sábado, 31 de dezembro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Povo dinâmico e talentoso.

Coluna Direto do Arquivo – Solange Sólon Borges, poema “Movimento 2”.

Coluna Clássicos – Affonso Romano de Sant’Anna, crônica, “O vôo da águia”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, relato de viagem, “Chegando a Iquique”..

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica “A insustentável irreversibilidade do ser”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, crônica “O dia do juízo sobre nossa cultura?”.



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Povo dinâmico e talentoso

Os maias, aos quais se atribui uma suposta “profecia” prevendo o fim do mundo para 21 de dezembro de 2012, se constituíram num povo dinâmico e de múltiplos talentos, nas artes, na ciência, na arquitetura e nos mais variados campos de atividade. E isso em uma época em que a maioria, no mundo, mal saía da era da pedra lascada para a de pedra polida, salvo poucas e honrosas exceções. Há quem os considere uma ramificação dos míticos atlântidas ou mesmo os próprios que teriam conseguido escapar da hecatombe do chamado “continente perdido”, que teria sido tragado pelo mar, entre 12.000 e 10.000 AC, ou seja, no final de uma das tantas eras glaciais da Terra.

Foram excepcionais astrônomos. Entre seus vários feitos, cite-se, por exemplo, o desenvolvimento de um sistema de contagem do tempo, isto é, de um calendário, muito mais evoluído do que o criado pela maioria dos povos. Era tão bom (se não melhor) quanto o grego e o romano, criados bem depois do seu. Além do que, os maias dominavam a matemática e faziam cálculos complicadíssimos com seu misterioso esquema de numeração.

Entre seus legados astronômicos, está uma tabela de eclipses lunares e solares que vai até o ano 3.000 da nossa era (o que contradiz com a “profecia” que lhes é atribuída, de que nosso mundo acabaria, ou acabará em 2012). Essa relação é sumamente precisa, como se os cálculos necessários tivessem sido feitos pelos mais modernos e sofisticados supercomputadores da atualidade. Tanto, que os astrônomos atuais não encontraram nela a menor falha. Todos os eclipses previstos, inclusive os mais recentes, os deste ano, ocorreram de fato e nas datas assinaladas.

Ao contrário do que os historiadores (não se sabe baseados no quê), tentam nos passar, ou seja da ideia de um povo supersticioso, ignorante e cruel, os maias eram alegres, cultos e bem informados. Apreciavam o esporte, as artes (principalmente a pintura e a escultura) e tinham uma cultura como poucos tinham naqueles tempos tão remotos e atrasados. Quanto mais pesquiso sobre esse povo, maior é o meu fascínio e espanto. Mas, também, crescem exponencialmente minha admiração e meu espanto pela forma misteriosa como seu império se dissolveu. O que aconteceu? É um mistério intrigante, que dá margem a inúmeras hipóteses e fantasias, sem que haja qualquer evidência concreta a fundamentá-las.

Nas artes, ou seja, na pintura e na escultura, as fontes de inspiração dos artistas maias eram muito diferentes das dos europeus e dos povos da Ásia. Não eram a caça, as guerras ou a natureza. Eram seres fantásticos, oníricos, que eles cultuavam como divindades. Os vestígios que deixaram para a posteridade indicam que eles tinham vida metódica, regrada e tranqüila e sugerem que, se travaram algumas guerras, estas teriam sido raríssimas e de caráter meramente defensivo.

Os pesquisadores localizaram, intactas, sob densa vegetação, centenas de pequenas cidades de pedra dos maias, ao longo de vasta área territorial, notadamente do México, da Guatemala e da antiga Honduras Britânicas, atual Belize. Chama a atenção a perícia de seus arquitetos e, sobretudo, dos seus construtores. As edificações são sólidas, harmoniosas e esteticamente belas.

Uma das obras mais espetaculares que deixaram é a Grande Pirâmide de Kukulcan, em cujo topo ficava o trono do Jaguar Vermelho. Há várias hipóteses sobre esse título honorífico. Alguns entendem que era a forma como o imperador era designado. Outros, que seria a designação do sumo sacerdote. Uma terceira corrente acha que uma só pessoa ocupava essa função, simultaneamente, de caráter tanto político, quanto religioso.

Esse magnífico monumento foi construído na bela cidade maia de Chichen-Itzá, na Península de Yucatã (aquela projeção de terra vizinha da Guatemala e de Belize), no extremo sul do México. Mas os talentos desses magníficos habitantes pré-colombianos das Américas não se restringiam, apenas, à pintura, escultura e arquitetura. Ou à matemática e à astronomia. Por se tratar de um povo agricultor, que plantava seu próprio alimento (em contraposição aos que viviam da caça, da pesca e da coleta de frutos), tinham um cuidado muito especial com a água, que lhes era crucial.

Os maias desenvolveram sofisticadas técnicas de irrigação em suas lavouras. Construíram aquedutos e canais para transportar o precioso líquido das fontes, não raro muito distantes, até os locais em que era necessário e utilizado.

Para o leitor ter uma idéia quanto à perícia dos seus “engenheiros hidráulicos”, basta dizer que os sistemas de irrigação que criaram estão sendo resgatados há já bom tempo e aplicados por engenheiros-agrônomos das Nações Unidas, com absoluto sucesso, em países de terras áridas, com resultados positivos surpreendentes. São técnicas consideradas inovadoras e revolucionárias, mas que foram desenvolvidas vários séculos antes do nascimento de Cristo e por um povo tido e havido como “selvagem”, supersticioso e ignorante pelas pessoas mal-informadas e/ou alienadas.

Boa leitura.

O Editor.




Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Movimento 2


* Por Solange Sólon Borges


Em minha embriaguez, o mar é um oásis.
Chego mais perto de mim:
sou ainda mais profunda.
A alma foi moída por facas
sem alma e lágrimas.

Peixinhos vorazes vêm morder
e espicaçar minha superfície.
Nesse silêncio perfeito
ele está prestes a anunciar
quando se conhece o homem
em suas raízes.

Sinto-me iluminada.
Que as marcas da dor
são frias, que o dorso do mar
se move em intensa meditação,
que seu pêlo se eriça:
é o poder exclusivo.

Amei sua musculatura.
Porque amar é tão urgente
que me ultrapassa.
É luminescência.

* Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.






O vôo da águia

* Por Affonso Romano de Sant'Anna

Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa tipo "propostas para um novo milênio", como o fez Ítalo Calvino. Mas às vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos. Ei-lo:

"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.

Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.

Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.

A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos."

Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".

Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos inunda com sua luz.

Este texto vale mais que mil ilustrações.

Sei como é difícil uma nova ou surpreendente idéia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.

A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.”

Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas de sua personalidade.

Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.

Já mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.

O ano está começando.

Mais grave ainda: um século está se iniciando.

Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.

Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.

Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.

Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.”

Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.

Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.

Então a águia, digamos, acabou de descasar.

(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)

Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.

(Tem que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)

Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.

(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)

Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.

(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)

Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.

(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)

Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.

Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.

Época de metamorfose.

Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.

Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.

Mas que fique sempre no azul o imponderável vôo da águia.

Texto extraído do jornal “O Globo”, Segundo Caderno, edição de 03/01/2001, pág. 8.

• Poeta e escritor






Chegando a Iquique

* Por Urda Alice Klueger

(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006)


Então, 10 quilômetros antes de chegarmos à cidade seguinte, estava lá a garrafa de Coca-Cola.

