domingo, 31 de agosto de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, quatro meses e trinta e um dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Um dos maiores best-sellers da História.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Riso ou choro?”.

Coluna Direto do Arquivo – Leandro Barbieri, conto, “As viúvas do U.S.A.”.

Coluna Clássicos – Herberto Sales, conto, “A morte na gruna”.

Coluna Porta Aberta – Adélia Prado, poema “A paciência e seus limites”.

Coluna Porta Aberta – Vitor Orlando Gagliardo, conto, “A epopéia cinematográfica de um paraibano”.


@@@

Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com “Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Um dos maiores best-sellers da História

Era um dia claro e frio de abril e os relógios marcavam uma da tarde”. Assim começa um dos livros mais marcantes do século XX e talvez de todos os tempos: “1984”, de George Orwell. O sucesso foi (na verdade, é) tão grande, que seu autor se transformou em um adjetivo. Muitas vezes, ao nos referirmos a alguma ditadura sumamente feroz, dizemos que ela é “orwelliana”. Aliás, a expressão é utilizada em muitas outras acepções. Tornou-se comum utilizá-la, por exemplo, para caracterizar qualquer tipo de desonestidade praticada por algum governo. E essas são tantas!!!

Pouquíssimos escritores são tão identificados com sua obra como o ativista inglês (posto que nascido na Índia e cujo nome verdadeiro sequer era George Orwell, mas Eric Arthur Blair). Lembro-me, apenas, de dois outros: de Franz Kafka, o mais conhecido, e de Marcel Proust. Ao nos referirmos a alguma situação (ou pessoa) surreal, sumamente absurda, dizemos que ela é “kafkiana”. Caracterizamos, por outro lado, alguma descrição memorialística rigorosamente detalhada como “proustiana”. Não me ocorre nenhum outro caso parecido, embora suponha (e admita) que existam mais uns ou outros. Há, é certo, um bastante conhecido no Brasil. Ao nos referirmos a algum dicionário do nosso idioma, seja de que lingüista for, dizemos: “Passe-me o Aurélio”. Trata-se de referência a Aurélio Buarque de Holanda. Fazemos essa associação graças ao seu excelente (e competente) trabalho em relação à língua portuguesa.

Para que o leitor tenha uma idéia do sucesso de “1984”, informo que o livro foi traduzido para 65 línguas. Foi, e continua sendo, portanto, fantástico best-seller mundial. É impossível de se apurar a quantidade de exemplares vendidos mundo afora. Estima-se, grosseiramente (sem exageros) que seja qualquer coisa ao redor de algumas centenas de milhões de cópias. A enciclopédia eletrônica Wikipédia destaca que, embora “1984” tenha sido banido e questionado em alguns países, o livro é, ao lado de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (que foi professor de Orwell) e “Nós”, do russo Yevgeny Zamyatin uma das mais famosas representações de uma sociedade distópica. Informa mais: “Em 2005, a revista Time listou o romance como uma das cem melhores obras de língua inglesa publicadas desde 1923”.

Mas não é somente isso que atesta o sucesso de “1984”. O livro foi adaptado para o cinema duas vezes (conforme detalhei e comentei em texto anterior). Wikipédia fornece mais informações a esse propósito. Destaca que “dois anos antes da adaptação para o cinema, a BBC adaptou o romance para a televisão”. E informa que esta adaptação “provou ser altamente controversa, tendo sido questionada no Parlamento e recebido várias reclamações de telespectadores devido a seu conteúdo supostamente subversivo e de natureza perversa”. Como se vê, não são somente ditadores que se julgam no direito de censurar idéias. Muito cidadão, que bate no peito, se dizendo “democrata”, age da mesma forma (ou até pior) diante de algo com que não concorde. Ora, ora, ora.

Mas Wikipédia aduz: “Numa pesquisa conduzida pelo British Film Institute (Instituto Britânico de Cinema) para determinar os cem melhores programas de televisão da Grã-Bretanha do século XX, esta adaptação de 1984 apareceu na septuagésima terceira posição”. O sucesso da obra de Orwell, todavia, vai além, muito além de tudo o que citei. Seu livro, por exemplo, foi transformado em ópera, que estreou na Royal Opera House de Londres em 3 de maio de 2005. Querem mais? Inspirou o holandês John de Mol a criar o reality show “Big Brother”, que se tornou uma praga em várias partes do mundo e que no Brasil já teve 14 versões na Rede Globo, além de inspirar programas similares em outras emissoras. Até história em quadrinhos existe baseada (ou pelo menos inspirada) no livro de Orwell. Trata-se de “V de Vingança” (adaptada para o cinema, tendo John Hurt no elenco), com enredo de Alan Moore e desenhos de David Lloyd.

Há vários outros filmes claramente inspirados na obra orwelliana, posto que seus autores neguem (alguns até admitem). Um deles (o que me lembro), por exemplo, é “Equilibrium”, estrelado por Christian Bale. Até jogo de computador (“Half Life 2”) foi criado, bastante parecido com situações descritas em “1984”. E pensar que George Orwell não lucrou praticamente nada com o estrondoso sucesso do seu polêmico, posto que marcante livro! Pelo contrário. Vários de seus biógrafos garantem que a redação dessa obra “matou-o”. O escritor estava muito doente, com tuberculose, quando o redigiu. Morreu meses depois da sua publicação, enfrentando sérios problemas financeiros. Muitas (se não todas) suas páginas foram escritas com sacrifício sobre-humano, em estado febril, diversas vezes com até 40 graus de febre. Isso é que é ter convicção no que se faz!. E esse, óbvio, é outro aspecto muito importante, em torno desse fantástico best-seller, digno de ser melhor analisado.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.             
Riso ou choro?

* Por Pedro J. Bondaczuk

O padre Antonio Vieira afirmou, em um debate (pouco conhecido) que travou, no palácio da ex-rainha Cristina Alexandra, da Suécia, em Roma, no ano de 1674: “Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria”.

A questão posta naquela oportunidade era quem tinha razão: o filósofo que havia rido, com indisfarçável sarcasmo, das coisas do homem ou o que tinha chorado, compadecido das suas fraquezas.  Seu companheiro de debate era o colega jesuíta, Jerônimo Catâneo. O salão da ex-rainha era famoso nessa época pelo alto nível das discussões que lá ocorriam. A idéia do desafio havia partido dela, que estipulara, aleatoriamente, os papéis que caberiam aos dois célebres oradores sacros. A um, competiria a tarefa de advogar o choro e a outro, conseqüentemente, a de defender o riso.

Nesse dia, vários ilustres convidados estavam presentes. Eram pessoas não somente do clero, mas também filósofos, advogados, médicos e artistas das mais diversas modalidades de arte. Pode-se dizer que toda a elite pensante da Cidade Eterna marcava presença. O salão estava repleto, bem mais do que de costume. A fama de Antonio Vieira havia ultrapassado fronteiras e se consolidava, mais e mais, à medida que o tempo passava.

Fazia 20 anos que Cristina estava em Roma, após abdicar do trono, ao se converter ao catolicismo. Já o ilustre sacerdote estava na cidade há cinco anos, desde 1669, após ser libertado da prisão, perseguido que fora, em Portugal, pela Inquisição, por defender o direito dos judeus de terem a sua crença respeitada. Fora, até mesmo, convidado para ser o pregador particular da ex-rainha, mas recusara, argumentando que era exclusivo do seu rei, do qual estava, então, distante (em todos os sentidos). Catâneo, por seu turno, não era menos ilustre e competente do que seu companheiro de debates, embora não tão brilhante na argumentação e, muito menos, tão incisivo e carismático.

Faz-se indispensável, aqui, um breve esclarecimento ao leitor, não afeito à filosofia, notadamente a grega, sobre quem foram os dois filósofos citados no desafio. Demócrito de Abdera, que viveu entre cerca de 460 AC e 370 AC, embora considerado pré-socrático, foi contemporâneo de Sócrates. Seu grande feito foi o de popularizar a teoria atômica, ou atomismo. Escreveu cerca de 90 livros e é dele a célebre frase: “Tudo o que existe no universo é fruto do acaso ou da necessidade”.

Heráclito de Éfeso, por seu turno, é bastante anterior a Demócrito. Viveu entre 540 AC e 470 AC. Ele, sim, pode ser chamado, sem susto e sem erro, de pré-socrático. É considerado, no mundo da filosofia, como “pai da dialética”, ou seja, da arte do diálogo. Contudo, a despeito disso, passou para a história com o apelido de “Obscuro”. Paradoxal, não é verdade? Mas essa foi a fama que deixou, notadamente por causa do seu livro mais conhecido, “Sobre a natureza”, escrito num estilo nada claro, ambíguo até, próximo a sentenças oraculares, que permitiam múltiplas interpretações. Entre tantas de suas citações, a mais conhecida e repetida nos últimos 26 séculos é: “Nunca as águas de um rio são as mesmas”. O foco central do seu pensamento é a constatação de que tudo é movimento e que nada pode permanecer estático.

Como se vê, a tese, defendida por Catâneo, tinha tudo para ser a vencedora, dada, inclusive, a maior popularidade de Demócrito junto à elite pensante daquele tempo. Mas Vieira era um gênio. Com a eloqüência que o caracterizava, e que fez dele, sem favor nenhum, se não o maior (para mim é) um dos maiores oradores sacros de todos os tempos, demoliu, um a um, os argumentos do oponente e convenceu a platéia que a tese do choro era a correta.

E, de fato, há muitas misérias (e põe muitas nisso!) que não são ignorâncias. São ditadas pelas circunstâncias e única e exclusivamente por estas. Não são, portanto, risíveis, mas dignas de pranto. Ademais, é uma generalização sem sentido (que por não ser obviamente verdadeira, descamba para a estupidez) afirmar que “todas” as coisas humanas são ignorâncias. Afinal, Demócrito se referia à única criatura racional conhecida no universo. Àquela que, com o poder do raciocínio e a força da imaginação, supera sua pequenez e efemeridade e desvenda, um a um, os potencialmente indevassáveis segredos do cosmo. À que criou desde a linguagem inteligível com que se comunica com os semelhantes, ao alfabeto, à filosofia, às artes, à ciência etc.etc.etc.

Em contrapartida, não há ignorância que não seja miséria. Ela é que é o “inimigo” a ser combatido e vencido, com a “arma” do esclarecimento. Claro que o tema é muito rico e comporta páginas e mais páginas de argumentos e de comentários. Mas fiquemos, hoje, por aqui. Mas, como exercício de raciocínio e reflexão, que cada qual dos leitores tente responder, com argumentação sólida e inteligente (como fizeram Vieira e Catâneo, em 1674, no salão da ex-rainha Cristina Alexandra) à questão: “Quem estava certo? Demócrito, ao rir das coisas humanas ou Heráclito ao chorar as misérias que nos assolam?

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk  

As viúvas do U.S.A.

* Por Leandro Barbieri


Quem diria... O Urbano... Logo o Urbano... Tão honesto... Tão responsável... O que podemos chamar de “um bom homem”. A Marcinha estava inconsolável. Viúva aos 35, coitada. Os amigos olhavam perplexos para o caixão. Pensativos. Desolados. Menos o Marcondes. Este ouvia discretamente em seu radinho um Palmeiras x São Paulo.

