Três em um
*
Por Doca Ramos Mello
Eis me aqui, convalescendo de
uma tendinite patelar brava, em repouso.
E para variar o cardápio do descanso forçado, ligo a televisão... Eu tenho arrepios de programas ditos femininos, mas em casa não assinamos TV a cabo, só nos restam as redes comuns, acessadas basicamente em função do noticiário. Já assinamos TV a cabo um dia, mas acabei percebendo que nunca ninguém assistia aos variados e maravilhosos canais que vendem de botão a helicóptero o dia todo e durante a noite também (fiquei com nojo de uma iogurteira, de tanto que ela aparecia na tela!) e que, quando havia um filme que prestasse, tínhamos de pagar taxa extra.
Desistimos, foi simples.
Tivemos de ameaçar explodir a empresa, matar os atendentes do
maldito telemarketing e todos os demais funcionários, fizemos
algumas novenas, subimos as escadas da igreja da Penha de joelhos,
acionamos o Procon, foi realmente mole desistir da assinatura, o
serviço funciona que é uma beleza.
Quando finalmente se concluiu
o processo porque o Procon investiu como um leão sobre eles, e eu
acenei com um suicídio coletivo da família, deixando registrado em
cartório o motivo da tragédia, eles cancelaram o trato e nos
relegaram a anteninha como recuerdo.
Até hoje tenho umas convulsões quando olho para ela, e a empregada
aqui de casa sofre queda de pressão se, porventura, tocamos no
assunto – TV por assinatura é uma coisa chocante.
Bom, bom, bom, cá estou,
botando minha pata de ganso no molho.
E na telinha, uma jornalista
conhecida, pobrezinha. Eu sei que a vida está pela hora da morte,
não há empregos ruins, quem dera decentes, e que quem ganha
dinheiro de penca neste país é político, a Hebe, o filho
empresário de V. Exa. Metalurgíssima, alguns gatos pingados de
celebridades e a mulher-melancia, que Deus perdoe o Brasil por isso
tudo, mas a jornalista não precisava dar espaço para o assunto,
honestamente, ainda mais com o repórter dela que só sabe falar com
sujeito duplo, que horror!
E lá está ela, suando para
entrevistar um cantor. Nunca o vi mais gordo nem mais anasalado, mas
me chamou a atenção porque tão logo abriu a tela, a jornalista
estava perguntando se ele se julgava acima do bem e do mal. Ele fez
careta e pediu “uma
equisplicação”
– assim mesmo, falando ‘equis’.
Aí, me hipnotizou! Tive de ficar vendo onde ia dar a coisa, não
podia perder, claro.
O moço se intitula um mix de
cantor-pastor-curandeiro, portanto canta, prega e faz curas
milagrosíssimas, de câncer a cegueira ou surdez, tendo exibido um
vídeo de sua atuação no culto, as moças da plateia, digo as
seguidoras da religião dele – eu sempre acho que as moças estão
em surto nessas manifestações – berrando ensandecidas qual uma
claque sem controle em show de rock, e ele a dar ordens do tipo “abra
os olhos, abra os olhos” para o suposto deficiente, seguidas de
“você me vê, diga, me vê?”. E logo vai o cego a saracotear com
as novas luzes, sim, ele vê, ele vê, aleluia! Assim também a surda
passou a ouvir, aleluia!, etc., etc. Volto a dizer que a vida está
pela hora da morte, mas tudo tem limite. Ou não.
Dali, o mocinho passou ao
discurso decorado de ter, um dia, descoberto a palavra de Deus. E
tome bíblia, Jesus, quem faz o milagre é Deus, blá, blá, blá.
(Posso imaginar o desalento divino, porém também acho que Ele
poderia adotar umas sanções contra esses fariseus, mas acho que se
cansou e vem deixando correr frouxo...).
Estou pensando em levar a
minha pata de ganso para o cantor-pastor-curandeiro benzer. Alimento
alguns medos, claro, vai que eu falo da dor na pata de ganso e ele
começa a gritar “mostre o bicho, mostre o bicho”, eu aponto para
meu joelho direito e ele berra “sai, ganso, desse corpo que não
lhe pertence”, fico meio angustiada com essas possibilidades...
A coisa aqui dói há uns bons
seis meses, e olhem que eu creio firmemente em Deus, mas Ele não me
alivia a tendinite, até Jesus se recusa a se manifestar me curando,
que discriminação é essa?! Ou a Santíssima Trindade faz alguma
coisa ou vou exigir a minha cota de cura, vou reclamar com o pessoal
dos Direitos Humanos. Esse negócio de palavra de Deus quem sabe não
seja para qualquer um, ainda assim, quero uma equisplicação
convincente, ora! Minha filha tem dores na coluna, eu falei para ela
sobre o rapazinho, mas ela só aceita ser curada pelo Rodrigo
Santoro, ô menina difícil...
* Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário