quarta-feira, 31 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – O mágico lúcido

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica “Cair na vacina para fugir da doença”.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, crônica “O Capibaribe é Um rio de gente...’”.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, crônica “Tudo muda de lugar”

Coluna Suave Inspiração – José Geraldo Mendonça Junior (Penninha), poema “Diamante”.

Coluna Porta Aberta – Wesley Peres, poema “Ela, a que não escreverei”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


O mágico lúcido

Caríssimos leitores, boa tarde.
O assunto, hoje, é Drummond. E tratar do poeta de Itabira, seja por qual motivo for, é sempre agradável, ainda mais ouvindo Beethoven no Sonora, magnífico serviço prestado pelo portal Terra aos amantes do que é estético, belo, divino e mágico. Aliás, para se deliciar com os versos deste “encantador” (não de serpentes, mas de corações) nem seria necessário tamanho requinte, embora ele somente multiplique ainda mais o prazer.
Todavia, hoje não falarei do poeta das Gerais na função de autor, mas de “personagem”. E do livro de uma escritora que ele apreciava, Marlene de Castro Correia. A obra? Tem título que vem a calhar: “Drummond: a magia lúcida”.
É isso que esse poeta majestoso foi: mágico, sem tirar e nem pôr. Mágico das metáforas. Mágico das emoções. Mágico dos sentimentos. Mágico das idéias. Mágico do que vocês quiserem. E ninguém melhor para falar dele do que essa escritora de quem Drummond declarou, certa feita: “Marlene gosta da minha obra, mostra porque gosta e quer que os outros gostem”. Como deixar de gostar de você, querido poeta?!! Só se o sujeito for bronco, muito burro e absolutamente insensível!
O livro em questão foi lançado há já algum tempo pela Editora Jorge Zahar. Mas o propósito não é fazer nenhuma resenha dele e nem esmiuçá-lo. Compre-o, leia-o e faça você mesmo o seu juízo a propósito. Minha intenção é somente citá-lo, e dizer que gostei muito das colocações de Marlene. E isso basta!
Mas, cá para nós, voltando à questão da magia, só um mágico conseguiria sobreviver na memória e no coração do povo quase vinte e três anos após sua morte. E não me enganei não. Drummond é lido e recitado não apenas por sisudos e doutos intelectuais, mas por pessoas simples, que têm dificuldades para entender até um reles bilhete. Portanto, pelo povo sim. E isso é magia pura. Mas não magia negra, claro. .
Seus versos continuam atuais, vibrantes, originais e vivos. São como se tivessem sido escritos há meros minutos. É ou não é magia?! Concordo com o que Linhares Filho, poeta, crítico e professor da Universidade do Ceará escreveu, no artigo “Vinte anos de atualidade”, publicado no suplemento especial com que o jornal “O Povo”, de Fortaleza brindou seu leitor, em 17 de agosto de 2007, por ocasião do 20° aniversário da morte do poeta:
“Drummond... constitui-se num lírico de aguda percepção da psique humana, apreendendo a tortura e o consolo do amor, enxergando o mundo através de uma ótica realista e cheia de humor, contrabalançando uma ternura austera com o senso do trágico e do absurdo existenciais, porque cultivador do cotidiano, mas transcendendo-o pelo enfoque poético, porque cultivador de um peculiar memorialismo em versos, porque intensamente preocupado com a opressão da sociedade de consumo e com o destino do homem no universo periclitante; porque perqueridor, elaborador do enigma e valorizador da palavra (...)”
Bela análise! Linhares Filho, que também já escreveu um livro sobre o poeta de Itabira (“O amor e outros aspectos em Drummond”) lembra outros estudos da poética drummondiana, como os de Affonso Romano de Sant’Anna, Manuel de Moraes, Gilberto Mendonça Teles, José Guilherme Merquior, Joaquim Francisco Coelho, Oton Moacir Garcia, Silviano Santiago, Afrânio Coutinho, Antonio Candido, Davi Arriguci e Francisco Carvalho.
Leiam este poema de Drummond e digam se não é coisa de mágico, de “magia lúcida”:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

(O Poema de Sete Chaves, do livro Alguma Poesia, 1930)

Como é gostoso escrever sobre Drummond! Tomara que apareçam muitos pretextos, como este, do livro de Marlene de Castro Correa. Mas se não aparecerem... que raios, escreverei sobre ele assim mesmo!!!!

Boa leitura.

O Editor.



Cair na vacina para fugir da doença

* Por Mara Narciso

Quando a gripe suína surgiu, o governo de Santa Catarina abafou o apelido com receio de queda na venda de carne de porco. A população mundial teve medo da doença, e a imprensa ampliou em muitos graus o temor popular. O governo e a ciência não negligenciaram a ameaça, e a pandemia ficou sob controle. Houve quem acusasse a mídia de alarmar exageradamente a população. Outros afirmaram que as autoridades estariam maquiando os dados para não haver pânico.

Acompanhei os avanços da influenza com cautela, para não me contaminar. Já sou uma exagerada lavadora de mãos. Não chego aos extremos de George W. Bush, mas lavo as mãos dezenas de vezes ao dia. Após cada atendimento eu as lavo naturalmente. Passei a seguir melhor as normas técnicas de bem lavar. Em alguns lugares cheguei a procurar pelo álcool gel. Os meus cuidados e dos demais aumentaram com a nova gripe, e outras doenças tiveram sua incidência reduzida.

Na Santa Casa, a infectologista Dra. Cláudia Diniz proferiu palestra aos profissionais de saúde sobre a gripe H1N1. No meu caso, o medo diminuiu e pareceu que o vírus tinha ficado mais domesticado. Conhecer um assunto torna o perigo menor e mais controlável, como uma fera, que subitamente pode ser domada. Os médicos otorrinolaringologistas ficaram apavorados. É que o material com o qual trabalham é a secreção do nariz e garganta (não vou poupá-los da palavra catarro, pois é esse o produto da nossa gripe). As demais especialidades não mencionaram maiores preocupações.

Com a chegada do calor, o vírus, que dizem ser frágil, não vive muito tempo fora do corpo, e assim a epidemia acalmou-se, como também as pessoas. No norte do país o ciclo é outro. Assim no Pará as mortes continuaram. E aqui no sudeste, novamente o frio se avizinha.

Desde o começo da pandemia, uma vacina estava sob estudos, e logo as primeiras doses puderam ser usadas. Quando os países ricos estão sob perigo, uma solução surge. Foi um alívio saber que temos vacina contra a gripe A. Vi que era verdade, quando o presidente Barack Obama apareceu publicamente, sendo vacinado.

Aqui, abro um parêntese para me lembrar da minha mãe, cujo amigo teve paralisia infantil. O menino vinha entrando em casa e caiu paralisado na frente dela. Desde então, vivia atenta para quando surgisse uma solução para a poliomielite e vacinar a nós, os seus filhos. Eu já estava com três anos e meu irmão com quatro anos, quando surgiu a vacina Salk. Quando soube pelo rádio, foi ao posto de saúde e buscou as ampolas. Fui vacinada contra a paralisia infantil, e a minha relação com as vacinas sempre foi boa.

Agora, na vacinação de 2010, o primeiro grupo de risco que deverá ser vacinado é o dos profissionais de saúde. Fui a Secretaria de Saúde para me vacinar. Foi uma injeção no braço, região do deltóide, que não me causou nenhum incômodo. Caso não sentisse uma leve perda de equilíbrio quando já atravessava a rua na saída, e um pouco de dor no local da aplicação, algumas horas mais tarde, nem diria que tinha sido vacinada. Mas, para amanhecer o terceiro dia, fui acordada com uma forte dor de cabeça, bastante intensa, que não melhorava com dipirona. Foi seguida por palpitações e uma angústia no pescoço. Procurei cuidados médicos, mas até então não tínhamos relacionado com a vacina. Liguei para a infectologista Dra. Cláudia Diniz, e ela me informou que a dor de cabeça era da vacina, que constava em bula, e duraria cerca de dois dias. Em mim, foram quatro dias de desconforto.

Procurei me informar e recebi da Secretaria de Saúde uma apostila, on-line, de 54 páginas, com várias características da vacina e da atual campanha de vacinação. Não há quase nenhuma contra-indicação e todos poderão receber a vacina, exceto nos casos de a pessoa ter alergia ao ovo de galinha, ou estar em situação de doença aguda grave.

Trata-se de uma tecnologia que usa vírus inativado, e não vírus atenuado como é o caso de outras vacinas. Como os vírus são mortos, não há como causar a doença. É segura, mas efeitos colaterais graves podem acontecer em casos raros. Foram citadas três complicações graves: a Síndrome de Guillain-Barré – polineuropatia aguda, que nos anos de 1976 a 1977 ocorreu em surto nos EUA, durante um programa nacional de vacinação da gripe suína, e manifesta-se clinicamente com paralisia motora ascendente e arreflexia –, a morte súbita, e o choque anafilático, entre outros.

Quem doa sangue, só deve fazê-lo um mês após a vacinação, e os idosos deverão receber as duas vacinas contra gripe sazonal e a gripe suína no mesmo dia, uma em cada braço. As crianças pequenas deverão receber duas doses da vacina com intervalo de trinta dias. As grávidas de qualquer tempo de gravidez devem ser vacinadas. Os eventos adversos podem ocorrer em 10 a 100 pessoas para cada 100 mil doses aplicadas.

Agora estou à espera da formação dos anticorpos, o que deverá acontecer em maior quantidade entre o 14º e 21º dia. E ontem, no quarto dia de dor de cabeça e palpitação, pensava nos dois dias em que não pude trabalhar, e questionei se deveria ter me vacinado. A despeito da campanha difamatória contra a vacinação na internet, afirmo que vacinaria sim, já que sou pela ciência e não pelo obscurantismo, mas quando um caso raro acomete a gente, a incidência da raridade é de cem por cento para nós.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



O Capibaribe é Um rio de gente...

* Por Marco Albertim

Se fosse de peixes... Ou de mais peixes como há cinquenta anos, teria abundância de gente nas suas margens. Para dar sustento à copiosa garimpagem de Inácio França e Tuca Siqueira, inventariando ribeirinhos, os mais velhos, onde o rio sobrevive da memória de cada um. Sem bateia, os dois começam “num olho-d’água fria e limpa”, no Sítio Lagoa do Angu, Poção. Um filete de água passa por trás da casa do sanfoneiro Inácio José Bezerra; é o Catibiribe, Catibaribe ou Capibaribe; “tanto faz”, explica Inácio no início da romaria. Sem velas mas com devoção ao rio Capibaribe. A menção a um rio limpo vem do sanfoneiro: “A nascente toda a vida foi ali, daquele tamanho. A nascente do rio é lá. A mata nunca foi mais, nem foi menos. É aquilo ali. A mata só é aquela reboladinha.” Telúrico, inda que pungente quando o rio avança agreste afora.

Um rio de gente – histórias, causos e lendas do Capibaribe é livro que presta serviço ao propósito de restaurar o Capibaribe. Inácio escreve com olhos de uma iabá fluvial. Tuca fotografa, sai-se uma iconógrafa. Mesmo posando, o sanfoneiro com o instrumento e Zefinha, sua mulher, na janela da casa, são capturados nos limites do riso tímido. Zefinha ri, dando conta da sorte confinada. O marido, como numa cisma de Guimarães Rosa: “Sofri mais do que jumento embaicado, passei fome, passei frio, dormi descoberto que nem um tanguari. (...) Eu botava a gamela de apanhar massa no coxo pra botar na prensa, botava a gamela, eu subia, pegava o meio da roda, o meio da roda vinha em tempo de arrancar meu queixo”.

No Sítio do Saco, Josefa Leandro de Lima, 85 anos, dá mostras de fé telúrica. O rio ali, um riacho, é invadido por águas das serras sob as chuvas: “(...) nós passamos um tempão só cambitando menino. Cambitando menino pra casa da minha mãe: ‘Vamos morrer tudo junto!’ E no meio da chuva a gente ia tudo correndo pra lá”.

Em Serrote Apertado, Jataúba, Inácio França tem a chance de se apropriar das cismas, dos efeitos da escassez de dados de meios tecnológicos. Diz o autor que “A dificuldade para obter informações e notícias das cidades (...) era proporcional à intimidade com os bichos, as plantas e o clima.” Porque o agricultor José Gomes, 81 anos, deduz: “Os passarinhos da natureza adivinham tudo. A gente não adivinha nada, mas eles adivinham tudo. Se amanhecer com eles cantando, aquela barulheira toda, pode esperar que chove. Se amanhecer o dia tudo calado, pode se aquietar, que não chove mais, não”.

Zé Ferrão, de Poço Fundo, Santa Cruz do Capibaribe, tem 89 anos. Foi caçar mocó, o bicho “deu uma dentada que fechou o cano da espingarda”. O irmão, pescando, pôs “uma pratinha” no anzol para a linha descer no rio. Quando puxou, uma traíra veio à tona e disse “não tem troco, não.” Por outra, foi em Duas Estradas, Surubim, que Antônio Ângelo de Albuquerque, 73 anos, começou a namorar com a prima, Maria do Livramento. Na beira do rio, conforme ela: “(...) a areia do rio era bem limpa, era um pátio, era uma neve (...) Uma noite de lua bonita, com muitos daqueles caga-fogo que chamam agora de vaga-lume(...)”

Tiago Ramos tem 84 anos. Em Limoeiro, fez campanha para Miguel Arraes; e diz que Chico Heráclio, “muita gente achava ele ruim, mas para mim, ele era bom demais”. É supérflua a informação de que “Arraes, em plena ditadura militar, vivia no exílio”. O perfil do coronel Heráclio é suavizado ainda pela professora aposentada, Maria José Rodrigues da Silva: “E ele era como todo mundo já sabe: gostava muito de mandar, era rigoroso assim e fazia das dele, né? Mas, em si, não era um homem mal (sic), não”.

Exemplar o depoimento da agricultora Valdenice Tomé Gomes. Com a construção da barragem de Carpina, quase expulsa de seu sítio, disse ao engenheiro chefe do Dnocs: “Meu pai faleceu e deixou a propriedade dele dentro das águas. Então, eu continuava herdeira e residia aqui, então eu esperei receber. Quando vieram pagar, só dava pra comprar uma unha e morrer embaixo do viaduto com uma turma de meninos pedindo esmola.” Já em Desterro, Paudalho, Maria Paula é rezadeira. É cega mas pescou acari no Capibaribe. “Temperava ele bem temperado, enrolava na folha de bananeira e botava no fogo. Mas, é bom. Quando dava fé, tava aquele cheiro no mundo. É gostoso!”

Todo o livro é uma narrativa despretensiosa, simples. Há que se dizer que o autor – jornalista – não atentou para o uso de cacoetes do ofício. Usou de prosa livre, talvez por isso inchando expressões – “verdadeiros dormitórios”; “mas faz tempo que é mais conhecido pelo seu título e apelido”; “Antônio já foi pedreiro”; “(...) pelo menos 30 nadadores entravam nas águas cristalinas(...)”; “Dois anos depois, garantiu o segundo lugar em mais um ótimo desempenho.” Até com o uso de “Zona Rural” o cacoete se mostra. Desnecessário, visto que a plasticidade do cenário dispensa outros recursos.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.



Tudo muda de lugar

* Por Sayonara Lino

Saiu do elevador, deu dois passos, olhou para a frente e notou algo estranho: o quadro que enfeitava a parede do hall estava pendurado ao contrário. Abriu a porta com ansiedade, teve receio, mas entrou no apartamento. Olhou ao redor e aos poucos descobriu que os objetos estavam desarrumados.

Na sala de estar, as jarras que antes ficavam do lado esquerdo da televisão, na estante, estavam, agora, do lado direito. A persiana que sempre ficava fechada para que a luz não entrasse, estava suspensa. As janelas abertas, as portas escancaradas, a cafeteira ligada, a torneira do lavabo, aberta.

Deu mais alguns passos corredor adentro até chegar em seu quarto. O edredom com motivos japoneses, dupla face, estava do outro lado, diferente de quando havia saído de casa. Abriu o armário e percebeu que suas roupas estavam todas do lado avesso. As bolsas que ficavam na parte de cima, milimetricamente organizadas, foram colocadas na gaveta de baixo. A lingerie, antes cuidadosamente separada em uma gaveta à parte, fora misturada com pares de meias de todos os tipos: finas, de lã, soquetes, cano alto.

Nas prateleiras do quarto, as bonecas de porcelana haviam sido rabiscadas, as fotos nos álbuns rasgadas, os livros, misturados.

No banheiro social, os xampus importados foram substituídos por outros, bem simples, populares de farmácia. No lugar da tinta de cabelo sofisticada, um tubo mais barato, um tanto rebocado.

De modo geral, muito havia sido modificado, substituído, remexido, destroçado. Ela, que não gostava de alterações, não conseguia compreender o motivo de tal situação. O mais insuportável de tudo aquilo, era perceber que não podia ter controle sobre as coisas, mesmo que fossem suas. Difícil aceitar que tudo muda de lugar.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Colunista do portal www.ubaweb.com/revista.



