segunda-feira, 30 de abril de 2012

Leia nesta edição:



Editorial – Radiografia do medo.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Cinema mudo”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Sono”.

Coluna Portas Aberta – Alberto Cohen, poema, “Ela”.

Coluna Porta Aberta – Rubem Alves, crônica “Será que a leitura dos jornais nos torna estúpidos?”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema “Se eu tivesse dedos de fada”.



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Radiografia do medo

A boca fica seca, as mãos trêmulas, o coração disparado, sua-se frio, o rosto fica pálido e é possível até sentir a adrenalina correndo através das artérias e das veias, como torrentes de fogo. Esta é a sensação que se tem diante da mira de um revólver – que nos seja apontado por alguém em alguma rua escura, ou no recesso do nosso lar, ou em qualquer lugar ou circunstância – ou da iminência de uma agressão. Tem um nome curtinho e é uma das emoções básicas, que ao lado da ira, do amor e do senso do dever constitui, na classificação do psicanalista Emílio Mira y Lopez – autor de um clássico sobre o assunto – o grupo dos "quatro gigantes da alma". Seu nome? MEDO!!!.



É o mecanismo com que a natureza nos dotou para garantir nossa preservação física. Sua exacerbação recebe as designações de "pânico" e de "terror". É capaz de causar estado de choque no indivíduo e até conduzi-lo à morte. Mira y Lopez diz que a energia que ele mobiliza e veicula "é tão grande que tudo o que o homem tenha feito, de bom ou de mau, sobre a Terra, se deve levar, fundamentalmente, à sua conta".



Diante do perigo concreto, as reações variam. Dependem das circunstâncias, em alguns casos. Em outros, ficam na dependência dos reflexos de cada um. Duas vontades antagônicas nos assolam: a de fugir e a de reagir. Quando se trata do medo "normal", temos ainda condições para ponderar sobre o que é melhor e mais prudente. Em caso contrário... Numa fração de segundos, lembramo-nos das pessoas queridas, pais, mulher, filhos e o que significaria para eles a nossa morte.



Em um assalto, em geral, optamos por entregar tudo o que o indivíduo armado nos pedir. Isto se não estivermos tomados pelo pânico. Mas se estivermos, poderemos ou tentar correr, o que pode ser fatal, ou reagir e agredir quem nos ameace, que igualmente é uma atitude perigosa de resultado imprevisível. Tanto podemos matar, quanto morrer.



É importante que essa avassaladora emoção, esse impasse em que a vida e a morte ficam diante de nós, seja devidamente conhecida, para depois ser racionalizada e, se possível, posta ao nosso serviço como natural forma de proteção e de autopreservação e não descambe para o terror, para o pânico, que venha a atuar contra nós. Ao escritor, esse conhecimento é fundamental, para a construção de personagens autênticos, com reações e atitudes verdadeiramente humanas e que, por isso, sejam verossímeis.



O mundo é, sempre foi e (temo) infelizmente sempre será violento. Motivos para sentir medo, portanto, nunca nos faltarão. Os números frios mostram que, notadamente nas grandes cidades, raros são os cidadãos que não foram assaltados pelo menos uma vez. Alguns o foram duas ou mais. Portanto, boa parte deles viveu a dura realidade de sentir intenso medo diante de uma arma, não raro apontada por um psicopata tomado de pânico, o que torna a situação muito mais perigosa e imprevisível.



Mas não é apenas essa circunstância que nos atemoriza e não raro traumatiza para o resto da nossa vida. São tantas as que podem nos desafiar, que é impossível resumi-las com razoável precisão. De tempos em tempos, por exemplo, é deflagrada uma onda de seqüestros que perdura por meses e até por alguns anos, e depois pára. O colunista do "The New York Times", Tom Wicker, constata a propósito: "A política do crime é simples e cínica: apenas responde ao medo de que o público tem do crime".



Nas grandes cidades tornaram-se comuns os seqüestros-relâmpagos, em que as vítimas permanecem em mãos de captores o tempo suficiente para estes sacarem o dinheiro que eventualmente tenham em algum banco. Tornaram-se delitos tão corriqueiros, que nem são mais noticiados pelos meios de comunicação.



Quanto maior for o temor da população por determinado tipo de crime, mais possibilidades ele tem de ser repetido. É evidente que um seqüestro assusta, não apenas quem é vitimado por ele, como também a família. Sua lógica é a mesma que move os atos terroristas: o despertar do terror.



O que seria necessário fazer, de alguma maneira, era transferir esse temor das vítimas para o criminoso em potencial. Não basta somente o agravamento de sua pena, se ele conta com regalias (como tem agora), durante seu encarceramento. Muitos dos casos de seqüestro (e de outros tantos delitos) foram, comprovadamente, planejados dentro de penitenciárias. Como isso acontece? É a pergunta que, certamente, todos fazem e que seria oportuno que alguém respondesse. O fato é que acontece!



As grandes concentrações urbanas, características do nosso tempo, são insalubres, sob praticamente todos os aspectos, e impróprias para uma vida civilizada, a despeito das aparentes facilidades e confortos que propiciam. O grande problema é que somente minorias têm acesso aos bens e serviços do aparato urbano. A imensa maioria mora mal, tem dificuldades de locomoção, conta com renda insuficiente (isso quando tem alguma) para satisfazer até as necessidades básicas da sobrevivência etc. etc.etc.



A maior parte dessas pessoas convive com a miséria, mas batalha mesmo assim, em condições tão desfavoráveis, e sobrevive com certa dignidade e honestidade. Alguns conseguem evoluir e até ascender econômica e socialmente. Muitos, todavia, optam pela marginalidade. Por razões que não cabe aqui discutir, descambam para o crime. Declaram “guerra” aos semelhantes, valendo-se, sempre, da estratégia do medo. Atemorizam suas vítimas e tornam os demais cidadãos em vítimas potenciais. Como? Pelo medo que as pessoas passam a sentir de serem assaltadas, seqüestradas etc.



Eça de Queiroz, no livro “A Cidade e a Serra”, diz que em tais aglomerações o homem perde “a força e a beleza”. E acrescenta: “Na cidade, findou sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior... a sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel...A sua tranqüilidade, onde está?” Não está! Não existe!



Nem os mais peritos autores de histórias policiais, como Agatha Christie ou Conan Doyle, seriam capazes de imaginar cenários e enredos tão inverossímeis como os episódios de violência urbana que já findaram por se incorporar ao nosso cotidiano. E de tal forma, que os consideramos episódios “normais” do dia a dia. Claro que não são, ou pelo menos não deveriam ser. Mas ocorrem de fato, e de forma repetitiva. Isso comprova que o escritor russo, Fedor Dostoievsky, não fez apenas uma frase de efeito, mas expressou grande verdade, quando constatou que "não há nada mais espantoso do que a realidade".



As vítimas (reais ou potenciais) jogam, involuntariamente, uma "roleta russa", cujos resultados são sempre imprevisíveis. Dependem do ânimo, ou do pânico, de quem lhes aponte uma arma. Muitas vezes, porém, sequer há tempo para o medo. Principalmente quando ocorre um ataque de surpresa, que é o mais comum de acontecer. O medo, nestes casos, não raro vem depois. Claro, se a pessoa atacada sobreviver. E o trauma da agressão permanece para sempre. Este é um assunto desagradável, eu sei, mas que não deve e não pode ser ignorado, por se constituir em nossa violenta e atemorizante realidade cotidiana.



Boa leitura.



O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Cinema mudo

* Por Talis Andrade

Na roda da fortuna
revejo coisas passadas
cenas de um mundo
esquecido mundo
povoado de sombras
cenas que passam
em preto & branco
a ceifa a peste
o fogo dizimando
as aldeias e a floresta
índios vestidos
coa a camisa de fantasma
pajés a profetizar
no frenesi das santidades
a Terra Sem Males
cenas mudas
de negros escravos
zumbis mal-assombros
arrastando correntes
nas escuras senzalas
cenas de um filme
em preto & branco
de capa e espada
góticos sobrados
estalagens malditas
em que se bebe rum
pelas almas dos capitães
dos navios piratas



Pelas ruas do Recife
revejo frades e padres
conspirando pela liberdade
Frei Caneca caminhando
com o baraço dos enforcados


Frente ao espelho
por trás do espelho
visagens vão passando
embaçados esboços
rastejantes sombras
máscaras trans
figuradas caras
vão passando
rostos infantis
envelhecidos pelo tempo
vagantes almas
misturadas com os viventes
em uma dança de cadáveres
dos governantes quadrúpedes
que roubam a quadra do tempo
a dança da morte
dos salteadores de estrada
cobradores de impostos
fiscais de justiça
gerentes de banco
contadores de juros



Revejo coisas passadas
coloridas imagens
lindas paisagens
lindas meninas
dançando pastoril
no céu de Olinda
os corpos girando
montados em cavalinhos
cavalinhos de madeira
pintados de encarnado
pintados de azul
em um carrossel
rodando rodando
nas festas de rua



Rostos vão passando
lindas fêmeas com quem fiz sexo
lindas mulheres com quem
não fiz sexo
perturbadores rostos
girando girando
em um carrossel
de um projetor de slides
os rostos das mulheres
para quem mandei rosas
as mulheres para quem escrevi
meus versos
as mulheres que amei
nos festins das ladeiras de Olinda
as mulheres que deixei
na roda dos expostos
em torno do pelourinho
cenas que passam
na roda das três fiandeiras
sem mostrarem
o inenarrável começo
o incompreensível fim



* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).

Sono


* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral


Eis que o sono,
traiçoeiro
se avizinha.
Embaçando
meus olhos
enquanto
te perco
na névoa.



* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário
Ela


* Por Alberto Cohen


Ela, inesperadamente,
chegou sem mala e sem rede,
modificou minha sala,
pôs uns quadros na parede,
desarrumou documentos,
colheu flores na varanda
e um fiado na quitanda,
recitou Carlos Drummond.
Invadiu copa e cozinha,
expulsou a cozinheira,
emprestou sal e farinha,
derrubou a farinheira,
fritou comida chinesa
com gosto de calabresa,
deu o banquete mais farto.
Queimou incenso no quarto,
postou-se em frente ao espelho,
despiu-se bem lentamente,
dançou a dança do ventre,
pegou meu lado da cama,
foi namorada e mucama,
fez-me rapaz novamente.
Tomou banho de chuveiro,
pediu outro sabonete,
molhou o banheiro inteiro,
cantarolou "Construção",
debochou de minhas toalhas,
juntou suas pequenas tralhas
e partiu como chegou,
deixando a casa a seu jeito,
flores, quadros, documentos,
a confusão no meu leito,
aquele incenso suspeito,
a notinha da quitanda,
o perfume de lavanda,
tudo inesperadamente.


• Poeta e escritor paraense
Será que a leitura dos jornais nos torna estúpidos?


* Por Rubem Alves

O nome não me era estranho. Eu já o vira de relance em algum jornal ou revista. Mas não me interessei. Aquele nome, para mim, não passava de um bolso vazio. Eu não tinha a menor idéia do que havia dentro dele. Sou seletivo em minhas leituras. Leio gastronomicamente. Diante de jornais e revistas eu me comporto da mesma forma como me comporto diante de uma mesa de bufê: provo, rejeito muito, escolho poucas coisas. Concordo com Zaratustra: “Mastigar e digerir tudo - essa é uma maneira suína.“



Aquele bolso devia estar cheio de coisas dignas de serem comidas – caso contrário não teria sido oferecido como banquete nas páginas amarelas da VEJA. Mas eu não comi. Aí um amigo me enviou via e-mail cópia de uma crônica do Arnaldo Jabor, a propósito do dito nome – crônica que eu li e gostei: sou amante de pimentas e jilós.



Senti-me parecido com o Mr. Gardner, do filme “Muito além do jardim“, com Peter Sellers. Mr. Gardner jamais lia jornais e revistas. Aproximei-me então da minha assessora e lhe perguntei, envergonhado, temeroso de que ela tivesse visto o dito filme, e me identificasse com o Mr. Gardner. “Natália, quem é Adriane Galisteu?“ Esse era o nome do bolso vazio. Ela deu uma risadinha e me explicou. À medida em que ela explicava, as coisas que eu havia lido começaram a fazer sentido, e eu me lembrei de uma estória que minha mãe me contava: uma princesinha linda que, quando falava, de sua boca saltavam rãs, sapos, minhocas, cobras e lagartos... Terminada a explicação, fiquei feliz por não ter lido. Lembrei-me de uma advertência de Schopenhauer: “No que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Essa arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público. Para ler o bom uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos... Muitos eruditos leram até ficar estúpidos.“ Existirá possibilidade de que a leitura dos jornais nos torne estúpidos?



O que está em jogo não é a dita senhora, que pode pensar o que lhe for possível pensar. O que está em jogo é o papel da imprensa. Qual a filosofia que a move ao selecionar comida como essa para ser servida ao povo?



A resposta é a tradicional: “A missão da imprensa é informar“. Pensa-se que, ao informar, a imprensa educa. Falso. Há milhares de coisas acontecendo e seria impossível informar tudo. É preciso escolher. As escolhas que a imprensa faz revelam o que ela pensa do gosto gastronômico dos seus leitores.



Jornais são refeições, bufês de notícias selecionadas segundo um gosto preciso. Se o filósofo alemão Ludwig Feuerbach estava certo ao afirmar que “somos o que comemos“, será forçoso concluir que, ao servir refeições de notícias ao povo os jornais estão realizando uma magia perversa sobre os seus leitores: depois de comer eles serão iguais àquilo que leram.



Faz tempo que parei de ler jornais. Leio, sim, movido pelo espírito da leitura dinâmica, apressadamente, deslizando meus olhos pelas manchetes para saber não o que está acontecendo, mas para ficar a par do menu de conversas estabelecido pelos jornais. Muita coisa importante e deliciosa acontece sem virar notícia, por não combinar com o gosto gastronômico dos leitores. Se não fizer isto ficarei excluído das rodas de conversa, por falta de informações. Parei de ler os jornais, não por não gostar de ler mas precisamente porque gosto de ler. As notícias dos jornais são incompatíveis com meus hábitos gastronômicos: leio bovinamente, vagarosamente, como quem pasta... ruminando. O prazer da leitura, para mim, está não naquilo que leio mas naquilo que faço com aquilo que leio. Ler, só ler, é parar de pensar. É pensar os pensamentos de outros. E quem fica o tempo todo pensando o pensamento de outros acaba por desaprender a arte de pensar seus próprios pensamentos: outra lição de Schopenhauer. Pensar não é ter as informações. Pensar é o que se faz com as informações. É dançar com o pensamento, apoiando os pés no texto lido: é isso que me dá prazer. Suspeito que a leitura meticulosa e detalhada das informações tenha, freqüentemente, a função de tornar desnecessário o pensamento. Pensar os próprios pensamentos pode ser dolorido. Quem não sabe dançar corre sempre o perigo de escorregar e cair... Assim, ao se entupir de notícias – como o comilão grosseiro que se entope de comida – o leitor se livra do trabalho de pensar.



Confesso que não sei o que fazer com a maioria das notícias dos jornais: entendo as palavras mas não entendo a notícia. Penso: se eu não entendo a notícia que leio, o que acontecerá com o “povão“? Outras notícias só fazem explicitar o que já se sabe. Detalhes, cada vez mais minuciosos, das tramóias políticas e econômicas de um Maluf, de um Jader, nada acrescentam ao já sabido. Esse gosto pela minúcia escabrosa se deriva da pornografia, que encontra seus prazeres na contemplação dos detalhes sórdidos, que são sempre os mesmos, como o comprovam as salas de “imagens eróticas“ da Internet. A dita reportagem sobre a tal senhora e as notícias sobre Jader e Maluf atendem às mesmas preferências gastronômicas. Será que as notícias são selecionadas para dar prazer aos gostos suínos da alma? Por outro lado, há os suplementos culturais que, para serem entendidos, é preciso ter doutoramento. Para o povão, o futebol..



Ao final de sua crônica o Arnaldo Jabor dá um grito: “Os órgãos de imprensa devem ter um papel transformador na sociedade...“ Dizendo do meu jeito: os órgãos de imprensa têm de contribuir para a educação do povo. Mas educar não é informar. Educar é ensinar a pensar. Os jornais ensinam a pensar? Repito a pergunta: Será que a leitura dos jornais nos torna estúpidos?



(Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 02/09/2001)

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

Se eu tivesse dedos de fada


* Por Flora Figueiredo


Se eu tivesse dedos de fada,
Bordaria estrelas no jardim...
Que fossem macias e estofadas,
Para que, descalço, você andasse sobre elas,
Como quem pisa em canteiros de cetim.




Se eu tivesse dedos de fada,
Desenharia flores pelo teto,
Que fossem azuis e perfumadas,
Para que os anjos, devidamente seduzidos,
Dissessem Amém aos seus sonhos preferidos.




Se eu tivesse dedos de fada,
Rabiscaria acordes nos espaços,
Que fossem quentes e excitantes,
Para que você desdenhasse do cansaço,
A cada vacilo no seu chão de caminhante.




Mas, por eu não ter dedos de fada,
Vou tentar modelar como um poeta,
A palavra correta e o peito ardente.
Para que você descubra finalmente
Que sou sua poesia predileta.




• Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida.

domingo, 29 de abril de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Utopia democrática.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Não se compra o essencial”.

Coluna Direto do Arquivo – Euclides Farias, poema, “Presságio”.

Coluna Clássicos – Stanley Ellin, conto, “A pergunta”.

Coluna Porta Aberta – Lêda Selma, crônica,“Risível por natureza”.

Coluna Porta Aberta – Cida Pedrosa, poema “Engenharia da dor”.



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Utopia democrática


O fracasso do comunismo no Leste europeu, que redundou no fim da União Soviética e na luta selvagem e suicida que se verificou em seguida, em muitas de suas ex-Repúblicas e, notadamente, na antiga Iugoslávia, pelos seus miseráveis espólios, ocorrido no início dos anos 90 do século passado, foi comemorado, em alguns círculos acadêmicos, como "vitória da democracia sobre o totalitarismo". Será que foi?!



Alguns, mais realistas, preferiram caracterizar a dèbacle comunista como a prevalência, pura e simples, do capitalismo. Mas será que o mundo tem, de fato, o que comemorar? A liberdade, por exemplo, já deixou de ser conceito vago e retórico, para se constituir em prática consagrada entre os povos? Somos livres? Há quem o seja, literalmente?



O capitalismo triunfou mesmo? E, caso tenha triunfado, é coisa para ser comemorada ou é desvio a ser corrigido? O que dizer das sucessivas crises econômicas em um mundo globalizado? Há esperanças concretas de que, pelo menos em longo prazo, a humanidade conseguirá uma forma civilizada de convivência em que o homem não mais irá explorar o homem e nem lhe impor pesados e intoleráveis jugos? É questão para se refletir, e bastante. Mas, estamos refletindo a propósito? Temo que não. Aliás, ouso afirmar: não, não estamos!.



Objetivamente, não há a mínima indicação de que em alguma parte do mundo se esteja caminhando para esta utopia, este sistema ideal, esta nova "idade de ouro", de igualdade, fraternidade e justiça social, que tantos têm sonhado por tanto tempo. Pelo contrário, o que existe são ameaças sobre ameaças, vindas de todos os lados, cada uma mais iminente e mais pavorosa do que outra.



É bom que não se perca da mente o fato de que a comunidade internacional detém, ainda, a exemplo do que ocorria no auge da chamada Guerra Fria, gigantesco arsenal nuclear, capaz de pulverizar vários planetas do porte deste, em questão de minutos. Qualquer descuido, o mínimo instante de loucura e/ou de ira, um acidente imprevisto e não evitável (como são, aliás, todos os acidentes) e... bum! Vai tudo pelos ares! E adeus civilização! Adeus sonhos e ideais! Adeus humanidade! Adeus vida no planeta Terra!



Para complicar bastante as coisas e agravar ainda mais os riscos, parcela considerável do monstruoso arsenal nuclear está em mãos não confiáveis (existe alguma que seja confiável?), à mercê de nacionalistas fanáticos e talvez despreparados para encarar a realidade contemporânea. Existe o risco, e nem um pouco remoto, de em meio às agruras financeiras, estas frágeis e inconstantes "lideranças" se desfazerem secretamente de algumas bombas, em troca de um punhado de dólares, e que esses artefatos acabem parando em mãos ainda mais imprudentes e irresponsáveis, como as dos terroristas de grupos como a Al-Qaeda ou similares, por exemplo, ou nas de qualquer ditador, acostumado a encarar a vida humana como tendo único propósito: o de servir aos seus megalomaníacos objetivos.



Jean-Paul Sartre, por exemplo, contestou o nosso entendimento (até dogmático) sobre o que venha a significar um sistema democrático genuíno. Em entrevista concedida na década de 70 do século XX, observou: "A palavra democracia tem um sentido que caiu por si mesmo em desuso. Etimologicamente, é o governo do povo. Ora, é evidente que, nas democracias modernas, não há povo para governar, porque o povo não existe. Havia um povo sob o antigo regime e em 1793; não há mais povo atualmente, porque não se pode chamar de povo homens completamente individualizados pela divisão do trabalho, sem outra relação com outros homens que a profissional, e que, a intervalos de cinco, seis ou sete anos, fazem um ato bem preciso que consiste em ir apanhar um pedaço de papel com nomes impressos e enfiar esse papel numa urna. Não considero que haja poder do povo nisso". E por acaso há?!



Compete aos intelectuais, às cabeças pensantes, aos genuínos formadores de opinião – jornalistas, escritores etc. – trazer à baila estes temas, para que, do debate a propósito, possam emergir soluções. O que não se pode é deixar as coisas como estão e como sempre estiveram. O Planeta, cada vez mais judiado, poluído e depredado, pede socorro. A humanidade pede socorro! A vida grita por socorro! Desgraçadamente, ninguém lhes dá ouvidos.



Os recursos naturais caminham celeremente para o esgotamento, em decorrência, principalmente, do desperdício, o que tende a paralisar as máquinas produtivas mundiais, com conseqüências imprevisíveis, mas certamente catastróficas. Os solos férteis, cada vez mais escassos, tendem a se esgotar e a população não pára de crescer (já somos 7 bilhões de habitantes num Planeta com relativamente pequeno espaço aproveitável) o que, conforme a mínima das lógicas sugere, mais cedo ou mais tarde irá resultar em tragédia ainda maior: na da fome generalizada. As fontes de água potável, substância imprescindível à vida, escasseiam e são estupidamente contaminadas e poluídas, como se esse ato não trouxesse conseqüências danosas. Mas... traz! E que conseqüências!

Este é, pois, o momento crítico, da conscientização – tornada bem mais fácil dado o aparato tecnológico das comunicações – mas, e principalmente, é o instante da ação: inteligente, urgentíssima e eficaz. A humanidade encontra-se na encruzilhada de múltiplos caminhos. Um único é o correto, capaz de levá-la à tão sonhada paz e a uma era de felicidade buscada por gerações e mais gerações.



É esta a vereda, no entanto, que se precisa, sem dogmatismos ou preconceitos, procurar incansavelmente e, quando (ou se) encontrada, ser trilhada, imediatamente e sem hesitações. Encontrá-la, reitero e enfatizo, é que são elas! Essa conscientização – quer admitamos, quer não – é também papel e tarefa nossa, de escritores, se é que não seja (e tenho a intuição que sim) nossa principal e até possivelmente única responsabilidade.



Boa leitura.



O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Não se compra o essencial

* Por Pedro J. Bondaczuk



As pessoas que se apegam ao dinheiro, como um crente se apega a Deus por exemplo (ou até mais, quem sabe) causam-me pasmo. Não as entendo. É certo que evoluí em meus sentimentos com o passar dos anos. Quando moço, sentia, por elas, repulsa e desprezo. Hoje o que sinto é uma certa piedade, misturada à absoluta incompreensão.


Sei que na ordem atual das coisas, neste mundo em que os valores estão todos (ou quase todos) às avessas, deveria ocorrer o contrário. Ou seja, os endinheirados é que deveriam sentir (duvido que sintam) pena das minhas tantas carências materiais.


Contudo, não posso ser classificado sequer como pobre. Não conto com recursos para esbanjar, é verdade, mas o que ganho é suficiente (e em algumas ocasiões até sobeja) para satisfazer minhas necessidades e, às vezes, até alguns dos meus caprichos. Nesse aspecto, portanto, não tenho do que me queixar.


Não sou nenhum perdulário que sai por aí esbanjando o fruto do seu trabalho. Não chego a tanto. Mas não tenho apego o mínimo pelo dinheiro. Vejo nele, apenas e tão somente, um meio de viver com dignidade. Não faço poupança, embora tenha o cuidado de gastar, rigorosamente, só o que ganho. Não me fio nunca em créditos para sair gastando por conta.


Uma coisa que nunca consegui entender é essa febre por ouro que afeta muita gente e que parece não ter cura. Aliás, foge-me da compreensão o motivo desse metal, de relativamente escassa utilidade prática, ser considerado tão valioso, mais até do que o ferro, indispensável ao homem por suas mil e uma aplicações. Sequer o considero o mais belo. Seu valor é, pois, fruto de mera convenção, que se perde nas brumas do tempo e que jamais foi revisada.


Olavo Bilac, na crônica que publicou em 8 de outubro de 1899, no jornal “Gazeta de Notícias” do Rio de Janeiro, a propósito da Guerra dos Bôeres, que então se travava no atual território da África do Sul, escreveu: “Ah! A fome de ouro! Em que arriscados passos não se mete a gente, por amor do lindo metal, que a natureza previdente armazenou no seio da terra, disfarçando-o em amálgamas vários, como para esconder da nossa cobiça essa origem perene de horrores e de sangreiras! Por amor dele a alma se endurece, o coração fica seco como um arcai, afiam-se as unhas à rapina, aguçam-se os dentes da traição, e o espírito, excitado pelas tentações, inventa requintes de crueldade, cria prodígios de astúcia”.


Estes só podem ser, mesmo, sintomas de uma doença, grave e incurável. Não é coisa de pessoas normais, equilibradas, sensatas e racionais. Não pode ser! Posso afirmar, com absoluta segurança, sem pestanejar, que o ouro nunca me fez, não faz e nem fará falta.


A rigor, só tive, em toda a minha vida (que já beira os setenta anos), um único objeto feito com este metal, a que tanta gente atribui tamanho valor. Foi o par de alianças do meu casamento. E até isso eu perdi – com o que arrumei, diga-se de passagem, baita encrenca com a esposa, mas não por sua valia pecuniária, mas por ela entender que eu me tenha desfeito do anel para posar de solteiro. Ela estava errada, claro. Mas foi uma luta para convencê-la!


Depois disso, jamais cheguei sequer perto de ouro. E querem saber? Isso nunca me fez a mínima falta. Não me sinto mais pobre por não possuir nada feito com esse metal e acho que não me sentiria rico se possuísse algo, a menos que fosse em quantidades gigantescas.


Reitero, pois, que não consigo entender a cabeça de quem se apega, com tamanha paixão, a coisas que, no meu critério de avaliação, são tão banais. Só pode, mesmo, se tratar de doença. Que outra explicação haveria? Não vejo nenhuma.


O mesmo pasmo, ou até maior, me despertam os que têm obsessão pelo dinheiro. É certo que ele lhes proporciona a satisfação não apenas de todas as necessidades, mas até dos mais estapafúrdios caprichos. Mas alguns têm tanto, que dá para tudo isso e ainda sobra muito, muitíssimo. Para quê tanto?!


O escritor dinamarquês, Henrik Ibsen, fez a seguinte e sábia constatação, que os obcecados por esses valores simbólicos deveriam atentar (mas não atentam): “Com o dinheiro podemos comprar muitas coisas, mas não o essencial para nós. Proporciona-nos comida, mas não apetite; remédios, mas não saúde, dias alegres, mas não a felicidade”. Vale a pena escravizar-se por tão pouco?! Só pode ser doença mesmo! Ou você tem explicação melhor?


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Presságio

* Por Euclides Farias



No silêncio do rio, maré morta, sem afronta d’água à canoa,
o único som que se ouve vem do coração do pescador.
Num átimo, a linha que separa o peixe da fome se estica.
Vem um, vêm dois, vêm três.
O olhar se ilumina. As crianças em casa esperam.
Lá longe, o sino dobra na hora do anjo.
O coração, saciado, salta mais que os peixes em agonia.



Mas o cardume não se afasta.
Vêm quatro, vêm cinco, vêm seis.
No cabalístico sétimo, a linha se parte.
O mau presságio e o vento forte que agora sopra enchendo a vela
devolvem ligeiro o nativo ao estado bruto da preservação.



• Jornalista, com passagens pelo O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.

A pergunta


* Por Stanley Ellin


Tradução do texto original com o título The Question de Luís Varela Pinto


Eu sou eletrocutor de profissão… prefiro esta palavra a carrasco; acho que as palavras são importantes. Quando eu era ainda uma criança, as pessoas que enterravam os mortos chamavam-se cangalheiros e depois, com o correr do tempo, a certa altura passaram a chamar-se armadores, e por isso estão agora melhor.

Tomemos como exemplo a pessoa que era o cangalheiro na minha terra. Era um homem decente, respeitável e muito amistoso, se o deixassem, mas o fato é quase ninguém o deixava. Hoje, o filho — que agora dirige o negócio — já não é cangalheiro, mas armador, e é bem recebido em toda a parte. Por acaso ele é funcionário na minha Loja e é um dos seus membros mais populares. E para isso, bastou substituir uma palavra por outra. O trabalho é o mesmo, mas a palavra é diferente, e as pessoas vão mais pelas palavras do que pelo seu significado.

Ora, como já disse, sou eletrocutor — que é a palavra profissionalmente correta para designar aquilo que faço no meu Estado, onde a cadeira elétrica é o meio de execução.

Não que isto seja a minha profissão principal. De fato é apenas uma atividade extra, como o é para a maioria daqueles que, como nós, procedem às execuções. A minha atividade principal é dirigir uma loja de venda e reparação de material elétrico, tal como o meu pai antes de mim. Quando ele morreu, herdei não só o negócio como também o cargo de eletrocutor do Estado.

Criamos uma tradição, o meu pai e eu. Ainda antes do virar do século, quando a eletricidade era uma coisa ainda relativamente nova, já ele dirigia a loja com bons lucros, e foi o primeiro homem a proceder, com sucesso, a uma eletrocussão para o Estado. Contudo esta não foi verdadeiramente a primeira execução no Estado. A primeira, de fato, foi uma experiência que o eletricista que instalou a cadeira na prisão estadual completamente arruinou. O meu pai, que ajudara na instalação da cadeira, ajudou também na eletrocussão, e contou-me que tudo o que poderia correr mal correu mesmo mal. A corrente estava muito irregular, o chefe dele ficou agarrado ao comutador e o homem que estava na cadeira continuava vivo e aos pontapés e começou a arder até ficar transformado num torresmo. Na vez seguinte, o meu pai ofereceu-se para fazer o trabalho sozinho, refez a instalação elétrica da cadeira e manejou o comutador com tal perícia que lhe ofereceram o lugar de eletrocutor oficial.

Eu segui-lhe as pisadas, e é assim que se cria uma tradição, mas receio que esta termine comigo. Eu tenho um filho, e o que eu lhe disse e o que ele me disse a mim é o cerne da questão. Ele fez-me uma pergunta—bem, em minha opinião, foi o tipo de pergunta que está no fundo da maior parte dos problemas do mundo, hoje. Assim como se não devem acordar moscas que estão a dormir, também há perguntas que se não devem fazer.

Para entender isto, acho que, primeiro, o leitor tem de me entender a mim, e nada há de mais fácil. Tenho sessenta anos e começo já a aparentá-los: um pouco de peso a mais, sofro às vezes de artrite quando o tempo está úmido; sou um bom cidadão, queixo-me dos impostos, mas pago-os a tempo e horas, voto no partido certo, e dirijo o meu negócio de maneira suficientemente eficiente para poder viver confortavelmente.

Sou casado há já trinta anos e em todo este tempo nunca olhei para outra mulher. Bom, olhar, talvez, mas nada mais do que isso. Tenho uma filha já casada e uma neta com cerca de um ano que é o bebê mais bonito e sorridente da cidade. Estrago-a com mimos e não me arrependo, porque, em minha opinião, é para isso que os avós servem — para estragar os netos. O papá e a mamã lá estão para as coisas sérias; o vovô para a brincadeira.

E além de tudo isto, tenho um filho que me faz perguntas. Daquelas que não se fazem.

Junte o leitor estes quadros e o que obtém é o retrato de alguém exatamente como você. Eu podia muito bem ser um vizinho seu, ou um seu velho amigo, ou o tio que sempre aparece nos casamentos ou nos funerais. Sou exatamente como o leitor.

Claro que, por fora, todos parecemos diferentes, mas mesmo assim, somos capazes de nos reconhecer à vista como o mesmo tipo de pessoas. Lá bem no fundo, e aí é que interessa, temos todos os mesmos sentimentos, e sabemos isso sem que seja necessário fazer perguntas sobre eles.

— Mas — dirá o leitor — há uma diferença entre nós. Você é quem procede às execuções e eu sou aquele que lê a notícia no jornal, e isto é muito importante, independentemente do ponto de vista.

O leitor acha que sim? Bem, veja a coisa sem preconceitos, veja-a muito honestamente e terá de admitir que está a ser injusto.

Encaremos os fatos, nós estamos todos no mesmo barco. Se um velho amigo seu for selecionado para fazer parte de um júri que considera um assassino culpado, o leitor não lhe vai depois fechar a porta na cara, pois não? Mais: se o leitor conseguisse que o apresentassem ao juiz que condena esse assassino à cadeira elétrica, ficaria muito orgulhoso, não é verdade? E ficaria muito honrado em sentá-lo à sua mesa e teria logo a preocupação de divulgar o fato.

O leitor não se importa, portanto, de ser amigo dos jurados que o condenaram e do juiz que ditou a sentença; e então o homem que tem de acionar o comutador? Ele completou o trabalho que o leitor desejava que fosse feito, e assim tornou este mundo melhor. Por que é que ele há de esconder-se num qualquer canto escuro até que precisem dele outra vez?

Não vale a pena negar que quase toda a gente acha que ele o deve fazer, e ainda menos que é uma coisa muito cruel uma pessoa na minha situação ter de enfrentar tal coisa. Se o leitor me permite uma linguagem mais dura, contratar uma pessoa para desempenhar uma tarefa desagradável e depois desprezá-la é um ultraje danado. Por vezes é difícil suportar tal justiça.

E como é que eu vivo com isto? Da única maneira possível — mantendo o segredo bem guardado e nunca me deixando cair na tentação de o divulgar. Não gosto disto, mas também não sou parvo.

O problema é que eu sou uma pessoa bonacheirona e amigável por natureza. Sou do tipo sociável. Gosto das pessoas e quero que gostem de mim. Nas reuniões da Loja ou no clube, no campo de golfe, estou sempre no centro. E sei o que aconteceria se eu alguma vez abrisse a boca para revelar o meu segredo. Cinco minutos de sensação e depois o arrepio a instalar-se lentamente. Seria o fim de toda a minha vida ali mesmo, naquela hora, daquele tipo de vida que quero viver, e ninguém no seu juízo perfeito deita fora sessenta anos da sua vida em troca de cinco minutos de sensação.

O leitor já está a ver que eu pensei muito sobre o assunto. E mais, não pensei por pensar. Não tenho a pretensão de ser uma pessoa culta, mas gosto de ler livros sobre qualquer assunto que me interesse e as execuções são um dos meus principais interesses desde que comecei a trabalhar nisto. Mando vir os livros para a loja, onde ninguém repara em mais uma encomenda que chega, e guardo-os bem fechados numa caixa no meu escritório para assim os poder ler em privado. Este procedimento como que me cheira um bocado mal — ninguém na minha idade gosta de se sentir como um miúdo que se esconde para ler uma revista pornográfica — mas não tenho outro remédio. Não há uma única criatura sobre a Terra, exceto o diretor da prisão estadual e mais dois guardas de lá, que saiba que sou eu que aciono o comutador nas execuções, e tenciono tudo fazer para que as coisas continuem como estão.

Ah, é verdade, o meu filho agora já sabe. Bom, em certos aspectos ele é um tipo difícil, mas não é parvo. Se eu não tivesse a certeza de que ele não iria abrir a boca sobre o que eu lhe contei, começava logo por não lhe ter dito nada. E eu aprendi alguma coisa com esses livros? Pelo menos o bastante para me poder orgulhar daquilo que faço para o estado e da maneira como o faço. Podemos recuar na história tanto quanto quisermos que sempre encontramos a figura do carrasco. No dia em que pela primeira vez os homens fizeram leis com vista a manter a paz entre eles, nasceu também o primeiro carrasco. Sempre houve infratores; tem de haver sempre uma maneira de os castigar. As coisas são tão simples como isto.

A questão é que atualmente há muita gente que não quer que as coisas sejam assim tão simples. Eu não sou hipócrita. Não sou daqueles idiotas de vistas curtas que pensam que sempre que aparece uma pessoa com um impulso de generosidade a consideram como uma espécie de excêntrico que não regula bem da cabeça. Mas essa pessoa pode estar enganada. Eu incluiria a maioria das pessoas que são contra a pena de morte neste grupo. São bons cidadãos, bem intencionados, que nunca na vida estiveram suficientemente perto de um assassino ou de um violador para lhe sentirem o cheiro do mal. De fato, são tão sãos e bem intencionados que não conseguem imaginar alguém neste mundo que não seja como eles. E assim, eles dizem que alguém que comete um homicídio ou uma violação é um ser humano vulgar a atravessar um mau momento. Não é um criminoso, dizem eles, apenas está doente. Não precisa da cadeira elétrica; o que precisa é de um velho médico simpático que lhe examine a cabeça e lhe ajuste os parafusos do cérebro. Dizem que realmente criminosos é coisa que não existe. Há apenas pessoas sãs e pessoas doentes, e as que merecem toda a nossa preocupação são as doentes. Se por acaso elas de vez em quando assassinam ou violam alguns dos sãos, bem, então devem ir a correr para o médico.

É este o argumento de princípio ao fim e eu seria a última pessoa a negar que ele seja apresentado com espírito de solidariedade e com boas intenções. Mas é um falso argumento. Omite uma coisa que interessa muito. Quando alguém comete um homicídio ou uma violação já deixou de pertencer à raça humana. Um homem tem um cérebro humano e uma alma, dádiva de Deus, para controlar a sua natureza animal. Quando o animal que há nele toma as rédeas, ele deixa de ser um ser humano. Então tem de ser exterminado da mesma maneira que qualquer animal que fique bravo no meio de pessoas indefesas. E o meu dever é ser o exterminador.

Provavelmente a questão é que as pessoas já não entendem o significado da palavra dever. Eu não quero parecer antiquado, por amor de Deus, mas quando eu era um jovem as coisas eram mais diretas, mais precisas. Aprendia-se a distinguir o bem do mal, aprendia-se a fazer o que tinha de ser feito, e não se faziam perguntas a cada passo. Ou se se tinha de fazer perguntas, as que interessavam eram apenas como e quando.

Depois veio a psicologia, vieram os professores e a pergunta principal era sempre porquê. Pergunta a ti próprio porquê, porquê, porquê para tudo o que fazes e acabas por não fazer nada. Mais duas gerações assim e no fim vamos ter uma raça de pessoas sentadas nas árvores como os macacos, a coçar a cabeça.

Será isto forçar a nota? Acho que não. A vida é uma coisa complicada. Durante toda a sua vida um homem depara-se com situações atrás de situações, e a maneira de as resolver é viver de acordo com as regras. Se nos perguntamos porquê muitas vezes, acabamos por ficar tão confusos que soçobramos. O espetáculo tem de continuar. Porquê? Primeiro as mulheres e as crianças. Porquê? O meu país, para o bem e para o mal. Porquê? Não te preocupes com o dever. Continua antes a perguntar-te porquê até que seja tarde demais para fazer alguma coisa.

Por volta da altura em que eu comecei a ir à escola o meu pai deu-me um cachorrinho, um pastor escocês, chamado Rex. Alguns anos mais tarde o Rex tornou-se subitamente hostil, como às vezes acontece com os cães, e depois feroz, e um dia mordeu a minha mãe quando ela estendia a mão para lhe fazer uma festa.

No dia seguinte vi o meu pai sair de casa com a espingarda de caça e o Rex preso a uma trela. Não estávamos na época da caça e portanto eu sabia o que ia acontecer ao cão e porquê. Mas é desculpável que um rapaz faça perguntas que um homem deve ter a inteligência bastante para não fazer.

— Onde é que vais levar o Rex? — perguntei. — O que é que lhe vais fazer?

— Vou levá-lo para fora da cidade — disse o meu pai. — Vou matá-lo.

— Mas porquê? — perguntei eu, e foi nessa altura que o meu pai me fez ver que só há uma resposta para tal pergunta.

— Porque é uma coisa que tem de ser feita.

Nunca mais esqueci aquela lição. E foi duro; durante um tempo odiei o meu pai por causa daquilo, mas quando cresci acabei por ver como ele tinha razão. Ambos sabíamos a razão por que o cão tinha de ser abatido. Além disso, todas as perguntas não levariam a parte nenhuma. Por que é que o cão se tornara feroz, por que é que Deus tinha posto na terra um cão para ser morto daquela maneira — são perguntas que se podem pôr até ao fim dos tempos, e enquanto as estamos a fazer continuamos a ter um cão feroz entre mãos.

É estranho olhar agora para trás e perceber que quando a história do cão aconteceu, e já muito antes dela e muito depois dela, o meu pai já era eletrocutor e eu nunca o soube. Ninguém sabia, nem mesmo a minha mãe. Umas tantas vezes por ano, o meu pai fazia a mala, pegava em algumas ferramentas, partia e ficava dois dias fora, mas era tudo o que qualquer de nós sabia. Se se lhe perguntava onde ia dizia simplesmente que tinha um trabalho a fazer fora da cidade. Ele não era homem para andar atrás de mulheres ou para ir algures embebedar-se sozinho, e portanto ninguém pensava duas vezes no assunto.

Comigo a coisa passava-se da mesma maneira. Descobri como a coisa funcionava bem quando finalmente contei ao meu filho o que andara a fazer naqueles trabalhos fora da cidade, e que tinha obtido autorização para o levar a ele como ajudante e a treiná-lo para ele poder manobrar a cadeira sozinho quando eu me reformasse. Pela sua reação fiquei logo a saber que ele estava tão estupefato com aquilo como eu ficara trinta anos antes quando o meu pai me confidenciara o mesmo.

— Eletrocutor? — disse o meu filho. — O pai é eletrocutor?

— Bem, não é vergonha nenhuma — disse eu. — E como é uma coisa que tem de ser feita, e que alguém tem de fazer, porque não mantê-la na família? Se tu soubesses alguma coisa sobre isto, já saberias que é uma profissão que muitas vezes passava de pai para filho, geração após geração. Há algum mal numa tradição boa e segura? Se houvesse mais gente a acreditar na tradição não haveria hoje tantos problemas no mundo.

Era o tipo de argumento mais do que suficiente para me convencer quando eu tinha a idade dele. Só que eu me tinha esquecido de que o meu filho não era como eu, por muito que eu quisesse que ele fosse. Era já um homem adulto, com os seus direitos, mas um adulto que nunca tinha ainda assentado nas suas responsabilidades. Eu sempre fechara os olhos a isso, sempre o vira como eu gostava que ele fosse e não como ele era na realidade.

Quando, ao fim de um ano, ele deixou a universidade, eu disse, está bem, há pessoas que não foram feitas para a universidade, eu também nunca lá andei, portanto, que interessa isso? Quando ele saía com moças umas atrás das outras e não havia maneira de se decidir a casar com nenhuma, eu dizia, bem, ainda é muito novo, anda a dar as suas cabeçadas, mas muito em breve há de vir a altura em que se sentirá preparado para constituir família. Quando ele, na loja, estava sentado a sonhar acordado, em vez de tratar do negócio, nunca fiz barulho por causa disso. Eu sabia que quando estava para aí virado, ele conseguia ser um eletricista tão bom como os melhores, e nestes tempos amenos as pessoas podem entregar-se mais aos sonhos e menos ao trabalho do que antigamente.

A verdade é que a única coisa que eu queria era ser seu amigo. Com todos os seus defeitos, ele era um rapaz bem parecido, e tinha um fundo bom. Não era muito de se meter com as pessoas, mas quando queria conseguia conquistar a simpatia de qualquer um. E durante todo este tempo, enquanto ele crescia, mantinha-se no meu inconsciente a ideia de que ele era a única pessoa que iria um dia conhecer o meu segredo e o partilharia comigo e o tornaria mais fácil de suportar. Eu não sou, por natureza, uma pessoa reservada. Uma pessoa como eu precisa de uma ideia como esta para o sustentar.

Assim, quando chegou a altura de lhe contar, ele abanou a cabeça e disse não. Senti que o chão me fugia debaixo dos pés. Discuti com ele, mas ele continuou a dizer não, e eu perdi a cabeça.

— Tu és contra a pena de morte? — perguntei-lhe. — Não tens de pedir desculpa por isso. Subirias mesmo na minha consideração se fosse essa a tua única razão.

— Não sei se é — disse ele.

— Bom, tens de te decidir por um lado ou pelo outro — disse-lhe eu. — Detestaria pensar que afinal tu és como todos os outros hipócritas que por aí andam e que dizem que está muito certo que se condene um homem à cadeira elétrica, mas que é muito mau que depois se ligue a corrente.

— E tenho de ser eu a ligar a corrente? — disse ele. — Ou tu?

— Alguém tem de o fazer. Há sempre alguém que tem de fazer o trabalho sujo para todos os outros. Não é como nos tempos do Antigo Testamento quando toda a gente o fazia por suas mãos. Sabes como é que eles executavam um homem nesses tempos? Deitavam-no no chão, atavam-lhe as mãos e os pés e toda a gente que por ali estava tinha de lhe atirar pedras até o matar. Não convidavam ninguém para estar lá a ver. Nessa altura tu não terias tido grandes possibilidades de escolha, não é verdade?

— Não sei — disse ele. E então, como ele era esperto como tudo e sabia como voltar as palavras contra o próprio que as proferiu, disse:

— Afinal, eu também não estou inocente.

— Não fales como uma criança — disse eu. — Tu não cometeste nenhum homicídio ou qualquer outro crime que exija a pena de morte. E se tens tanta certeza de que a Bíblia tem todas as respostas, tens de te lembrar de que deves dar a César o que é de César.

— Bem — disse ele — neste caso, vou deixar-te apresentar as tuas razões.

Fiquei logo ali a saber, pela maneira como ele disse aquilo e pela maneira como me olhou, que não valia a pena discutir com ele. O pior de tudo era saber que nos tínhamos afastado um do outro e que nunca mais voltaríamos a ficar juntos de novo. Eu devia ter tido o senso suficiente para deixar as coisas por ali. Devia ter-lhe simplesmente dito para esquecer tudo aquilo e continuar de boca calada sobre o assunto.

Talvez eu tivesse feito isso, se alguma vez tivesse pensado na possibilidade de uma recusa da sua parte. Mas como nunca tinha pensado em tal possibilidade, fui apanhado de surpresa e fiquei perturbado demais para pensar com sensatez. Confesso-o agora. A culpa foi minha, ao fazer daquilo uma questão e ao levá-lo a fazer aquela pergunta que ele nunca devia ter feito.

— Já estou a ver — disse-lhe eu. — É aquela velha história, não é? Os outros que o façam. Mas se a sorte ditar o teu nome para figurar num júri e mandares um homem para a cadeira elétrica, está tudo bem. Pelo menos está tudo muito bem desde que haja mais alguém que faça o trabalho que vocês e o juiz e todas as pessoas de bem desejam que se faça. O teu trabalho é na loja. Lá podes tu ser simpático e amável, a fazer montagens elétricas e a fazer tocar a máquina registradora. Eu posso perfeitamente cumprir o meu dever sem a tua ajuda.

Magoou-me muito dizer aquilo. Nunca lhe tinha falado daquela maneira, e isso faz doer. Mas o mais estranho é que ele não pareceu ficar zangado; apenas olhou para mim intrigado.

— Então é só isso que a coisa representa para ti? — disse ele. — Um dever?

— É.

— Mas pagam-te para isso, não pagam?

— Pagam; pouco, mas quanto basta.

Ele continuou a olhar-me daquela maneira.

— Apenas um dever? — disse, sem nunca tirar os olhos de mim. — Mas tu gostas, não?

Foi esta a pergunta que ele fez.

Tu gostas, não? Fica-se ali a olhar para a cadeira através de um buraco na parede. Em trinta anos eu já estive ali a olhar a cadeira mais de cem vezes. Os guardas trazem alguém para dentro da sala. Geralmente ele está entorpecido; às vezes grita, esbraceja e luta. Às vezes é uma mulher, e uma mulher pode ser tão difícil de tratar como um homem quando é levada para a cadeira. Mais tarde ou mais cedo, seja ele quem for, atam o indivíduo e enfiam-lhe a carapuça na cabeça. E nós já temos a mão no comutador.

O diretor dá o sinal e nós puxamos o comutador. A corrente atinge o corpo como se um tremendo jato de ar subitamente o enchesse. O corpo salta da cadeira ficando apenas preso pelas correias. A cabeça sacode-se e dela começa a sair uma espiral de fumo. Nós desligamos o comutador e o corpo cai de novo para trás.

Repetimos a ação uma e outra vez para ter a certeza. E sempre que puxamos o comutador ficamos a imaginar o que a corrente está a fazer àquele corpo e o aspecto que a cara terá por debaixo da carapuça.

Gostas?

Eis a pergunta que o meu filho me fez. Foi o que ele me perguntou, como se, bem no fundo, eu não tivesse os mesmos sentimentos de todos nós.

Gostas?

Mas, meu Deus, como é que alguém pode não gostar?


• Escritor norte-americano de contos policiais