terça-feira, 31 de julho de 2018

Editorial - Reagindo ao horror.


Reagindo ao horror


As pessoas reagem de formas diversas face ao horror do cotidiano, quer o que as afeta diretamente, quer o que apenas tomam conhecimento pelos meios de comunicação, que divulgam, com fartura, notícias e mais notícias, o tempo todo, 24 horas por dia, dando conta de guerras, assassinatos, roubos, pestes, fome, inundações, secas e catástrofes de todas as espécies, como terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas, deslizamentos de terra e milhares de outras desgraças. Tudo isso sem esquecer a corrupção, os vícios, as injustiças, a miséria, a exploração do homem pelo homem, e vai por aí afora.

Há os que não suportam nada disso e se alienam. Vivem como se estivessem num paraíso, mesmo imersos no inferno. Há os que até se viciam em desgraças e esbanjam morbidez, se deliciando com esse tipo de informação sobre a miséria e a crueldade humana. Há os que acreditam que podem mudar esse quadro hediondo e empenham suas vidas nessa luta inglória de melhorar o mundo. E as reações são as mais diversas, de acordo com a personalidade, educação, princípios, valores etc. de cada um. Afinal, como sempre disse o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, o homem é ele e suas circunstâncias.

O escritor, acima de tudo ser humano (óbvio), reage de forma tão variada como quem não exerce essa atividade, claro, face ao horror do cotidiano. Uns são mais sensíveis e evitam temas escabrosos. Outros especializam-se no seu trato. E vai por aí afora, com uma infinidade de nuances. Contudo, via de regra, tocam suas vidas e seguem fazendo o que fazem, a despeito dessas desgraças e patifarias. Afinal... Não há outro jeito mesmo!

Dia desses, ao reler um livro – com caprichadíssima edição e apresentação da Editora Abril – contendo duas novelas no mesmo volume (“Lady Barberina” e “A outra volta do parafuso”), do escritor norte-americano, naturalizado inglês, Henry James, um detalhe específico chamou-me particularmente a atenção. Não foi nada referente aos dois excelentes enredos nem a algum de seus bem urdidos personagens. Nem mesmo se tratou de nada que se referisse ao estilo desse consagrado homem de letras.

Lendo o breve resumo biográfico do escritor, na introdução do livro, detive-me nesta informação, que acendeu-me uma luz vermelha no cérebro, por considerar sua mencionada reação insólita. E qual foi esse detalhe especial que me causou tamanha admiração? Foi este: “Quando começou a Primeira Guerra Mundial, James cessou toda a atividade literária, lamentando: ‘o horror de ter vivido para testemunhar tudo isso’”. E, de fato, não escreveu e nem publicou mais nada – ele que estava na crista do sucesso na ocasião – até a sua morte, ocorrida em 28 de fevereiro de 1916.

Comentando isso com amigos, a tônica das reações foi de incredulidade. Houve quem dissesse que ele parou de escrever não por causa dos horrores da guerra, mas por haver perdido o traquejo, a tal da inspiração. Meu ceticismo não chega a esse ponto. Acredito, até por intuição, na sinceridade e na honestidade de propósito de Henry James.

Não me consta que nenhum outro escritor tomasse atitude sequer parecida. Livros e mais livros continuaram sendo escritos e publicados nesse período de conflito. E até de poesias. E mais, muitos dos poemas foram compostos em trincheiras, nos intervalos de batalhas (um dia ainda comentarei a respeito). É certo que na época da grande guerra seguinte, a Segunda Mundial, houve um escritor (não me lembro qual) que chegou a decretar a “morte da poesia”. Disse que era impossível criar beleza em meio a tanto horror. Obviamente, não era.

A decisão de James soa mais estranha quando se sabe que a Primeira Guerra Mundial, embora sumamente perversa, como soem ser todas as guerras, sequer se aproximou, mesmo que remotamente, da Segunda. Mesmo que tenha se caracterizado por sangrentas e surreais batalhas de trincheiras, em que morreram, em cada uma delas, centenas de milhares, quando não milhões de soldados, sem que nada se decidisse, não teve os horrores dos campos de concentração nazistas e nem a “industrialização” dos assassinatos, frios e covardes, do Holocausto, em Auschwitz, Treblinka e outros tantos lugares sinistros, tanto que causam calafrios apenas à menção dos seus nomes.

Não teve, principalmente, o pavor dos pavores, o dos bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki. Como James reagiria a isso? Felizmente (para ele) não viveu para presenciar nada disso. Presume-se que a guerra em andamento quando tomou sua decisão, a de 1914 a 1918, abreviou sua morte. É provável que se testemunhasse a Segunda Guerra Mundial teria morrido às primeiras notícias que recebesse. Ou não, sabe-se lá! E olhem que na ocasião as informações nem eram tão fartas e muito menos instantâneas como agora. Tardavam dias, às vezes semanas ou meses, para se tornar públicas. Os meios de comunicação eram rústicos e embrionários. Não havia, por consequência, a fartura de noticiário que há hoje.

Imagino as reações de Henry James neste início de século XXI do qual somos testemunhas e protagonistas. Relatórios divulgados amiúde, por exemplo, por diferentes organizações internacionais, mostram que podemos falar de tudo, menos de evolução do espírito. Os informes dão conta de torturas, assassinatos, “desaparecimentos de pessoas”, privações ilegais da liberdade, truculências e outros crimes hediondos, muitos dos quais praticados por governos ou por regimes políticos. Ou seja, tais delitos são cometidos em nome de princípios nobres como liberdade, democracia e solidariedade.

Relatórios da Anistia Internacional denunciam e fundamentam em farta documentação violações de direitos humanos em mais de uma centena de países. E não são apenas as sociedades retrógradas que torturam, executam, roubam, estupram e maltratam seus próprios cidadãos. Tais delitos ocorrem, indistintamente, na Europa, nos EUA e em praticamente todas as partes do mundo. Onde, pois, a apregoada “nova era”, tão decantada após o fim da “guerra fria”? Eu responderia, apenas, como o personagem de Shakespeare: “words, words, words...”

A violência, de tanto que é repetida, insensibiliza as pessoas, mesmo as mais sensíveis e virtuosas. Claro que (felizmente) há exceções, que em termos relativos são escassíssimas. E essa insensibilidade nem vem de hoje. Tanto que o filósofo e escritor francês, Claude Adrien Helvetius, já havia escrito, no século XVIII: “Os homens são tão idiotas que é bastante ver repetir uma violência para considerá-la um direito”. E não é assim que as coisas acontecem? Claro que sim. Já estão, até, justificando atos de tortura em interrogatórios. Mas não quero falar sobre isso, em nome da preservação da minha integridade física. Nunca se sabe...

As coisas, nesse aspecto, no do horror e patifarias, podem ora melhorar, ora piorar, mas sempre ao sabor do acaso. Isso frustra e torna vãs todas as nossas esperanças e ilusões de uma sociedade e de uma humanidade já não digo perfeitas, mas minimamente aceitáveis.

Diante do exposto, não tenho como não dar razão, posto que muito a contragosto, a esta constatação sumamente pessimista (ou extremamente realista?) feita por Henry Adams (não confundir com o “sensível” Henry James): “O mundo é um quadro de dores, aflição e morte; pestes e fome; inundações, secas e nevadas; catástrofes por toda parte e por todos os cantos acidentes; a virtude gera o vício e o vício se perpetua; felicidade sem sentido, egoísmo sem lucro, miséria sem causa, horrores indefiníveis --- e a morte como a recompensa igualitária de todos”. E não é?!


Boa leitura!

O Editor.


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