segunda-feira, 16 de julho de 2018

Um cencerto para a morte - Misael Nóbrega de Sousa


Um concerto para a morte


* Por Misael Nóbrega de Sousa


Vejo reproduções de corpos mutilados, quando abro os jornais diários. É a valorização do fato, em detrimento do anônimo. É a discussão de que o bom tem que ser ruim. É a notícia que não constrói. Os vermes pululando no escatológico... – e a falência múltipla dos órgãos. Não permito que transplantem as minhas partes. Elas servirão, apenas, aos meus propósitos... – como súditas devotadas de uma vida miserável. Além do mais, quem iria cobiçar um alargamento de mim?

Uma bala na cabeça, ao som de um violino – como pano de fundo – é um concerto para a morte. O que jorra do cérebro é, ao mesmo tempo, uma arte... – por quantas vezes for levada a efeito... – e uma sonata. Morre-se, assim, embebido do sangue melancólico de um Vivaldi. O que ainda me faz resistir à tentação... – é a certeza de que serei aprisionado nas páginas de um tablóide, em forma de retrato. E isso é tétrico.

O amarelar do papel – mofando... – é o esforço (da alma) para fugir das letras. Àquelas mesmas que relatarão a mentira (lacônica) do que eu fora. A minha vida, em três ou quatro linhas, sensacionalistas. – Um processo semelhante ao da carne em putrefação... – quando os bichos escrotos devoram a nossa consciência pagã. E se é assim, uma certeza... – prefiro me apegar à dúvida.

Quanto ao esquecimento? Não há consolo melhor. Ele se encarregando da reminiscência dos estúpidos... – e os tipos que inventei sendo enterrados comigo. – Se não tivesse pudor, quanto ao meu corpo desnudo, poderia ser ruminado... – sem a casca que reveste as serpentes.

Não há algo mais dispensável que uma vestimenta de cadáver. Quando me assentarem na frialdade da sepultura, arregalarei os olhos e contarei as estrelas, uma infinidade de vezes... – e até que minhas contas cheguem à cifras inimagináveis. E testemunharei o meu próprio dessecamento (e só convidarei para presenciar o nefasto, alguns poucos entusiastas).

De nada adiantará rogarem para que os santos saiam em minha defesa... – estarei escondido debaixo dos seus disfarces. Permito-me, ainda, só não sei até quando... – Deus sempre teve razão.

* Jornalista e professor universitário na Paraíba




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