Escasso conhecimento
O
filósofo grego Sócrates teria dito aos seus discípulos: “Só
vale a pena a vida bem refletida”. O leitor atento certamente há
de estranhar o fato de eu fazer essa citação no condicional. Por
que não afirmei que o renomado e até lendário pensador “disse”
tal e tal coisa? Simples. Porque ninguém tem certeza total de que o
referido filósofo afirmou isso ou alguma coisa qualquer.
Sócrates
não deixou um único texto próprio à posteridade. O que conhecemos
de suas ideias e de sua vida é através dos escritos do seu mais
ilustre discípulo, Platão. Este sim legou à posteridade uma
profusão de textos próprios e supostamente de seu mestre, a que
qualquer um de nós pode ter acesso, caso se interesse por eles.
Sócrates pode, de fato, ter feito essa constatação. Mas ela pode,
perfeitamente, ter sido inventada por seu discípulo ou modificada
por ele. Afinal, como diz popularíssimo adágio, “quem conta um
conto, aumenta um ponto”.
Todavia,
dita ou não por Sócrates, o conteúdo da citação é válido.
Somos a única espécie animal dotada de razão. Temos a capacidade
nobilíssima de pensar, de raciocinar, de entender (ou tentar
fazê-lo) o que nos rodeia, de elucubrar, de imaginar o que não
vemos ou que sequer existe, enfim, de raciocinar, de fazer projeções,
de refletir. Nem todos exercem essa prerrogativa humana de reflexão
(temo que a maioria não o faça) e muito menos sobre a natureza,
origem e finalidade da vida.
A
maioria das pessoas não se conhece adequadamente. Não tem a menor
ideia sobre como seus instintos as levariam a agir face a
determinadas circunstâncias, benignas e/ou malignas, não importa.
Muitos que se julgam sensíveis e solidários com as agruras e
sofrimentos alheios, por exemplo, não se dão conta de suas ações
contrárias a isso, digamos, ao tomarem conhecimento de determinadas
tragédias.
Adam
Smith tratou desse tema em seu livro “Theory of Moral Sentiments”,
escrito, se não me engano, há três séculos. Constatou, em
determinado trecho: “Suponhamos que o grande império da China, com
suas miríades de habitantes, foi subitamente tragado por um
terremoto e consideremos como um homem de humanidade, na Europa...
reagiria ao receber a notícia dessa medonha calamidade. Faria muitas
reflexões melancólicas sobre a precariedade da vida humana... E,
quando toda esta excelente filosofia terminasse, quando todos estes
sentimentos humanos tivessem sido expressados razoavelmente, ele
seguiria sua atividade ou seu prazer, tomaria seu repouso ou sua
diversão, com a mesma despreocupação e a mesma tranquilidade, como
se não tivesse acontecido tal acidente. O desastre mais frívolo que
pudesse suceder-lhe ocasionaria uma perturbação mais real”.
Acaso
exagerou? Longe disso! E as pessoas bem instruídas e tidas como
sensíveis, humanas e solidárias, de hoje em dia, agiriam de forma
diferente da sugerida pelo escritor inglês? Basicamente, não.
Provavelmente, seu comportamento seria até mais indiferente diante
do sofrimento alheio. Tragédias ditadas por catástrofes, naturais,
ou provocadas pelo homem, não faltam nos dias atuais. Pelo
contrário, abundam e se multiplicam. Guerras, terremotos, tsunamis,
erupções vulcânicas, secas, enchentes, deslizamentos de terra etc.
ocorrem quase que todos os dias, nas mais diversas partes do mundo.
Ao
contrário do que ocorria na época de Adam Smith, essas catástrofes
são noticiadas quase que simultaneamente à ocorrência e em grande
profusão. Sensibilizamo-nos (alguns se sensibilizam) tão logo
tomamos ciência desses infaustos acontecimentos. Chegamos, não
raro, a organizar campanhas para arrecadar donativos aos flagelados,
ou participamos delas fazendo doações.
Contudo,
tão logo essas catástrofes saem do foco da imprensa, esquecemo-nos
delas, como se tudo estivesse resolvido ou como se sequer houvesse
ocorrido. Não nos damos conta que muitas vidas foram perdidas,
outras tantas tiveram o curso irremediavelmente alterado para pior e
que os atingidos requerem muito mais atenção do que meros
donativos, que não raro, até, são extraviados e nunca chegam às
mãos das pessoas a que se destinavam e que realmente precisam.
Só
não nos esquecemos dessas tragédias, óbvio, quando nos atingem
diretamente, quando as sentimos na própria carne. Talvez ajamos com
maior sensibilidade e durabilidade quando os afetados são nossos
entes queridos, parentes e/ou amigos. Mas nem sempre. Nunca temos
certeza da veracidade e da intensidade dos nossos afetos. Mesmo que
pareça impossível (mas não é), às vezes “achamos” que
gostamos de uma pessoa, mas, na hora da verdade, descobrimos (às
vezes envergonhados, às vezes indiferentes), que nossa ligação com
elas não era tão autêntica e nem tão profunda como supúnhamos.
Em suma, não nos conhecemos. E a maioria sequer se preocupa em se
conhecer.
Alguém,
a esta altura, pode (ou deve) estar perguntando: “Tudo bem, há um
fundo de verdade nessas reflexões, mas o que elas têm a ver com
literatura?”. E eu respondo: tudo. Afinal, como escritores, lidamos
não só com ideias, mas com sentimentos, próprios e alheios. E para
conhecermos o que os outros pensam e sentem, é útil, necessário e
até indispensável conhecer como de fato pensamos e sentimos. Temos
esse conhecimento? Alguns, talvez tenham, mesmo que parcial e
incompleto. A maioria... tenho lá minhas dúvidas.
A
propósito do autoconhecimento, o filósofo Blaisé Pascal escreveu
certa feita: “Nos conhecemos tão pouco, que muitos imaginam que
vão morrer quando estão muito bem de saúde, e muitos pensam estar
saudáveis, quando estão próximos da morte, não sentindo a febre
próxima ou o abscesso que se forma”. Ora, se nosso
autoconhecimento é tão restrito e equivocado, como podemos ter a
veleidade de achar que conhecemos os outros? Como podemos julgar seus
atos, pensamentos e sentimentos (que só podemos supor, com
baixíssimo grau de acerto), se não conhecemos virtualmente nada, ou
quando muito quase nada, a nosso próprio respeito?
Boa
leitura!
O
Editor.
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