domingo, 31 de março de 2013


Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos e 4 dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Cem anos sem um ícone naturalista

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Amor e indiferença”.

Coluna Direto do Arquivo – Edmundo Pacheco, conto “O colecionador”.

Coluna Clássicos – Luiz Fernando Veríssimo, conto, “Páscoa”..

Coluna Porta Aberta – Sílvia Schmidt, crônica “Ovos de sete cascas”.

Coluna Porta Aberta – Frei Betto, artigo “Esgarçamento da Política”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: nenem138@gmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Cem anos sem um ícone naturalista

Em janeiro deste 2013 completaram-se cem anos da morte de um dos mais importantes escritores brasileiros, ícone do Naturalismo no Brasil. Todavia, por um desses lamentáveis lapsos, tão comuns entre nós, a data foi virtualmente (para não dizer literalmente) ignorada pelos meios de comunicação e por veículos (poucos) dedicados à cultura e às artes (notadamente à Literatura) de todo o País.  Refiro-me ao escritor maranhense, filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo, Aluísio de Azevedo. Para ressaltar sua importância basta lembrar que foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e que se tornou titular e primeiro ocupante da cadeira de número 4. Legou à posteridade, 23 livros, entre romances, contos, peças teatrais, cartas etc.

Também não registrei a data, mas asseguro-lhes que não foi por esquecimento. Nem poderia esquecer desse evento, já que o centenário em questão completou-se um dia depois do meu aniversário,  ou seja, em 21 de janeiro. Nesse dia, estava pautada a redação de um texto alusivo ao evento para este espaço, mesmo que se tratasse de simples menção. Todavia, outros assuntos se sobrepuseram (alguns a pedido de leitores), o tempo foi passando, passando e, quando me dei conta, já se passaram mais de noventa dias da ocorrência. Mas... antes tarde do que nunca. Até porque, a biografia desse maranhense, nascido em São Luís, em 14 de abril de 1857, irmão mais novo do escritor Artur Azevedo, é das mais interessantes e dignas de nota.

Seus livros mais conhecidos, e mais famosos, muitos dos quais são leitura obrigatória para alunos que prestam vestibular, são  os romances “O mulato”, “O cortiço”, “Casa de pensão”, “Filomena Borges” e “O coruja”. Mas todos os outros 18 que não citei têm seu encanto, seu valor e sua marca. Aluísio Tancredo Belo Gonçalves de Azevedo foi parar na literatura por vias transversas. Começou a chamar a atenção como talentoso desenhista e pintor de mão cheia, o que, em vez de lhe desviar o foco, viria a ser de suma utilidade na carreira literária. Na juventude, aliás, nem lhe passava pela cabeça dedicar-se às letras. Tanto que, incentivado pelo pai, se transferiu, em 1876, para o Rio de Janeiro, onde cursou a Academia Imperial de Belas Artes. E era muito bom no que fazia.

Começou a trabalhar em jornal como caricaturista de “O Fígaro”. Na época, nenhuma publicação impressa estampava fotografias, pois esta sequer havia sido inventada. Todas as ilustrações de matérias eram feitas por exímios ilustradores. Tudo levava a crer que Aluísio faria carreira na imprensa nessa função. Todavia, a morte do pai, ocorrida em 1878, forçou-o a retornar às pressas a São Luís para cuidar dos interesses da família.

Apesar de excelente desenhista, rabiscava, também, seus textos, provavelmente inspirado pelo irmão mais velho ou espelhando-se, mesmo que de forma inconsciente, nele. Dessa forma, escreveu, e publicou, em 1879, um primeiro romance. Intitulava-se “Lágrima de mulher”, que fez relativo sucesso. Aliás, naquele recanto tão distante da capital do País, a publicação tinha que ser excepcionalíssima para gerar alguma repercussão fora do âmbito maranhense. E não era o caso.

Contudo, animado por esse primeiro relativo êxito (mais correto seria dizer “não fracasso”), Aluísio Azevedo partiu para a segunda experiência literária da sua vida. E que experiência!!! Esta sim repercutiu, e muito, provavelmente além do que esperava e desejava. Esse novo livro foi “O mulato”, lançado em 1881, que qualquer estudante razoavelmente aplicado conhece, já leu, fez resenha e esteve às voltas com sua forma e conteúdo no vestibular. O que abalou os alicerces da conservadora sociedade de São Luís foi o teor desse romance. Nele, o então jovem escritor escancarou os vícios e, sobretudo, os preconceitos da população local, sempre negado, no entanto ostensivo. E fê-lo com realismo cru, sem censura e nem autocensura, o que chocou aquela sociedade hipócrita e discriminadora. Além de intensa polêmica, o livro causou enorme onda de indignação na capital maranhense contra o ousado escritor.