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Num país como aquele, de leveza, beleza, colorido e mistérios, acho que fica bastante complicado para o Capital mostrar quem é que manda (ou pensa que manda). Assim, 10 quilômetros antes de cada cidade chilena, pelo menos na parte que conheci, o Capital tem que botar a sua marca, tão forte como um cachorro que demarca seu território em todos os postes do entorno. Então, 10 quilômetros antes há uma grande, enorme garrafa de Coca-Cola, creio que de uns 10 metros de altura, com uma placa indicando: “Cidade tal – 10 km”. Dessa vez a cidade era Iquique, e a marca estava ali entre o mar e o deserto bem como tinham estado os mistérios. Bem como o cachorro e o poste.
Passou a haver alguns vestígios de que haveria uma cidade: alguém andava fazendo tentativas de fazer viver no deserto uns pobre fiapos verdes que talvez um dia se tornassem árvores. Alguém construíra ... UM CAMPO DE GOLFE na areia colorida e revolta do deserto – quem seriam os fanáticos por golfe que jogariam naquele lugar? Aquilo era muito estranho para mim – na minha cabeça, campos de golfe eram sempre feitos de grama verdinha e bem aparada.
Para quem anda a 110 km/h, os 10 km que faltavam para Iquique passaram num instante, e daí a pouquinho estacionávamos em luxuoso posto de gasolina onde harleyros chilenos já nos esperavam, naquela cidade balneária tão bonita, cercada por detrás por uma duna tão imensa que se pode pular de asa delta do alto dela. Se um dia aquela duna começar a se mexer, penso que Iquique sumirá do mapa rapidamente, apesar de ser uma cidade bastante grande. Quem nos esperava era o harleyro Francisco Martinic com sua esposa e mais outro companheiro, e eles nos prestaram diversos serviços, como fazer uma revisão geral no Land-Rover, por exemplo, além de já ter providenciado reservas de hotel para nós, etc. .
Diria que os donos de Harley-Davidson funcionam como uma confraria, e se um harleyro ou um grupo deles passa por uma cidade ou país onde há outro ou outros harleyros, aqueles fazem tudo para facilitar a vida do viajante. Assim, quando fomos recebidos naquele posto de gasolina por Francisco Martinic e sua gente, diversas necessidades já haviam sido aplainadas para nós. Tudo estava tão bem programado que não tínhamos nada com que nos preocupar. Como ainda era um pouco cedo, e só dali a umas duas horas poderíamos nos apossar dos nossos aposentos no hotel próximo, simplesmente fomos passear. Deixamos as motos num estacionamento e combinamos nos encontrarmos todos, de novo, na hora tal, no lugar tal. E cada um tomou seu rumo, quer dizer, não foi bem assim. Eu tomei meu rumo, mas pelo que soube depois, todos os outros companheiros foram juntos para um shopping-center, e depois fiquei um tanto quanto escandalizada ao saber que os meus amigos tinham ido a Iquique nas garras do consumismo, e no shopping-center haviam comprado coisas que poderiam ter comprado sem problemas no Brasil, como botas e jaquetas. Estaria errada eu ou estariam errados eles? Está aí uma coisa para você decidir, pois quem sou eu, também, para dizer o que os amigos devem fazer? O fato é que dei uma espiada no shopping-center e vi que ele era igualzinho a qualquer outro no mundo, e então retrocedi rápido, fui à vida, fui espiar uma manifestação que estava acontecendo na rua principal, por causa de uma greve de funcionários públicos. Fiquei um bocado de tempo ali, vendo as pessoas e ouvindo os discursos e as palavras de ordem, e entendi que as gentes chilenas eram bastante parecidas com as gentes brasileiras, quando se tratava de tais coisas.
Procurei saber mais, então: havia um museu de Arqueologia naquela cidade? Poxa, se havia, e era até bem perto! Em pleno centro da cidade havia toda uma região que era como uma viagem ao passado, conservada como deve ter sido, talvez, no século XIX ou começo do século XX, com lindas casas perfeitamente conservadas, separadas umas das outras por largos espaços que sugerem que um dia foram jardins, e calçadas e calçamento que também devem ser originais dos tempos das casas – é um visual muito lindo e romântico, e naquela região há uma comprida feira de artesanato ao longo da rua. O museu que eu procurava era um pouco mais adiante.
Uau, que museu! Era dirigido por um padre arqueólogo, com quem conversei um pouquinho, mas que estava muito ocupado. O padre organizara a história daquele oásis habitado há milhares de anos em forma de cenários que se auto-explicavam, e eu não queria mais sair de lá! Só que não podia ficar sempre – havia o encontro com os companheiros, e o meu tempo já estava curto.
Registro que quando nos reencontramos os companheiros estavam preocupados comigo, achando que eu talvez houvesse me perdido. Nossos elos aumentavam, o espírito de família que acabaríamos formando se acentuava. Os seres humanos são solidários.
Hospedamo-nos num lindo hotel que ficava de frente para uma linda praia, com direito a todas à muitas mordomias, inclusive Internet livre, etc. Em pouco tempo eu verificava a minha caixa-postal e escrevia o diário que mandava para o Brasil, e vi-me sem ter o que fazer. Estava num enorme e agradabilíssimo apartamento muito bem bem decorado em cores claras, numa imensa cama onde caberiam umas cinco pessoas, sozinha e isolada como a gente costuma ficar em hotéis. Quando viajo do meu jeito costumo ficar em Albergues da Juventude, onde as amizades acontecem rápida e facilmente, mas aos meus companheiros agradava mais os hotéis. Li um pouquinho de um livro de Teoria Política que levara junto, mas não estava me concentrando. Então fui até os amplos janelões e fiquei a observar o mar, aquela praia rara na costa do norte do Chile, e por fim voltei à Internet. Passei uma mensagem para meu sobrinho que vive em Joanesburgo, África do Sul: “Mteka, entra na página do Hotel Holiday Inn e procura o hotel de Iquique, Chile. No quarto andar, numa das janelas, a tua tia está te abanando.” Coisas que a gente inventa quando não tem o que fazer.

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.


A insustentável irreversibilidade do ser


* Por Clóvis Campêlo

Descartes que me desculpe, mas o mundo é muito mais múltiplo e paralelo do que pregava a sua vã filosofia. E não adianta querer bancar o São Tomé, pois tudo que é sólido sempre se desmancha no ar. Entre as fantasias do real e as realidades do imaginário, portanto, vagamos nós, seres mutantes e modernos. Entre a finitude do momento e a eternidade do virtual, dividimo-nos de forma esquizóide. E não adianta mais chorar sobre o leite derramado, pois o processo talvez seja irreversível.
Como já dizia o guru, não existe segurança nenhuma em nada. Viver é uma extrema e ignorante ousadia, e nem mesmo temos controle algum sobre a chegada e a partida. Simplesmente vagamos. Perdemo-nos constantemente entre montanhas e vales, para nos reencontrarmos nas planícies e nos planaltos. Só sabemos que nada sabemos.
Compartimentar o tempo e mecanizar o pensamento e o raciocínio foram artifícios utilizados inultimente por nós em busca de um patamar mais seguro. Para todos, talvez fosse prudente observar o brilho diferenciado daquela estranha estrela, cuidando, porém, para não alimentarmos uma nova ilusão ou utopia. É muito pequena a distância entre a consciência e o delírio.
Mesmo pensando e pulsando, somos carne de terceira e nos iludimos constantemente com a perspectiva do divino. As nossas pretensões, porém, esbarram nas nossas próprias limitações: não vemos o que queremos, não alçamos vôos panorâmicos, arrastamo-nos pelo chão como vermes quaisquer. Somos seres decapitados e vemos a cada dia cabeça e corpo mais e mais se distanciarem.
Enquanto matéria orgânica, temos a carne como o cerne. É através dela que nos desencontramos com o mundo que imaginamos concreto. E quando esse mundo se desmaterializa, tornamo-nos tornados, energia pura descontrolada e bela, embora periculosa.
Mas, para que tanta verborragia se viver não exige tantas palavras? Se os procedimentos vitais se locupletam e se complementam de forma autônoma e independente? Se os fatos, por si sós, geram fetos de outros fatos? Se a vida é uma ida sem volta e sem escolta, solitária e desacompanhada?
Como diria o poeta em tempos idos, talvez só nos reste a opção de dançarmos um tango argentino!

• Poeta, jornalista e radialista


O dia do juízo sobre nossa cultura?