Ela entrou. Linda. Pretinho básico. Básico e indiscreto. Eram mais que pernas. Eram baluartes. Protegida por olhares curiosos, chorou lágrimas calmas. Delicadamente secadas por um lenço com as iniciais do morto. Urbano Soares Alcântara.

A Marcinha não resistiu. Largou a mãe falando sozinha e foi lá:

-Conhecia o Urbe de onde?
-Éramos amigos...  De infância...

Engoliu. Não ia discutir ali. Vai ver era mesmo uma conhecida do interior. Sim, o Urbano era do interior. A amiguinha ficou pouco, para alívio dos que conheciam sua verdadeira procedência. Amante, fazer o quê?

Mas na semana seguinte a cena se repetiu. E no final da missa, o convite partiu da Marcinha:

-Uma reuniãozinha lá em casa... Para os amigos chorarem juntos...

Passaram a noite conversando. Lá pelas tantas a Marcinha interpelou a menina. O concubinato era evidente. A moça começou a chorar. Confirmou. Ele prometeu que ia se separar. E cada vez inventava uma desculpa diferente, o safado... Mas gostava dele... Se sujeitava por amor...

-Que canalha... – balbuciou a Marcinha antes de abraçar a nova amiga e ir buscar mais duas xícaras de chá.

* Roteirista, diretor e pesquisador de Telenovelas nacionais. Escreveu Retrato da Lapa  (a primeira novela da TV a Cabo brasileira) e Umas & Outras (a primeira novela da Internet), as quais também dirigiu em parceria com Silvia Cabezaolias. Assina o roteiro da webnovela Alô Alô Mulheres na allTV, onde é diretor do núcleo de dramaturgia.

A morte na Gruna


* Por Herberto Sales

Começaram a entrar na gruna.

Um bafo de umidade retida os envolve. Filó vai na frente, seguido de perto por Joaquim Boca-de-Virgem e Neo. Seguram a candeia com uma das mãos, e com a outra amparam o corpo para não rolarem pelo lajedo. Agora já é preciso curvarem a cabeça, porque a gruna se torna cada vez mais baixa. Filó é o rompedor. Sua candeia alumia o caminho difícil. Dela se desprende uma fumaça densa, o cheiro do azeite se misturando ao do limo que cobre as pedras. O ar se faz mais pesado, como que palpável. Entre o teto e o chão há apenas uma fenda, como se o caminho tivesse terminado ali. Mas é necessário avançar mais - e Filó avança, agachando-se, a princípio, para logo se estirar de comprido sobre a laje. Se aparecer de súbito uma cobra, uma cabeça-de-patrona ou uma jaracuçu, cuja picada "quando não mata, aleija", ele fará o que todo gruneiro tem obrigação de fazer - de saber fazer. Procurará encandear os olhos da cobra com a luz da candeia, até poder pegá-la pela cabeça com mão firme, esmagando-a contra a pedra. Não há outra saída. Atrás dele, também de rastos, vêm os demais companheiros, com o rosto a um palmo de distância da planta dos pés uns dos outros, formando a fieira por meio da qual se farão chegar os sacos de cascalho à boca da gruna. Os sacos são de algodãozinho, e de pequenas dimensões, porque de outro modo não seria possível movimentarem-se com eles ali. No serviço de gruna, o garimpeiro é obrigado a abolir o carumbé comumente usado para o transporte de cascalho. Filó sabe que, se não pode recuar, em virtude de estarem atrás dele os outros, também não lhe é possível avançar com rapidez: seu peito e suas costas se roçam nas pedras. Vai empurrando a trouxa de sacos e os frincheiros, e calcula já ter avançado uns trinta metros pela gruna adentro. É noite, mas ainda que fosse dia a escuridão da gruna seria a mesma: é qualquer coisa sempre igual, como a eternidade. Lá fora, o velho Justino deve estar aguardando com ansiedade a chegada dos sacos. Ignora o que se passa dentro da gruna, quando muito imagina que os garimpeiros possivelmente estão perto do cascalho - isso lhe interessa bastante. Dos gruneiros só terá notícias quando os sacos começarem a chegar lá fora, como cartas. De repente, um bafo mais acentuado de umidade entra pelas narinas de Filó. Ele se arrasta mais um pouco, e, finalmente, consegue ficar de cócoras. Nesta posição, movimenta-se com dificuldade durante alguns minutos, esgueirando-se através de uma passagem cheia de obstáculos, até que, por fim, se ergue.

Chegou ao salão - espécie de coração da gruna, vão úmido e tresandando a lodo, em cujo interior há um montículo de cascalho recolhido das frinchas. Filó começa a encher o primeiro saco, quando a cabeça de Joaquim emerge do fundo do lapeiro que dá acesso ao local onde se realiza a extração do cascalho. Pela primeira vez se falam.
- Está vendo que frio danado? - disse Filó.

Encontram-se como que encurralados no âmago da gruna - seres insignificantes ao lado das grandes rochas úmidas e escuras, sobre as quais veem projetadas suas próprias sombras. Joaquim põe a candeia no chão:
- Frio é o menos. O pior é que carbonato continua sem preço.

E acrescenta:
- Neco me disse. Se a gente pegar algum - e suspendeu o saco que o outro enchera - o velho Justino me disse que vai guardar até o preço subir. Não estou gostando nada disso.
- Na minha opinião - observou Filó - se a gente pegar algum, Deus nos livre e guarde, a gente deve vender por qualquer preço. Em último caso, até trocar por comida.

E começando a encher outro saco:
- O coronel, se quiser, que espere a alta: nós não podemos esperar coisa nenhuma.

De novo o silêncio recai. Agora só se ouve o ruído do frincheiro tirando cascalho: é como algo que estivesse arranhando o interior de uma sepultura. A terra escura e úmida vai sendo reunida com o auxílio da mão, e, por fim, é colocada dentro do outro saco. Em alguma parte, há um ruído incessante de água pingando. O novo saco é passado a Joaquim, que se encaminha para a boca do lapeiro e o entrega a Neco. Filó continua a esgravatar as frinchas. Já está quase no fim, mas o velho Justino quer que a piçarra fique totalmente limpa, pois onde há qualquer restinho de cascalho há a probabilidade de se achar o diamante - não se deve facilitar. Vai-se mais um saco, e volta-se a ouvir o ruído do frincheiro - insistente e enervante arranhar. Joaquim pensa que, se a gruna fosse mais espaçosa, não era preciso tanto trabalho: lavariam o cascalho ali mesmo. De repente, o bafo de umidade se torna mais acentuado, ao mesmo tempo que os dois homens escutam o rumor de qualquer coisa que começa a correr. Entreolham-se espantados, e Filó compreende num relance: foi a chuva que desabou lá fora. Tão rápido como o seu pensamento, o fio da minação desliza por entre as pedras e, à luz das candeias, torna-se uma realidade a presença ameaçadora da água.
- Corre, Joaquim! - grita Filó: sabe que, nesse momento, isso é tudo que tem verdadeiramente para fazer.

O outro parece vacilar - não era essa a espécie de morte que imaginara ter. O rumor da água continua a crescer dentro da gruna - fio de água transformando-se em enxurrada. Filó grita de novo:
- Corre, diabo!

E com íntima impaciência:
- Corre, que é vem água!

Os sacos e os frincheiros são abandonados, e os dois homens se metem pelo lapeiro adentro - Filó com a candeia na mão e Joaquim na frente, repetindo o grito de alarma. As águas, correndo atrás deles, arrastam consigo o resto do cascalho. Através da fumaça da candeia, Filó enxerga os pés do companheiro. Joaquim pensa em Rita Pandeiro, e imagina que não mais se encontrará com ela. Ela vai saber de sua morte pela boca dos outros. Joaquim vê a morte diante dos olhos, e lembra-se de outros garimpeiros que, indo à procura de cascalho dentro das grunas, de lá foram retirados como postas de carne. Nunca mais verá Rita. Vai morrer, Sinhá do Ouro encomendará a alma dele no velório. A última vez que esteve com Rita foi na semana passada; procura reconstituir o que ela lhe disse antes de sair para o rio, com a gamela de pratos na cabeça. Tudo agora vai terminar, porque a água continua a avolumar-se; mas, de certo modo, sente-se contente por se ter desviado de um bico de pedra - não chegara realmente a acreditar que pudesse passar por ali. Neco vai na frente. A enxurrada se arremete no seu encalço. Para espanto seu, até agora não encontrou nenhum dos companheiros que formavam a fieira para a passagem do saco: era como se alguém houvesse determinado que, a partir daquele instante, só ele, Joaquim e Filó deviam ficar dentro da gruna.

Sente-se apanhado irrevogavelmente na armadilha: ia morrer como um bicho - sem vela nem sentinela - e esse pormenor lhe causava uma espécie de decepção. Por mal dos pecados, sua candeia apagara-se: mais pelo instinto que por outra coisa, avançava através da escuridão do lapeiro. Evidentemente, os outros gruneiros tinham fugido com muita rapidez ao ser dado o alarma, pois, do contrário, também estariam lutando ali para não morrer: isso lhe parecia de certo modo injusto. Enterra os pés na areia, para dar impulso ao corpo. Tem vontade de gritar, mas não o faz, por considerar essa ideia totalmente inútil: no bojo da gruna outra coisa não se ouve que não seja o rumor da água. Nesse momento, Filó sente que algo mole flutua ao seu lado, e imagina logo que só pode ser um dos sacos que abandonou na fuga. O mesmo saco, encharcado de areia e água, já esteve antes colado ao seu calcanhar, mas ele atirou-o para longe com um arremesso da perna: dava-lhe a desagradável impressão de uma cataplasma. Vai avançando sempre, com a candeia na mão - mas, de súbito, nota que Joaquim se acha imobilizado à sua frente, atravancando o caminho. Num relance, compreende que o companheiro está enganchado. Naturalmente, a areia trazida pela enxurrada obstruiu a passagem. Se Neco conseguiu atravessar, era devido ao fato de ser mais magro do que Joaquim. Este sente sob o peito o atrito da areia, e nas costas a pressão do teto da gruna. A muito custo, consegue manter o nariz fora da água, lutando para não morrer asfixiado; é debalde, porém, o esforço que faz para se libertar da terrível prisão: não pode avançar nem recuar. Imediatamente, Filó lança mão do único recurso para o caso: leva ao calcanhar do companheiro a chama da candeia fumegante - e o pé deste se contrai, tisnado, enquanto se espalha na gruna um cheiro de carne queimada. Uma dor extremamente aguda percorre o corpo de Joaquim. Ele deixa escapar um grito, e em vão se debate entre as pedras, como um rato na ratoeira. Já esperava que o outro lhe aplicasse o conhecido expediente. Por esse motivo, Filó insiste, e queima repetidamente o mesmo calcanhar, uma, duas, três vezes. Por fim, soltando um berro, Joaquim dá um arranco e consegue livrar-se: traz a frente e as costas da camisa em trapos. Sem perda de tempo, Filó se estira todo e precipita-se no rumo do companheiro. Sabe que, se lhe acontecer o mesmo, estará irremediavelmente perdido - é o último dos três, não há ninguém para o socorrer como ele fez a Joaquim. A essa ideia, lembra-se de que é mais magro, e isso lhe parece uma vantagem extraordinária. Vai rastejando apressadamente, mantendo a candeia tanto quanto possível acima da água. Mas logo uma sensação de cãibra se lhe apodera do braço e, antes que ele possa mudar a candeia para a outra mão, a enxurrada se avoluma e ele é obrigado a abandoná-la, a fim de manter o corpo soerguido. Conseguiu transpor o lugar do enganchamento, mas agora se encontra no escuro, tendo a candeia desaparecido para sempre na enxurrada. Filó já não acredita na possibilidade de salvamento. Deixa-se arrastar pela água, e por ela unicamente se orienta. No meio da escuridão, como poderá localizar o esbirro que sustenta o emburrado? O emburrado terá desabado? A saída estará obstruída? Que tolice ter acreditado que era bastante forte para vencer todos os obstáculos! Tenta em vão erguer-se, e a água já o impede de respirar. O rumor cresce aos seus ouvidos - a água batendo de encontro ao teto, saltando como uma coisa viva, acometendo por dentro da escuridão. Talvez que, no fim de contas, ele nada mais fosse do que um estorvo à passagem da água. Que horas poderiam ser? Oito... dez... Talvez oito... De repente, pareceu-lhe que nada tinha já que ver com o que pudesse ocorrer ali. Houve então um baque, um estrebuchamento, e a água, por fim, encheu totalmente a gruna.
***
Era de manhã, e a luz de um novo dia se derramava sobre a serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia. Colocaram-no em uma rede e levaram-no para a cidade. Mais uma vez, o velho Justino ia à procura do coronel para lhe dar notícias do garimpo: morrera apenas um homem. Acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol de cascalho.