Houve toda sorte de manifestações, e não somente na imprensa, mas principalmente nela, com as mais ácidas críticas. Todavia, foram realizadas, também, várias passeatas e outros tipos de manifestações públicas de repúdio. Não era para tanto, mas... Toda aquela indignação popular, para Aluísio inesperada, indignou-o e levou-o a se mudar, em definitivo, para o Rio de Janeiro. Oito anos depois, já residindo na capital federal, ao preparar nova edição desse romance, suprimiu partes e reescreveu outras de “O mulato”, deixando o conteúdo menos contundente e menos polêmico. É esta segunda versão que ainda encontramos circulando por aí, em boas livrarias e em sebos.

Em 1895, Aluísio de Azevedo decidiu interromper de vez a carreira literária, que ia de vento em popa, para se dedicar, de corpo e alma, a outra atividade, por coincidência a mesma do pai, ou seja, à diplomacia. Atuou como diplomata por 17 anos, até a sua morte, representando o Brasil na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão (país que o fascinou tanto que escreveu um livro sobre seus costumes), Paraguai e, finalmente, a Argentina, onde morreu, em 21 de janeiro de 1913.

Na capital portenha teve algumas passagens que chamam a atenção e merecem ser mencionadas. Uma delas foi sua convivência com Pastora Luquez, de quem adotou, de papel passado e tudo, dois filhos. Foi ali, também, que em agosto de 1912, sofreu um atropelamento, cujas seqüelas, provavelmente, causaram sua morte cinco meses depois. Seus restos mortais permaneceram sepultados em Buenos Aires por apenas cinco anos, pois, em 1918, por iniciativa de Coelho Neto, foram trasladados para sua terra natal, São Luís, onde estão até hoje. A grande contribuição de Aluísio de Azevedo à literatura brasileira foi, sob influência, principalmente, de Émile Zola, a de ter introduzido o Naturalismo entre nós. Foi, pois, pioneiro e digno de reverência e louvor.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Amor e indiferença

 * Por Pedro J. Bondaczuk


A palavra "amor", seja em que língua ou dialeto for, é, certamente, a mais citada, (embora a menos compreendida em seu real significado), em poemas, romances, novelas, letras de canções, etc. em todo o mundo, através dos tempos, desde o surgimento das civilizações, das artes e da escrita.  O termo sempre se viu cercado de extrema ambigüidade. Dependendo do contexto, tem sido utilizado, até mesmo, por paradoxal que pareça, para exprimir seu antônimo, o ódio, sem que aquele que o utiliza com tanta inadequação sequer se dê conta.

Pois é este sentimento sublime, mais falado do que praticado; esta elevada emoção, que todos sentimos algum dia na vida, mas que, por alguma razão, alguns de nós sufocamos e extinguimos talvez por entendermos inconscientemente que se trata de manifestação de fraqueza ou de falta de virilidade; esta essência da divindade, que deveria nos distinguir das feras broncas; o tema central do excelente livro "Amor, Caminhos e Descaminhos", do jornalista, escritor, educador e advogado Rubem Costa.

O autor admite, a priori, logo no prólogo, tratar-se de enorme desafio abordar assunto tão complexo (e tão surrado), sem descambar para o lugar-comum, ou sem enveredar para os mesmos equívocos, não apenas do populacho pouco instruído, mas pelo qual a maioria dos filósofos, poetas, romancistas, psicólogos, psiquiatras e outros tantos estudiosos da alma e do comportamento humano também freqüentemente envereda.

Metodicamente, de forma clara, organizada e sobretudo didática --- como compete ao professor que de fato é --- Rubem Costa inicia sua análise adentrando o complexo campo da semântica. Observa: "...Como espelho da sociedade que evolui e se transforma no perpassar dos acontecimentos, as palavras, refletindo a nova fisionomia social, que repercute na formação do ser individual, exercem papel relevante na contextura de usos e costumes, plasmando princípios de ética e moral. Mas, em verdade, ela, a palavra, é uma rua de duas mãos. Impressiona e deixa-se impressionar pela agitação do grupo".

Destaque-se que Rubem Costa é um dos mais lúcidos e profundos intelectuais da cidade, ilustre e atuante membro da Academia Campinense de Letras, autor de "Cantigas do Anoitecer" (poesias) e "Colheita no Tempo" (crônicas). Com 19 anos, já era redator-secretário do "Diário do Povo". Desenvolveu marcante carreira no Magistério paulista, como inspetor de ensino e diretor da V Divisão Regional de Educação do Estado de São Paulo.

