pés do deus Vishvanath, a quem devem
consagrar todos os dias, e do que sentir-se aconchegado pelo Ganges –
que chamam de “mama Ganga” ou samanyadhatri,
aquela que nutre e protege todos os seres vivos.
Muitos também vão para
Benares para esperar a morte. Alguns gaths
são reservados
para a cremação dos mortos. Os ascetas, místicos que renunciaram
aos bens terrenos, são os únicos que não são cremados. Seus
corpos, cobertos de flores e atados a um peso, são lançados no
Ganges. Ali, a morte não é ocasião para tristeza, mas para
celebração, pois libera a alma de ciclo de reencarnação.
“Basta pronunciar o nome de
Ganga e o pecador é redimido. E, no momento em que as cinzas de um
morto tocam suas águas, sua alma é transportada até o céu”, me
disse o barqueiro que me conduzia pelo rio.
Para mim, aqueles rituais
cotidianos da vida e da morte eram apenas um espetáculo mágico. Por
isso, talvez, Vishvanath nunca tenha me concedido todos os quatro
dons prometidos. E aí penso em Clarice, Jorge e Tom, e peço por um
milagre neste dezembro, mas não pelo perdão de meus pecados.
*Jornalista, mestranda em
Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O
Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre
outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e
nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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