(Cascalho, 1944.)


* Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
A paciência e seus limites


* Por Adélia Prado

Dá a entender que me ama,
mas não se declara.
Fica mastigando grama,
rodando no dedo sua penca de chaves,
como qualquer bobo.
Não me engana a desculpa amarela:
‘Quero discutir minha lírica com você’.
Que enfado! Desembucha, homem,
tenho outro pretendente
e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio
que esse seu verso doente.


* Uma das mais consagradas poetisas brasileiras
A epopéia cinematográfica de um paraibano


* Por Vitor Orlando Gagliardo


José Francisco está nervoso. Já não tem mais unhas para roer. Seu coração bate mais forte a cada segundo.
- Será que esse ônibus não vai sair?

O dia mal começou e José já acordou com o coração acelerado.
- Hoje é o grande dia!

Após 17 anos, ele conseguiu juntar dinheiro, pela primeira vez tirou férias e decidiu voltar à sua terra natal: Patos, interior da Paraíba. A distância entre João Pessoa e Patos é de 301 km.

José chegou ao Rio de Janeiro aos 18 anos na caçamba de um caminhão que carregava bananas. Comeu tantas na viagem que nunca mais chegou perto de uma. Foram mais ou menos 43 horas se alimentando apenas dessa fruta.

Assim como tantos outros que chegam diariamente ao Rio, ele veio tentar uma vida melhor. Conseguiu rapidamente um emprego de faxineiro em um condomínio na Tijuca, zona norte da cidade. Com três anos foi promovido a porteiro.

Era diferente dos demais porteiros da rua. Enquanto todos se reuniam nos finais de semana para a pelada no Aterro do Flamengo, no botequim do Seu Manoel ou uma ida a Vila Mimosa, ele preferia ficar em casa assistindo televisão, em especial, aos filmes ou ir ao cinema.

Neste ponto deu sorte. Foi em uma sala de cinema, em uma das inúmeras sessões no Odeon, que conheceu Rosa. Foi amor à primeira vista.

Em menos de um ano já moravam juntos e com dois tiveram o primeiro filho, chamado Alfredo.

A escolha do nome não foi à toa. José elegera como seu filme predileto o clássico italiano Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Achava a música de Ennio Morricone belíssima. Já tinha visto esse filme mais de dez vezes. Sempre chorava na cena do incêndio no cinema.

Por esses gostos considerados extravagantes era motivo, por vezes, de chacota dos amigos. Não gostava de futebol e de forró e muito menos dos filmes do Arnold Schwarzenegger. Esse, então, demorou mais de um mês para conseguir falar errado o nome.

Mas agora tudo parecia passado. José estava entretido com a viagem para Patos. Estava com saudade de sua mãe, D. Angélica e das irmãs, Clotilde e Elisa. Sabia que era tio, mas nunca tinha visto os sobrinhos.

Rosa não pôde ir e ficou em casa com Alfredo.

José levava em sua mala, além de algumas roupas, muitos dvd’s. Em uma conversa por telefone, Elisa disse que jamais tinha ouvido falar em tal tecnologia.

Após 43 horas intermináveis, José finalmente conseguiu chegar em Patos. Elisa estava esperando-o. Como em toda família do interior, a recepção foi a mais calorosa possível. Assim que chegou na casa de D. Angélica correu em direção à mãe e deu-lhe um abraço forte e longo para recompensar os 17 anos distantes.

Um dos fatores que mais chamaram a atenção do José foi a falta de estrutura da comunidade carente. Pelo menos no Rio, até o mais pobre tinha pelo menos o aparelho de dvd.

Seus familiares ficaram encantados com aquela tecnologia. Desfilando conhecimento, José começou a programar sessões diárias no quintal de casa de sua mãe. Desde o primeiro dia, o sucesso de público foi imediato.

Como não podia deixar de ser, o primeiro filme da lista foi Cinema Paradiso. José passou ainda O Carteiro e o Poeta, Forrest Gump, A Procura da Felicidade, Central do Brasil e tantos outros.

José Francisco voltou para casa com o ânimo renovado. Analfabeto, decidiu voltar a estudar. Seu grande incentivador é o professor John Keating, interpretado por Robin Williams no filme Sociedade dos Poetas Mortos. Seu grande objetivo é conseguir aprender a pensar por si mesmo e a levar esta mensagem ao maior número de pessoas.

* Jornalista


  

sábado, 30 de agosto de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, quatro meses e trinta dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Contraponto às críticas a George Orwell.

Coluna Direto do Arquivo – Laís de Castro, poema, “Dois poemas”..

Coluna Clássicos – Mário Palmério, conto, “A pesca do surubim”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “PALESTINA – Até quando?”

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “O cano do Pina!;

Coluna Porta Aberta – Cecília França, crônica, “A Sampa que eu conheci”..


@@@

Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com “Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Contraponto às críticas a George Orwell

O livro “1984”, de George Orwell, é muito mais complexo do que a princípio o julguei. Li-o há trinta e tantos anos e de lá para cá, não somente o mundo mudou demais, mas eu também mudei muito (presumo que para melhor, sei lá). Várias das impressões que tive, na ocasião, diluíram-se e na recente releitura, firmei convicções que não tinha antes. O fato de trazer à baila críticas negativas ao romance, e ao seu autor, não quer dizer, necessariamente, que concorde com elas (ou com todas elas). Se ambos foram ferozmente atacados tanto pela esquerda, quanto pela direita, foram, também, fartamente elogiados e exaltados pelos que consideram o livro uma obra-prima da literatura, de cunho político, do século XX. Creio que os elogios foram em muito maior quantidade do que as críticas.

Confesso que, em princípio, minha opinião sobre “1984” não foi das mais positivas. Considerei o enredo fantasioso demais e o estilo literariamente pobre. Todavia, reitero: tal como o mundo mudou, também mudei. E por mais teimoso que eu seja considerado (e que talvez de fato seja) minha suposta (ou alegada) teimosia não vai ao ponto de manter determinada opinião mesmo que me demonstrem, com provas irrefutáveis, que ela estava errada. Foi o que aconteceu com “1984”, notadamente após recente releitura. E, sobretudo, após exaustiva pesquisa para esta série de reflexões, depois de ler textos que me induziram a prestar mais atenção a aspectos que não havia notado na primeira leitura.

Muito do que escrevi, nestas reflexões, sobre o livro “1984” e sobre seu autor, George Orwell, foi reprodução de trechos do ensaio do mesmo nome que publiquei, em 20 de novembro de 1983, no jornal “Correio Popular” de Campinas. Na época, eu não contava com a fartura de fontes de pesquisa com que conto agora. Não tinha ao meu dispor, por exemplo, esta ferramenta hoje imprescindível à minha atividade. Claro, refiro-me ao computador. E, mais especificamente, à internet. E mais especificamente ainda, ao Google. E mais ainda, à utilíssima enciclopédia eletrônica Wikipédia, que tanto me tem auxiliado.

Uma coisa é você ler determinado livro para seu deleite e nada mais. Outra, muito diferente, é fazer a leitura com o objetivo determinado de escrever a respeito. A responsabilidade, óbvio, multiplica-se exponencialmente. Detalhes a que você provavelmente não atentaria,  tornam-se essenciais. O enredo passa a ser secundário. Sua preocupação prioritária torna-se a de descobrir a motivação do autor ao engendrá-lo. Você tenta “entrar em sua cabeça” para descobrir o que o escritor pretendia transmitir com a história que narrou. Às vezes, consegue. Outras tantas, não. Detesto criticar quem quer que seja, quando se trata de Literatura. Quando um livro não me agrada, e não importa a razão, simplesmente não escrevo nada sobre ele. A menos que seja forçado a fazê-lo por alguma eventual questão contratual (o que, no meu caso, é raríssimo).

Foi o que aconteceu em relação a “1984”, de George Orwell. Continuo achando que a ideologia do autor é, no mínimo, ambígua ou, para ser “politicamente correto”, romântica. Sigo considerando o estilo literariamente pobre. Mas, após análise criteriosa do livro, considero-o primoroso no que se refere à literatura “distópica”. Cabe, aqui, um esclarecimento. Distopia é o oposto de utopia. Enquanto os utopistas se preocupam em descrever um futuro perfeito (ou quase), de plena harmonia, prosperidade e justiça social, os distopistas têm preocupação antagônica. A melhor definição do seu procedimento é a do escritor de ficção científica, David Brin. Para ele, a intenção dos que enveredam por essa vertente literária “não é prever o futuro, mas projetar um que seja tão horrível que as pessoas vão lutar para que ele nunca aconteça”.

E não foi o que George Orwell fez em “1984”? Qual pessoa, com o mínimo de bom senso e inteligência, não lutará, de todas as formas, para impedir que uma tirania, como a que o autor descreve, se torne real, algum dia, em algum lugar? Só isso já é suficiente para que eu concorde com os que consideram o livro, se não o mais importante do século XX, sem dúvida um dos mais importantes. A pedido de leitores, tentarei aprofundar-me, mais e mais, na análise dessa obra, buscando ser o mais didático possível, utilizando, para esse fim, informações utilíssimas e imprescindíveis, sobretudo da Wikipédia, para fundamentar e complementar minhas opiniões.

Boa leitura.

O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.            
Dois poemas

* Por Laís de Castro

Primeiro e último

Quando você viu no espelho
a primeira ruga que marcou o lado da boca,
não se importou. Lembrou do primeiro beijo,
roubado, mal dado, corrido, assustado, errado.
Ao ver a segunda ruga, que subiu entre os olhos,
riscando a testa, lembrou do primeiro amor,
mal feito, mal acabado, dolorido, entrecortado
de medos e escondido.
Ao ver a terceira ruga, lembrou-se da primeira
que não assustou quanto esta, que aponta
para um caminho sem volta.
E se lembrou de tantos beijos, molhados, gozosos
 como os mistérios da vida, saboreados, escolhidos,
encantados, dourados. E se lembrou dos amores
bem feitos, excitantes e excitados, curtidos, desfrutados,
suados, marcantes e marcados.
Lembrou dos amores que renderam frutos, filhos,
você sabia quando eles eram plantados.
Rugas e beijos, amores, futuro, presente e passado.
O espelho fosco, quebrado.


Signo de gêmeos


Tenho um pouco de minha mãe,
As vezes sou doce e mansa,
tenho muito de meu pai,
sou um turbilhão em chamas,
Mas, como ela, sei a hora de chorar
e conseguir tudo o que quero.
E, como ele, sei me retirar
Se perdi a vez, saio e espero
(para logo depois voltar...)

Com as mãos de minha mãe,
Sei escrever avisos de prudência,
E, claro, sei, equilibrar pendências.
Com as unhas quadradas de meu pai
Sei cometer um profundo arranhar
Mas sei, como gata materna, me enroscar
E ganhar, de virada, as desavenças.

Tenho, por fim, a distração da velha mãe
E a atenção redobrada de meu pai
A inexperiência dela, abstraída,
(não herdei seu amor pela missa...)
Mas fiz questão de guardar dele,
em revolta contida, o clamor pela justiça.


* Jornalista, atuou no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda,  8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e na Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.



A pesca do surubim


* Por Mário Palmério

Hora e tanto já, e nada de peixe. Mas o gostoso era ficar assim na canoa, pensando na vida, imaginando coisas. Passada aquela eleição, ia sossegar. A política matava, acabava com a pessoa. Depois que se metera nela, nunca mais pudera ter uma semana de descanso. Escravo dos outros, do partido, do eleitorado. E os adversários não dormiam, os concorrentes vigiavam. Todos os dias, uma notícia má, nomeações que não saíam, chefes do interior que ameaçavam romper por causa de pedidos impossíveis... E ter de mentir, de prometer...

Doutor, doutor... agora é a peixa... é a peixa, sim... engasgava o Gerôncio. Ferra, doutor, ferra!

Mas era Paulo quem estava no cabo da vara; sabia que precisava esperar, sentir primeiro aquele tranco surdo trazido das profundidades pela linha de aço e pelas fibras do bambu.

Calma...

Agora! O pescador abaixou a vara um pouco mais, mais um pouco ainda, para bambear o aço e voltou com ela, num golpe duro, seco, certo.

Ladrão! Paulo gritou quando sentiu a vara erguer-se frouxa, sozinha.

Lhe falei, doutor... O senhor dormiu no ponto...

Fora peixe grande, mesmo. Do muçum, nem notícia: o anzol sem um fiapo de isca...

Ferrou de mau jeito, Gerôncio. Mas antes escapar no começo que na hora de embarcar o bicho na canoa. Já-já o safado está de volta. Você trouxe alicate?

A ideia do alicate era desculpa. Paulo sabia que Gerôncio não se dava a esses luxos de carregar a porção de ferramentas que pescador de cidade costuma trazer nas capangas. Com a volta do anzol mais entortada ou exatamente como se achava, não seria por isso que o peixe ia escapar da fisgada. Falta de treino, isso sim. Errar logo um peixe de couro! Felizmente, o Rufino não estava perto. Se estivesse...

Paulo ajeitou outro torete de muçum no anzolão. Perfeita, aquela enguia preta e encontradiça em qualquer brejo ou resfriado dos rios do Sertão dos Confins. O Lobo, outro fanático pela pesca dos grandes peixes noturnos, tentara aclimá-la em Amburana, inventando um brejo artificial no quintal da casa dele, planejando até uma criação para vender as iscas vivas à companheirada. Mas o muçum só vivia mesmo era pelas bandas do Urucunã, nativo de lá, e tal criação dera em nada. Uma pena, pois, como o Lobo dizia, Deus quando inventou o mundo previu até a pesca do surubim. " Que outra serventia? " perguntava ele. " Prestem atenção na cobrinha: carne dura, sangrenta, o tubo digestivo num canudo só, de calibre certo para se ajustar aos anzóis fundo-de-agulha e revestido, ainda por cima, desse músculo contrátil, acomodatício, agarrando-se ao aço como guarnição de borracha..." Outro que gostava dum palavrório, o Lobo. E as discussões dele com Rufino? Os peixes em latim, os plecostomus, os bimaculatus...

Foi pena você não conhecer o Lobo, Gerôncio: companheirão estava ali! Paulo disse, depois que atirou novamente a isca no centro do rebojo.

O senhor fica conversando, Dr. Paulo, e daqui a pouco o peixe passa outra vez a perna no senhor... provocou o maldoso do Gerôncio.

Mas o pescador estava prevenido. Sustentava, agora, a vara com ambas as mãos, sem deixar que encostasse na borda da canoa, para que as mínimas vibrações do bambu lhe chegassem imediatas e perfeitas. Ferido na boca pela ferrada malsucedida, o peixe ainda demoraria a voltar e a sucumbir ante a presença do outro muçum carnudo e tentador... Mas havia outros: o rebojo da peroba-rosa nunca deixava ninguém de mãos abanando...

