Maldição ou privilégio?
A
questão da importância do talento para se ter sucesso em qualquer
atividade é muito controversa e polêmica. Há os que juram que sem
ele é até impossível sequer cogitar, mesmo que remotamente, em
êxito no que estivermos fazendo, seja lá o que for. Uns dizem que
nascemos com essas aptidões naturais e que basta aplicá-las na
atividade para a qual formos vocacionados para atingirmos a
excelência em nossas obras. Outros, todavia, discordam, Garantem que
sem aprimoramento, sem treino constante e diligente, o talento
estaciona, estiola, murcha e morre.
Mas
a questão que mais me intriga, notadamente em alguns escritores (e
vários deles bem sucedidos), é o fato de muitos considerarem a
vocação de que são dotados de “maldição”. Seria mesmo? Seria
uma coisa tão ruim e nefasta e, pior, da qual a pessoa não poderia
se livrar quando não mais a satisfizesse e quando melhor a
aprouvesse? Discordo enfaticamente dessa posição. Considero o gosto
pela literatura, e mais do que isso, o talento para exercê-la bem,
com competência e proficiência, enorme privilégio. A maioria das
pessoas não só não sabe tratar das grandes questões, como é
incapaz até mesmo de se comunicar minimamente por escrito. Essa
ignorância, sim, deve ser deplorada.
O
escritor Thomas Mann, um dos clássicos da literatura alemã,
escreveu no livro “Tonio Krueger – A morte em Veneza” (Boa
Leitura Editora): “A literatura não é profissão alguma, e sim
uma maldição...” Caso tenha se referido ao retorno econômico
dessa atividade, não deixa de ter lá certa dose de razão. Há
outras tantas muito mais rentáveis e menos exigentes do que o trato
das letras, posto que nem sempre fascinantes. Não, pelo menos, mais
do que essa maravilhosa aptidão de comunicar pensamentos e
sentimentos, de relatar fatos, de gerar fantasias, de difundir
conhecimentos etc. com este instrumento frágil e volátil, que é a
palavra.
Ademais,
ninguém obriga ninguém a fazer da literatura seu meio de vida. Quem
abraça essa atividade fá-lo por amor, por convicção, por opção
pessoal e nunca por obrigação. É fato que algumas pessoas nascem
com talento maior para determinadas coisas do que outras. No entanto,
se não desenvolvê-lo, se não estudar, não treinar, não exercitar
essa aptidão, não forem aplicadas e autodisciplinadas, esta não
surtirá nenhum efeito.
O
artista, em especial o poeta, desenvolve com anos de exercício a
capacidade de explorar sutilmente o subconsciente à cata de emoções
que lhe sirvam de matéria-prima para maravilhosas obras de arte.
Sons, imagens, odores, sensações agradáveis ditadas pelos cinco
sentidos, são transformados por esses criadores (que valorizam e dão
nobreza à vida humana) em melodias, telas, esculturas, palavras que
formam metáforas bem ajustadas e harmoniosas. Com o talento de que
são dotados, nos transmitem suas emoções, às quais agregamos as
nossas, ditadas por nossa própria experiência pessoal. Mas isso
apenas será verdadeiro se vier a desenvolvê-lo. Reitero, se
burilá-lo através do estudo, desenvolvê-lo, pelo treinamento e
consolidá-lo, pelo exercício.
Uma
das mais belas e profundas parábolas de Cristo fala justamente sobre
a distribuição de talentos – no caso específico, o nome de uma
moeda da época, mas que, em sentido metafórico, simboliza as
aptidões naturais com que somos dotados (ou deixamos de ser). Quem
recebeu a maior quantidade, o primeiro dos servidores, aplicou-a e
dobrou-a. O segundo servo, que ganhou uma quantia mediana, igualmente
fez bom uso desse capital e o multiplicou. Todavia, justo quem foi
menos aquinhoado, não soube o que fazer com o patrimônio.
Enterrou
seu talento e teve que devolver essa única moeda recebida, ficando
sem nada. E ainda foi repreendido por sua falta de iniciativa. O
mesmo ocorre no mundo. Os mais talentosos, em geral, têm
autodisciplina para desenvolver novas habilidades. Os tacanhos
preferem encolher-se e ficar reclamando das injustiças. E acabam por
sumir, sem deixar pegadas. São esses que consideram sua vocação,
posto que pequena, como maldição. Por que? Porque não sabem o que
fazer com ela. Ou porque não entendem bem sua natureza e alcance,
superestimam-na e, claro, se frustram.
O
homem pode criar arte até com o próprio corpo, com sua vida, com
sua experiência pessoal, embora esta pareça fútil, trivial e sem
importância. Quem sugere esse caminho é Jorge Luís Borges.
"Devemos fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa
vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade". Caso
apliquemos na devida medida nosso talento nessa empreitada,
encontramos satisfação que dinheiro algum paga. Nossas experiências
pessoais, por mais corriqueiras que pareçam, podem ter grande
importância para nossos companheiros "de aventura", para
as pessoas do nosso tempo e, principalmente, para as gerações
futuras. As mesmas fraquezas que detectamos em nós e que buscamos
esconder dos outros, para não deslustrar a nossa "imagem",
são as dos que nos rodeiam, que igualmente as escondem.
Só
a arte tem o condão de nos revelar a genuína grandeza do ser humano
(em termos potenciais), a transcendência da vida e a beleza em toda
sua majestade e magnitude. Por meio dela, com a sua linguagem
simbólica, realçada pelo talento, é que expressamos, sem enganos,
dissimulações ou temores, os grandiosos ideais, individuais, e
coletivos (os da humanidade), esquecidos no dia-a-dia. Aqueles mesmos
que nos empolgaram um dia, na juventude, mas que, na luta feroz do
cotidiano, pelo pão nosso de cada dia, na batalha inglória pela
sobrevivência, deixamos, pouco a pouco, se esvair e se perder no
meio do caminho.
Uma
citação pitoresca, acerca do talento, notadamente para as artes,
foi escrita por William Faulkner e enseja inúmeras interpretações.
O romancista norte-americano escreveu: “Um artista é uma criatura
guiada por demônios. Não sabe porque esses demônios o escolheram e
geralmente está muito ocupado para indagar a respeito”. Prefiro
esta outra constatação, a de John Irving, no livro “A prayer for
Owen Meany”: “Se você tiver a sorte de encontrar um meio de
vida de que goste, precisará ter a coragem para vivê-la”. É isso
que entendo que seja a aplicação dos talentos, da parábola de
Cristo, que tende a fazê-los render, se não economicamente, em
outra instância, a que mais nos importa: em satisfação! O que é,
afinal, a vocação para as artes (ou para qualquer outra atividade)?
É maldição ou privilégio? Ora, ora, ora...
Boa
leitura!
O
Editor.
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É privilégio, mesmo que o agraciado o rejeite.
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