sábado, 21 de julho de 2018

Um lugar para ir antes de morrer - Anna Lee


Um lugar para ir antes de morrer


* Por Anna Lee



Numa entrevista que Clarice Lispector fez com Jorge Amado, perguntou se de algum modo ele estava ligado a uma religião, se já havia passado por uma experiência mística. Ele respondeu que não era religioso, era materialista. E também que nunca passara por qualquer experiência mística, mas já tinha assistido a muita mágica, era supersticioso e acreditava em milagres, achava que a vida é feita de acontecimentos comuns e de milagres. Mesmo não tendo crença religiosa, ele detinha um alto título no candomblé baiano, era Oba Otum Arolu, uma distinção que os amigos conferiram a ele.

No mesmo livro em que essa entrevista está publicada – De corpo inteiro, que freqüenta minha cabeceira desde que decidi ser jornalista –, Clarice pergunta a Tom Jobim se acreditava em reencarnação. Transcrevo a resposta:

“Não sei. Dizem os hindus que só entende de reencarnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. Evidentemente não é o meu ponto de vista: se existe a reencarnação só pode ser por um despojamento”.
Então, Clarice falou a Tom sobre a epígrafe de um de seus livros, uma frase de Bernard Berenson, crítico de arte: “Uma vida completa talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não-eu que não resta um eu para morrer”.

Porque ando pensando sobre os milagres da vida – dizem os cabalistas que este mês de dezembro é o mês dos milagres –, de preferência os realizados nos acontecimentos simples da vida, me lembrei da conversa de Clarice com Jorge Amado e Tom.

E também me lembrei de uma época em que ouvi dizer que, segundo o hinduísmo, o ser humano deve buscar quatro dons durante a passagem pela vida terrena: dharma (religiosidade), artha (riqueza material), kama (prazer sensual) e moksha (salvação). E que Benares é a única cidade onde Vishvanath, o Senhor do Universo, concede esses quatro dons aos homens. Todos os hindus devem passar por lá pelo menos uma vez na vida. Benares – ou Varanasi, como também é chamada – é um lugar para ir antes de morrer.

Não tive dúvida. Parti para Benares, mesmo sem ser hinduísta.

Eram cinco horas da manhã quando deixei o hotel em direção ao rio Ganges. Na noite anterior, o recepcionista advertira que era preciso chegar antes das seis aos gaths (escadarias nas margens do rio, formadas por muitos e enormes degraus), se eu quisesse acompanhar desde o início o ritual que moradores e peregrinos fazem a cada manhã nas águas do Ganges – consideradas sagradas pelos hindus e, por isso, capazes de promover a liberação de todos os pecados.

À medida que o dia surgia, dezenas e mais dezenas de pessoas vinham das ruelas, escuras e sujas, seguiam pelas vias principais e se juntavam aos que já estavam nos gaths. Homens e mulheres com roupas multicoloridas; de branco, apenas as viúvas. O sol, que era uma bola de fogo, dava a impressão de que emergia das águas, no outro lado do rio.

Cada devoto carregava uma cesta de flores, bandejas com oferendas, velas ou mudas de roupa. Alguns faziam o percurso até o rio de joelhos, em sinal de agradecimento. Outros murmuravam orações que, num coro, ressoavam como uma bênção.

Para os hindus, visitar os gaths não é um ritual que se cumpre apressadamente. Nada é mais importante do que estar aos pés do deus Vishvanath, a quem devem consagrar todos os dias, e do que sentir-se aconchegado pelo Ganges – que chamam de “mama Ganga” ou samanyadhatri, aquela que nutre e protege todos os seres vivos.

Muitos também vão para Benares para esperar a morte. Alguns gaths são reservados para a cremação dos mortos. Os ascetas, místicos que renunciaram aos bens terrenos, são os únicos que não são cremados. Seus corpos, cobertos de flores e atados a um peso, são lançados no Ganges. Ali, a morte não é ocasião para tristeza, mas para celebração, pois libera a alma de ciclo de reencarnação.

“Basta pronunciar o nome de Ganga e o pecador é redimido. E, no momento em que as cinzas de um morto tocam suas águas, sua alma é transportada até o céu”, me disse o barqueiro que me conduzia pelo rio.

Para mim, aqueles rituais cotidianos da vida e da morte eram apenas um espetáculo mágico. Por isso, talvez, Vishvanath nunca tenha me concedido todos os quatro dons prometidos. E aí penso em Clarice, Jorge e Tom, e peço por um milagre neste dezembro, mas não pelo perdão de meus pecados.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.




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