* Por Leonardo Boff

O final do ano oferece a ocasião para um balanço sobre a nossa situação humana neste planeta. O que podemos esperar e que rumo tomará a história? São perguntas preocupantes pois os cenários globais apresentam-se sombrios. Estourou uma crise de magnitude estrutural no coração do sistema econômico-social dominante (Europa e USA), com reflexos sobre o resto do mundo. A Bíblia tem uma categoria recorrente na tradição profética: o dia do juízo se avizinha. É o dia da revelação: a verdade vem à tona e nossos erros e pecados são denunciados como inimigos da vida. Grandes historiadores como Toynbee e von Ranke falam também do juízo sobre inteiras culturas. Estimo que, de fato, estamos face a um juízo global sobre nossa forma de viver na Terra e sobre o tipo de relação para com ela.

Considerando a situação num nível mais profundo que vai além das análises econômicas que predominam nos governos, nas empresas, nos foros mundiais e nos meios de comunicação, notamos, com crescente clareza, a contradição existente entre a lógica de nossa cultura moderna, com sua economia política, seu individualismo e consumismo e entre a lógica dos processos naturais de nosso planeta vivo, a Terra. Elas são incompatíveis. A primeira é competitiva, a segunda, cooperativa. A primeira é excludente, a segunda, includente. A primeira coloca o valor principal no indivíduo, a segunda no bem de todos. A primeira dá centralidade à mercadoria, a segunda, à vida em todas as suas formas. Se nada fizermos, esta incompatibilidade pode nos levar a um gravíssimo impasse.

O que agrava esta incompatibilidade são as premissas subjacentes ao nosso processo social: que podemos crescer ilimitadamente, que os recursos são inesgotáveis e que a prosperidade material e individual nos traz a tão ansiada felicidade. Tais premissas são ilusórias: os recursos são limitados e uma Terra finita não agüenta um projeto infinito. A prosperidade e o individualismo não estão trazendo felicidade mas altos níveis de solidão, depressão, violência e suicídio.

Há dois problemas que se entrelaçam e que podem turvar nosso futuro: o aquecimento global e a superpopulação humana. O aquecimento global é um código que engloba os impactos que nossa civilização produz na natureza, ameaçando a sustentabilidade da vida e da Terra. A conseqüência é a emissão de bilhões de toneladas/ano de dióxido de carbono e de metano, 23 vezes mais agressivo que o primeiro. Na medida em que se acelera o degelo do solo congelado da tundra siberiana (permafrost), há o risco, nos próximos decênios, de um aquecimento abrupto de 4-5 graus Celsius, devastando grande parte da vida sobre a Terra. O problema do crescimento da população humana faz com que se explorem mais bens e serviços naturais, se gaste mais energia e se lancem na atmosfera mais gases produtores do aquecimento global.

As estratégias para controlar esta situação ameaçadora praticamente são ignoradas pelos governos e pelos tomadores de decisões. Nosso individualismo arraigado tem impedido que nos encontros da ONU sobre o aquecimento global se tenha chegado a algum consenso. Cada pais vê apenas seu interesse e é cego ao interesse coletivo e ao planeta como um todo. E assim vamos, gaiamente, nos acercando de um abismo.

Mas a mãe de todas as distorções referidas é nosso antropocentrismo, a conviccção de que nós, seres humanos, somos o centro de tudo e que as coisas foram feitas só para nós, esquecidos de nossa completa dependência do que está à nossa volta. Aqui radica nossa destrutividade que nos leva a devastar a natureza para satisfazer nossos desejos.

Faz-se urgente um pouco de humildade e vermo-nos em perspectiva. O universo possui 13,7 bilhões de anos; a Terra, 4,45 bilhões; a vida, 3,8 bilhões; a vida humana, 5-7 milhões; e o homo sapiens cerca de 130-140 mil anos. Portanto, nascemos apenas há alguns minutos, fruto de toda a história anterior. E de sapiens estamos nos tornando demens, ameaçadores de nossos companheiros na comunidade de vida. Chegamos no ápice do processo da evolução não para destruir mas para guardar e cuidar este legado sagrado. Só então o dia do juízo será a revelação de nossa verdade e missão aqui na Terra.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Misteriosa civilização.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “Calendário na lixeira”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, microcontos “Pílulas literárias 107”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, crônica, “Que venha mais uma volta”.

Coluna Porta Aberta – Adélia Prado, poema,“Anímico”..

Coluna Porta Aberta – Rubem Alves, crônica “A solidão amiga”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Misteriosa civilização

À simples menção a 2012, boa parte das pessoas, de imediato, associa esse período, o segundo ano da segunda década do século XXI do terceiro milênio da Era Cristã, a um suposto fim do mundo. Praticamente todos os veículos de comunicação, de alguma forma, mencionaram isso. É verdade que nenhum noticiou a sério, como se fosse alguma possibilidade iminente ou mesmo concreta. Alguns citaram essa “profecia” apocalíptica para ridicularizar a idéia, acompanhada de brincadeiras de toda a sorte a respeito. Outros fizeram-no somente a título de informação, de que a versão existe e circula mundo afora.

Para que o assunto ganhasse projeção, a bem da verdade, muito contribuiu o filme catástrofe, dirigido por Roland Emmerich, estrelado por John Kusack, Chiwetel Ejiofor, Amanda Peet, Oliver Platt, Danny Glover, Thandie Newton e Woody Harrelson, que tem justamente esse título: “2012”. Não tardaram a aparecer teorias para justificar essa remotíssima possibilidade (tudo é possível nesse universo de dimensões inconcebíveis, talvez infinitas, com tantas e tamanhas misteriosas forças atuando). A mais popular delas é uma hipotética profecia maia, interpretada de acordo com o gosto e a fantasia de quem a menciona.

A pergunta que há bom tempo ouço por aí, sempre que se menciona essa remotíssima possibilidade do mundo se acabar em 2012 (reitero que, embora não acredite em absoluto que isso irá acontecer, sempre é possível que eu e todos os demais céticos estejamos equivocados), é quem foi esse povo ao qual tanta gente dá tamanho crédito? Quando e onde viveu? O que lhe aconteceu para de uma das mais espantosas civilizações do passado, regredir tanto ao ponto de hoje vegetar em meras e miseráveis comunidades, sumamente carentes, que habitam parte do México e de alguns países da América Central?

Tudo o que se refira aos maias está revestido de inegável mistério, de dezenas e dezenas de questionamentos, de dúvidas e de espanto. Qual a sua origem, por exemplo? Há quem assegure que eles seriam remanescentes do suposto continente perdido, a Atlântida, engolido pelo mar em uma hecatombe talvez sem precedentes na Terra, que teria ocorrido entre 12.000 e 10.000 AC (e que minha intuição, embora sem nenhuma base em provas ou evidências, me cochicha ao ouvido que existiu mesmo e que foi avançadíssima em todos os sentidos). Alguns historiadores, no entanto, acreditam que os maias tenham sido uma ramificação da cultura olmeca que povoou a região entre os anos de 500 AC e 1.150 DC. Outros, ainda, asseguram que sua origem foi muito anterior a esse período. Situam seu apogeu entre 1.500 e 150 AC.

Tanta controvérsia e espanto sobre a origem, ou provavelmente mais, desperta, nos estudiosos, a forma como esse poderoso e florescente império se desagregou. Ao contrário do que ocorreu com os aztecas e os incas, os maias não foram conquistados por ninguém. Sua magnífica civilização simplesmente se dissolveu. Lá um belo dia, sem mais e nem menos, a população de suas cidades as abandonou, intactas, sem sinal de luta ou de qualquer tipo de violência, com os campos arados e semeados (mas jamais colhidos). O que aconteceu? Alguma epidemia? Dissensões políticas? Catástrofe climática? Todas estas, e muitas outras hipóteses têm sido levantadas, sem que haja a mais remota comprovação de nenhuma.