O autor define, já no próprio título do livro (publicado pela Editora Átomo de Campinas), as duas vertentes que fundamentam sua instigante tese. Na primeira parte, aborda os "Caminhos do Amor". Identifica esse tão pouco entendido sentimento nas suas mais variadas formas de manifestação. Fala dos santos, dos simples, dos humildes e dos abnegados. Recorre à Criação, como descrita no Gênesis da Bíblia, e narra várias experiências pessoais. Entre estas, relembra os ensinamentos da mãe e conclui  que o amor é um só, embora muitas sejam as formas com que se manifesta.

Na segunda parte, que intitula "Descaminhos", aponta as distorções, os males-entendidos e os equívocos mais comuns que cercam essa emoção. Aborda as várias formas de preconceito (racial, étnico, religioso, etc.), o abandono, a exploração do próximo e outros tantos perversos comportamentos que envenenam nossos relacionamentos. É óbvio (e nem é esta a nossa intenção), que não iremos tirar do leitor o prazer de participar desse régio banquete de inteligência e sensibilidade, que é a leitura desse precioso livro.

Destacamos, no entanto, que Rubem Costa consegue façanha que pouquíssimos escritores alcançam: a de tratar temas, como este, tão delicados, profundos e de tamanha complexidade, de forma clara, inteligível, acessível a qualquer pessoa de cultura mediana, sem recorrer (como muitos autores fazem, de forma pedante e até tola), a jargões das várias disciplinas enfocadas, já que recorre, sem que o leitor sequer perceba, a princípios de  filosofia, psicologia, teologia, etologia, antropologia, etc.

Ler seu texto claro, preciso, correto, medido e coloquial, é como assistir a uma produtiva aula do brilhante mestre. É banhar a alma e o intelecto nas águas puras da plena cultura e saber. Trata-se de um livro para ser apreciado, saboreado, "degustado"  com reflexão. É para ser lido com emoção e razão e  não como se lê um jornal, uma revista ou um romance comum e banal, desses que lançamos mão apenas para "passar o tempo".  As lições de Rubem Costa são para serem estudadas, analisadas, sentidas, sopesadas, dissecadas, fazendo-se anotações à margem, como fazemos, por exemplo, com as obras dos clássicos da literatura.

Nas palavras do último parágrafo do capítulo "A Grande Descoberta", o autor sintetiza, de forma magistral, a tese que permeia todo seu precioso livro, ao confessar: "Foi assim que, aos três anos de idade, sem saber ao certo o significado dos termos, diante de minha mãe orando, revendo-a, lá na rede, a me beijar a face, sem me responder, eu descobri o sentido da palavra 'amor'. Sinônimo perfeito da essência pura: Deus. Amor que perdoa, amor que guarda, amor que redime, amor que salva: é o nome do 'Senhor'". O que acrescentar a tal definição?! Só posso aduzir: Amém!!!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 






O colecionador

* Por Edmundo Pacheco

Mailiw levantou-se cedo, naquela segunda-feira. Mais cedo que o costume. Chovia e, por mais que tivesse disposição, de nada adiantaria ir ao trabalho. Era vendedor, gostava do ritmo do trabalho, mas não das segundas-feiras chuvosas, quando sair de casa seria desperdício.

Muito menos gostava das noites de domingo mal-dormidas. Menos ainda quando as dúvidas assolavam estas noites, afugentando o sono; das pernas reclamando das caminhadas entre o quarto e a sala, no escuro; do dedo doendo da topada no canto do sofá.

Arrastou o corpo dolorido mais uma vez em direção à sala, abriu lentamente as grossas cortinas de veludo vermelho (vermelho como tudo na vida de Rosa) e jogou os olhos em direção à rua. Lá embaixo, na calçada, o mundo vivia mais uma segunda-feira. Aqui dentro, no 12º andar, Mailiw vivia a sua segunda-feira particular, indelével, única e última.

Talvez tivesse sido melhor não acordar na tarde de domingo. Perderia apenas o jogo, não a vida. Mas acordou. E acordou cedo demais. Sem o que fazer enquanto a televisão relutava em colocar em campo seus heróis prediletos, Mailiw resolveu ler a Revista de Domingo. Nada preocupante. Fofocas, comentários, historietas da vida real... ou não? Ali nascera a dúvida que acabara com o jogo antes de começar, com o resto da tarde, da noite, da vida.

Era vendedor. E gostava do ritmo do trabalho. Vendia livros e, por conseguinte: sonhos. Mas, o que gostava mesmo, era de vender ilusões. Alto, de cabelos pretos agrisalhados e tez muito branca, com dois olhos negros, penetrantes, incrustados, Mailiw tinha algo que atraia as mulheres.