Diamante

* Por José Geraldo Mendonça Junior (Penninha)

Mesmo sabendo que
Pode não dar em nada
Seguir por essa estrada
Abrir os porões e deixar
O sol entrar... vagar pelos
Contornos... sentir o cheiro
Do seu solo e depois
Do amor, dormir feito
O caminhante... ser
Seu companheiro e
Não apenas um amante.

* José Geraldo Mendonça Júnior ou Penninha, como é conhecido literariamente, nasceu em Montes Claros (MG). É economista, trabalha na Diretoria do Hospital Universitário Clemente de Faria, da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Participou dos livros “Antologia de Poesia, Contos e Crônicas” – Palavras Escolhidas, No Limite da Palavra, Elo de Palavras e Enigmas de Amor, da Scortecci Editora, em 2003, 2004, 2008 e 2009. Colaborador do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, em Montes Claros.



Ela, a que não escreverei

* Por Wesley Peres

a que me rascunha os ventos e me arranha a língua,
caos entremeando-me os dedos,
ela, a que me escreve em suas cartas.

(Do livro “Palimpsestos”)


* Escritor, poeta e psicólogo goiano, autor dos livros “Casa entre vértebras” (romance), “Palimpsestos” (Poesias), “Rio Revoando” (poesias) e “Água anônima” (poesias).

terça-feira, 30 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Rebeldia com causa

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, crônica “Amor nas pontas dos dedos”

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Palavra e silêncio”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “A intrisa”.

Coluna Imitação da vida – Laís de Castro, poema “Errata”.

Coluna Porta Aberta – Manolo Ramires, crônica “Curitiba é como calvície”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Rebeldia com causa

Caríssimos leitores, boa tarde.
Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida, fluminense, nascida em 24 de setembro de 1862, foi uma pioneira em seu tempo. Pode-se dizer que se tratou de uma rebelde, mas de uma rebeldia com causa, como vocês verão na seqüência.
Numa época em que a sociedade patriarcal brasileira reservava à mulher um papel específico, delimitado e definido – ou seja, o de casar, cuidar do marido e da casa, gerar muitos filhos e educá-los e só isso, sem tirar e nem pôr – ela teve a “suprema ousadia” de sair desse script. Resolveu que seria escritora, correndo riscos de ser incompreendida (e de fato foi) e execrada.
E por que trago este tema, hoje, à baila? Em parte é por bairrismo explícito. Afinal, Júlia Lopes de Almeida passou a maior parte da infância e da adolescência nesta cidade que generosamente me adotou (e que amo de paixão) que é Campinas. Foi aqui que publicou, ainda moçoila, seus primeiros textos, que denunciavam a madura e talentosa escritora em que se tornaria.
Muitos leitores achavam que o nome que usava para assinar suas colaborações era pseudônimo, que as crônicas publicadas na “Gazeta de Campinas” eram de autoria masculina, de alguém muito tímido, que preferia se esconder sob um nome de mulher. Vejam quanta burrice! E isso não faz tanto tempo assim, menos de um século e meio.
Quem não gostava nem um pouco dessa “ousadia” era o pai da meninota, Valentim José da Silveira Lopes, professor e médico, que recebeu um título de nobreza do Imperador Dom Pedro II, tornando-se o Visconde de São Valentim.
Júlia escrevia às escondidas, o que confessaria anos mais tarde, em 1905, em entrevista que concedeu ao consagrado cronista carioca João do Rio. Para acabar com a mania da filha, o pai só viu um caminho e fez o que lhe parecia óbvio naquele tempo: casou-a. No entanto, o tiro saiu pela culatra. O marido escolhido foi um jovem escritor português, Filinto de Almeida, que logo se apaixonou (também) pelo talento literário da esposa.
Na época, ele era o diretor da revista “A Semana”, do Rio. Não tardou para o maridinho derretido reservar uma coluna semanal justo para quem? Para a mulherzinha criativa e talentosa, logicamente. E foi um sucesso enorme, com ou sem oposição familiar.
Gosto de Júlia Lopes. Seus livros estão entre os meus preferidos, quer os de ficção, quer os de crônicas (os meus prediletos). Só não entendo porque sua obra não vem sendo republicada, privando as novas gerações de suas idéias e de seu estilo delicioso e coloquial.
Vejam como era o machismo, notadamente nos primeiros anos do século XX (para não dizer no século XIX, que era muito pior). A escritora, colunista por mais de trinta anos do jornal “O País”, participou, ativamente, das reuniões que redundaram na criação da Academia Brasileira de Letras.
Era amiga pessoal de Machado de Assis, admirador do seu talento. Mas, na hora de se definirem os titulares, os primeiros ocupantes das 42 cadeiras, o que vocês acham que aconteceu? Isso mesmo! Júlia Lopes sequer foi sugerida e em momento algum chegou a ser cogitada para integrar uma instituição cuja contribuição para existir foi decisiva da sua parte. Motivo da exclusão? Era mulher!
Bem que sua obra, de mais de 40 livros – entre romances, contos, literatura infantil, teatro, jornalismo, crônicas e obras didáticas – a credenciavam, mais do que à maioria dos escolhidos, a uma cadeira na ABL.
Digam, honestamente, se quem escreveu coisas como este trecho do “Livro das donas e donzelas”, merece ou não a imortalidade literária: “Datas são algarismos sem forças para fazer sentir o violento azul do nosso céu, nem os ramalhões purpurinos das nossas árvores, nem este chiar incessante das cigarras entontecidas de luz, anunciando o calor”.
Ou este: “Para gente moça o maior encanto da vida está no que há de vir, no que se ignora; para quem transpõe o cabo dos quarenta, está no passante, que passa ligeiro, ligeiro, como a corrente de um rio caudaloso”.
Ou este: “O ano em que parte da nossa vida discorreu, acaba? Deixa-o acabar. O outro que vier terá as mesmas quatro estações; o sol inflamará a terra no verão, o vento fará cair as folhas no outono, as neves caracterizarão o inverno, e as boninas esmaltarão os campos na primavera. Assim como o tempo, fosco ou luminoso, os homens serão maus ou bons e a vida fará seu giro imperturbável, desfazendo e criando, entre declínios e triunfos”.
Que droga que é o preconceito, não é mesmo?!!!!

Boa leitura.

O Editor.



Amor nas pontas dos dedos

* Por Risomar Fasanaro

E
la lhe enviou um e-mail reclamando que ele já não lhe escrevia com a constância de antes. Ele respondeu dizendo que ela lhe enviava e-mails demais. Em outra mensagem ela insistiu dizendo que antes ele respondia a todos seus e-mails. Veio outra dele: “você sofre de incontinência internética”.

Ela achou graça no termo. Ele era uma das pessoas mais criativas que ela já conhecera. Estava sempre inventando algo. Os dias se passaram e ele não lhe escrevera mais. Ela tornou a reclamar, discutiram por e-mails, os ânimos se acirraram. Ela se magoou.

Sim, tinha consciência de que lhe enviava muitas mensagens. Mas a maioria era de encaminhamento de textos que poderiam lhe interessar, e desses ela não esperava respostas mesmo, mas e aqueles em que lhe perguntava algo, e ele não lhe respondia nada?

Levantou-se do computador e foi até a área de serviço lavar umas roupas. Rememorava a discussão com ele. Estava triste. Ensaboava os decotes da camiseta à mão, antes de colocá-las na máquina. Em uma delas havia uma mancha, e por mais que tentasse retirá-la, não conseguia. E ainda precisava fazer o almoço. Trabalho repetitivo, monótono. Embora fossem tarefas que realizava esporadicamente, cansavam.

É... ficara muito tempo no computador. Talvez ele tivesse razão. Riu novamente lembrando-se dos termos que ele usava, mas logo o riso congelou, sentiu a boca seca. Lembrou-se da música do Chico “todo dia ela faz tudo sempre igual...” A dor de ser mulher. Por mais que os séculos avancem, ainda há muito por fazer... Há uma encruzilhada, e parece que quando o caminho se bifurca cada um segue para um lado. Quando homens e mulheres se encontrariam? Onde as paralelas se encontrariam?

No ultimo e-mail ele fora por demais direto. Sim, ela ficara magoada, e lhe respondera com a mesma dureza. As palavras quando ditas frente a frente, se têm muitos elementos para analisar. O tom de voz, a expressão dos olhos, da boca, tudo em um rosto completa o que as palavras dizem, às vezes dizem até mais. Mas quando escritas são palavras nuas. Você não sabe o que as reveste.

Pensou em tudo isso. Em como a escrita diz pouco do que sentimos. De como elas podem pesar se nos dizem o que não queremos ler, ou de como se tornam aladas quando nos revelam o que nos faz feliz.

Não conseguiu tirar a mancha da camiseta, e colocou as roupas na máquina assim mesmo. Sentiu-se um lixo. Uma mulher que não sabia sequer tirar uma mancha de uma roupa.

O filho estava lendo na sala quando, alertado por um ruído estranho, foi até a área de serviço. Chegou a tempo de ver a mãe escorrendo pelo ralo embaixo do tanque de lavar roupas. Só a parte superior da cabeça ainda não escorrera. Tentou puxá-la pelos cabelos, mas não conseguiu.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.



Palavra e silêncio

* Por Evelyne Furtado

A palavra serve-me como expressão do que sou, do que penso, do que tento entender no outro e em mim. O silêncio é também uma forma de expressão. Admiro os que o utilizam com honestidade e estilo.

Não sei exercer palavra ou silêncio estrategicamente. Falo quando tenho vontade e oportunidade de falar. Calo quando sou obrigada ou quando não sei como dizer, pois na minha ansiedade quase sempre tenho ímpeto de falar.

Às vezes visto silêncios com palavras, da mesma forma que uso roupas para esconder a nudez. Posso valorizar a verdade ou simplesmente disfarçá-la com adornos vistosos que desviam o foco da atenção do que realmente sinto. Mas a verdade continua presente seja lá com que roupa venha a se apresentar.

Motivos internos ou externos guiam minha voz e, até onde posso perceber, esse movimento de avanço e recuo é espontâneo. No momento aprendo a silenciar e, por enquanto, não há traço de arte ou elegância em meu silêncio, que é nascido da mesma fonte de onde nascem minhas palavras.

A autocrítica e a arrogância por constatar que não sou tão boa com as palavras abortam meu discurso. Algumas palavras nascem condenadas ao constrangimento posterior. Outros sentimentos me impedem de ser delicada como gostaria e nesses casos calo com certo sofrimento.

Conforta-me pensar que ainda estou exercitando na vida e que tenho muito a aprender, pois pensando dessa forma posso ter esperança que um dia saberei usar melhor a palavra e o silêncio.

* Poetisa e cronista de Natal/RN



A intrusa

* Por Talis Andrade

Em cada canto da casa
me consumias
com a voracidade
que devoravas
o queijo o vinho
todos meus cigarros

Pouco te afligia
quem viria no outro dia
guardar os discos nas capas
os livros nas estantes
esconder os vintes
apagar nas taças
as impressões digitais

Pouco te afligia
quem no outro dia
viria substituir teu corpo
no leito devoluto
trazendo conforto
para o meu desolado
fechado luto

Pouco te afligia
meu sofrimento
por não encontrar
o eficaz ungüento
que cicatrizasse
as sulcantes marcas
as marcas sangrentas
dos teus dentes

Vinhas sem aviso
como se a casa
permanecesse arrumada
meu corpo estivesse sempre desimpedido
para teu exclusivo gozo
meu corpo defunto
benzido e santo
conservado em um frigorífico

(Do livro “Herdeiros da Rosa”)


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Errata

* Por Laís de Castro

O colorido da palmeira em verde
A carambola doce, Dulce, perde
Cidreira em tombo, curva descendente
Caju adstringente em sabor rouco
Pelo canto da boca, a alegria

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.



Curitiba é como calvície

* Por Manolo Ramires

Dizem que Curitiba é pequena. Do tamanho de um chapéu. Que nela é difícil se esconder. Pior para quem deseja aprontar ou sacanear alguém. Com certeza você será pego, visto/flagrado/denunciado/confrontado. Sempre levei a sério essa informação. A considerei de cara quando me mudei pra cá. Respeito ela muito mais após longos anos de vivência, de encontros e desencontros.

curitiba não é tão grande. Suas abas são curtas. E nem a comparo com São Paulo, onde um morador de Perdizes, lá da Rua Turiaçu, jamais será encontrado na Radial Leste, ou um frequentador da Oscar Freire será flagrado com facilidade na 25 de Março. Tampouco comparo Curitiba a cidades pequenas como Ventania, com sua rua principal, e olhe lá. Mas Curitiba segue com seu tamanho reduzido. Encolhida porque as suas rotas de fuga sempre levam aos mesmos lugares. Essa é sua grande peculiaridade. Suas fugas são veredas.

Então, se não dá pra se esconder, melhor é se mostrar. Não dando a tocata, sugiro a sonata. Aí Curitiba é o máximo. Ela possui lugares ideais pra ser visto em lazer (Barigui), em festa (Avenida do Batel), em consumo (Shopping), em intelectualismo (Teatro Guaíra, Tetro Positivo e MON), entre outros. Basta escolher o figurino e deixar-se ser desvendado. E foi o que eu testei.

Aproveitei o domingo. Deixe-me flagrar com um novo chapéu Panamá estilo Tom Jobim. Abas longas. Fui lá na praça de alimentação do Mercado Municipal. Pimba!, uma pequena volta e fui surpreendido. Um amigo veio ao meu encontro e sentenciou: “Tá usando chapéu pra esconder a careca”. Putz, não era isso que gostaria de ouvir.

Esperava elogios ao aspecto Bossa Nova e curiosidade sobre as cachaças que comprara. Mineiras, paranaenses, cariocas? Mas o amigo viu o que estava camuflado. Desvendou-me. Me sacaneou: “´Tá escondendo a careca”! E, após conselhos sobre filtro solar e penteados simuladores, partiu a me exibir a bela família que se construíra. Ele sim sabia se expor. Afinal, ele é político...

É, dizem que Curitiba e minha calvície cabem num chapéu. E que a última é impossível esconder.

* Cronista de Curitiba/PR

segunda-feira, 29 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Tributo a um gênio generoso

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Eu brindo a celebração do encontro”

Coluna Sensibilidade e sutilezas – Aliene Coutinho, poema “O tempo e o vento”

Coluna Planeta Manjaterra, crônica “Humor que não tem nada a ver”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, crônica “Pois eu fui à procissão”..

Coluna Porta Aberta – Paulo Valença, conto “O jogo das máscaras”..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Tributo a um gênio generoso

