sábado, 28 de julho de 2018

Editorial - Escasso conhecimento


Escasso conhecimento


O filósofo grego Sócrates teria dito aos seus discípulos: “Só vale a pena a vida bem refletida”. O leitor atento certamente há de estranhar o fato de eu fazer essa citação no condicional. Por que não afirmei que o renomado e até lendário pensador “disse” tal e tal coisa? Simples. Porque ninguém tem certeza total de que o referido filósofo afirmou isso ou alguma coisa qualquer.

Sócrates não deixou um único texto próprio à posteridade. O que conhecemos de suas ideias e de sua vida é através dos escritos do seu mais ilustre discípulo, Platão. Este sim legou à posteridade uma profusão de textos próprios e supostamente de seu mestre, a que qualquer um de nós pode ter acesso, caso se interesse por eles. Sócrates pode, de fato, ter feito essa constatação. Mas ela pode, perfeitamente, ter sido inventada por seu discípulo ou modificada por ele. Afinal, como diz popularíssimo adágio, “quem conta um conto, aumenta um ponto”.

Todavia, dita ou não por Sócrates, o conteúdo da citação é válido. Somos a única espécie animal dotada de razão. Temos a capacidade nobilíssima de pensar, de raciocinar, de entender (ou tentar fazê-lo) o que nos rodeia, de elucubrar, de imaginar o que não vemos ou que sequer existe, enfim, de raciocinar, de fazer projeções, de refletir. Nem todos exercem essa prerrogativa humana de reflexão (temo que a maioria não o faça) e muito menos sobre a natureza, origem e finalidade da vida.

A maioria das pessoas não se conhece adequadamente. Não tem a menor ideia sobre como seus instintos as levariam a agir face a determinadas circunstâncias, benignas e/ou malignas, não importa. Muitos que se julgam sensíveis e solidários com as agruras e sofrimentos alheios, por exemplo, não se dão conta de suas ações contrárias a isso, digamos, ao tomarem conhecimento de determinadas tragédias.

Adam Smith tratou desse tema em seu livro “Theory of Moral Sentiments”, escrito, se não me engano, há três séculos. Constatou, em determinado trecho: “Suponhamos que o grande império da China, com suas miríades de habitantes, foi subitamente tragado por um terremoto e consideremos como um homem de humanidade, na Europa... reagiria ao receber a notícia dessa medonha calamidade. Faria muitas reflexões melancólicas sobre a precariedade da vida humana... E, quando toda esta excelente filosofia terminasse, quando todos estes sentimentos humanos tivessem sido expressados razoavelmente, ele seguiria sua atividade ou seu prazer, tomaria seu repouso ou sua diversão, com a mesma despreocupação e a mesma tranquilidade, como se não tivesse acontecido tal acidente. O desastre mais frívolo que pudesse suceder-lhe ocasionaria uma perturbação mais real”.

Acaso exagerou? Longe disso! E as pessoas bem instruídas e tidas como sensíveis, humanas e solidárias, de hoje em dia, agiriam de forma diferente da sugerida pelo escritor inglês? Basicamente, não. Provavelmente, seu comportamento seria até mais indiferente diante do sofrimento alheio. Tragédias ditadas por catástrofes, naturais, ou provocadas pelo homem, não faltam nos dias atuais. Pelo contrário, abundam e se multiplicam. Guerras, terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas, secas, enchentes, deslizamentos de terra etc. ocorrem quase que todos os dias, nas mais diversas partes do mundo.

Ao contrário do que ocorria na época de Adam Smith, essas catástrofes são noticiadas quase que simultaneamente à ocorrência e em grande profusão. Sensibilizamo-nos (alguns se sensibilizam) tão logo tomamos ciência desses infaustos acontecimentos. Chegamos, não raro, a organizar campanhas para arrecadar donativos aos flagelados, ou participamos delas fazendo doações.

Contudo, tão logo essas catástrofes saem do foco da imprensa, esquecemo-nos delas, como se tudo estivesse resolvido ou como se sequer houvesse ocorrido. Não nos damos conta que muitas vidas foram perdidas, outras tantas tiveram o curso irremediavelmente alterado para pior e que os atingidos requerem muito mais atenção do que meros donativos, que não raro, até, são extraviados e nunca chegam às mãos das pessoas a que se destinavam e que realmente precisam.

Só não nos esquecemos dessas tragédias, óbvio, quando nos atingem diretamente, quando as sentimos na própria carne. Talvez ajamos com maior sensibilidade e durabilidade quando os afetados são nossos entes queridos, parentes e/ou amigos. Mas nem sempre. Nunca temos certeza da veracidade e da intensidade dos nossos afetos. Mesmo que pareça impossível (mas não é), às vezes “achamos” que gostamos de uma pessoa, mas, na hora da verdade, descobrimos (às vezes envergonhados, às vezes indiferentes), que nossa ligação com elas não era tão autêntica e nem tão profunda como supúnhamos. Em suma, não nos conhecemos. E a maioria sequer se preocupa em se conhecer.

Alguém, a esta altura, pode (ou deve) estar perguntando: “Tudo bem, há um fundo de verdade nessas reflexões, mas o que elas têm a ver com literatura?”. E eu respondo: tudo. Afinal, como escritores, lidamos não só com ideias, mas com sentimentos, próprios e alheios. E para conhecermos o que os outros pensam e sentem, é útil, necessário e até indispensável conhecer como de fato pensamos e sentimos. Temos esse conhecimento? Alguns, talvez tenham, mesmo que parcial e incompleto. A maioria... tenho lá minhas dúvidas.

A propósito do autoconhecimento, o filósofo Blaisé Pascal escreveu certa feita: “Nos conhecemos tão pouco, que muitos imaginam que vão morrer quando estão muito bem de saúde, e muitos pensam estar saudáveis, quando estão próximos da morte, não sentindo a febre próxima ou o abscesso que se forma”. Ora, se nosso autoconhecimento é tão restrito e equivocado, como podemos ter a veleidade de achar que conhecemos os outros? Como podemos julgar seus atos, pensamentos e sentimentos (que só podemos supor, com baixíssimo grau de acerto), se não conhecemos virtualmente nada, ou quando muito quase nada, a nosso próprio respeito?


Boa leitura!

O Editor.



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