Colecionou todos os modelos, tipos e tamanhos. Nunca tivera preconceito. Mas nunca, jamais, traíra Rosa. Amava-a e, à sua maneira, considerava-se fiel ao extremo. As outras eram coisas, objetos da coleção. Imediatamente “vaporizadas”, como gostava de dizer aos amigos.

Vaporizava tantas, que a palavra se transformou em brincadeira e até cumprimento:
- E aí Mailiw, vaporizando muito?
- Vaporizando, como sempre!! – respondia, risonho, ao cruzar a rua.

O problema, é que o vaporizador começou a dar defeito numa manhã fria de inverno.

Mailiw fixou os olhos negros nos castanhos de Vindi. Como era costume, marcou a vítima a ferro. E iniciou seu bailado: telefonemas em horas impróprias. Bons dias com flores. Boas tardes com sorrisos e carinhos. Boa noite com carícias e amor. Ótima noite. Maravilhosa noite. Inesquecível noite e uma vaporização matinal.

Rosa, mais uma vez, o esperava, vermelha, saudosa, da “viagem”. E Mailiw amou-a, como jamais amaria alguém.

Era sua Rosa. Vermelha. No quarto vermelho por ela decorado, onde se respirava tesão. E onde jamais entraria o vaporizador e sua coleção.

Mas o vaporizador se quebrara. E Vindi negou-se a fazer parte da coleção.

Dia após dia, sentiu falta do bailado, dos bons dias e, principalmente, da boa noite. Frustrada, vestiu-se de vingadora e saiu a campo. Descobriu nome, endereço, telefones, senha do cartão, tipo sangüíneo, número do sapato,  a coleção e o vaporizador.

Tentou tê-lo novamente. Tentou... Tentou... Tentou... Tentou... Ameaçou... Chantageou... Humilhou-se...

E Mailliw resistiu. Ignorou... Ignorou... Ignorou... Como era costumeiro.

Como última saída, Vindi resolveu roubá-lo. Se não ele da Rosa, a Rosa dele. Descobriu que, apesar de tanto amada, Rosa não era feliz. Faltava-lhe algo. Vasculhou a vida nada cor-de-rosa de Rosa, pontos fracos, medos e segredos. E armou o contra-ataque.

Quase mil quilômetros distante, o irmão de Vindi, Carvalho, recebeu a ficha completa de Rosa. Nome, endereço, telefones, senha do cartão, número do manequim,  gostos,  desgostos e pontos de maior tesão.

E assim, iniciou-se o bailado do Carvalho em torno da Rosa. E Rosa gostou.

Vindi fazia a ponte, vigiava os passos de Mailiw e Rosa, e Carvalho, mesmo distante, fazia-se presente a cada instante. Mandava rosas, vermelhas, claro. E recados de amor, de levar Rosa ao rubor. E tanto fizeram os irmãos, brincando de vingança, que a Rosa, sedenta, finalmente pôde experimentar o carvalho. E amou. E descobriu que nunca fora realmente amada.

O quatrilho da doce vingança de Vindi estava completo. Ou quase. Vindi nem assim conseguiu sair da coleção. Relutou, lutou, ameaçou. Quase foi às vias de fato.

Não se importava mais em perder marido e filhos, esquecidos no arquitetar e executar dos planos mais mirabolantes. Vindi precisava sair da coleção.

E teve, finalmente, mais uma de suas grandes idéias: escrever um conto. E contar ao mundo, mesmo que de forma cifrada, que chifrara e fora chifrada e, principalmente, que já não lhe importava mais nada, se não o amor do colecionador.

Apesar de não ser escritora, o texto ficou bom, e foi aceito pela Revista de Domingo. Lida pelos insones futebolistas, nas tardes domingueiras.

Mailiw reconheceu o nome da autora: Vindi Care. E os detalhes deram certeza: era “O colecionador”, título e personagem.

Começara sua noite de terror.

Rosa, agora branca, sobre a cama vermelho-sangue, confessara fazer parte de outra coleção.

Agora, nesta manhã chuvosa de segunda-feira, Mailiw olhava a calçada lá embaixo, enquanto vivia sua dor e sua última dúvida: vaporizava os irmãos ou pulava pela janela...

*Jornalista, ex-editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR



Páscoa
 
* Por Luiz Fernando Veríssimo
 
-Papai, o que é Páscoa?
-Ora, Páscoa é... bem... é uma festa religiosa!
-Igual ao Natal?
-É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição.
-Ressurreição?
-É, ressurreição. Marta, vem cá!
-Sim?
-Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.
-Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu?
-Mais ou menos... Mamãe, Jesus era um coelho?
-O que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas! Coelho! Jesus Cristo é o Papai do Céu! Nem parece que esse menino foi batizado! Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola? Deus me perdoe! Amanhã mesmo vou matricular esse moleque no catecismo!
-Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus?
-É filho, Jesus e Deus são a mesma coisa. Você vai estudar isso no catecismo. É a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
- O Espírito Santo também é Deus?
- É sim.
- E Minas Gerais?
- Sacrilégio!!!
- É por isso que a ilha de Trindade fica perto do Espírito Santo?
- Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas se você perguntar no catecismo a professora explica tudinho!
-Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?
-Eu sei lá! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.
-Coelho bota ovo?
-Chega! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais!
-Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa?
-Era... era melhor,sim... ou então urubu.
-Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, né?
-Que dia ele morreu?
-Isso eu sei: na Sexta-feira Santa.
-Que dia e que mês?
-(???)
-Sabe que eu nunca pensei nisso? Eu só aprendi que ele morreu na Sexta-feira Santa e ressuscitou três dias depois, no Sábado de Aleluia.
-Um dia depois!
-Não três dias depois.
-Então morreu na Quarta-feira.
-Não, morreu na Sexta-feira Santa... ou terá sido na Quarta-feira de Cinzas? Ah, garoto, vê se não me confunde! Morreu na Sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois! Como? Pergunte à sua professora de catecismo!
-Papai, porque amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?
-É que hoje é Sábado de Aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.
-O Judas traiu Jesus no Sábado?
-Claro que não! Se Jesus morreu na Sexta!!!
-Então por que eles não malham o Judas no dia certo?
-Ui...
-Papai, qual era o sobrenome de Jesus?
-Cristo. Jesus Cristo.
-Só?
-Que eu saiba sim, por quê?
-Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha?
-Ai coitada!
-Coitada de quem?
-Da sua professora de catecismo!

* Escritor

Ovos de sete cascas

* Por Sílvia Schmidt

Na Páscoa, em vez de ovos de chocolate, não seria mais agradável "ganhar " uma Pessoa”, e assim ter um novo amigo ou amiga? Mas lembre-se que pessoas são "Ovos de 7 Cascas". Caso lhe interesse, aí vão algumas dicas para chegar ao seu "presente":

1ª casca: a máscara social, a que todos vêm. Aproxime-se com transparência e simplicidade, e ela cairá.

2ª casca: a desconfiança. Esta é formada por desapontamentos e decepções. Se você for confiável, isso será "sentido" e ela se desfará.

3ª casca: o medo. Ela é gerada por agressões e rejeições passadas. Deixe transparecer sua compreensão e bondade de espírito. Essa casca também se quebrará.

4ª casca: as defesas. Uma casca desenvolvida perante críticas e julgamentos. De alguma forma exponha seu poder de aceitação, de respeito à maneira de ser de cada um. Ela desaparecerá diante dos seus olhos.

5ª casca: a timidez. Um resultado de falsas noções sobre a verdadeira grandeza de cada ser.  Mostre-se como alguém conhecedor do seu exato tamanho, nem menor, nem maior do que ninguém. E mais uma casca irá por terra.

6ª casca: a insegurança. Ela é moldada por enganosos e fracassados relacionamentos passados. Transmita com energia sua fé em novas possibilidades, partilhe sua crença de que no filme da vida também é possível haver final feliz. Em pouco tempo, essa casca não mais existirá.

7ª casca: o caráter.  Esta não se quebra e só com sua intuição você a verá. Ela pode ser de 2 tipos: opaca OU luminosa. A opaca é mantida por inquebrantáveis más tendências e maus sentimentos. Fique ou busque outro " ovo " ... a escolha é sua.

A luminosa emana um alto astral e suavidade tão evidentes, que é impossível não senti- a. Dentro dela há alguém cheio de Amor para dar. Fique, e deixe que ele experimente o calor do seu abraço.
Todas as pessoas são "Ovos de 7 Cascas" . Que tal ganhar um bem doce nesta tão Doce Páscoa?

* Escritora

Esgarçamento da Política

* Por Frei Betto

Esgarçar: afastarem-se, soltarem-se os fios de um tecido (Caldas Aulete).

Quem é direita e esquerda hoje no Brasil? Eis um dilema shakespeariano. A direita, representada pelo DEM, se acerca do PMDB e, na palavra do senador Agripino Maia, propõe “oposição branda” ao governo Dilma Rousseff, que se considera de esquerda.

O PPS do deputado Roberto Freire, versão ao avesso do Partido Comunista, apoia as forças mais retrógradas da República. O PDS de Kassab e o PMDB de Sarney ficam em cima do muro, atentos para o lado em que sopram os ventos do poder.

Como considerar de esquerda quem elege Renan Calheiros presidente do Senado, e Henrique Alves, da Câmara dos Deputados. Você, caro(a) leitor(a), qualifica como de esquerda quem se apoia em Paulo Maluf, Fernando Collor de Melo e Sarney?

Desde muito jovem aprendi que a esquerda se rege por princípios e, a direita, por interesses. E hoje, quem coloca os princípios acima dos interesses? Como você, que é de esquerda, se sente quando se depara com comunistas apoiando o texto do Código Florestal que tanto agrada a senadora Kátia Abreu?

A esquerda entrou em crise desde que Kruschov, líder supremo da União Soviética, denunciou os crimes de Stalin, em 1956. Naquela noite de fevereiro, vários dirigentes comunistas, profundamente decepcionados, puseram fim à própria vida.

Depois que Gorbachev entregou o socialismo na bandeja à Casa Branca, e a China adotou o capitalismo de Estado, a confusão só piorou.

Muitos ex-esquerdistas proclamam que superaram o maniqueísmo esquerda x direita, inadequado a esse mundo globalizado. Mera retórica para justificar o aburguesamentos de quem, em nome da esquerda, alcançou um estilo de vida à imagem e semelhança dos poderosos da direita: muita mordomia e horror, como confessou o general Figueiredo, ao “cheiro de povo” (exceto na hora de angariar votos).

Ser de esquerda, hoje, é defender os direitos dos mais pobres, condenar a prevalência do capital sobre os direitos humanos, advogar uma sociedade onde haja, estruturalmente, partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

O fato de alguém se dizer marxista não faz dele uma pessoa de esquerda, assim como o fato de ter fé e frequentar a igreja não faz de nenhum fiel um discípulo de Jesus. A teoria se conhece pela práxis, diz o marxismo. A árvore, pelos frutos, diz o Evangelho.

Se a prática é o critério da verdade, é muito fácil não confundir um militante de esquerda com um oportunista demagogo: basta conferir como se dá a relação dele com os movimentos populares, o apoio ao MST, a solidariedade à Revolução Cubana e à Revolução Bolivariana, a defesa de bandeiras progressistas, como a preservação ambiental, a união civil de homossexuais, o combate ao sionismo e a toda forma de discriminação.

Quem é de esquerda não vende a alma ao mercado.

               · Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org   Twitter:@freibetto.

sábado, 30 de março de 2013


Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos e 3 dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Arquitetura da prosa

Coluna Direto do Arquivo – Deonísio da Silva, crônica,“Flores e vinhetas da última flor do Lácio”.

Coluna Clássicos – Edgar Allan Poe, conto, “Sombras”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica,“As Velhas Páscoas”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, poema, “Nas voltas do carrossel, perder o medo do mundo”.

Coluna Porta Aberta – Ana Deliberador, conto “Malhação de Judas”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: nenem138@gmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Arquitetura da prosa

Em 2004, publiquei, em determinado jornal – que não vem ao caso identificar – e posteriormente em alguns dos vários espaços de que disponho na internet, uma crônica que gerou bastante controvérsia. Não entre leitores, apresso-me a esclarecer, dos quais recebi inúmeros elogios para satisfação do meu ego. Fui criticado, isto sim, em alguns dos círculos literários que freqüento. Ou seja, por colegas da mesma função. O cerne da controvérsia foi minha afirmação que a prosa, para gerar o efeito que pretendemos, tem que primar, sempre, por duas características básicas: clareza e simplicidade.

Ao leitor pode parecer o óbvio (e entendo que de fato é), mas muitos escritores não entendem as coisas dessa forma. Desmancham-se em floreios, em seus textos, no que costumo chamar ora de “pirotecnia verbal”, ora de verborragia, em simples crônicas ou em contos, em detrimento, quase sempre, da compreensão. O engraçado é que depois reclamam que não são lidos, atribuindo o fato à falta de gosto do brasileiro para a literatura.

Ocorre que abusam tanto de metáforas, não raro estapafúrdias e até surreais, em textos de prosa, utilizam-se de tantas palavras há muito caídas em desuso, apenas para mostrar pretensa erudição, que ao cabo da leitura do que escreveram, ficamos sem saber o que pretendiam dizer. Esquecem-se que literatura é, antes e acima de tudo, comunicação. Mas eles não comunicam rigorosamente nada, embora escrevam e, não raro, muito mais do que os temas que abordam requerem.

Iniciei a tal crônica, que agradou os leitores e foi desaprovada pelos colegas escritores, citando o polêmico, mas para mim genial, Ernest Hemingway (tanto que conquistou merecidíssimo Prêmio Nobel de Literatura). O autor de “Adeus às armas” observou: "Prosa é arquitetura e não decoração interior". Ou seja, o controvertido romancista advertiu os que pretendem se comunicar através da difícil arte do texto que este deve ser, antes de tudo, funcional. Deixou implícito que sua beleza nasce da harmonia, da clareza e, sobretudo, da capacidade do redator de passar um recado e nunca da complexidade das palavras. Óbvio que, quanto mais claro este for, com mais precisão será cumprido o objetivo essencial da literatura: o de comunicar um fato, uma idéia, um perfil, um princípio etc.

Para tanto, o texto não pode se ater apenas à forma, embora esta seja importantíssima, notadamente no que se refere à correção gramatical, que é indispensável. Precisa ter conteúdo, e que seja original, que acrescente algo ao leitor e transmitido de tal forma que atraia esse ditador implacável, em cujas mãos estão tanto o sucesso quanto o fracasso de quem vive de escrever: o leitor. Se ele não entender a mensagem ou se não gostar da maneira como foi transmitida, estaremos fritos. Restará ao suposto cultor das belas letras, mudar de atividade.

Gustave Flaubert destacou que "quando se possui a idéia, a palavra jamais há  de faltar". Mas, e quando esta não existe? Quando se pretende, por exemplo, redigir uma crônica que, por sua própria definição, se caracteriza pela leveza, pela descontração, pelo vislumbre de perenidade no que é trivial, aparentemente sem importância, como as circunstâncias do dia-a-dia, ou um objeto absolutamente comum, ou uma emoção corriqueira? Como agir? Aí é que está o problema.

Em circunstâncias como esta, a opção está na simplicidade e não no oposto, a complicação (caminho escolhido por muitos escritores). O redator tem que definir o que deseja transmitir ao leitor. Caso tenha a idéia, e esta seja correta, inovadora, à prova de contestações, palavras é que não faltarão. A escolha, todavia, deve recair, sempre, sobre os termos mais simples, de domínio comum, que sejam inteligíveis a qualquer pessoa alfabetizada (ademais, o analfabeto, por razões óbvias, jamais lerá seu texto), quer se trate de um mestre de Literatura, quer seja um engraxate, um gari ou um porteiro, não importa. O importante não é exibir erudição (supondo que se tenha, é claro), mas comunicar a ideia que se pretende com absoluta clareza e sem a mínima ambigüidade.

Escrever simples é muito mais complicado do que possa parecer aos desavisados. É uma complicação, e das grandes. E não somente para mim, para você, para seu colega ao lado ou para seu vizinho, mas para escritores com muito mais talento e vivência literária do que todos nós reunidos. É o caso de Paulo Mendes Campos, por exemplo, autor de tantos livros e textos publicados em grandes revistas nacionais e internacionais, que constatou: "Quem tem facilidade de escrever, não é escritor: é orador". É um consolo para este jornalista veterano e cronista (modéstia a parte) tarimbado (mas sempre apavorado diante de uma página em branco). Como encontrar um tema que seja, ao mesmo tempo, leve e que fascine o leitor? Como agradar esse ditador anônimo, mas implacável, cuja opinião nos é tão importante?

Scott Fitzgerald dá uma dica: "Você tem que vender seu coração, suas reações mais poderosas, e não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderá  contar ao jantar". Ou seja, é preciso um desnudamento emocional, mesmo que tenhamos escrúpulos em nos desnudar publicamente, em deixar à mostra nossas mais secretas angústias, nossos mais profundos receios e nossas mais protegidas esperanças, temerosos, quem sabe, do ridículo, ou de sermos acusados de cometer um atentado ao pudor. Em última instância, é imprescindível sinceridade. E sem esquecer a paixão pelo que se faz. Se você não gostar de escrever, esqueça. Procure outra atividade menos complicada e potencialmente menos frustrante.

Por essa razão, não é sem motivo que uma tela em branco do visor do meu microcomputador (até pouco tempo atrás era uma lauda em branco), me causa tamanho terror. Há momentos em que fico à beira do pânico. Com o quê preencher todo esse espaço? O quê escrever, sem descambar para o ridículo ou para o bla-bla-blá pomposo, mas sem conteúdo? Com quais ingredientes compor uma crônica?

Respondo: com sangue, com vísceras, com alma, com vivência, com vida. Tenho, desde que cismei que era cronista (e isso já faz um tempão, uma eternidade) diariamente, uma experiência semelhante (guardadas as devidas proporções) àquele episódio bíblico em que o patriarca Jacó lutou com um anjo até o romper do dia, no Vale de Jaboc, para ser abençoado. Procuro a bênção de um tema, da clareza, da empatia e da capacidade de persuadir o leitor. Daí a opção que adotei na citada crônica de 2004, ou seja, a conformação arquitetônica desse texto, em detrimento da “decoração”, porque o que importa é comunicar e não “enfeitar” ideias.

Boa leitura.

O Editor.

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Flores e vinhetas da última flor do Lácio

* Por Deonísio da Silva


Nossa língua portuguesa foi concebida em célebre poema de Olavo Bilac como a “última flor do Lácio, inculta e bela” e “ouro nativo”, além de “esplendor e sepultura”.

Palavras e expressões consolidaram-se de tal modo em nossa língua que muitas delas servem de vinhetas na imprensa, de que é exemplo o famoso verso “última flor do Lácio, inculta e bela”.

As vinhetas são assim chamadas porque os monges medievais enfeitavam seus escritos com desenhos de folhas e de cachos de videiras. No latim, videira é vinea. No francês, filho do latim, vinea tornou-se vigne. E a pequena vigne, vignette, tornou-se vinheta no português. As vinhetas, antes de migrarem para a escrita, estavam em móveis e louças, onde, aliás, ainda permanecem.

Os leitores, repartidos, detestam ou veneram Olavo Bilac. Integro o segundo lote. Textos de pouca ou nenhuma isenção ideológica lembram com surpreendente obsessão que o conhecido escritor brasileiro inventou o livro didático e o serviço militar, ambos obrigatórios, ainda que o primeiro apenas para os homens.

Mais cívicos, outros lembram que é autor de nosso Hino à Bandeira. A Bíblia já avisou que o justo sofre na boca dos ímpios. Mas os tempos mudam e quem hoje é ímpio, amanhã pode ser considerado justo e vice-versa. De todo modo, os ímpios hodiernos, quando referem Olavo Bilac, dão-no apenas como o autor do primeiro desastre de automóvel no Brasil.

E eis um caminho que se bifurca. Desastre veio do provençal antigo desastre, passando pelo francês désastre e pelo italiano disastro. Em todas as línguas citadas, designava originalmente desvio da rota do astro ou “contra os astros”, dada a enorme influência da astrologia em tempos remotos. Os antigos pensavam que as grandes desgraças e calamidades decorriam de desordens entre os astros, impedidos momentaneamente de zelar pelas coisas terrenas. E não recolhiam impostos para tais proteções. É, mas não vivemos no Céu. Vivemos na Terra. E aqui há impostos e desastres. Não deixa, porém, de ser poética a designação de desastre.

Uma curiosidade marca o primeiro deles no Brasil, envolvendo dois escritores: o poeta Olavo Bilac pediu emprestado o automóvel de José do Patrocínio e destruiu o carro do célebre orador abolicionista numa batida antológica. Ora, o chofer barbeiro – chofer passou a motorista – era poeta dos bons e seu nome completo formava um dodecassílabo: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Chama-se dodecassílabo o verso de doze sílabas, também denominado alexandrino, em homenagem ao poeta francês Alexandre du Bernay, autor de Le Roman d'Alexandre,  canção francesa em forma de gesta, do século XII. Gestas eram poemas que celebravam grandes feitos.

Voltemos à “última flor do Lácio”, a língua portuguesa, uma das filhas do latim, que tem entre suas irmãs, entre outras, a espanhola, a italiana, a francesa. É inculta por descuido de seus filhos, mas é bela porque todos reconhecem a delicadeza de suas expressões, principalmente na fala, dadas as contribuições que recebeu dos novos falantes de além-mar, no Brasil, como na África e na Ásia.

A região do Lácio, localizada às margens do mar Tirreno, na Itália, foi subjugada pelos romanos no século IV a.C. Uma boa mostra de quanto a última flor do Lácio continua inculta são os programas apresentados no rádio e na televisão  no horário eleitoral gratuito, no varejo e no atacado.

E outros exemplos – no caso, maus exemplos – procedem de muitos de nossos políticos, desde há alguns anos cada vez mais expostos em programas de rádio e de televisão.

Não será o caso de estipular algum tipo de sanção para a falta de decoro no trato com o instrumento por excelência do exercício de suas funções? Afinal, além de maltratar a língua-mãe, cometendo crimes de lesa-língua, muitos políticos fazem isso impunemente, em nome de milhões de brasileiros, a quem representam no Legislativo ou em nome de quem governam no Executivo. Infelizmente nem o Judiciário está livre de ofensas à língua-mãe. Basta uma pesquisa em petições, denúncias, defesas e sentenças para comprovar que, conquanto os erros não sejam tão bárbaros como nos dois poderes, os tropeços na língua não são exceções.

* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.



Sombra

* Por Edgar Allan Poe

Na verdade, embora eu caminhe
através do vale da Sombra...

Davi: Salmos.

VÓS QUE ME LEDES por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro.

O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno.

O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o pressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.

Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas.

Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros.

Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo – que era histérico –, e cantávamos as canções de Anacreonte – que são doidas –, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer.

Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano.

Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável.

Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: "Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte". E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.

* Poeta e escritor norte-americano, criador dos contos policiais e de terror