Caríssimos leitores, boa tarde.
Os gênios tendem a ser generosos e reconhecer méritos alheios, que os invejosos e medíocres buscam denegrir. Sabem ver o valor de quem tem e não se desmancham em críticas face às fragilidades das outras pessoas.
O jornalismo e a literatura brasileiros perderam, hoje, um desses gênios generosos, um de seus maiores expoentes, com a morte, aos 83 anos, de mestre Armando Nogueira. E uso esse designativo não de forma hipócrita, para agradar a quem quer que seja, mas porque se tratou, de fato, de figura magistral, na mais lídima acepção do termo.
Falar de sua brilhante trajetória jornalística torna-se redundante e desnecessário, já que a totalidade dos meios de comunicação está tratando, nesta segunda-feira, dela, o que dá, inclusive, a exata dimensão da nossa perda. Afinal, trata-se de um modelo, de um símbolo, de um marco, de um referencial, de um jornalista competente, íntegro e inigualável. Seus feitos falam por ele. Entre suas realizações mais visíveis, por exemplo, está aí o “Jornal Nacional” da Rede Globo, que concebeu e no qual apostou.
Armando Nogueira, todavia, foi também prolífico, criativo e original escritor. Foi, pois, como nós (e mais do que nós, ouso dizer) homem de letras. Deixa-nos, como legado, uma obra relativamente vasta e consolidada, de dez livros, a maioria versando sobre sua maior paixão, o esporte e, notadamente, sobre futebol.
Tempos atrás, reclamei que esse tema era pouco explorado em literatura, em um país em que as crianças já nascem chutando bolas. E é mesmo. Há muito, mas muito mesmo a se dizer a respeito. Afinal, o futebol é há já mais de um século e meio a grande paixão nacional, fenômeno de massas e modalidade em que o Brasil é, sem sombra de dúvida, o melhor do mundo. Basta citar as cinco Copas do Mundo que conquistou, feito que até pode ser igualado em 2010 (não creio que o será), mas jamais superado.
Armando Nogueira foi o grande “poeta” da crônica esportiva, talvez mundial. Fugiu do lugar comum da maioria dos que escrevem sobre o tema e estabeleceu um parâmetro de qualidade na abordagem do tema do qual, ouso dizer, ninguém conseguirá sequer se aproximar.
Escreveu, certa feita: “O esporte é uma das mais ricas manifestações de vida que eu conheço. Contém todas as virtudes e todos os pecados da criatura humana, dos mais sublimes aos mais subalternos”.
Os dez livros, com que Armando Nogueira presenteou não somente os amantes do futebol, mas, sobretudo, os que apreciam textos inteligentes, instigantes, criativos e bem escritos, não raro líricos, mas sem jamais perder a objetividade do bom jornalista, são: “A ginga e o jogo”, coletânea de 78 crônicas, confissões, histórias e apreciações das 15 Copas do Mundo a que assistiu (além de sete Olimpíadas); “A copa que ninguém viu e a que não queremos lembrar”, análise das derrotas do Brasil nos mundiais de 1950 e 1954, escrito com Jô Soares e Roberto Muylaert; “Drama e glória dos bicampeões”, sobre o bicampeonato de 1958 e 1962, em parceria com Araújo Neto; “Na grande área”, com prefácio de Otto Lara Resende; “Bola na rede”; “O homem e a bola”; “Bola de cristal”; “O vôo das gazelas”; “O canto dos meus amores” e “A chama que não se apaga”.
Fossem reunidos todos os textos que Armando Nogueira publicou na imprensa, em 60 anos de carreira, estes perfariam, sozinhos, toda uma biblioteca, com centenas, quiçá com milhares de volumes. Foi, de fato, homem de letras e genial. E, acima de tudo, generoso com seus tantos e tantos personagens.
Nem tudo o que escreveu, porém, foi sobre futebol. Em “O vôo das gazelas”, por exemplo, reuniu crônicas, poemas e textos comunicativos com toques de humor. Em “O canto dos meus amores”, mostrou todo seu conhecimento e sua apreciação por modalidades esportivas como vôlei, basquete, atletismo, tênis (do qual era praticante), natação, automobilismo etc. Em “A chama que não se apaga”, registra casos curiosos e pitorescos de Jogos Olímpicos.
Apesar da sua inegável paixão pelo futebol, Armando Nogueira, generoso reitero, reverenciou ídolos de outros esportes, como Gustavo Kuerten, Hortência, Ayrton Senna, Rodrigo Pessoa, Magic Paula e tantos e tantos outros. Suas crônicas fizeram justiça com mitos, alguns já quase esquecidos pela falta de memória popular, como Garrincha, Vavá, Newton Santos, Romário, Ademir da Guia e, sobretudo, esse incomparável gênio dos gramados, que foi Pelé.
Para encerrar estas resumidas (mas emotivas) considerações sobre quem mereceria um tratado, cito o que Armando Nogueira escreveu sobre este objeto fascinante, miniatura do planeta em que vivemos, instrumental de boa parte dos esportes praticados mundo afora: “Bola é magia, bola é movimento. Brincar com ela é descobrir a harmonia e o equilíbrio do universo”. Foi ou não foi um magnífico poeta? Claro que sim!
Descanse em paz, companheiro de paixões e preferências! E muito obrigado pelo inegável legado de competência, talento, responsabilidade e zelo que você nos deixou. Mestre Armando Nogueira, a saudade de você já começa a doer e sua ausência passa a se constituir em dor sem remédio! Até um dia, companheiro!

Boa leitura.

O Editor.



Eu brindo à celebração do encontro

* Por Eduardo Murta

Tudo começou, creiam, em razão de um simples pato. Há quem afirme que foi providencial ele aparecer ali, plena Zona Sul, ponto em que prédios reinavam absolutos e secos. Verdade é que apareceu. Sozinho. Amarelinho. Fim de tarde, atravessando a rua, Duílio o acolheu em segredo. Assentou o bichinho sob a blusa e minutos mais estariam à janela do décimo andar. O “papai” lhe mostrando as luzes da cidade já se pigmentando entre as vielas abaixo. Viveria experiências novas, como o banquete secreto com omelete, bacon, folhas de alface e feijão. Dia seguinte, o estranhamento dos pais ao odor estranho e ao ar de desconcerto do menino. Não, nada. Não, nada... Foi repetindo, enquanto da junção entre a cama e a parede a cabeça do patinho emergia da caixa de sapatos. Feliz, como quem dava bom dia ao sol. Parecia exalar contentamento. A mãe não deu tempo a ensaios de comoção. Julgou que era uma dessas obras desatinadas do pai e determinou: que dessem rumo a ele o quanto antes.

Juarez e Du mudos, pensando em saídas. O melhor seria doar. Buscaram site que pudesse ajudá-los, postaram foto do órfão e logo surgiu pretendente. Marcaram de se ver na Feira dos Produtores. O menino incomodado com os traços do homem. Enxergou nele a figura de um açougueiro. Puxou o pai para um canto, contou da desconfiança e, ignorado, agarrou o bicho e descambou barracas adentro. Fantasiou as lâminas afiadas, o sangue, a frigideira...

De longe, concentrou-se no tom da conversa com o estranho. Um nítido pedido de desculpas. Que se danasse! Fritar, ninguém iria fritá-lo! Escutou a dura repreensão paterna e, pior, seguiu convencido de que fora traído, que havia um trato para selar a doação ao “sujeito do açougue”. E, 8 anos mal completados, já carregava suas certezas e não se envergonha em exibi-las. Ali mesmo as lágrimas lhe saltaram normas, que chegavam a desenhar um veio em vermelho ao rosto. Tremia. Tremia, e repetia: “Vai matar, vai matar...”
.
Se desmanchou em pranto no carro, no elevador. Dormiu num soluço de fazer dó. Juarez, impotente, resolveu invocar o conselho de avós. No café da manhã estavam os quatro por lá. Felisberto, sarcástico, sugeriu panela. Albina, ingênua, que vendessem o apartamento e se mudassem para uma casa. Augusta, cifrões sempre em mente, pensou no sucesso de uma rifa. Restou Apolinário. O silêncio. Todos concentrados nele. Propôs adotar o bicho. Mencionou, e as órbitas da esposa se voltaram em brasa. Opa, opa, opa! Não no jardim, e jamais na horta dela.

A discussão tomando calor, a porta do quarto se desarmou. O neto num pijama com motivos estelares rompeu ao centro. Esfregou os olhos, e ainda sonolento sorriu à imagem tão acolhedora que o cercava. Atrás dele veio o patinho. Estacionou sob suas pernas, feito estivesse se aninhando. Aquela gente atônita. Como dividir aquilo? Como separar os dois? Faziam dueto singelo e comovente. A mãe chegou em seguida. Deu com a cena. Emudeceu.

Navegava agora nos mares da compreensão, ao ver os avós acolhendo Duílio e a pequena ave à mesa. Contavam casos. Riam. Gargalhavam. Fazia muito não se viam, dois ou três natais atrás, quem se recordaria... Alguém se deu conta, então, de que o destino do pato talvez fosse o que menos importava por ali. Num tempo em que a sensação de acolhimento, de reencontro, tornava a todos um pouco menos órfãos. Brindariam àquilo, mesmo com café, brindariam.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.



O tempo e o vento

* Por Aliene Coutinho

Olho através da janela
O tempo que corre com o vento.
Ele passa assobiando
Em meus ouvidos...
Ligeiro.
Tem pressa e não consigo
Acompanhá-lo.
Meu olhar, manso, se deixa
Aprisionar nas folhas que caem,
Nos papéis jogados no chão
Que são levados e criam
Redemoinhos.
Ele vira rápido na esquina,
Escuto de longe meu nome.
O tempo me chama.
Em seu galope arrasta o que
Encontra pelo caminho,
Rebocos de parede, cascas das árvores,
Paus e pedras.
Eu resisto.
Luto contra o tempo
Seguro com força o minuto presente.
Acorrento-me ao que estiver mais perto.
E ele montado, agora em súbita ventania,
Faz uma reviravolta,
Arranca minha alma
E deixa meu corpo inerte no chão.

* Jornalista e professora de Telejornalismo



Humor que não tem nada a ver

* Por Renato Manjaterra

Acho que o humor, ou o meu humor, não tem mesmo muita conexão com o que me cerca, com o mundo. Ou então eu estou agora tendo um flashback de alguma droga que usei há tempos e que não bateu.

O que passa nesse domingo é que meu carro está todo desmontado, parado na garagem sem os bancos – que eu tirei achando que ia esfregar um xampu – enquanto o sol vai se despedindo e eu espero a chuva dar um tempo para eu continuar a pelo menos aspirar o pó...E eu estou contagiando até meu filho com a felicidade que estou sentindo. Dá para entender? Aguardo ansiosamente pela semana.

* Jornalista e escritor, Autor do livro “Colinas, Pará” com prefácio do Senador Eduardo Suplicy, bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCAMP, blog http://manjaterra.blogspot.com



Pois eu fui à procissão

* Por Elaine Tavares

Eu sempre vou à procissão do Senhor dos Passos. Acho bonito de ver a expressão de fé de tanta gente. Essa coisa louca que leva as pessoas a se agarrarem a uma esperança, um desejo de se ver acolhido e de acolher. Causa-me profunda emoção observar as velhinhas, com seus terços, a chorarem vendo passar a triste imagem de um deus derrotado, torturado, em sofrimento. É como se, naquela hora, homem e deus se reconhecessem iguais: impotentes diante do poder.

Pois neste domingo fui à procissão, esta que já acontece há 244 anos, aqui, na capital dos catarinenses. Foi em 1766 que a enorme imagem de Cristo sob a cruz chegou. Conta a lenda de que era para ir ao Rio Grande do Sul, mas o barco não conseguia avançar e o capitão entendeu que era desejo do senhor ficar nas terras desterrenses. A imagem ficou e virou motivo de adoração. Desde então o povo acorre para lhe render graças.

Neste dia 21 de março mais de 20 mil pessoas saíram às ruas de Florianópolis para reverenciar aquele que morreu na cruz, torturado e violentado por romanos e judeus. O homem que pregava o amor, a igualdade, a partilha, o que afrontou o poder com seus desejos de transformação radical. Eu busquei o melhor lugar para observar as gentes e também para, igualmente, partilhar daquela dor infinda que imagino tenha vivido o Jesus histórico, virado homem, na tortura da cruz.

Então, do homem em sofrimento, curvado pelo peso da cruz, meus olhar fugiu para a expressão de uma quase heresia. Bem a frente da estátua, um grupo de pessoas segurava um pequeno toldo debaixo do qual ia o bispo Dom Murilo, em sua pompa episcopal, contrastando com o manto humilde que levava o deus. Pisquei duas vezes. Era real. Quem levava o toldo eram aqueles que no dia-a-dia são os responsáveis diretos por tantos males que o povo tem de viver. Na frente iam o prefeito Dário Berguer e o governador Luis Henrique. Mais atrás, o vereador Gean Loureiro e a deputada Angela Amin, seguida do jornalista Moacir Pereira.

Ah, o poder e sua sede de dominação. Vale-se da fé, da desesperança, da dor humana e aparece, assim, em pompa, como se compartilhasse da mensagem histórica daquele que, caído, seguia-lhes. Meu coração se apertou e fui ficando para trás, enquanto a procissão passava lentamente. Pensei no código ambiental, aprovado para destruir, no plano diretor imposto pela prefeitura, no jornalismo cortesão, nos projetos nefastos, tudo vindo daquele pequeno toldo que abria a procissão. Arrogância, descaso, ilusão. “Corja, corja”, fiquei a resmungar. Então, do chão, ouvi um “ô, ôô...”. Olhei. Eram três homens, caídos como o da estátua, e, com eles, uma garrafa de pinga. Eles me observavam e perceberam que eu falava dos governantes. “Ninguém tá vendo eles, olha só... o povo olha pra Cristo”.

Os três bêbados, caídos no chão da praça, estavam certos. Ninguém os via. Os olhos das gentes se voltavam ao deus sob a cruz. Mulheres choravam, outras lhe jogavam beijos, as senhorinhas repassavam seus terços, os homens faziam o “pelo sinal”. Os olhares não se voltavam para o luxo em roxo da pompa igrejeira. O povo rendia homenagens ao seu deus. “Agora ele está assim (caído), mas no domingo de Páscoa ele renasce. Sempre renasce e fica com nós”, me dizia uma velhinha, pequena como um bibelô.

Eu deixei a procissão passar e fiquei ali, junto aos caídos, num silêncio reverente. Aqueles homens, que a sociedade nem nota, os que chamam de escória, foram, talvez, os únicos que verdadeiramente comungaram com Cristo naquela caminhada de dor. Eles, como o deus caído, sabem muito bem o que é estar sozinho na dor, excluído da vida digna, perdido da compaixão. No silêncio da praça vazia ficamos nós, irmanados no sentimento de que um dia, não será apenas “o senhor dos passos”, mas o passo das gentes, o povo unido e em rebelião que haverá de mudar este mundo. Os caídos se levantarão, as riquezas serão repartidas e a vida será plena. Coletivamente, passo-a-passo, avançaremos.

* Jornalista em Florianópolis/SC .

O jogo das máscaras

* Por Paulo Valença

1
- Tchau, Bete.

Ela lhe oferece a face esquerda, sorrindo, num gesto gracioso, nervosinho e recebe o beijo.

O homem gordo afasta-se em seus passos lentos, abre a porta (é sempre meticuloso nos menores gestos) e fechando-a por fora desce a escadaria ao lado, para no oitão da residência entrar no automóvel cinza-prateado e partir.

Ela ouve o som dos pneus e adentrando no terraço e debruçando-se no parapeito, segue o auto que cruza o portão largo (aberto automaticamente pelo homem) e ganha a rua de resumidos pedestres e um ou outro veículo cruzando-a.

Então ela ergue a mão no gesto de saudação e sorrindo, retrocede à sala espaçosa, com sofás, a mesinha ao centro e os quadros com paisagens nas paredes brancas.

Deixa-se cair no sofá mais largo. O Nestor se foi. Quando o verá? Ora... Bastar-lhe-á que telefone e ele virá, gordo, rosado, calvo, sorridente, feliz em sua solicitação.
- Sim, Bete?

Os olhinhos brilhantes na demonstração de subserviência em ser útil. O andar lento, depois no leito, a falta de jeito dele, sem a satisfazer. Sim, aqueles minutos são para ela mais de suplício do que de uma entrega, de um prazer... Ah, até quando suportará essa amizade “colorida?”. Se não fosse o conforto que ele lhe proporciona, a vida de nada lhe faltar, não lhe seria a amante, nessa representação de hipocrisia que, intimamente, condena, revoltando-se.
- É Bete, mas, assim é a vida.

Sim, assim é a vida. Afinal, todos (todos!) representam seu papel, de uma maneira ou de outra. Essa é que é a realidade sem máscara.

Ergue-se e encaminha-se ao banheiro. Lavar-se. Trocar de roupa e sair. A noite mal começou e nesta sexta-feira, há o “agito” natural nos barzinhos, pontos de encontro de casais, amantes, os boêmios que vivem as horas da descontração, a fuga...
- A fuga... de todos os problemas.
Concluiu baixinho, no hábito recente de dar voz ao que pensa.

Abre o chuveiro e recebe no corpo moreno, esguio de manequim, o líquido morno, acolhedor, bom. Muito bom.

Basta de encucações! E devagarzinho se ensaboa, prolongando-se, prolongando-se.

2
- Tudo bem, espero.

Sorrindo o rapaz repõe o celular no bolso da camisa vermelha e erguendo o braço acena com a mão à garçonete, pedindo-lhe a cerveja. A primeira, enquanto aguarda a chegada da morena esguia, bonita, sua recente conquista amorosa, que logo aqui estará. Sorridente. Doida por aquele jogo de poses eróticas no leito do novo motel à beira-mar na praia de Olinda.
- A cerveja, bonitão.
- Certo, Maria.

A bandeja. A bebida. O copo. O afastamento da garçonete. E ele bebe, com vagar, sentindo-se o maior dos homens nesta noite boêmia, enquanto das mesas circunvizinhas com casais, vem o som de vozes, risadas, tilintar de talheres em pratos, gargalhadas, a zoadinha característica em ambientes de descontração.

Bete, a morena que se lhe mostrará insaciável, que também é amante do senhor gordo, rico industrial, que tanto lhe quer bem, que... Mas, o cara não lhe dar o principal, o prazer que ela deseja, a loucura das variações no jogo do amor no leito.
- Pensando na vida?

A voz. Mas, como ela chegou assim de repente, sem a perceber?
- Mas...
- Cheguei faz um tempinho. Estava ali lhe observando...
- Ah, Sim? Tudo bem.

Ergue-se e afasta a cadeira para trás:
- Senta.
Ela atende. Sorrindo.
- Pede um copo pra mim.
Mais uma ver ele ergue o braço e acena com a mão aberta à garçonete.
- E aí tudo bem, Marcos?
- Tudo. E agora com você aqui, a coisa melhorou!

As mãos se procuram, os olhos se fitam, os sorrisos se exibem, na promessa das loucuras de logo mais.
- Trouxe o teu cheque.
- Você, morena linda é demais!

Então a mão de longos dedos desprendendo-se de sua mão abre a bolsa a tiracolo, buscando o papelzinho ante os olhos interesseiros do rapaz.

De uma mesa próxima explode a risada, como se fosse a testemunha indiscreta da cena disfarçada do preço do amor.

Conduzindo a bandeja Maria tudo entende ante o que presencia. E sorri. Compreensiva, dentro de sua difícil vivência de operária noturna. Mas, o que tem isso? Cada vida com o seu rumo. Seu mundo. Tudo enfim é normal.
- O copo.
- Obrigada. Traga outra cerveja. O que temos pra tira-gosto?
- Menina bonita temos surruru-ao-coco, agulha-frita, empadas, sarapatel. O que vai querer?
- Traga o sururu.
- Certo, minha linda.
Responde a garçonete e move-se por entre as mesas, retornando ao balcão, onde pedirá o que lhe foi solicitado.
- Uma cerveja e um pratinho de sururu.
- Certo, Maria.

Voltando-se à pequena abertura atrás de si, na parede, o sujeito magro, envelhecido então grita:
- Sai um sururu!

Pondo a bandeja sobre o balcão, Maria espera. Impaciente. Ah, se logo amanhecesse, para “largar”, descansar dessa vida malvada, e sem futuro...


* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.

domingo, 28 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Fascínio por vampiros.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Grande ‘talvez’”.

Coluna Direto do Arquivo – Paulinho Assunção – crônica “O goleiro e o passarinho”.

Coluna Clássicos – Leonardo Boff, crônica “Pensar o ser humano depois de Auschwitz”..

Coluna Porta Aberta – Núbia Araújo Nonato do Amaral, crônica “Dignidade está na moda”.

Coluna Porta Aberta –:Clóvis Campêlo, crônica “Dona Maria, uma brasileira”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Fascínio por vampiros

Caros leitores, boa tarde.
O tema que lhes trago à baila hoje pode não ter qualquer relevância (e não tem), pode nem ser de bom-gosto (e não é), mas está, mais do que nunca, na moda, sobretudo no Ocidente. Vivo a indagar, volta e meia, aos meus botões: “Por que as pessoas (temo que a maioria) são tão fascinadas por histórias de terror? Por que, por exemplo, ocorre esta atual ‘febre’ por vampiros, se eles são meros frutos da imaginação de alguém?” Refiro-me, aqui, a pessoas que se alimentariam de sangue humano, não a morcegos, evidentemente.
Da minha parte, não tenho explicação racional e lógica para isso. Contudo, somos tão ilógicos e irracionais, sob este disfarce de lógica e racionalidade que costumamos ostentar, para “consumo público”!!! E você, leitor, saberia explicar a razão desse fascínio, no mínimo de péssimo gosto?
A escritora norte-americana Charlaine Harris sabe (ou acha e diz que sabe). Entende que “os vampiros estão na moda no Ocidente porque há uma obsessão pela juventude e beleza eternas. E porque a fantasia triunfa em tempos de crise”. Bem, crise é o que não nos falta. Aliás, abunda. É crise de todo o tipo e intensidade: social, econômica, de valores, de objetivos e vai por aí afora.
Se tem quem não conte com motivos para reclamar de mais esse modismo (que volta e meia, desaparece, mas retorna, na geração seguinte, com mais força e vigor), é Charlaine Harris. Por que? Porque vem ganhando rios de dinheiro às custas desses seres imaginários (e do seu talento em criar histórias, tendo-os por personagens, claro). Afinal, já escreveu toda uma série a respeito, intitulada “True Blood” – e promete continuar nessa linha – composta pelo romance “Morto até o anoitecer” e suas nove seqüências.
Vejam vocês como as aparências enganam. Quem vê uma pessoa no dia a dia, ou mesmo conviva com ela, em relações sociais, profissionais ou até afetivas, nem desconfia a quantas podem andar suas fantasias e sua imaginação. É o caso específico de Charlaine Harris, afável, risonha e bem-educada senhora de meia-idade, perto de completar 60 anos, um encanto de mulher.
Seus livros, todavia, têm infinidade de vampiros, lobisomens e fadas e são carregados de suspense, ação, sangue e muito, mas muito mesmo conteúdo erótico. A escritora, a julgar por seus textos, é um vulcão de paixões e de imaginação.
Pelo visto, ela descobriu a fórmula mágica para encantar leitores e induzi-los a comprar o que escreve, pois suas obras já foram publicadas em vinte países (inclusive no Brasil, claro), traduzidas para várias línguas e seguem vendendo milhões e milhões de exemplares. Ela transformou-se numa espécie de “Midas de saia”: tudo o que toca se transforma em ouro.
Será que Freud teria explicação mais plausível para essa obsessão pelo fantástico, sobretudo pelo horrendo? Creio que boa parte desse fenômeno seja fruto de repressão sexual de milhões e milhões de pessoas mundo afora, apesar de uma suposta liberação (ou até libertinagem, em alguns casos) do sexo. Afinal, qual seria explicação melhor e mais verossímil do que esta?
Destaque-se que o perfil dos leitores de Harris, surpreendentemente, não é o de jovens e muito menos de adolescentes, como seria de se esperar. A escritora afirmou, em entrevista à agência de notícias EFE, durante sua primeira visita a Portugal (e certamente deve ter em mãos pesquisas a respeito): “Meu público é adulto. Decidi que seria divertido que os romances tivessem alto conteúdo sexual. Quando comecei a escrevê-los, já tinha certa idade e nunca tinha escrito uma cena de sexo explícito em um livro antes. Pensei que se queria fazê-lo, tinha chegado o momento”.
Não é apenas Charlaine Harris, todavia, que fatura alto com o fascínio do público por vampiros e quetais. Os livros de Stephenie Meyer, “Amanhecer”, “Eclipse”, “Crepúsculo” e “Lua Nova” estão há mais de um ano no topo da lista dos mais vendidos, pelo menos no Brasil. Os filmes baseados nesses romances batem sucessivos recordes de bilheteria.
L. J. Smith é outro que faz a alegria (e a fortuna, claro) de seus editores, com a série “Diários do vampiro”, notadamente com os volumes “O despertar” e “O confronto”. Coincidências? Os psiquiatras garantem que o medo, desde que não descambe para o extremo, para o pavor, é um baita estimulante sexual. Dizem que é um insuperável afrodisíaco. Deve ser mesmo (não posso garantir, já que não sou especialista na matéria).
Aliás, o medo é, ao lado do sexo, um dos principais componentes do instinto mais básico com que contamos: o de preservação da espécie. Deve ser, portanto, estimulante mesmo para relações sexuais. Ademais, os vampiros são símbolos de eternidade, pois só podem ser mortos se lhes forem fincadas estacas no coração. Para manterem-se “vivos”, se alimentam do quê? Exatamente da substância que simboliza, por excelência, a vida: o sangue.
O engraçado é que ninguém fantasia com os hematófagos, cujo alimento é o mesmíssimo dos vampiros. Não conheço, por exemplo, nenhuma história envolvendo pernilongos que se transformem em gente quando quiserem e nem de nenhuma mocinha, cheia de tesão, apaixonando-se por mosquitos, pulgas, carrapatos e percevejos. Credo, que gente de mau-gosto!

Boa leitura.

O Editor.



Grande “talvez”

Por Pedro J. Bondaczuk

As certezas que adquirimos ao longo da vida, aquelas constatações e convicções imutáveis, que nada e ninguém conseguem mudar, são escassas, escassíssimas, embora não venhamos a nos dar conta. Tudo é um imenso e virtualmente infinito “talvez”, que os parcos anos da nossa trajetória por esta aventura perigosa (mas fascinante) não nos permitem esclarecer.

Da minha parte, estou absolutamente certo de poucas coisas. A primeira, seguindo o princípio de Descartes (“Cogito! Ergo sum!”), é a de que existo. Afinal, penso! A segunda, ditada pela mais elementar das lógicas, é a da existência de Deus. Não tenho a mais remota e pálida idéia de como Ele é. Ademais, ninguém jamais teve, tem ou terá (a despeito das tantas e tantas afirmações a respeito). Mas tenho a total convicção da Sua existência, poder e glória. Basta olhar para o céu, numa noite estrelada, e ter em mente que essa infinidade de mundos foi criada por Ele. É o que me basta.

No mais... minhas convicções (como ademais, as de todas as outras pessoas) não passam de hipóteses, possibilidades e suposições. Mesmo a ciência humana restringe-se a somente isso. Por exemplo, vemos, amiúde, “leis” da Física, Química e Biologia, tidas e havidas como certezas, como princípios testados e comprovados por infinitas experiências e, portanto, supostamente imutáveis, serem refeitas, face a novas descobertas.

Detesto escrever sobre a morte, a terceira das grandes certezas que tenho. Sei que um dia deixarei o palco deste mundo, de forma suave ou traumática, sei lá (não há como saber) e que terá fim esta aventura fascinante e maravilhosa, que tenho o privilégio de encarar, que é a vida.

Isso, por mais que queira ou tente evitar, por mais prudentes que sejam os meus passos e mais saudáveis que sejam os meus hábitos, nunca terei como evitar. Esta, sim, é uma regra imutável, não mera hipótese, passiva de contestação. Ou seja, a de que todo o organismo vivo, esgotado seu ciclo vital (que varia de um ser para outro e ninguém jamais soube de quanto tempo que é), morre. E seu corpo físico se “transforma”. No caso, torna-se pó!

Todavia, até essa certeza é revestida de profunda, de possivelmente infinita, quiçá de absoluta incerteza, de monumental “talvez”. Refiro-me ao depois. Tão logo completamos o ciclo imposto pela natureza, o que ocorre? Tudo finda nesse momento? Perdemos de vez a consciência e nosso cérebro, nosso raciocínio, nosso “eu” se apagam, simplesmente, como um aparelho elétrico ao ser desligado da tomada, como este computador em que rabisco estas reflexões?

O que, de fato, ocorre? Existe, mesmo, essa essência imaterial no homem que se disperse no éter, mas permaneça com consciência, lembranças, sensibilidade e capacidade de entendimento? Ou essa “inteligência”, que tanto nos orgulha e que nos distingue dos bilhões de outros seres vivos, não passa de função mecânica, de efeito elétrico, de conseqüência de sinapses dos terminais nervosos, portanto explicável cientificamente e passiva de replicação? Quem pode responder a essa questão sem margem à mínima dúvida, sem recorrer a hipóteses, suposições e crenças? Ser humano nenhum pode!

Bem que cientistas já fizeram essa tentativa, e várias vezes. Houve inúmeros ensaios para de se transplantar cérebros brilhantes em corpos mais saudáveis do que aqueles que originalmente eles comandavam. Em vão! Parece, portanto, que a inteligência é intransferível. Mas onde a certeza? É outro grande talvez.

Na hipótese (a meu ver improvável) porém, da sobrevivência dessa nossa parte essencial, genericamente denominada de “alma” (ou de “espírito”, como querem alguns), como isso se dá? Onde fica essa parte imaterial? Pairando no espaço? Fica na própria Terra? Segue para outro planeta ou outra dimensão? Qual?

Muitos (não sei se a maioria) optam pela fé. Esta, até por definição, não requer a mínima explicação. É a crença absoluta e total, profunda e irrestrita no que é, objetivamente, incrível. No que, se fôssemos racionalizar, não acreditaríamos jamais.

Há quem tenha essa capacidade e ela, certamente, lhe é um bem. Faz com que quem tem fé não tema a morte e até, eventualmente, sinta ansiedade para que chegue logo. Mas isso não está no terreno racional da certeza. Por isso, não tenho como contestar o autor dos célebres “Gargântua” e “Pantagruel”, François Rabelais, quando constatou, a propósito da morte: “Vou em busca de um grande talvez”.Todos nós iremos um dia...

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com



O goleiro e o passarinho

* Por Paulinho Assunção

Fica o dito pelo desdito, fica a verdade pela desverdade: não foi culpa minha o passarinho ter vindo junto com a bola. Qual goleiro pode imaginar tal despropósito?

Foi gol — mas e daí?

Não levo a culpa para casa. Não me envergonho. Andarei de peito aberto pelo bairro e dormirei o meu sono com a consciência deitada em travesseiro de pluma.

Se me perguntarem, eu direi: foi o passarinho.

Repito outra vez: foi o passarinho.

Com uma única mão eu pegaria aquela bola. Tantas eu peguei com igual potência, com igual trajeto, com igual pontaria. Mas a culpa foi do passarinho.

Tempos estranhos são esses quando os passarinhos decidem jogar futebol. Tempos esquisitos.

Se ele era canário? Isto eu não sei; provável que fosse um pardal. Ou tiziu. Ou sanhaço. Ou andorinha. Bicho de pena com uma flecha dentro quase no rumo do meu coração.

Sei que era pequeno, pequeno e veloz. E ele veio junto com a bola. Talvez em cima dela, talvez medindo velocidade com ela, talvez fazendo folguedos em volta dela.

Um passarinho intrujão — se querem saber.

Eu estava a postos, na posição certa, com olho de lince, com mãos de urso, com a destreza de um gato ou de um tigre.

Tudo estava quieto. Todos os relógios ficaram parados quando percebi sinais de perigo no meio do campo. Se chovesse, seria sem trovão. Se o mundo acabasse, seria em silêncio. O perigo armou trapaças pelo lado do campo de onde eu via o fim da cidade, o fim das árvores, o fim de tudo.

Goleiro. Goleiro é o que sabe quando o diabo ri com dois dentinhos. Goleiro é estar no rumo da tempestade. Sem goleiro — ai do gol que jamais terá sabor de gol se lá não estiver um mão de urso com fome e com sede, um mão de tamanduá para o abraço arredondado.

Sim, o perigo armou trapaças pelo lado do campo onde nasce o destino. Vi quando o ponta deles chutou com os pavios e as pólvoras, chute que dava de São Paulo a Brasília, de Uberlândia a Pindamonhangaba.

Pensei comigo: “É minha, eu pego”. E armei o meu bote.

Zero a zero e o jogo acabaria. Bom para nós, porque era no campo deles, com a fanfarra deles, com a torcida deles, gente-fera cuspindo as brasas e cuspindo os relâmpagos.

E a bola veio, bala de canhão na tarde do bairro. Bala-bola que furava um azul que era quase um mar arrodeado de nuvens. Nuvens de paz numa hora todinha feita de guerra.

E foi aquele silêncio. Foi aquele calafrio.

Eu subi. Tive asas. Estava quase um helicóptero. Subi até o ângulo esquerdo, fui à gaveta da trave, era dono do meu vôo.

E de repente. E de repente apareceu o maldito. Senti a revoada, o bater de asas, o pio, o roçar das penas no meu rosto. Foi um lusco-fusco, foi um corisco.

E a bola nua, mulher desnuda, no fundo da rede.

* Poeta, ficcionista e jornalista com mais de uma dezena de livros publicados. Foi membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais e repórter na sucursal mineira da Agência Estado. Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1983 (Poesia) e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães Rosa), categoria contos, em 1998.



Pensar o ser humano depois de Auschwitz

* Por Leonardo Boff

Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto de judeus perpetrado pelo nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente, em Auschwitz na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas seja de Hans Jonas do lado judeu, seja de J.B.Metz e de J. Moltmann do lado cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: Com pensar o ser humano depois de Auschwitz?

É certo que o inumano pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro de 1943: "Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e que jamais se escreverá". O nacionalsocialismo de Hitler tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou para ele em virtude e glória. Aqui se revelam traços do Apocalipse e do Anti-Cristo.

O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss" (1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia entre 1946-1947 e finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema exatidão e detalhes como enviou cerca de dois milhões de judeus às câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da morte" de que falava Hannah Arendt.

Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, enfim, um pequenoburgues normal. No final, antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau". Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.

Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do "Fuhrer" de exterminar os judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.

Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua própria pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar suplicante da mãe, pedindo misericórdia para aqueles inocentes" – comenta Höss – nunca mais esquecerei". Fez um gesto brusco e os policiais os jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.

Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, seja políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.

Este risco nos cerca pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desequilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.

(Texto enviado pela escritora Urda Alice Klueger de Blumenau/SC)

* Leonardo Boff é teólogo e autor de Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, Vozes (2009), entre outros tantos.



Dignidade está na moda.

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Desce as escadas o executivo engravatado, que ao passar pela poça, escorrega no chão; quem lhe estende a mão é um neguinho que varre a calçada.

A moça, que acaba de pagar uma fábula por uma bolsa de griffe, espirra; quem lhe deseja saúde é um gordinho, que limpa as escadas.

A criança, dentro do carro importado, quer um picolé; a mãe grita, mas o vendedor não escuta; a moça que cuida dos jardins da pracinha grita por ela:
-Oh! Do pau gelado!

Aquele que estende a mão não mede por quem o faz. Não julga as aparências. A boa maquiagem se desfaz com a chuva. O belo terno se desgasta com o tempo e as traças o devoram. Dignidade é marca registrada de gente boa e honesta, como nós, e está sempre na moda.

* Poetisa e colaboradora do Literário