Num ponto, todavia, todos os estudiosos, historiadores, antropólogos, arqueólogos e demais pesquisadores concordam: a civilização maia foi uma das mais espetaculares e assombrosas de todas que já existiram não apenas no chamado Novo Mundo (que a rigor nem é tão novo assim), quanto em qualquer outro lugar do Planeta. Estão aí as cidades que deixaram, relativamente modernas até para os padrões atuais, com suas praças monumentais e seus templos, primores de engenharia. Está aí seu calendário, o mais exato já feito até hoje, tanto ou mais do que o atômico.

Em épocas tão remotas, quando muitos povos mal saíam das cavernas primitivas, o império maia já era dotado de recursos que o restante da humanidade viria a desenvolver, apenas, séculos, quando não milênios depois. Embora os pesquisadores assinalem que seu apogeu se verificou na Era Cristã, há comprovações arqueológicas de que por volta de 1.500 AC –quando no Norte da África e no Oriente Médio Egito e Babilônia constituíam-se em superpotências mundiais e rivalizavam em esplendor e poder – esse povo já se organizara num vasto império que abrangia boa parte do México atual e dos cinco países que formam a América Central. Isso, cerca de 600 anos antes da fundação da cidade de Jerusalém. Ou quase 800 anos antes de Roma ser edificada.

Suas obras, como ressaltei, sobreviveram ao tempo e ao desgaste natural que este causa e estão aí, a comprovar seu talento e sua pujança. Outras civilizações pré-colombianas rivalizaram com o império maia, depois que este se dissolveu, mas nenhuma o superou. Um desses casos foi o dos aztecas, conquistados pelo espanhol Fernão Cortez. Outro, foi o dos incas, na América do Sul, que em seu apogeu controlou parte considerável do continente que se estendia do atual Equador ao extremo Sul do Chile, com população estimada em até oito milhões de habitantes (uma exorbitância na época).

Os historiadores sabem, e nos mínimos detalhes, como se deu o declínio e a extinção dessas duas civilizações, embora as circunstâncias da sua conquista não deixem de ser intrigantes. O mesmo já não se pode dizer em relação aos maias. Por que seus habitantes abandonaram suas casas, seus campos, suas cidades, seus magníficos templos, deixando para trás todos os seus bens?

O mistério, talvez, possa, um dia, ser desvendado caso alguém consiga decifrar as inscrições que seus habitantes deixaram. Por enquanto, a chave dessa decifração continua desafiando os pesquisadores. Ainda não apareceu um Champolion contemporâneo que encontrasse uma “Pedra de Roseta” para lançar luz sobre essa bem elaborada escrita.

No caso dos maias, cabe a caráter a observação feita pelo escritor e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, a respeito da totalidade da população latino-americana: “Nessas nossas terras onde se misturam todas as culturas e todas as idades humanas, a diversidade de vozes parece infinita”. Não só parece. Na verdade, é.

Mas nenhuma dessas vozes lançou ínfima réstia de luz sobre o que levou à desagregação desse que foi dos mais notáveis e florescentes impérios que já existiram no passado. Qual o tipo de tragédia que pôs fim ao império dos maias? Estão aí, a desafiar nossa curiosidade e nossa competência de hábeis investigadores, pistas e mais pistas, representadas por quase intactas, cidades, como Tikal, Uaxactum, Bonampak, Palenque, Copán e Chichén Itzá, entre outras.

Boa leitura.

O Editor.




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Calendário na lixeira

* Por Urariano Mota


Ao passar pela cozinha, os olhos foram atraídos para o saco azul claro pendurado na maçaneta da porta. Lá, brilhando na transparência do plástico, destacava-se um calendário. Coisa mais boba, trivial, direis, um amontoado de garrafas descartáveis, quinquilharias, e no meio delas um calendário de um ano findo. Coisa boba, talvez, mas em outras circunstâncias. Não estivesse nos dias finais desse ano que se vai, e já vai tarde, essa coisa de um calendário jogado ao lixo não seria notada. Pois nesta época, sem querer, estamos sempre mais sensíveis, mais suscetíveis ao passar leve de uma sombra, às superstições, aos assaltos do acaso, porque um ano que se vai é sempre um ano que nos aproxima do nosso último calendário.

Certo, direis, que palavras sombrias, que catilinária mais imprópria para esta época do ano. Seria melhor uma construção assim, ou para ser mais próprio, o período:

“Como por encanto, dezembro foi embora. Como se não houvéssemos transcorrido um espaço, chegamos ao fim deste ano. Queremos todos esquecer os dias, as angústias, as ânsias passadas, e festejar, que é bom, um novo ano. Desejamos e vamos recomeçar de um marco zero de felicidade. Creiam, é possível renascer nas células velhas da nossa história. Estamos todos novos na aparente velha carcaça. Atiremos portanto o calendário, este, sim, velho, atiremos este calendário antiquíssimo ao lixo assim como nos despimos e despedimos desta velha pele, que se vai misturada aos dias puídos das folhinhas dos meses a que jamais tornaremos.”

Difícil é achar o tom justo. O leitor reconhece que as linhas acima são apenas, boa ou má, uma mensagem de Boas Festas. Uma das mensagens, estas, sim, bobas, rituais, que nos desejamos ora crédulos, ora hipócritas, com frequência hipócritas, todos os anos. O calendário que foi ao lixo resiste a tais celebrações. Ele nos pergunta, duro, com a sua folhinha crua de dezembro: - “o que foste, o que fizeste?”. Ou então nos pergunta, se estamos na graça do papel de vítima, que na vida quase sempre quer dizer, aquele que sofre, que sem agir é paciente: - “o que te aconteceu neste ano?”.

Ainda que não façamos um balanço, e balanço, em se tratando da vida, acusa sempre um déficit, um valor negativo em razão do montante superior de perdas, ainda assim somos forçados a lembrar que nem sempre a fraternidade universal nos alcançou, se não neste calendário, pelo menos em outros que o lixo e a reciclagem dos anos levou. Houve com certeza algum 25 ou 31 de dezembro em que, apesar dos fogos e dos gritos de júbilo em torno, nos dissemos, “esta festa não me pertence, para esta comunhão eu não sou convidado”. E sozinhos, certamente ao canto, choramos, o que, na atmosfera da fugaz alegria que se esvaiu no gás do champanhe, foi tomado como um choro de felicidade. Então lembramos que essas datas são, do convívio humano, as mais cruéis. Lembramos Péricles, o desenhista de O Amigo da Onça, que fazia rir o Brasil inteiro com as suas piadas, lembramos Péricles que numa noite assim abriu o gás em seu apartamento fechado. E nos poupou a todos da última piada do seu personagem, o falso amigo sem escrúpulos, ao deixar na porta o aviso: “Cuidado...”.

Lembramos que nesta data, indivíduos solitários sentem-se flagrantemente expulsos de qualquer convívio. Alguns dormem muito cedo, outros se embriagam até a perda da consciência, alternativas precárias de se apagarem do mundo sem suicídio. No Natal, no fim do ano, no consumo, na ceia lauta, farta, como não lembrar A Pequena Vendedora de Fósforos, do imortal Andersen? Como não lembrar o Natal da menininha faminta, enregelada, que sobe ao céu e vira uma estrela? Essas coisas nos vêm nestes dias em que a felicidade se torna um dever, em vez de uma conquista. Como não lembrar que o velho gordo e barbudo não chega para todos, que seus presentes e bondade têm eleitos? Aqui mesmo, próximo a mim, no lixão que é fonte de sobrevivência para os miseráveis, o bom velhinho não se atreveria a caminhar por entre meninos que se misturam a urubus. O bom velhinho sofreria um justo assalto, e, com o devido perdão do espírito fraterno, poderia ser morto e transformado no primeiro peru gordo que esses meninos já comeram.

Lembramos. E como uma das funções da memória é esquecer, o particular esquecemos. E como esquecer é uma forma de não identificar o que vemos, deixamos de compreender. O que será mesmo que nos diz este calendário na lixeira? Talvez que naquele ano houve uma sucessão de luas, de fases, que se repetem em dias diferentes deste que já vai, tarde. Talvez, outra verdade prosaica, que a Terra fez rotação e translação naqueles 12 meses findos. Talvez que o Nilo voltou a encher, que o Amazonas voltou a inundar, que outros fenômenos da natureza, básicos, repetiram-se, naquele ano como neste. Que a periodização de acontecimentos físicos têm repercussões importantes na vida dos homens. Que nessa periodização, vidas vão, vidas vêm. Como num hotel, em que hóspedes novos chegam para ocupar os apartamentos vazios dos que se vão. Então nesse encadeamento, nessa associação, voltamos a compreender. Num hotel, homens chegam, homens partem. Thomas Mann dizia, numa feliz metáfora, que um hotel lembra a morte. Ainda que numa vista geral da memória, num voo à distância, que não individualiza o particular, este calendários nos diz:

“Dias passei contigo. Fizeste planos, modificaste planos, não realizaste planos. Sofreste terríveis provas nesses meses. Riste também. Se não o riso pleno, pletórico, puro, riste alguns segundos nesses 365 dias. Fechaste os olhos para dormir. Ilusão, nas zonas escuras do sono, continuaste em vigília, cavalo negro solto escoiceando sem rumo. Quiseste levantar voo, mas tuas asas eram as de um albatroz pescado, abatido. Sobreviveste, é certo, mas a que preço? Como foste canalha nesses dias. Quanta covardia em troca da ração diária. Quantas mentiras, quantas traições a ti mesmo. Quanto amor submerso, afundado em pântano, que não vicejou na força da flor. E, fundamentalmente, inscreveste o quê nesses dias? Que verdade boa disseste que valesse a pena passar por essas folhinhas? Algum ato bom, bom em seu começo, meio e fim. Que ato bom, em teu prejuízo, te deixou risonho e contente pela felicidade a outros causada? Que solidariedade cometeste para reduzir o teu excedente de carnes, essa gordura que te cobre os ossos? Estive contigo, estiveste comigo, e se um desses dias foi ruim, a noite não foi melhor. A jornada foi longa, muito longa, somente longa”.

Dá-nos vontade de lhe responder, num esconjuro: - Para o inferno, calendário! E com mais ênfase: - Para o inferno, este ano! E somente não lhe respondemos assim porque parte de nós também desceria às profundas. Atados nos sentimos por esse olhar à folhinha no desprezo. Calendário na lixeira? Seria bom, fosse apenas um calendário ao lixo. Nós próprios vamos nesse saquinho plástico.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.






Pílulas literárias 107

* Por Eduardo Oliveira Freire


"SOU REI!"

Realmente, através do olhar daquele indigente, via-se uma realeza.

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TWEET 1

Clarice está linda como sempre, mas parece uma morta viva. Ela diz: “Fome”. De repente, vejo-me perfurar sua cabeça com uma faca.

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TWEET 2

O telefone toca. Atendo e pela respiração sei que é Helena. Desejo-lhe um feliz natal e ela desliga. Curioso, meu celular está descarregado.

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EM OUTRO MUNDO

- Mamãe! Papai disse que sou unicórnio de novo!

-Ele vive num mundo de devaneios, você, só é um menino de chifre.

* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, com Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor






Que venha mais uma volta

* Por Elaine Tavares

O mês de dezembro não foi bolinho. Perdi amigos, uma parte do Campeche se foi, muitas foram as derrotas. E, se voltar no tempo, verei que essas coisas igualmente aconteceram nos demais meses. Não é fácil ser Mariazinha do passo errado. Mas, essa foi minha escolha, então, não há o que lamentar.
Nosso planetinha fez mais uma órbita em torno do sol. E nós com ele. Agora, outra órbita vem, nesse eterno retorno. Poderia desejar tantas coisas incríveis aos amigos e camaradas, mas não sei se devo. A grande aventura humana é esse surpreendente devir, com todas as suas coisas boas e más.
Hoje, enquanto cozinhava senti aquilo do qual fala nosso poeta popular, Odair José: um momento feliz. Mexia as panelas cantando em altos brados a canção sertaneja, de Lourenço e Lourival, “franguinho na panela”, e me emocionava. Porque essa é a doce/triste/bela/cruel realidade de tantos milhões de seres no mundo.
O cachorro Steve Biko acompanhava meu cantar, esparramado no chão. Os gatinhos bebês faziam uma algaravia no meu pé, querendo um naco de qualquer coisa. Bartolina, a gata, dormitava na rede. Zumbi, o gato, lagarteava ao sol. Os homens que amo cuidavam, cada um, de alguma coisa da casa, numa azáfama ruidosa. O sol brilhava, uma leve brisa passava, a comida cheirava um leve e picante cheiro de curry. Os passarinhos cantavam, voejando alegres, invadindo a cozinha. A vida seguia seu indefectível curso.
Aquele foi um momento único, contemplação da mais pura beleza. Um instante, desses que perdura para a eternidade. Nada fora do lugar, tudo pleno. Quando a música silenciou eu soube. É isso que faz com que tudo valha a pena. Um segundo, um instante, um momento de completa felicidade.
Então, é o que desejo a cada um dos amigos. Que possam viver essa plenitude em algum átimo da vida. Porque isso faz valer a caminhada nesse mundo tão cheio de dor e desencanto. Caminhar na beleza, como ensinam os navajos, caminhar na beleza... ainda que seja por um só segundo!
Que venha 2012... Aqui esperamos... Com música, sonhos e força para seguir rasgando as manhãs!

* Jornalista de Florianópolis/SC


Anímico

* Por Adélia Prado


Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorinha conversa.

* Adélia Prado é uma das principais poetisas brasileiras da atualidade, autora de vários livros de sucesso. .


A solidão amiga

* Por Rubem Alves


A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.
Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.
Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali as palavras e os tempos poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“
E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.
E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:
“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“
Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...
A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.
Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.

(Correio Popular, 30/06/2002)

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Antevisão do futuro.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Patrimônio desperdiçado”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica,“Manifesto pela volta do tempo”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Uma companhia para o Ano Novo”..

Coluna Porta Aberta – Adailton Bastos, poema “Amar o mar”.

Coluna Porta Aberta – Frei Betto, artigo, “O ovo da serpente”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Antevisão do futuro

O homem, desde tempos imemoriais, remotíssimos, provavelmente desde que tomou consciência de si e de tudo o que o rodeia, sempre teve um desejo recorrente – que, pessoalmente, considero impossível – que é o de avançar no tempo e prever o que “irá” acontecer no futuro. Mas como, se ninguém sabe sequer se na hora seguinte estará vivo? Achar que isso seja possível é pensar que os fatos, todos os fatos, têm sequência lógica. É não levar em consideração o fator “acaso”. É entender que tudo já está predeterminado e que, para saber o que irá acontecer dentro de uma hora, ou uma semana, ou um mês, um ano, um século, um milênio, basta ter um dom especial para captar do nada esta antevisão.

Que me perdoem os crédulos, mas considero essa crença ridícula. Nem mesmo sei se, caso houvesse essa possibilidade, ela seria benigna e até mesmo útil. Como você se sentiria se soubesse de forma antecipada que no final deste dia, por exemplo, sofreria um grave acidente? “Ah, se soubesse, poderia me prevenir”, dirá o sujeito crédulo, para justificar sua pretensão, julgando que aquilo que afirmo é o maior dos disparates. Mas... poderia?

Raciocinem comigo. Se pudesse (ou se puder), não estaria fazendo nenhuma previsão, e muito menos uma profecia. Detectaria, apenas, um “perigo” potencial (o que nem mesmo requer que se tenha um dom especial para se saber, basta contar com bom senso).

Qualquer pessoa minimamente sensata sabe, por mais burra que seja, que se pular de uma ponte para o abismo, sem nada que o antepare, irá se esborrachar no chão. Ou que, se puser a mão no fogo, sofrerá graves queimaduras. E vai por aí afora. Para que isso se tratasse mesmo de uma previsão, e não apenas de um temor ou de algo ditado pela experiência, teria que acontecer exatamente como previsto. Ou seja, teria que ser inevitável. E, neste caso, o sujeito sofreria duas vezes: ao prever o acidente do qual não poderia escapar e tão logo este ocorresse. Portanto, é muito bom que não se possa saber antes o que irá ocorrer mais adiante.

Coisas diferentes (mas não muito) são as extrapolações. Mesmo estas, vêm acompanhadas de uma série de condições, de muitos “ses”. Se porventura você tiver dados rigorosamente exatos em mãos, poderá, em determinadas circunstâncias (e exclusivamente naquelas), “prever”, com razoável margem potencial de acerto, que irá ocorrer um resultado “x”. Isto “se”... Se nenhum fator for alterado, por exemplo. Ou se os dados estiverem mesmo rigorosamente corretos. Ou se as circunstâncias forem as adequadas, e vai por aí afora.

Todo este longuíssimo preâmbulo tem por finalidade introduzir um assunto que pretendo tratar com você, paciente leitor, com a maior objetividade que meus conhecimentos (que sequer são além da média) permitem, nos próximos dias. Refere-se a uma suposta “profecia maia” que preveria o fim do mundo (no caso, do planeta Terra) em 2012. Alguns, na hipotética interpretação do que os gurus dessa outrora notável civilização norte e centro-americana “teriam previsto”, chegam ao requinte de fixar até data exata para que isto ocorra: 21 de dezembro de 2012. Só faltou marcarem o horário para isso.

Existe a possibilidade do mundo acabar? Existe! Não especificamente nesta data. Isto pode ocorrer tanto hoje, quanto em alguns milhões ou bilhões de anos. E o que me dá a certeza dessa possibilidade de extinção? A lógica. Todos os dias competentes e esforçados astrônomos observam explosões de estrelas, ocorridas há milhões, quiçá bilhões de anos e que, dada a inconcebivelmente imensa dimensão do universo, só agora a visão desses cataclísmicos acontecimentos é detectada por seus cada vez mais potentes telescópios, mesmo com a luz percorrendo 300 mil quilômetros por segundo.

Ora, se isso ocorre alhures, com tamanha freqüência e há tanto tempo, por que o nosso sol – e, por conseqüência, seu séquito de planetas – escaparia desse destino? Não escapará. Só que ninguém pode prever quando isso irá ocorrer. E muito menos com exatidão. Isso é para lá de ilógico. Se essa suposta profecia, por um desses absurdíssimos acasos, se confirmar, ninguém irá criticar, claro, estas minhas sensatas contestações, pois não restarão nada e ninguém para tal. Muitíssimo menos existirá este texto. A possibilidade concreta disso ocorrer, todavia, beira ao zero absoluto.

Há uma corrente, no entanto, que esposa a tese de que os maias não previram exatamente o fim do mundo, mas apenas o término de um ciclo e o início de um novo. Acessando o blog “Porque 2012”, leio a seguinte explicação sobre a versão catastrófica da suposta previsão: “Segundo a cosmologia Maia, o Planeta Terra possui 5 grandes ciclos ou eras, cada um com cerca de 5.125 anos. Para eles, 4 já passaram. ‘Os 4 ciclos anteriores terminaram em destruição. A profecia maia do juízo final refere-se ao último dia do 5º ciclo, ou seja, 21 de dezembro de 2012’ diz Steven Alten”, escritor norte-americano de ficção científica.

E o texto do referido blog prossegue: “O quinto e atual ciclo também terminará em destruição? O que irá desencadeá-la? A resposta pode estar em um raro fenômeno cósmico que os maias previram há mais de 2.000 anos. ‘A profecia maia para 2012 baseia-se em um alinhamento astronômico. Em dezembro de 2012, o sol do solstício vai se alinhar com o centro de nossa galáxia. É um raro alinhamento cósmico. Acontece uma vez a cada 26.000 anos’ diz John Major Jenkins, autor do livro Maya Cosmogenese 2012”
.
E o texto do blog conclui a explicação desta forma: “A cada 26.000 anos o sol se alinha com o centro da Via Láctea. Ao mesmo tempo ocorre outro raro fenômeno astrológico, uma mudança do eixo da terra em relação à esfera celeste. O fenômeno se chama Precessão. A data exata disto tudo é 21 de dezembro de 2012. ‘A Terra oscila lentamente sobre seu eixo mudando nossa orientação angular em relação a galáxia. Uma precessão completa leva 26.000 anos’" . E bla-bla-blá, bla-bla-blá. Você crê nisso tudo? Eu não!

As coisas vão acontecer dessa forma? E, especificamente, em 21 de dezembro de 2012? Ouso afirmar que não. A “tese” bem que se presta a uma boa história de ficção científica, mas só a isso. Como ciência, todavia, não se sustenta. E quem foram, afinal, esses maias para que suas profecias (se é que as fizeram de fato) ganhem tanta credibilidade e sejam levadas a sério? Sobre isso, e outras considerações, convido-os a refletirem comigo nos próximos dias.

Boa leitura.

O Editor.



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Patrimônio desperdiçado

* Por Pedro J. Bondaczuk

O Brasil possui as maiores reservas do Planeta de dois bens que serão sumamente escassos ainda neste milênio (na verdade, já são) e que, portanto, se tornarão bastante preciosos: água potável e madeira.
Todavia, em vez de preservar ambos, com vistas a uma posição vantajosa, internacionalmente, age-se em sentido inverso. Poluem-se mananciais, com mercúrio utilizado pelos garimpeiros e agrotóxicos usados sem controle ou critério nas fazendas. E desmata-se com uma fúria destrutiva desmedida, desperdiçando de maneira tola o que pode ser a redenção do País em curto espaço.
O princípio básico de economia, ensinado em qualquer curso superior, diz que só aquilo que é escasso é valioso. Este é o motivo do ouro ser tão procurado e o simples pedregulho não. O critério do valor de um e outro mineral é o da escassez. Quem tiver em abundância aquilo que os outros não possuírem, mas precisarem, certamente vai enriquecer. É um princípio lógico.
Mas até aqui, a questão da preservação das nossas florestas tem sido tratada com passionalismo e irresponsabilidade. Não se concebe que alguém possua determinada riqueza e no entanto viva na indigência. Só que há enorme diferença entre uso controlado e prudente e desperdício. E é isso o que o Brasil está fazendo com seus recursos naturais. Está sendo pródigo. Está desperdiçando.
Em uma tentativa de preservar esse patrimônio natural de valor inestimável, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou, em julho de 1996, um pacote de preservação ambiental. Não sei se seus sucessores tomaram medidas semelhantes ou mais abrangentes. Acredito que não. Dias atrás foi aprovado novo Código Florestal que desagradou a “gregos e troianos”.
A questão sequer é a existência ou não de lei, mas de capacidade do Estado de fazer com que ela seja cumprida. E as dimensões continentais do País, aliadas à corrupção conhecida eufemisticamente como "jeitinho", dificultam uma fiscalização eficaz. Ou a punição dos infratores.
Desde 1994, é desmatada, na Amazônia, em média, uma área anual do tamanho do Burundi, na África: 14.896 quilômetros quadrados de madeira são retirados, sem reposição (ora mais, ora menos, mas sempre em torno disso). Com essa devastação, 11,8% da maior floresta tropical do mundo (e virtualmente a única que ainda restou, face às devastações na Ásia, notadamente na Malásia, Indonésia e Birmânia) já foram postos no chão.
Como porcentagem costuma ser ilusória, o entendimento fica mais fácil com comparações. Os 470 mil quilômetros de matas afetados são maiores do que o território da Alemanha unificada (356.957 quilômetros quadrados) e se aproxima da área da França (que é de 543.965 quilômetros quadrados).
E para onde vai essa madeira, da qual o chamado Primeiro Mundo é absolutamente carente? Exportada legalmente não é, já que todo esse volume não consta das pautas oficiais de exportação. É contrabandeada em boa parte. É, portanto, pilhada. E uma parcela vira fumaça, nas queimadas irresponsáveis e criminosas, que além de contribuírem para o desmatamento, calcinam a terra e enfraquecem sua fertilidade.
Os benefícios da Amazônia estão ao nosso dispor para uso e para ajudar a sanar nossa miséria. Mas não para desperdício. Mas não para favorecer contrabandistas. Mas não para a produção de desertos. É preciso que a questão preservacionista seja tratada sem retóricas demagógicas e sem ideologismos. Tem que ser encarada pelo aspecto econômico, ou seja, patrimonial. Afinal, economia é a administração da escassez. E água e madeira são cada vez mais escassas no mundo.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk






Manifesto pela volta do tempo

* Por Marcelo Sguassabia


O sujeito que assina este mal-arrumado libelo, em nome de toda a humanidade (à exceção talvez dos anciãos com mais de 100, cheios de saúde e paradoxalmente fartos de viver), vem a público exigir que o tempo volte o mais rápido que puder. E que fique claro que não me refiro à volta no tempo; o que reivindico é o retorno do próprio tempo, calmo e humilde, à vida das pessoas.

É espantoso como tudo, há uns poucos anos, levava muito mais tempo para ser feito. E quanto mais vagaroso era o processo, mais tempo, estranhamente, sobrava pro cidadão.

Criava-se o porco no quintal. Matava-se o bicho. Jogava-se água fervente sobre o pêlo, a ser raspado na navalha. Abria-se a barrigada, separava-se as partes, temperava-se e deixava-se da noite para o dia mergulhado em marinada. Providenciava-se a lenha, acendia-se o fogo, cozinhava-se lentamente e degustava-se mais lentamente ainda. Era um tempo de sobra que não acabava nunca mais, de enjoar de fazer nada. De botar cadeira na calçada, chamar o vizinho pra uma breja e fomentar o diz-que-diz-que. O tempo era artigo barato, era preciso arrumar um jeito de se livrar dele. De matá-lo de alguma forma antes que ele matasse a todos de tédio. Tempo havia para debruçar na janela, jogar paciência, montar quebra-cabeça. Fazia-se a sesta, lia-se pela satisfação de ler, não pela urgência de manter-se up-to-date.

Voltando à feijoada, dessa vez à rala, insípida e inodora versão de hoje – em lata e aquecida no microondas. Não se presta atenção no que se está comendo, pois no tempo em que se engole a gororoba ao molho de flavorizantes vê-se a TV, atende-se ao celular, confere-se o extrato, pensa-se nos termos do relatório a ser entregue o mais tardar às 12h30. E são 12h20, meu Deus do céu.

Se aqui é assim, imagine lá, do outro lado do mundo. Valorizar o tempo é com os japoneses. Ninguém tem know-how mais apurado. Por algum mecanismo ancestral, sabem os nipônicos desde tenra idade que tempo é recurso não-renovável, e conseqüentemente precisam consumi-lo da mais produtiva maneira. Lá na placenta, enquanto espera ficar pronto pra vir ao mundo, o japonesinho deve aproveitar o líquido amniótico pra cultivar algum legume hidropônico. Ou já reserva aquela água que o rodeia pra abrir sua lavanderia quando nascer. Talvez ache oportuno estudar a anatomia da mãe e já ir se afiando para o vestibular. Pelo menos não vai zerar em biologia...

Melhor ainda que voltar, amigo tempo, seria ver você parado. Isso mesmo. Nem correr, nem andar, nem se arrastar. Simplesmente parar, perder a função de tempo e eternizar-nos a todos.

E vamos ficar por aqui, porque o tempo do leitor é curto e seria uma lástima continuar a desperdiçá-lo. Ainda mais comigo.


• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)







Uma companhia para o Ano Novo

* Por Gustavo do Carmo

Dez... Nove... Oito...

— Sete... Seis... Cinco...

— Quatro... Três... Dois... Um...

— FELIZ ANO NOVOOOO!!!!!

Gilmar, Lopes e alguns amigos celebram juntos a entrada do ano novo. Estouram uma garrafa de champanhe que bebem no gargalo. Cantam em coro a tradicional música “Adeus Ano velho! Feliz Ano Novo! Que tudo se realize no ano que vai nascer...”. Assistem à queima de fogos feita na praia. Os fogos de artifício fazem os mais diferentes desenhos. E também os tradicionais coqueiros e corações.

Passada a primeira meia hora do novo ano, o espetáculo pirotécnico se encerra. Lopes e seus amigos finalmente terminam o que tinham começado: espancam Gilmar a socos e pontapés como um acerto de contas pela dívida de jogo que o rapaz tinha com o cassino de Parlattore, chefe de Lopes que o mandou seqüestrar o caloteiro e acertar as contas em uma ilha deserta.

Lopes e seus capangas deixam a ilha na lancha do patrão. Gilmar, com o rosto inchado e ensangüentado agoniza feliz, pois teve companhia para receber a chegada do ano novo, o que não acontecia há dez anos, desde que foi expulso de casa.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.






Amar o mar

* Por Adailton Bastos

Os meus olhos alcançam
um risco no horizonte...
penso que:
se amar o mar é
tão profundo que no fundo,
afundo nos
segredos teus,
meus braços não te abraçam...
apenas sinto teu perfume,
ouço tuas vozes
golpeadas por ondas
na praia,
a brisa afaga
meu corpo,
amar-te embriaga
e me faz
sentir pequeno,
deixa-me de
ressaca,
amar-te não há tédio pois:
poetas versaram sobre ti,
músicos cantaram,
guerreiros navegaram,
crianças brincaram,
amar é como o mar
não dá pra abraçar,
não dá pra guardar,
somente lembrar e...
afogar!

• Poeta, professor e escritor


O ovo da serpente

* Por Frei Betto

Não é preciso ser economista para perceber a grave turbulência que afeta a economia globalizada. Se a locomotiva freia, todos os vagões se chocam, contidos em seu avanço. E o Brasil, apesar do PIB de US$ 2,5 trilhões, ainda é vagão...
Todo ano, desde 1980, cumpro a maratona de uma semana de palestras na Itália. Desde o início deste novo milênio eram evidentes os sintomas de que a próxima geração não desfrutará do mesmo nível de bem-estar dos últimos 20 anos. Nenhuma economia podia suportar tamanho consumismo e a monopolização crescente da riqueza. Agora, a realidade o comprova. A carruagem da Cinderela virou abóbora. A União Européia patina no pântano...
Muitas são as causas da atual crise econômica. Apontá-las com precisão é tarefa dos economistas que não cultivam a religião da idolatria do mercado. Como leigo no assunto, arrisco o meu palpite.
Desde os anos 80, a especulação se descolou da produção. O mundo virou um cassino global. Sem passaporte e sem vistos, bilhões de dólares trafegam livremente, dia e noite, em busca de investimentos rentáveis. Enquanto o PIB do planeta é de US$ 62 trilhões, o cacife do cassino é de US$ 600 trilhões. A famosa bolha... Haja papel sem lastro!
A lógica do lucro supera a da qualidade de vida. A estabilidade dos mercados é, para os governos centrais, mais importante que a dos povos. Salvar moedas, e não vida humanas.
Todos sabemos como a prosperidade da Europa ocidental foi alcançada. Para se evitar o risco do comunismo, implantou-se o Estado de bem-estar social. Combinaram-se Estado provedor e direitos sociais. Reduziu-se a desigualdade social, e as famílias de trabalhadores passaram a ter acesso à escolaridade, assistência de saúde, carro e casa própria.
Em contrapartida, para não afetar a robustez do capital, desregularam-se as relações de trabalho, desativou-se a luta sindical, sepultou-se a esquerda. Tudo indicava que a prosperidade, que batia à porta, viera para ficar.
Não se deu a devida importância a um pequeno detalhe aritmético: se há duas galinhas para duas pessoas, e uma se apropria das duas, a outra fica a ver navios... E quando a fome bate, quem nada tem invade o espaço de quem muito acumulou.
Assim, os pobres do mundo, atraídos pelo novo Eldorado europeu, foram em busca de um lugar ao sol. Ótimo, a Europa, como os EUA, necessitava de quem, a baixo custo, limpasse privadas, cuidasse do jardim, lavasse carros...
A onda migratória viu-se reforçada pela queda do Muro de Berlim. A democracia política chegou ao Leste europeu desacompanhada da democracia econômica. Enquanto milhares tomaram o rumo de uma vida melhor no Ocidente, seus governos acreditaram que, para chegar ao Paraíso, era preciso ingressar na zona do euro.
A Europa entrou em colapso. A culpa é de quem? Ora, crime de colarinho branco não tem culpado. Quem foi punido pela crise usamericana em 2008? Os desmatadores do Brasil não estão sendo anistiados pelo novo Código Florestal?
Culpados existem. Todos, agora, se escondem sob a barra da saia do FMI. E nós, brasileiros, sabemos bem como este grande inquisidor da economia pune quem comete heresias financeiras: redução do investimento público; arrocho fiscal, desemprego, aumento de impostos, corte de direitos sociais, punição a países com déficit público etc.
O descaramento é tanto que o pacote do FMI inclui menos democracia e mais intervencionismo. Quando Papandréu, primeiro-ministro da Grécia, propôs um plebiscito para ouvir a voz do povo, o FMI vetou a proposta, depôs o homem e nomeou Papademos, um tecnocrata, para o seu lugar. Também o governo da Itália foi ocupado por um tecnocrata. Como se o fim da crise dependesse de uma solução contábil.
A história recente da Europa ensina que a crise social é o ovo da serpente – chocado pelo fascismo. Sobretudo quando a crise não é de um país, é de um continente. Não adiantam mobilizações em um país, é preciso que elas se expandam por toda a Europa. Mas como, se não existem sindicalismo combativo nem partidos progressistas?
As mobilizações tipo Ocupem Wall Street servem para denunciar, não para propor, se não houver um projeto político. Quem se queixa do presente e teme o futuro, corre o risco de se refugiar no passado – onde se abrigam os fantasmas de Hitler e Mussolini.

• Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de "Conversa sobre fé e ciência” (Agir), entre outros livros.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Poesia e verão.

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica “Médicos também adoecem”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, crônica “Três narrativas de Tolstói”..

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema “Tua”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Bórgia, crônica “Uma vida bem escrita”.

Coluna Porta Aberta – Jair Lopes, artigo “Seita exótica”


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Poesia e verão


A poesia é intemporal (ou atemporal, como queiram), certo? Sempre entendi que fosse. Todavia, minha convicção começa a vacilar a esse respeito. Vejam o caso das quatro estações do ano. Há inúmeros poemas sobre a primavera (principalmente), outono e inverno, que se prestam, a caráter, até para criativas metáforas. E o verão? Sempre achei que fosse, igualmente, assunto recorrente de poetas, notadamente deste nosso “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”. Dia desses, todavia, descobri, surpreso, que não é bem assim.


Tudo começou num encontro informal com um grupinho de amigos, todos escritores (portanto amantes inveterados de literatura) e a maioria poetas. Conversa vai, conversa vem e não tardou que viesse à baila nosso tema predileto, aquele que nos identifica e une. Nem preciso dizer qual é, não é mesmo? Só poderia ser um. E, de fato, era. Literatura, sem dúvida nenhuma. Como um assunto puxa outro, logo alguém observou que o verão (e fazia um calor desgraçado naquele momento) é tema até que raro na poesia. Discordei. E para posar de sabido, citei, de imediato, a magnífica composição de Tom Jobim, “As águas de março”. Fui mais longe, ousei cantarolar os primeiros versos, com meu vozeirão de locutor, superdesafinado, que não se presta nem um pouquinho ao canto.


Choveram protestos. Aliás, foram gerais. A princípio pensei que meus amigos estavam protestando “só” por causa da minha pífia interpretação. Não era. Ou pelo menos, não era “só” por isso. “Calma lá, não estamos nos referindo à MPB, mas à poesia”, alguém esclareceu. “Mas como?!”, perguntei admirado, “vocês não consideram ‘As águas de março’ poesia?!”, exclamei, sem esconder irritação e desapontamento. “Claro que é, mas não é a esse tipo que estamos nos referindo”, alguém respondeu. E outro amigo colocou outra restrição a mais: “Também não vale citar poetas nordestinos que tratem do assunto de seca”.


Tentei lembrar-me de algum poema que tratasse de verão, mas não me veio nenhum à memória. Pedi um tempo e prometi pesquisar a respeito, mesmo com tantos afazeres programados. Daria um jeito. E, de fato, dei. Pesquisei cerca de um milhar de poemas, de uns 300 poetas diferentes e não encontrei quase nenhum que versasse sobre o verão. Claro que se trata de um universo muito pequeno para pesquisa, mas creio que, se o tema fosse muito explorado, eu encontraria uma quantidade maior de composições.


Para não me dar por vencido, no encontro seguinte puxei de cara o assunto. E, de imediato, li este poema de Mário Quintana:


O dia abriu seu pára-sol bordado

O dia abriu seu pára-sol bordado
de nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
minuciosamente desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
a Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia.
Passou, ficou a olhá-la admirado.

Pus meus sapatos na janela alta,
sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
pra suportarem a existência rude!

E eles sonham imóveis, deslumbrados,
que são dois velhos barcos, encalhados
sobre a margem tranqüila de um açude.


Quando terminei a leitura, veio a indefectível pergunta: “Onde Quintana se refere ao verão?”. Respondi: “Não o cita explicitamente, mas o deixa implícito”. “Você encontrou só isso?!”, alguém, mais objetivo (ou mais chato?) perguntou. Menti: “claro que não! Encontrei dezenas, só não tive tempo de copiar”. Como não sou bom mentiroso, percebi que não consegui convencer ninguém. Tentando ser mais convincente, li este outro poeminha (o diminutivo refere-se à extensão, claro, não à qualidade), igualmente de Mário Quintana:

Calçada de verão

Quando o tempo está seco,
os sapatos ficam tão contentes
que se põem a cantar.


Desta vez ninguém me questionou sobre onde estava a referência à estação do ano. Estava no próprio título. O questionamento, porém, foi mais objetivo: “Por que só poemas de Quintana?”. Menti de novo: “Por que ele, além de meu conterrâneo, é um dos meus poetas preferidos”. A mentira, óbvio, não estava nas duas justificativas. Quintana, de fato, é meu conterrâneo e é um dos escritores que mais admiro e que me inspiram. Estava no fato de sugerir que não apontei outros nomes só por esse motivo. Na verdade, não os encontrei. Não achei um único poema que falasse de verão e que não fosse do meu ilustre conterrâneo. Devem existir, claro, e muitos. Mas quais? Para não me dar por vencido, tive o descaramento de apresentar aos amigos este outro poema de Mário Quintana – que li no Caderno de Sábado do jornal “Correio da Manhã” de Porto Alegre, publicado em 8 de maio de 1976 e que tive o capricho de copiar – que versa sobre como surge a inspiração:

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo,
como de um alçapão.
Os poemas vêm, os poemas vão,
não têm pouso ou porto,
alimentam-se
um instante em cada par de mãos
e partem.
O que eles te dão
é o inesquecível, o maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

E o poeta não tem razão? Claro que tem. Quanto aos poemas que tratem do verão, prometo, oportunamente, refinar a pesquisa e tão logo encontre poemas sobre o tema (caso tenha êxito, claro) revelá-los aos amigos questionadores e, com certezas, para você também, paciente leitor.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk