domingo, 30 de setembro de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Poeta universal

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Senhores do destino”.

Coluna Direto do Arquivo – Ruth Barros, crônica “Cachaceiros sem fronteira”.

Coluna Clássicos – Gabriela Mistral, poema, “Anelo de servir”..

Coluna Porta Aberta – Lêda Selma, poema “Goiânia morena”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, crônica “Entre Amazonino e Aquilino”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Poeta universal

Há poetas que são universais. Limitar sua nacionalidade a determinado país – por mais que eles se orgulhem de haver nascido ali – é, até certo ponto, fugir da verdade. Pelo seu talento e valor da obra, têm que ser considerados “vozes da humanidade”. São sublimes. São únicos. São imortais. São universais. Enquadra-se, neste caso, sem dúvida, Pablo Neruda.

O poeta nasceu (na cidade de Parral em 12 de julho de 1904) e morreu (em Santiago em 23 de setembro de 1973) no Chile, que tanto amou e projetou com sua arte. Mas foi cidadão do mundo, embora muitos contestem sua universalidade. E a contestação se deve não por imporem restrições à sua arte, que é incontestável, mas por suas convicções ideológicas, já que se tratava de comunista convicto. Esses contestadores, claro, eram os que comungavam (e são os que comungam) de opiniões de direita, antagônicas às suas, o que não se constitui, portanto, em nenhuma novidade e nem causa surpresa.

Aliás, poucos se lembram (a maioria nem mesmo sabe), que Pablo Neruda foi pseudônimo que o poeta adotou. Seu nome de batismo era Neftali Ricardo Reyes Basoalto. Embora pudesse fazê-lo, não utilizou sua poesia como instrumento de propaganda da ideologia de que comungava. Sua obra, vastíssima (de mais de três dezenas de livros publicados) é de qualidade literária inquestionável. Atrevo-me a dizer que é, acima de tudo, impecável. Seus poemas são recitados até hoje, mundo afora, por milhões de admiradores, quase quarenta anos após sua morte. Citações de seus versos nas redes sociais são muitíssimas, nos mais variados contextos. Raríssimos poetas conseguiram conquistar essa quase unanimidade.

Não por acaso, Pablo Neruda obteve a consagração em 1971, com a conquista do Prêmio Nobel de Literatura, se tornando o segundo chileno a lograr tal façanha (antes dele, Gabriela Mistral já havia sido premiada, em 1945). Destaque-se que a honraria lhe foi conferida no auge da chamada guerra fria, que de uma forma ou de outra, influenciava os jurados suecos que – segundo se diz – sequer atentavam para obras literárias de escritores ou do mundo comunista ou de alguma forma vinculados a ele. A poesia de Neruda, no entanto, é tão universal, categórica e excelente, que se não fosse premiado, levaria esse prêmio ao completo descrédito.

Tenho poucos livros desse escritor, apenas oito. Todavia, neles não encontrei um único e solitário poema ao qual faça qualquer tipo de restrição, quer de caráter formal, quer temático. Transcrevi vários deles, em inúmeras ocasiões, em textos que estão circulando internet afora, em variados espaços, tendo sempre o cuidado de justificar, e comprovar, os motivos da transcrição. E creio que com toda a incoerência que me é atribuída – muitas dessas atribuições justas, mas várias delas meros frutos do desconhecimento do que penso e do que escrevo – em relação a Neruda, pelo menos, invariavelmente mantive a coerência.

Raros poetas (na verdade não conheço nenhum) podem se orgulhar da façanha de serem delirantemente aplaudidos por uma multidão de mais de setenta mil pessoas ao declamarem seus poemas. Mas isso aconteceu com Neruda, em outubro de 1971, poucos dias depois de ser anunciado como ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Isso ocorreu no Estádio Nacional de Santiago (de tristíssima memória para os chilenos, por ter sido transformado, dois anos depois, em gigantesca prisão por parte do regime do ditador Augusto Pinochet), quando se apresentou, ao vivo, para um público que escritor algum já teve que encarar, obtendo merecida (e até óbvia) consagração.

A esta altura, o paciente leitor já deve estar perdendo a paciência e se perguntando: “O que, raios, esse escritor tem a ver com primavera, tema destas reflexões?!”. Respondo: tem tudo a ver. Por que? Porque escreveu poemas maravilhosos e marcantes sobre esta estação. E notem como a vida costuma ser irônica. Pablo Neruda, que se recusou de ser candidato à Presidência da República do Chile (e certamente seria eleito), abrindo mão da candidatura em favor de Salvador Allende), morreu exatamente no início de uma primavera: a de 1973, ou seja, num 23 de setembro.

Seria um símbolo ditado pelo acaso e pelas circunstâncias? Considero-o assim. Neruda deixou a vida para conquistar o único tipo de imortalidade a que nós, frágeis e efêmeros humanos, podemos aspirar: a da memória. O do reconhecimento – tão desejado e não raro tão inacessível – do que fomos e, principalmente, do que fizemos.

Dos vários poemas que esse mito literário escreveu sobre a primavera, selecionei este (por pura questão de gosto pessoal), que partilho com vocês:

Primavera

“Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando”.

Observe-se que das quatro estações do ano, a primavera foi a única que o poeta não manifestou desejo de ver. Os desavisados e desatentos podem entender que não lhe dava grande valor. Todavia, expressou, nas entrelinhas, exatamente o contrário. Ou seja, trocava o que considerava a época mais preciosa e valorizada do ano, por um prêmio que entendia ser ainda maior: o olhar da amada. Eu também trocaria... E, por uma até pitoresca ironia, o acaso atendeu ao seu desejo. Levou-o do mundo dos vivos exatamente no início de nova primavera. Só não sei se antes de morrer sua amada continuou ou não olhando em seus olhos, até que estes se apagassem de vez para a vida.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Senhores do destino

* Por Pedro J. Bondaczuk

O ser humano nasce, cresce, amadurece, envelhece e morre. É óbvio, e tão evidente, que nem mesmo aquele personagem do romance “O primo Basílio”, de Eça de Queiroz, o Conselheiro Acácio, que vivia dizendo obviedades, diria esta. Atrevo-me, porém, sob o risco de ácidas críticas e de descambar para o ridículo, a dizê-la, face à constatação de que há milhões de pessoas no mundo (com muitas das quais cruzamos a todo o momento no dia-a-dia) que parecem não entender isso, por elementar que seja. Julgam (ou pelo menos dão a entender, por suas atitudes) que serão capazes de manter a eterna juventude, fórmula buscada, em vão, por tanta gente (Ponce de Leon garantia que a havia encontrado na Flórida) e por tanto tempo. Não foi encontrada, simplesmente, porque não existe, e nunca existiu. Quem sabe, um dia, pode vir a existir, graças aos avanços da ciência.

Essas pessoas acreditam que jamais irão envelhecer e não se previnem para esse futuro, que hoje é assustador por causa do nosso próprio comportamento. Houve tempo em que fazer parte da Terceira Idade, ou ser velho (ou idoso, termo politicamente correto) era símbolo de status. Hoje, é claro, não é mais.

Nas civilizações mais evoluídas do passado (nem tão remoto assim), os de mais idade ocupavam lugares vitalícios nos conselhos de Estado, graças à sua experiência, reputada como muito preciosa. Hoje, essa condição é insensatamente desprezada. E o pior é que quem age assim vai, também (isto, é claro, se alguma doença, acidente ou ato de violência não o eliminar antes) envelhecer.

O salutar e prudente costume de respeito ao idoso, que o jovem de hoje não contribui para implantar e tornar rotineiro; as leis de proteção à Terceira Idade, que não se empenha para que sejam cumpridas; e o pouco caso que demonstra em relação à defasagem das aposentadorias, entre outras tantas coisas, são circunstâncias que vão se refletir, um dia, sobre ele mesmo. Quem se importa, todavia, com isso? A imprensa, pelo menos, parece não se importar. A Terceira Idade é tema quase sempre ausente das páginas dos jornais diários, como estão cada vez mais ausentes das redações os jornalistas veteranos, com sessenta anos ou mais, “banidos” precocemente da atividade. Há exceções, lógico, mas a regra é confundir juventude com genialidade, o que é absurdo, evidentemente.

Os anos parecem passar com tamanha rapidez, depois de certa idade, que não percebemos o início do inexorável processo de envelhecimento. Quando nos damos conta, todavia...lá estamos nós vivendo a mesmíssima situação de fragilidade que criticávamos em nossos avós ou em outras pessoas idosas.

Há, contudo, uma forma racional da pessoa não sentir o impacto dessa fase da sua vida. Há um modo prático e eficaz de não cair na armadilha da solidão, que é o que de pior acontece a quem já passou a barreira dos 60 anos (depois das doenças, é claro). E qual é? Simples: trata-se de não abrir mão dos ideais e dos objetivos que sempre nortearam a sua conduta. E, quanto mais inalcançáveis eles forem, tanto melhor. Sempre existirá uma meta a ser perseguida.

Tempos atrás, há uns oito anos, o Comunique-se nos apresentou, em nova seção lançada na época, chamada Perfil, uma “jovem” jornalista de cem anos, que sequer cogitava de aposentadoria. Tratava-se de Elsie Dubugras, que permanecia firme e forte, como uma rocha, na redação da Revista Planeta, esbanjando inteligência, disposição, talento e criatividade. Não abrira mão de seus ideais e sobrevivia, com dignidade, ao tempo e aos desgastes que este causa no corpo e na mente. Não sei que fim levou. Mas constituiu-se em exemplo do que apregoo e acredito.

Querem outro, tão notável quanto o de Elsie? É o da professora e jornalista campineira Célia Siqueira Farjallat. No mesmo ano de 2004, então aos 89 anos de idade, e 65 de jornalismo (começou em 1940 no Correio Popular, onde foi colunista e das mais lidas e apreciadas), sequer lhe passava remotamente pela cabeça, na ocasião, a possibilidade de parar. Também não sei se parou ou não ou se está viva. Creio que esteja.Mantinha viva, até então, a chama do ideal que sempre a moveu, o verdadeiro elixir da eterna juventude. Quem lesse seus textos, e não a conhecesse, os atribuiria, certamente, a alguma jornalista na faixa dos 30 anos, tamanha era sua identificação com os tempos, neste início de século XXI e sua atualidade em termos dos temas que abordava, linguagem que utilizava, mentalidade que tinha etc.

Professora, dedicou 41 anos ao magistério na Escola Normal de Campinas, onde formou mais de 20 mil jovens. Ao contrário de muitos jornalistas, hoje na faixa dos 50 a 60 anos, adaptou-se, de imediato, ao computador, ferramenta da qual nunca abriu mão e que dominava com incrível facilidade. O apresentador da EPTV e coordenador da TV Local em Campinas, Fernando Kassab, que foi seu companheiro de redação no Correio Popular, confidenciou, certa feita, no artigo “Renovar ou morrer – vamos renovar”: “Célia tinha mais de 70 anos quando me ensinou a usar o computador na redação do jornal, e que segue escrevendo muitíssimo bem sobre assuntos de grande importância”.

É indispensável, contudo, que mesmo tendo consciência de que o alvo perseguido é muito difícil, senão impossível de ser atingido, que não se pare de lutar, de tentar, com todas as forças, tornar concreta essa utopia.

O renomado clínico norte-americano, Northcote Parkinson, escreveu, há cerca de trinta anos, no “Medical Affairs”: “Fiz uma descoberta importantíssima para a medicina clínica: as pessoas mais ocupadas não têm tempo para ficar doentes”. E não têm mesmo...Se você já passou dos 60, experimente fazer isso. O que você terá a perder?! É indispensável, por outro lado, que jamais nos deixemos vencer pela tentação da autopiedade. Não podemos assumir a postura de “coitadinhos”. Se o fizermos, seremos, com toda a certeza, por maior que seja o nosso potencial, de fato dignos apenas de piedade.

James W. Kennedy dizia, com muita sabedoria, que “o que realmente importa é o que acontece em nós, e não a nós”. É esta integridade de espírito, esta riqueza interior, que devemos cultivar, para nos servir nos anos mais difíceis da nossa existência.

Estas têm que ser as armas ao nosso dispor para quando nossos músculos já não obedecerem, com prontidão, as ordens emanadas pelo cérebro; para quando nossos olhos não enxergarem com a mesma acuidade da juventude; para quando nossos ouvidos já não captarem os sons com a mesma nitidez dos bons tempos e quando o nosso raciocínio levar um tempo enorme para “esquentar”.

Envelheçamos, sim, pois esta é uma fatalidade biológica. Mas o façamos com tranqüilidade, com picardia e, sobretudo, com dignidade, como Elsie Dubugras, como Célia Siqueira Farjallat e como Barbosa Lima Sobrinho, entre tantos, fazem ou fizeram, mesmo que isso nos custe um esforço sobre-humano. Sejamos, até o derradeiro segundo de vida, senhores, de fato, do nosso destino! Ou, pelo menos, não abdiquemos de tentar.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Cachaceiros sem fronteiras

* Por Ruth Barros

Anabel está pensando seriamente em fundar uma ONG, coisa que já andou mais na moda, mas continua em alta em vários círculos, que vão desde os abnegados passando pelos idealistas e englobando patricinhas e peruas riquinhas em busca de ocupação. Como não tenho nada contra ninguém, principalmente contra madames que querem dar um pouco de si (sem trocadilho, por favor), quando poderiam estar esbanjando em lojas grã-finas, elas também são bem vindas.

Pois estou acariciando a idéia de lançar a pedra fundamental da tolerante CACHACEIROS SEM FRONTEIRAS (CSF). A principal e talvez única condição para fazer parte dos quadros da entidade seria encarar um copo, ou melhor, vários copos, de preferência cheios. Assim como não descriminaríamos ninguém, com exceção dos abstêmios – e até os abstêmios teriam um lugar ao sol, quer dizer, ao copo, desde que não fossem daqueles chatos que acham que bebida é coisa do demônio – também teríamos os copos abertos a qualquer tipo de drink de qualquer lugar do mundo.Como o próprio nome da entidade indica, nossas fronteiras seriam internacionais, ou melhor, internacionalmente abolidas. Vinho francês, vodka russa, uísque escocês, retsina grega, arak árabe, nossa popular cachaça, cervejas sem pátria, todos teriam direito a voto em nossa instituição.

Reservo um especial lugar para a tequila mexicana. Conheci a tequila através de um amigo mexicano adorável, que costumava dizer “com tequila no te quedas borracho, te quedas louco” (traduzindo feito meu nariz, com tequila você não fica bêbado, fica louco). Escriba amiga de fornecer informações e esclarecimentos, Anabel vai explicar. A tequila é produzida com uma substância alucinógena, a mescalina, aquela mesma do Carlos Castaneda, que os mais entrados em anos (com e sem trocadilho) vão se lembrar como autor do best-seller A Erva do Diabo. Extraída de um cacto, conhecido popularmente como peyote, nome de origem asteca que significa "planta divina", é utilizada desde remotos tempos na América Central em rituais religiosos indígenas.

O peyote não existe no Brasil, o que deixa infelizmente deixa a tequila de fora da próxima proposta de Anabel: para não sermos acusados de anti-patrióticos nem esnobes, dado o preço do dólar e dos euros necessários para abastecer a adega de tais maravilhas, similares nacionais serão extremamente desejáveis no estatuto da CSF. Agora, a pergunta que não quer calar – para que serve a CSF? Resposta fácil: para melhorar o entendimento entre os povos e as pessoas do mundo.

Antes que me acusem de estar fomentando o alcoolismo, vou explicar. Existe coisa que desarme mais os espíritos que uma boa bebida? Dá pra imaginar uma festa, uma reunião, um jantar de paquera, qualquer coisa que passe por um social sem um belo drink, a não ser que você seja crente ou muçulmano?

Tá certo que a bebida é acusada de provocar brigas, acidentes, tumultos e violência, mas dessa vez eu acho que a culpa é da imprensa. A grande maioria das bebedeiras termina em paz, na pior das hipóteses em uma grande ressaca. Nem paz nem ressaca são notícia, então só se fala de bebedeiras que acabaram em tragédia, nunca das que têm final feliz. E uma das categorias que seria extremamente simpática a nossa causa seria justamente a dos taxistas – se for dirigir não beba, se beber não dirija, seria um lema que poderíamos também adotar para a CSF.

Anabel Serranegra sugere dois presidentes brasileiros para patronos da CSF, o atual titular da pasta e o falecido Jânio Quadros.

 
* Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra.

Anelo de servir

* Por Gabriela Mistral

Toda a natureza é um anelo de servir.
Serve a nuvem, serve o vento, serve a chuva.
Onde haja uma árvore para plantar, planta-a tu,
onde haja um erro para corrigir, corrige-o tu,
onde haja um trabalho que todos se esquivem, aceita-o tu.
sê o que remove a pedra do caminho,
o ódio entre os corações e as dificuldades do problema.
Há a alegria de ser puro e a de ser justo,
mas há, sobretudo, a maravilhosa,
a imensa alegria de servir.
Que triste seria o mundo
se tudo se encontrasse feito,
se não existisse uma roseira para plantar,
uma obra para se iniciar!
Não te chamem unicamente os trabalhos fáceis.
É muito mais belo fazer
aquilo que os outros recusam.
Mas não caias no erro de pensar
que somente há méritos nos grandes trabalhos;
há pequenos serviços que são bons serviços;
adornar uma mesa,
arrumar teus livros,
pentear uma criança.
Aquele é o que critica,
este é o que destrói:
sê tu o que serve.
O serviço não é faina de seres inferiores.

• Pseudônimo da professora e poetisa chilena Lucila de Maria Del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1945

Goiânia morena

* Por Lêda Selmaa

Goiânia morena
de corpo esguio
e ancas largas,
de manhãs soltas ao vento,
de tardes acaloradas,
de ventre escancarando
a prenhez de sol e flores.

Terra-mulher sedenta
e de desejos flamantes,
Goiânia goiana, amante,
das noites tão luzidias,
queimando emoções vadias
em seu braseiro de estrelas.

Balzaquiana-menina,
de pele sempre suada,
Goiânia das madrugadas,
das parcerias com a lua,
da irradiação de amores,
dos sonhos azuis, viajores,
dos humores de poesia.

Goiânia de lascivas formas,
cabelos de flamboiã,
dos bem-te-vis, beija-flores,
das praças, parques, jardins,
morena de olhos dourados,
balzaquiana-menina,
que ao esposar Goiás
se fez em terra-mulher.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

Entre Amazonino e Aquilino

* Por José Ribamar Bessa Freire

Quem é mais notícia: Aquilino ou Amazonino? Será que estamos fugindo da raia quando noticiamos as façanhas do primeiro - um desconhecido da mídia, e deixamos de opinar sobre as pilantragens do segundo - um notório finório que ocupa as manchetes dos jornais do Amazonas?
- Numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária é que parece estar fugindo.

Li em algum lugar essa frase do poeta Thomas Eliot e me lembrei dela diante da cobrança de um fiel leitor, de quem frequentemente discordo, mas a quem aprendi a respeitar. Ele acha que estou fugindo dos temas essenciais e me censura:
- Você está abordando outros assuntos em sua coluna como um pretexto, uma desculpa esfarrapada para não opinar sobre as eleições de Manaus.

Segundo outra leitora, estou mesmo fugindo. Ela reforça via facebook:
- Não fuja do pau! No lugar de escrever sobre índios ou sobre a eutanásia, faça um balanço da administração desastrosa do prefeito Amazonino Mendes. Por que você não discute a "guerra do ovo" ou a "guerra do cuspe", tomando posição quanto aos candidatos a prefeito? Isso é que é notícia, o resto é abobrinha que a ninguém interessa.

Será? De qualquer forma, leitores são tão raros, hoje, e mais raros ainda aqueles que te dão um retorno, que recomenda-se tratá-los com mingauzinho de aveia ou mamão com mel. Além disso, é legítima a cobrança feita aqui. Por isso, concordando com eles, comecei a escrever sobre as eleições municipais com destaque para a figura bufonesca e pícara do Amazonino Mendes, mas fui interrompido por um terceiro leitor - leitores são tão escassos - que me enviou um e-mail sugerindo:
- Escreve sobre o Aquilino.

O que é notícia

E agora, José? Entre Amazonino e Aquilino, o que fazer? Com qual conceito de notícia devemos operar? Existem dois mil quatrocentos e trinta e três articulistas que, ignorando os aquilinos, escrevem sobre os amazoninos, cujas malandragens pululam pelos municípios deste Brasil varonil. Por isso, quando alguém faz o caminho contrário, parece que está evitando a notícia, que está fugindo dela.

E isso porque a mídia está se lixando, olimpicamente, para eventos como aqueles que ocorrem, por exemplo, dentro da universidade. Uma aula, uma conferência, uma defesa de tese ou o lançamento de um livro, por mais excepcionais que sejam, jamais serão notícia, a não ser que um aluno dê um tiro nos cornos de um professor, ou uma aluna use mini-saia, bem mini, excepcionalmente mini, como aquela estudante que causou tumulto em uma faculdade de São Bernardo do Campo (SP). Mas aí, a notícia não é o fato acadêmico.

Decido, então, caminhar contra a corrente, com o risco de parecer fugitivo. Interrompo o texto sobre Amazonino, suspeitando de que essa nova direção é válida, se são outros os critérios definidores do que é notícia. Com a licença dos leitores, troco os atores, focando sobre Aquilino. Afinal, quem é ele? O que foi que fez para ser notícia?

Aquilino Tsere'ubu'õ Tsi'rui'a é o primeiro índio xavante a receber o título de mestre. O fato aconteceu na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), de Campo Grande (MS), na última quarta-feira, dia 26, quando ele defendeu sua dissertação de mestrado intitulada - A sociedade xavante e a educação: um olhar sobre a escola a partir da pedagogia xavante. Com ele, já são nove os índios de diferentes etnias que se titularam no Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB.

A pesquisa etnográfica feita por Aquilino, orientada pelo doutor Neimar Machado, usou vários procedimentos metodológicos, revisou a bibliografia sobre o tema, entrevistou os velhos xavante, organizou um diário de campo recuperou fotos antigas em arquivos. Dessa forma, o novo mestre pode contar sua história, que é também a da aldeia Marãwatsédé, onde nasceu, e que foi invadida pela fazenda Suiá-Missú. Ele foi expulso de lá, com seu clã, quando era criancinha, o que acabou interferindo até mesmo nas formas de ensinar e aprender.

Pedagogia xavante

O primeiro capítulo reconstrói a andança dos Xavante, na época da ditadura militar, quando os índios foram obrigados a sair da área, sendo levados por aviões da FAB para São Marcos, uma missão salesiana situada a 400 km de lá, no atual município de General Carneiro. Nesse trajeto, muitos morreram de sarampo e outras doenças. Depois de muita luta, a Terra Indígena Marãwatsédé foi homologada e os xavantes a ela retornaram. Mas a retomada integral das terras foi dificultada pela presença de pequenos proprietários.

A pesquisa discute, então, o que aconteceu com as práticas culturais xavante, com a língua, com agricultura e o sistema de troca, com os rituais, com a vida religiosa e com as práticas pedagógicas. O autor comenta os três princípios que orientam as formas de ensinar e aprender: as narrativas antigas, a religião e a tradição. Critica o ensino "copiado" do sistema escolar brasileiro, por não considerá-lo o mais adequado para a escola indígena e propõe o diálogo intercultural como alternativa.

O historiador Neimar Machado avalia assim o trabalho do seu orientando:

- Aquilino reverteu o conceito de história ao propor que a história dos xavante foi andança. Nesse sentido, a história Xavante não é somente dos Xavante, mas também de muitas outras etnias acometidas, expulsas de seus lugares, pelo colonialismo e seus agentes. Agora, segundo as palavras do Aquilino, os Xavante querem e estão voltando aos seus lugares, impelindo o fechamento de um círculo, daí a narrativa circular, pois ela é também história e política, nos termos propostos por Néstor Canclini.

A banca, composta por professores da UNEMAT, UFMS e UCDB, aprovou a dissertação, avaliando que o mestre Xavante cumpriu o objetivo proposto pela pesquisa, que era analisar a organização educacional e os processos próprios de aprendizagem, além de discutir a proposta pedagógica das escolas e o ensino da cultura Xavante.

Prometo que no próximo domingo, o foco será sobre as eleições. Isso se durante a semana nenhum índio defender dissertação ou tese, porque nesse espaço, primeiro vem o Aquilino e, depois, os amazoninos. Hepãrĩ - obrigado!

• Jornalista e professor

sábado, 29 de setembro de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Mestre da sugestão.

Coluna Direto do Arquivo – Rosana Hermann, crônica, “A inveja do pênis ou... vive La differénce!”.

Coluna Clássicos – Rainer Marie Rilke, poema, “A solidão”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica,“Esse Velho Companheiro”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “Maníaco depressivo“.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema “A brisa e a sombra”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Mestre da sugestão

O poeta Mário Quintana é daqueles raros cuja poesia é impossível de ser lida com indiferença. Muitos poemas, de tantos autores mundo afora (e de alguns até famosos e reverenciados) passam batidos à primeira leitura, dessas apressadas que às vezes fazemos em momentos de baixa concentração. Requerem que se os leia com atenção redobrada, duas, três ou mais vezes. Mesmo assim, ficamos sem compreender o que, exatamente, o poeta quis dizer.

Está bem! É certo que o importante na poesia é senti-la e não exatamente compreendê-la. Poemas cifrados, todavia, parecendo que foram escritos em remota língua morta de dois ou três milênios atrás, que ninguém mais consegue decifrar, a não ser quem os compôs (e talvez nem eles) não nos despertam emoção alguma. Não os retemos na memória e muito menos no coração.

Com Mário Quintana isso não acontece. Ele prima pela clareza. Sua linguagem é coloquial, familiar, tête-a-tête e rigorosamente compreensível. Suas metáforas, sumamente criativas e originais, são, no entanto, inteligíveis a qualquer pessoa e não somente a meia dúzia de iniciados. Seu grande segredo é este: a simplicidade, o que, em literatura, é expediente muito mais complicado do que possa parecer aos desavisados. Reitero o que escrevi muitas vezes e que muitos me contestaram, entendendo que eu exagerava: “Senhores, é muito difícil, dificílimo, ser simples!!!”

Outra característica de Quintana que me encanta é o bom-humor que permeia sua poesia, mesmo quando trata de temas, digamos, “árduos”, ou dramáticos, ou tristes ou pavorosos, sei lá. A leitura dos seus poemas passa-nos a impressão de que a vida é simples, e sempre bela, e que nós é que a complicamos com atitudes ilógicas e com visão permanentemente sombria e negativa. Desconfio que ele é que estava certo.

Nunca li nenhum poema dele em que, ao cabo da leitura, não retivesse seu conteúdo por completo, mesmo quando a leitura tenha sido feita com pressa, sem a devida concentração, ou seja, quando distraído, ou cansado ou apenas desatento. Confesso que cheguei a decorar vários deles (os mais curtos, porém), lendo-os somente uma vez. E não atribuo isso a nenhum eventual “prodígio” da minha memória, que nem é tão prodigiosa assim. Prova disso é que esse fenômeno nunca se repetiu com a leitura de outros poetas. Suas mensagens tocam-me fundamente e se aninham bem no centro do mecanismo das emoções.

Quintana escreveu pouco sobre a Primavera, pelo menos especificamente. Essa estação do ano, porém, permeia toda sua obra, mediante o recurso da sugestão. Ela está sempre presente. Por exemplo, no próprio título de um de seus livros mais conhecidos, “Sapato florido”, uma catarata de sensibilidade, ternura, emoção e bom-gosto. Leiam-no e vejam se exagero. Se exagero há, em minha avaliação, este é o de não conseguir transmitir com exatidão a preciosidade que essa obra é (ademais, como todos os livros desse poeta bonachão e positivo).

Entre seus poemas, com os quais me deliciei – li, na verdade reli, por volta de duas centenas ou mais nos últimos dias – encontrei este, alusivo à Primavera:

Canção de Primavera

“Um azul do céu mais alto
Do vento a canção mais pura
Me acordou, num sobressalto
Como a outra criatura…

Só conheci meus sapatos
Me esperando, amigos fiéis
Tão afastado me achava
Dos meus antigos papéis!

Dormi cheio de cuidados
Como um barco soçobrando
Por entre uns sonhos pesados
Que nem morcego voejando...

Quem foi que ao rezar por mim
Mudou o rumo da vela
Para que despertasse assim
Como dentro de uma tela?

Um azul do céu mais alto
Do vento a canção mais pura
E agora… este sobressalto...
Esta nova criatura!”.

Chamo a atenção para um detalhe, que pode ter escapado do leitor desatento. No poema acima, a não ser no título, Quintana não menciona uma única vez a Primavera. Mas escreve sobre ela. Quem lê, sabe de que assunto se trata. E isso apenas confirma minha constatação de que ele foi (e é, pois apesar de já falecido, sua obra permanece mais viva do que nunca, para o deleite dos amantes da poesia) “mestre da sugestão”.

Escrever sobre Mário Quintana e sobre a sua marcante obra não é nada fácil. Não que ambos sejam complicados, complexos, difíceis de serem entendidos. Longe disso. Aliás, o motivo é exatamente o oposto. Ou seja, é a extrema simplicidade de ambos. Para fazê-lo, teremos que nos transportar para sua mente (se é que essa façanha seja possível), pensarmos como pensou e, num esforço sobreumano, sermos, igualmente, simples. Como, porém, nos livrarmos dessa renitente obsessão,dessa mania, desse vício de complicar todas as coisas e, notadamente, todos os sentimentos?

Boa leitura

O Editor.

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A inveja do pênis ou... vive la différence!

* Por Rosana Hermann

Antes de mais nada, quero deixar claro que sou mulher e até agora não fiz nenhuma cirurgia pra pôr ou pra tirar nada. Minto: fiz sim, duas cesarianas, mas foi só pra tirar a criança de dentro.

E, uma vez estando na região mencionada, vamos diretamente ao assunto, a inveja do pênis. Todo mundo já ouviu falar nisso algum dia, seja através de uma amiga, um parente, um psicanalista ou um tarado. Inveja do pênis foi uma expressão criada por Freud. E, para a grande maioria das pessoas, significa exatamente isso mesmo, inveja do pênis.

Em princípio, não tenho nenhuma carteirinha, diploma ou crachá que permita que eu fale qualquer coisa sobre Freud, já que os profissionais especializados, assim como as faxineiras, não gostam que ninguém mexa em suas áreas de serviço.

Mas, na condição de mulher, sinto-me no direito de dar meu depoimento sobre o assunto. Ainda mais agora, que é moda. A elite da comunidade científica acaba de descobrir que homens e mulheres são diferentes, coisa que Joãozinho e Mariazinha há muitos anos descobriram num simples abaixar do calçãozinho. Mas, sigamos adiante. A inveja do pênis não é um desejo que a mulher tem de ter um negócio igual só pra ela. Imagine! A essa altura do campeonato, se subitamente Deus me presenteasse com um pênis, eu não saberia nem onde colocá-lo!!! É como se chegasse um caminhão de mudança na porta da sua casa dizendo que mandaram entregar o obelisco do Ibirapuera!!! Salvo as devidas proporções, claro!

A inveja do pênis é mais uma grande sacada da mente privilegiada e doentia desse louco do Freud, esse Einstein da mente humana. O que causa inveja a uma mulher não é o pênis em si e sim a LIBERDADE que o homem tem, a partir do próprio corpo.

Meninos têm mais liberdade pra transar, rapazes não ficam menstruados, homens não ficam de resguardo antes, durante e depois do parto, nunca terão que ficar com um bebê pendurado no peito. É a famosa sabedoria vulgar do "lavou, enxugou, tá novo".

Mulheres, não. Mulheres são criaturas em desequilíbrio cíclico. Mulheres sofrem marés, num eterno vai e vem, como o mar por causa da lua. A gravidez, por exemplo, não são nove meses, são quarenta semanas, ou quarenta luas . Dez ciclos lunares de quatro fases. Não é de admirar que as mulheres são de lua!

Mulheres vertem sangue, suor, lágrimas e leite. Nem máquina de refrigerante tem tantos sabores! Ninguém está julgando se isso é mau ou bom; apenas é assim. E por todas as coisas que a mulher tem que arrastar junto consigo, ela deixa de ter essa liberdade. Essa MOBILIDADE que todo homem tem.

Já viu mulher sair sem bolsa? Sem batom, espelho, maquiagem, absorvente? Já viu mãe sair sem a bolsa de fraldas, mamadeira, aquecedor de mamadeira e as fotos do outro filho? Já? Parecem aquelas Iemanjás saindo do mar, com uma imensa rede cheia de penduricalhos! (já viu esse poster?)

Homens não. Homens vão e voltam, carregam muito menos bagagem do que suas mulheres. Qualquer pesquisa nos aeroportos do mundo mostraria isso. Homens têm trânsito livre. Homens fazem xixi em pé. Não precisam nem levar papelzinho, penico, nada. É como cantavam os integrantes do Coral dos Bigodudos naquela canção: tim-tim-tiriri-timtim (bis), tirei, peguei, chacoalhei, guardei, tornei a pegar, chacoalhar, guardar, tornei a guardar no mesmo lugar!

E o Freud, num lance genial, deve ter se perguntado: e o que melhor representaria o homem em relação à mulher? O pênis. Então, a inveja do pênis é a inveja de ser homem.

Eu, particularmente, reclamo muitas vezes da minha condição de ser mulher, mas acho que Deus sabe o que faz. Talvez, ser homem permitisse toda essa liberdade, mobilidade e tal, só por ter um pênis. O problema é aquele fantasma que todo homem carrega... a eterna sombra do seu pênis... o compromisso de mantê-lo por toda a vida sempre em funcionamento. E, convenhamos, fazer qualquer coisa funcionar a vida toda é duro!

*Rosana Hermann é Mestre em Física Nuclear pela USP de formação, escriba de profissão, humorista por vocação, blogueira por opção e, mediante pagamento, apresentadora de televisão.

A Solidão

* Por Rainer Marie Rilke

A solidão é como chuva.

Sobe do mar nas tardes em declínio;
das planícies perdidas na saudade
ele se eleva ao céu, que é seu domínio,
para cair do céu sobre a cidade.

Goteja na hora dúbia quando os becos
anseiam longamente pela aurora,
quando os amantes se abandonam tristes
com a desilusão que a carne chora;
quando os homens, seus ódios sufocando,
num mesmo leito vão deitar-se: é quando
a solidão como os rios vai passando...

• Poeta nascido em Praga considerado um dos mais importantes, em língua alemã, do século XX

Esse Velho Companheiro

* Por Urda Alice Klueger

De quem será que a escritora vai falar desta vez? Um velho amigo de escola, um antigo namorado? Nada disso, vou falar é de um já velho companheiro de todos nós, que atende pelo nome de PLÁSTICO.

Olho ao meu redor, e verifico quanta coisa de plástico faz parte do nosso dia-a-dia: aqui, ao meu redor, tenho canetas, capas de livros, invólucros de papel-ofício, porta-clips, a estrutura do computador, tudo de plástico; lá na cozinha o plástico abunda, desde a garrafa do leite até os potinhos onde se guardam coisas na geladeira. E aí me ponho a pensar em como surgiu esse material sem o qual, agora, ficaria bem difícil viver.

Em 1966, quando eu estava com 14 anos, lembro bem de ter lido uma velha, velhíssima Seleções do Reader’s Digest, datada de uns 20 anos antes, onde havia uma reportagem sobre o descobrimento de um novo material. Falava-se num material muito maleável, que poderia, inclusive, ser transformado em película e folhas. Creio que os cientistas de época não conseguiram vislumbrar o alcance do uso que teria o plástico, pois, uma das poucas utilidades previstas na reportagem era de que aquele material novo poderia ser usado, por exemplo, para embrulhar queijos. Como, nas minhas contas, 20 anos antes de 1966 dá 1946, acho que temos a data aproximada da descoberta do plástico.

Nessa época de 1966, o plástico já estava ficando conhecido; com ele, já se fabricavam bonecas, brinquedos, alguns utensílios de cozinha, que eram quebradiços e que exalavam um cheiro terrível caso acontecesse de queimar. E, mais ou menos então, fez-se uma revolução na indústria das embalagens, que culminou com o luxo extremo de se substituir as velhas garrafas de leite, que tinham de ser areadas todos os dias, por moderníssimos sacos de plástico. Como, na ocasião, a maioria das pessoas ainda se abastecia das garrafas de leite de vaca do vizinho, virou coisa chique ter-se leite “de pacote”, e cada saquinho de leite era lavado e pendurado no varal, para ser reaproveitado.

Reaproveitavam-se os sacos de leite das mais diversas formas: para se levar lanche para a escola, para se carregar mudas de flores de uma casa para outra, e por aí afora. Mas houve uma idéia para o reaproveitamento dos sacos de leite que foi genial: cortados em tirinhas, eles se transformavam em linha de crochê. E virou moda chique, chiquíssima, se fazer bolsas de tiras de sacos de leite. Eu tive uma delas, redonda bolsa a tiracolo para usar na missa, feita por mim mesma com grossa agulha de crochê. As bolsas de saco de leite eram uma questão de status, deixavam bem clara a evolução das famílias, que usavam o leite “de pacote” e já não precisavam arear, todos os dias, as garrafas. É claro que, algum tempo depois, tais bolsas saíram da moda, pois o progresso foi acabando com as vacas dos vizinhos, e o consumo do leite “de pacote” tornou-se popular, o que popularizou, também, as bolsas de crochê de saco de leite. Não tinha mais graça usar o que já não era novidade, o que qualquer um, agora, tinha acesso. Algumas velhinhas adeptas do crochê, porém, nunca abandonaram os sacos de leite: Dona Noca, amiga da minha mãe, que faleceu há três ou quatro anos, lá na praia de Armação, até a sua morte muito produziu com seu crochê feito de tirinhas de tais sacos.

Bem, de 1946 a 1995 há um intervalo de quase cinqüenta anos, e nesse tempo, o material novo que se supunha fosse bom para embrulhar queijos, demonstrou ser de uma utilidade espantosa. Você, que está lendo este texto, dê uma olhadinha ao seu redor e pense na sua vida: como você faria para viver, hoje, sem a presença do plástico?

Ah! O plástico, esse velho companheiro!

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Maníaco depressivo

* Por Clóvis Campêlo

Fiz o que me pediram e desenhei a árvore.

Era um pé de jenipapo não muito frondoso, situado no sopé de um pequeno morro. Em um dos seus galhos, cantava um sabiá. Perto dali, passava um riacho de águas translúcidas, repleto de pequenos peixes que nadavam tranquilamente.

Na época em que desenhei a árvore, eu era apenas um rapaz de vinte e poucos anos. Mas, a lembrança se reportava ao tempo da minha infância, quando as férias escolares se dividiam entre temporadas nas praias e temporadas no engenho.

Eram lembranças pueris de um garoto assustado com seus próprios medos.

A casa grande do engenho ficava em cima de outra pequena colina, de frente para o nascente. Do seu grande terraço, podíamos observar a igrejinha, encimando a colina frontal. Por trás da igrejinha, onde os senhores da casa grande iam agradecer a Deus os privilégios que lhes foram por Ele concedidos, ficava um resto de mata atlântica, paraíso preservado e onde ainda podiam ser caçados pacas, cutias e outros pequenos bichos indefesos.

Por trás da casa grande, havia um pequeno jardim repleto de roseiras e pés de jasmins. À noite, aquele perfume suave e marcante invadia o quarto onde dormíamos o sono dos justos e dos injustos. Mais adiante, um pequeno rio, de onde derivava o riacho repleto de arenques, trazia, vez por outra, capivaras que eram caçadas e mantidas em cativeiro para engordarem e serem comidas.

Lembro também que havia um bode velho, um pai de chiqueiro, que, íntimo da casa e de todos, tinha a liberdade de passear livremente pela cozinha e pelo terraço.

Tudo parecia estar no seu devido lugar: o vento que balançava as palhas da cana-de-açúcar, o gado no curral, meu tio com o seu chapéu de cow-boy americano e a mesa farta, enorme e retangular, onde todos se reuniam três vezes ao dia para as refeições, e onde nós, crianças, escutávamos as histórias de Cumadre Fulorzinha e de outras entidades que alimentavam o imaginário da gente sofrida e conformada do campo.

Não imaginava que aquele quadro pintado na minha imaginação e que faria inveja a qualquer pintura de Debret, estava delineado o meu diagnóstico: síndrome maníaco depressiva.

Não podia imaginar que nas lembranças de um passado já tão digerido e catalogado, estaria retratada a minha incapacidade de situar-me no presente de forma feliz e adequada.

Aquela terra tinha árvores onde cantava o sabiá e o seu canto melancólico e melodioso para sempre estaria gravado na minha memória de menino assustado por seus próprios medos.

* Poeta, jornalista e radialista
A brisa e a sombra

* Por João Alexandre Sartorelli

A brisa e a sombra
No sol de ontem.
Entre a pedra e o mar
A lua se esconde.

* Analista de Sistemas por profissão e poeta por vocação

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Sugestão de Primavera até no nome.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica” “Exército fraudou a notícia do massacre”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, microcontos, “Pílulas literárias 137”.

Coluna No Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “Retratos não vividos”.

Coluna Porta Aberta – Raul Longo, crônica “Nada acontece no meu coração”.

Coluna Porta Aberta – Gert Schinke, artigo “Ecos bem atentos”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.