segunda-feira, 23 de julho de 2018

Três em um - Doca Ramos Mello


Três em um


* Por Doca Ramos Mello


Eis me aqui, convalescendo de uma tendinite patelar brava, em repouso.

E para variar o cardápio do descanso forçado, ligo a televisão... Eu tenho arrepios de programas ditos femininos, mas em casa não assinamos TV a cabo, só nos restam as redes comuns, acessadas basicamente em função do noticiário. Já assinamos TV a cabo um dia, mas acabei percebendo que nunca ninguém assistia aos variados e maravilhosos canais que vendem de botão a helicóptero o dia todo e durante a noite também (fiquei com nojo de uma iogurteira, de tanto que ela aparecia na tela!) e que, quando havia um filme que prestasse, tínhamos de pagar taxa extra.

Desistimos, foi simples. Tivemos de ameaçar explodir a empresa, matar os atendentes do maldito telemarketing e todos os demais funcionários, fizemos algumas novenas, subimos as escadas da igreja da Penha de joelhos, acionamos o Procon, foi realmente mole desistir da assinatura, o serviço funciona que é uma beleza.

Quando finalmente se concluiu o processo porque o Procon investiu como um leão sobre eles, e eu acenei com um suicídio coletivo da família, deixando registrado em cartório o motivo da tragédia, eles cancelaram o trato e nos relegaram a anteninha como recuerdo. Até hoje tenho umas convulsões quando olho para ela, e a empregada aqui de casa sofre queda de pressão se, porventura, tocamos no assunto – TV por assinatura é uma coisa chocante.

Bom, bom, bom, cá estou, botando minha pata de ganso no molho.

E na telinha, uma jornalista conhecida, pobrezinha. Eu sei que a vida está pela hora da morte, não há empregos ruins, quem dera decentes, e que quem ganha dinheiro de penca neste país é político, a Hebe, o filho empresário de V. Exa. Metalurgíssima, alguns gatos pingados de celebridades e a mulher-melancia, que Deus perdoe o Brasil por isso tudo, mas a jornalista não precisava dar espaço para o assunto, honestamente, ainda mais com o repórter dela que só sabe falar com sujeito duplo, que horror!

E lá está ela, suando para entrevistar um cantor. Nunca o vi mais gordo nem mais anasalado, mas me chamou a atenção porque tão logo abriu a tela, a jornalista estava perguntando se ele se julgava acima do bem e do mal. Ele fez careta e pediu “uma equisplicação” – assim mesmo, falando ‘equis’. Aí, me hipnotizou! Tive de ficar vendo onde ia dar a coisa, não podia perder, claro.

O moço se intitula um mix de cantor-pastor-curandeiro, portanto canta, prega e faz curas milagrosíssimas, de câncer a cegueira ou surdez, tendo exibido um vídeo de sua atuação no culto, as moças da plateia, digo as seguidoras da religião dele – eu sempre acho que as moças estão em surto nessas manifestações – berrando ensandecidas qual uma claque sem controle em show de rock, e ele a dar ordens do tipo “abra os olhos, abra os olhos” para o suposto deficiente, seguidas de “você me vê, diga, me vê?”. E logo vai o cego a saracotear com as novas luzes, sim, ele vê, ele vê, aleluia! Assim também a surda passou a ouvir, aleluia!, etc., etc. Volto a dizer que a vida está pela hora da morte, mas tudo tem limite. Ou não.

Dali, o mocinho passou ao discurso decorado de ter, um dia, descoberto a palavra de Deus. E tome bíblia, Jesus, quem faz o milagre é Deus, blá, blá, blá. (Posso imaginar o desalento divino, porém também acho que Ele poderia adotar umas sanções contra esses fariseus, mas acho que se cansou e vem deixando correr frouxo...).

Estou pensando em levar a minha pata de ganso para o cantor-pastor-curandeiro benzer. Alimento alguns medos, claro, vai que eu falo da dor na pata de ganso e ele começa a gritar “mostre o bicho, mostre o bicho”, eu aponto para meu joelho direito e ele berra “sai, ganso, desse corpo que não lhe pertence”, fico meio angustiada com essas possibilidades...

A coisa aqui dói há uns bons seis meses, e olhem que eu creio firmemente em Deus, mas Ele não me alivia a tendinite, até Jesus se recusa a se manifestar me curando, que discriminação é essa?! Ou a Santíssima Trindade faz alguma coisa ou vou exigir a minha cota de cura, vou reclamar com o pessoal dos Direitos Humanos. Esse negócio de palavra de Deus quem sabe não seja para qualquer um, ainda assim, quero uma equisplicação convincente, ora! Minha filha tem dores na coluna, eu falei para ela sobre o rapazinho, mas ela só aceita ser curada pelo Rodrigo Santoro, ô menina difícil...

* Jornalista


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