Tontura gostosa dava a pinga forte do Gerôncio. E o silêncio, o balançar maneiro do rebojo, o fresco da chuvinha manhosa, a escuridão do rio... Impossível fixar-se numa ideia só, ou concentrar-se apenas na ponta do caniço: os pensamentos libertavam-se naquelas horas de espera, as preocupações sumiam, vinha a suave sensação de leveza e bem-estar. Daí, o irresistível daquelas fugas para as beiras de rio, o vício em que elas se tornavam. Boa vida, a de antigamente! Mas metera-se de uma vez na política, e agora era tocar para diante, que jeito já não havia de recuar. Abandonar, por exemplo, o João Soares... E os compromissos com o Bernardino, esse quase convencido, afinal, da inutilidade da antiga e terrível oposição aos Rochas, já aceitando os argumentos de D. Candinha, já se afastando da briga, dedicando-se mais à clínica e à família... Impossível... Fora ele, Paulo, que aparecera em Santa Rita para açular o pobre, metê-lo em brios... Razão tinha, e de sobra, a mulher do Bernardino, em mostrar aquela má vontade, aquela quase hostilidade... E os outros? O pessoal de Amburana, de Pedra Branca, os companheiros dos vinte e tantos municípios onde fora fundar partido e reforçar a luta contra a situação? Recuar como? Fugir como?

Agora, doutor! Ixe, que monstra. Não dê a ponta, não, que a linha arrebenta! berrou de súbito o Gerôncio.

Desta vez, a ferrada fora certeira. Ao golpear a vara, Paulo sentiu o soco da fisgada, firme tal e qual machadada de machado novo em tora macia de cedro. E um despropósito de peixe, que a vara se arqueou em curva alta, fechada, atingindo até os gomos atarrancados do cabo.

Surubim! E dos manatas, olhe a vara! continuava o escandaloso do Gerôncio. Não dê a ponta, não, doutor!

E dos pintados! o deputado gaguejou. Está puxando de esguelha, o ladrão... Duas arrobas, no mínimo. Virgem, é um cavalo de peixe!

Sempre com razão, o Aleixo Telegrafista! Ferrada misteriosa. Sim, quem puxava o anzol com aquela força não podia ser bicho deste mundo. Era o caboclo-d’água. O chupão das profundas do rio levara quase metade da vara para dentro do rebojo. Mantê-la em pé, embodocada, as mãos destreinadas de Paulo já quase não o conseguiam e, se o peixe lograsse diminuir de mais um tico o ângulo que o bambu ainda mantinha com o nível do rio, aí então é que nada evitaria o desastre: linha, vara, pescador bastava que este caísse na bobagem de bancar o teimoso), tudo seria engolido de uma vezada pelo horrendo sumidouro....

Nos seus bons tempos, Paulo não admitiria aquilo mas teve de aceitar, agora, a demão do Gerôncio. O preto passara-lhe os dois braços rijos pela arca do peito, cruzando as mãos num arrocho definitivo, ajudando a fazer força. Pés calçados no reforço transversal que todo canoeiro prático já deixa pronto, inteiriço, na hora de ocar a tora de pau, o negro bufava:

“güente o galho do seu lado, patrão, que do meu lado eu ’güento!

O bambu estralava que nem taboca no fogo. O cabo de aço três fios doze trançados, decerto presente do Pe. Sommer ao Gerôncio parecia laço em cabeça de boi xucro. Zanzava, doido, cortando o rebojo de fora a fora, enfiando-se por baixo da canoa, procurando a água-braba, fugindo, voltando, regirando agora, desatinado...

Recolha a sua linha, Gerôncio! Me largue! Deixe o bicho sozinho por minha conta. Recolha a linha, senão o peixe se embaraça nela!

Mas o Gerôncio não largava. Conhecia o tamanho daqueles suribins do rebojo e, pelo tinido da linha, adivinhava o animal que o Dr. Paulo havia ferrado.

Tem perigo não, Dr. Paulo. Ei, linhinha macha! Fica pancrácio, fica, bigodeira de jauzão! Ixe, Nossa Senhora, bicho feroso este, cruz!

Linha às costas, agora, o peixe esbarrava velhaço, no centro do rebojo, onde a ventosa da água chupava irresistível como boca de sucuri. A vara envergava, envergava, ringia, estalava.

’güenta, doutor! Incomode com a canoa não isso é brinquedo para ela! Se entrar mais água, eu solto a poita...

Bicho desgraçado! O repuxo era tal que a canoa embicava, popa levantada, a proa apanhando água. Se o peixe se mantivesse empacado daquele jeito, que nem estorvo em boca de bueiro, o remédio era mesmo soltar a poita para aliviar a canoa e ficar rodando com ela por sobre o redemoinho, até que se cansasse e cuidasse de inventar outra moda. O tempo passava, Gerôncio sem se resolver alargar o companheiro, e a canoa pegando cada vez mais água.

Pode me largar, Gerôncio. Solte a poita!

Mas não foi preciso: o surubim desembestara, agora num volteio maluco de pião. Lá estava, porém, na argola de arame do cabresto, o girador. A linha de aço se destorcia quando chegava ali, afastando o perigo das crocas. Muito peixe escapa assim, em vara sem girador, a linha arrebentada no melhor da hora...

Tempão lutou o peixe antes de pranchear, entregue. A espaços apontava a cabeça à superfície todo feioso de pau preto para, em seguida, remergulhar num último desespero. A vara, porém, empinada, quase a prumo, obrigava-o mais e mais a acercar-se da canoa. Gerôncio deixara, afinal, Paulo gozar sozinho a luta com o surubim já dominado.

Me apanhe a carabina, Gerôncio. Tome a vara, tome...

O surubim boiou por derradeiro quando boiou bem no centro do rebojo, lá onde as espumas não chegavam. Paulo atirou. Bruto tiro de morteiro que quis ameaçar um ror de iguais respostas nos barrancos mas que mal deu em tímido pingue-pongue de ecos frouxos, porque molhados e apagados logo pela chuvinha que apertava.

(Vila dos Confins, capítulo IV, 1956.)


* Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras