Fendas do inferno
Os
sonhos sempre me intrigaram e fascinaram e, por mais que tenha
estudado a respeito, nunca consegui compreender seu mecanismo e sua
utilidade. Não é estranho “vivermos” uma outra vida, quando
nosso corpo está em absoluto repouso, numa simulação da morte?
“Convivemos” com pessoas que não lembramos de já termos sequer
visto algum dia, “vemos” paisagens que nunca vimos de verdade,
“vivemos” histórias que nunca aconteceram. Enfim, passa, em
nossa mente, todas as noites, um “filme” inédito (provavelmente,
vários) do qual somos, simultaneamente, roteiristas, diretores e
atores.
Garantem
os especialistas que os sonhos são projeções de nossa mente, uma
espécie de “descarga” de tensões que acumulamos ao longo do dia
e de preocupações que nos acometem a todo o momento e das quais
apenas nos livramos (nas asas da fantasia) mediante esse processo.
Será? Tenho lá minhas dúvidas.
A
Bíblia deixa implícito que alguns sonhos seriam proféticos.
Daniel, por exemplo, interpretou o que o rei da Babilônia havia
sonhado e, com isso, conseguiu uma posição de destaque, para si e
para o seu povo cativo, na corte desse monarca, pois este ficou
plenamente convencido com sua interpretação.
O
mesmo já havia acontecido muito antes com José, filho do patriarca
Jacó, no Egito. O faraó havia sonhado com sete vacas gordas e sete
magérrimas. Ficou intrigado com isso e queria porque queria saber,
de qualquer forma, do que se tratava. Nenhum de seus magos e
adivinhos soube, contudo, dizer se esse sonho tinha algum significado
e, principalmente, qual.
José,
que tinha fama de entendido no assunto, foi, então, convocado à
presença do todo-poderoso monarca egípcio para dar sua opinião. E
não vacilou: disse que as vacas magras significavam sete anos de
fartura, com colheitas magníficas, muito superiores à média, e as
magras, representariam sete anos de colheitas pífias, muito aquém
do que a terra poderia produzir.
Todavia,
o então jovem hebreu não se limitou a meramente interpretar o que o
faraó havia sonhado. Aduziu-lhe sensatíssimas recomendações.
Sugeriu, principalmente, que nos sete anos de fartura, o excedente
das colheitas fosse estocado para ser utilizado no período de fome
que viria a seguir.
O
grande mérito do monarca egípcio, sem dúvida, foi o de haver
acreditado nessa interpretação. Poderia ter descrido, o que até
seria mais lógico. E foi mais longe ainda: nomeou José como
ministro. Este, incontinenti, pôs em prática o que havia
recomendado ao faraó. De fato, o Egito passou por sete anos de
colheitas espetaculares, cujo excedente foi, cuidadosamente, estocado
em silos improvisados para este fim.
Findo
este período, todavia, uma prolongada seca se abateu sobre aquele
império. Foi tão severa, que até as águas do Rio Nilo,
normalmente caudaloso, baixaram a um nível assustador, como nunca
antes havia sido visto. A terra, esturricada pelo sol, por falta de
irrigação, não produzia praticamente nada. Mas os egípcios não
passaram fome. Pelo contrário, chegaram, até, a exportar alimentos
para países vizinhos. E tudo graças ao fato do faraó ter
acreditado na interpretação do sonho feita por José e seguido suas
sensatas recomendações. Trata-se de um fato? É mera alegoria? Cada
um pense o que quiser, de acordo com o tamanho e a intensidade da sua
fé.
Mas,
voltando ao assunto, se os sonhos me intrigam (e isso não nego), os
pesadelos me deixam totalmente pasmo. Os entendidos (sempre eles)
atribuem esses episódios aterrorizantes à má digestão, ou, muitas
vezes, a aflições agudas e incontroláveis que nos judiam, sem que
percebamos. Será? Convenhamos, o diagnóstico até que faz sentido.
Ou melhor, é a explicação mais lógica e racional para este
fenômeno.
E
por que a expressão “pesadelo”? Provavelmente porque, quando
temos um, a principal característica é a sensação de termos um
peso no estômago e, notadamente, no peito, o que nos atrapalha até
de respirar. Queremos nos mexer e não conseguimos. Queremos gritar,
e não sai som algum da garganta. Até que (ufa! que alívio!)
acordamos, em geral com o coração disparado e, não raro, suando
frio!
Tenho,
todavia, a respeito dos pesadelos, as mesmíssimas dúvidas
expressadas, certa feita, por meu grande guru, o escritor Jorge Luiz
Borges, num determinado texto em que indagou e depois afirmou: “E
se os pesadelos forem estritamente sobrenaturais? Digamos que fossem
fendas do inferno. Dentro dos pesadelos, não estaríamos
literalmente no coração do inferno? Por que não? Tudo me parece
tão estranho que até isso seria possível”.
Pois
é, se o inferno, de fato, existe (depende do que consideramos como
tal), ao termos um pesadelo estaríamos bem no seu âmago, tamanho é
o sofrimento (inclusive físico) que temos. Onde, porém, a verdade?
Está com os médicos, biólogos e anatomistas, ou com estes
vasculhadores, esses incorrigíveis bisbilhoteiros das emoções
humanas, que são os escritores?
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Lendo suas suposições e pensando. Como passa das 23 h, estou com receio de ter pesadelos. Que eles não me venham.
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